Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
056794
Nº Convencional: JSTJ00004122
Relator: AGOSTINHO FONTES
Descritores: CLAUSULA COMPROMISSORIA
COMPROMISSO ARBITRAL
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ195707230567941
Data do Acordão: 07/23/1957
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IªS DE 05-08-1957; BMJ 69, 563
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 2/1957
Área Temática: DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC39 ARTIGO 763 ARTIGO 765 ARTIGO 766 ARTIGO 1565.
CPC876 ARTIGO 44 ARTIGO 45.
CCIV867 ARTIGO 3 ARTIGO 5 ARTIGO 8.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1956/05/08 IN BMJ N57 PAG281.
ACÓRDÃO STJ DE 1945/01/12 IN COL OF ANO5 PAG19.
ACÓRDÃO STJ DE 1946/04/05 IN COL OF ANO6 PAG109.
Sumário :
O artigo 1565 do Codigo de Processo Civil, na parte em que confere o direito de efectivar o compromisso arbitral, não e aplicavel as clausulas compromissorias estipuladas na vigencia do Codigo de 1876.
Decisão Texto Integral: A clausula 19 do pacto social da Sociedade Comercial A, Limitada, constituida na Vila de Alcacer do Sal por escritura de 4 de Maio de 1923, diz que "todas as duvidas ou questões sobre assuntos respeitantes ao contrato, entre os socios ou entre estes e a sociedade, serão decididas amigavel, sumariamente e, sem recurso, por arbitros, para o que eles, outorgantes, por si e seus herdeiros ou representantes, se obrigam a celebrar os respectivos compromissos, ficando aquele que faltar ao cumprimento desta clausula obrigado a pagar, como pena convencional a quantia de 15000 escudos, cujo destino a Sociedade determinara".
Em assembleia geral extraordinaria de 24 de Dezembro de 1954, foi deliberado dar nova redacção a um outro artigo do referido pacto social, contra o que protestaram os socios B, sua esposa, C, proprietarios, D, viuva, proprietaria, e E, viuva, proprietaria, todos residentes em Alcacer do Sal e representantes do falecido socio A, os quais, depois, invocando o artigo 1565 do Codigo de Processo Civil, requereram ao Senhor Juiz da comarca de Alcacer do Sal a notificação daquela Sociedade para se comprometer em arbitros que decidissem a questão nascida daquela divergencia.
Feita a notificação, a Sociedade agravou do despacho que a ordenara, baseando-se em que o referido artigo não pode compeli-la ao cumprimento especifico daquela clausula compromissoria porque ela foi estabelecida na vigencia do Codigo de Processo de 1876, que não impunha tal compromisso.
A Relação deu provimento ao agravo, por entender que, com efeito, a mencionada clausula compromissoria não deve sujeição aquele artigo 1565, na parte em que este impõe a celebração do compromisso, por se tratar de materia de direito substantivo e ter sido a clausula pactuada na vigencia do Codigo de 1876, que não obrigava a tal celebração.


Do respectivo acordão foi trazido, pelos mencionados socios, agravo para este Supremo Tribunal de Justiça, que lhe negou provimento, sancionando a decisão da Relação, por seu acordão de folhas 90.


Interpuseram então os agravantes recurso para o Tribunal Pleno, sob a alegação de que esse acordão esta em oposição com os acordãos, tambem deste Supremo Tribunal, de 12 de Janeiro de 1945 e 5 de Abril de 1946, publicados, respectivamente, a paginas 19 do ano 5 e 109 do ano 6, do Boletim Oficial do Ministerio da Justiça.


A Secção, por seu acordão de folhas 186, reconheceu a existencia dessa oposição, a qual, de resto, desde logo fora reconhecida no acordão recorrido.
Alegaram as partes nos termos do artigo 765 do Codigo de Processo Civil e deu-se cumprimento ao disposto no artigo 766.


Os recorrentes assentam o recurso, substancialmente, em que:
I - Aquela clausula 19 constitui o chamado "contrato processual", cujo conteudo (ou efeitos), de natureza adjectiva, são exclusivamente a derrogação da competencia da jurisdição ordinaria e a estatuição da competencia do Tribunal Arbitral;


II - O artigo 1565 do Codigo de Processo Civil apenas veio assegurar no meio tecnico juridico de realização do conteudo da clausula compromissoria, isto e, de estatuição do Tribunal Arbitral;
III - Trata-se de norma de organização judiciaria e por isso de natureza processual ou adjectiva;


IV - Não ha que invocar quanto a ela o artigo 8 do Codigo Civil, ja por ser norma de natureza adjectiva, ja porque a sua aplicação não ofende direitos substantivos adquiridos, mas meros direitos objectivos ou poderes legais;
V - O artigo 1565 não pode ser simultaneamente preceito de natureza adjectiva e preceito de natureza substantiva.


O ilustre representante do Ministerio Publico junto das Secções Civeis deste Supremo Tribunal, em seu doutissimo parecer, opina que deve lavrar-se assento no sentido de que a obrigatoriedade do compromisso estabelecida no citado artigo 1565 não e aplicavel as clausulas compromissorias anteriores a vigencia do Codigo actual.
Tudo visto:


O Codigo Civil define, o artigo 3, o direito civil ou substantivo como sendo o regulador dos direitos e obrigações limitadas as relações reciprocas dos cidadãos entre si, como meros particulares, ou entre os cidadãos e o Estado, em questões de propriedade ou de direitos puramente individuais, direitos e obrigações que constituem a capacidade civil dos cidadãos e são regidos pelo direito privado.


Direito processual ou adjectivo e o que regula a maneira de fazer valer e defender os direitos perante a justiça, constituindo um ramo de direito publico.
Esta em recurso a questão de saber se o mencionado artigo 1565 na parte que impõe aos contraentes de clausula compromissoria a celebração do compromisso, a requerimento de um deles, abrange as clausulas compromissorias estipuladas na vigencia do Codigo de 1876.
Ha que averiguar se estamos na presença de uma determinação de direito processual ou se ela e, pelo contrario, de natureza substantiva, e isso pela influencia da distinção perante o preceito do artigo 8 do Codigo Civil, que veda efeito retroactivo a lei civil, salvo tratando-se da lei interpretativa, a qual e aplicada retroactivamente se dessa aplicação não resultar ofensa de direitos adquiridos.


O Codigo de Processo Civil de 1876 no artigo 44, permitia que se decidissem por arbitros as questões sobre que pudesse transigir-se, e dispunha o artigo 45 do mesmo diploma que o compromisso respectivo deveria celebrar-se por escritura.


Se, porem, convencionado o juizo arbitral, uma parte quisesse derimir a questão por essa forma e a outra não anuisse, não tinha aquela meio de compelir esta a celebração do compromisso, a falta de preceito de que pudesse socorrer-se para tanto.


A clausula era considerada valida, mas ineficaz para assegurar o cumprimento especifico, so dando lugar, quando recusada a celebração do compromisso por um dos contraentes, ao pagamento de uma indemnização pelo remisso a favor do cumpridor, em função das regras aplicaveis ao incumprimento dos contratos.


O Codigo de Processo Civil actual tornou possivel o cumprimento especifico da clausula compromissoria, no mencionado artigo 15665, dando a parte cumpridora o poder de compelir a parte remissa a celebração do compromisso.
Com efeito, depois de estabelecer a validade da convenção compromissoria, que ja era admitida pela doutrina e pela jurisprudencia, dispõe que, "estipulada a clausula compromissoria, se surgir alguma questão abrangida por ela e uma das partes se mostrar remissa a celebrar o compromisso, pode a outra parte requerer ao tribunal da comarca do domicilio daquela que a mande notificar pessoalmente para comparecer perante ele, a fim de se comprometer em arbitros".


E institui tambem medidas de suprimento para o caso de falta do notificado ou sua recusa a nomear arbitros.


Esta ultima parte e, como a relativa a notificação do remisso, nitidamente de direito processual, sobre o que não ha divergencia.


Mas tera tambem natureza adjectiva a propria faculdade de compelir o remisso a celebração do compromisso arbitral?


O acordão em recurso decidiu que não, atribuindo-lhe, pelo contrario, natureza substantiva, e por isso considerou o preceito inextensivo, nessa parte, a discutida clausula, como constituida na vigencia da legislação anterior e dado o disposto no artigo 8 do Codigo Civil.


Os acordãos oferecidos para confronto julgaram em sentido oposto.
O primeiro decidiu que, estipulada no dominio do Codigo de Processo Civil de 1876, em apolice de seguro, uma clausula compromissoria determinando a sujeição previa de questão sobre sinistros ao Tribunal Arbitral, de forma a que nenhuma acção judicial possa ser intentada antes da sentença arbitral, ha lugar, no caso de litigio, e na vigencia do actual Codigo, ao cumprimento do disposto no artigo 1565.


E decidiu o segundo ser de fazer a notificação para o compromisso do artigo 1565 do Codigo de Processo Civil em relação a uma clausula compromissoria constante de escritura de 16 de Novembro de 1935.
E, pois, manifesta a posição invocada, sobre a mesma questão de direito; e, porque se trata de processos diferentes e de decisões proferidas no dominio da mesma legislação e se presume o transito dos acordãos indicados para confronto, estão verificados os pressupostos do artigo 763 e seus paragrafos, do Codigo de Processo Civil.


Vejamos, pois, o recurso:


O referido artigo 44 do velho Codigo dava as partes a liberdade de adoptar ou não o juizo arbitral, e a adopção tinha por base uma convenção contratual.
Nas mesmas liberdade e formação contratual assenta o artigo 1565 do Codigo actual.


O Estado não tem qualquer ingerencia na escolha do juizo arbitral, a qual, portanto, esta fora do ambito do direito adjectivo.


A clausula compromissoria e, pois, de essencia civil ou substantiva. Pelo Codigo antigo, o contraente cumpridor não tinha preceito que lhe assegurasse o cumprimento especifico da obrigação assumida pelo outro contraente, de se submeter ao juizo convencionado.


Adquiria pela clausula, um direito afinal incompleto.


O Codigo actual possibilitou o cumprimento especifico tornando obrigatoria a celebração do compromisso a requerimento da parte cumpridora.
Medida de direito publico processual?


Respondemos afoitamente que não.


O compromisso, em si, não e formalidade processual.


Dele dizia Dias Ferreira que "e verdadeiro contrato que parece ate derivar o seu nome da promessa que as partes antigamente faziam de pagar certa soma, se depois não estivessem pela decisão arbitral" - Processo Civil Anotado, volume I, pagina 106. E acto de direito privado.
A obrigatoriedade de compromisso aparece no artigo 1565, não como formalidade judiciaria adequada a fazer funcionar um direito preexistente, mas sim com a função de integrar um direito incompleto ou imperfeito o direito de fazer julgar a questão por arbitros.


Aquele artigo 1565 acrescentou a esse direito o poder que lhe faltava, tornando o compromisso inerente a obrigação resultante da convenção, assegurando dessa forma a eficacia do mesmo direito.

Essa função asseguradora e nitidamente civil, pois que a lei civil, alem de reconhecer e especificar direitos e obrigações, mantem e assegura a fruição daqueles e o cumprimento destas, como e lição do artigo 5 do Codigo Civil.
A forma de exercer judicialmente esse poder assegurador e que e do dominio do direito processual.
Por isso se tem como exacta a afirmação do acordão recorrido, de que, tornando o compromisso obrigatorio, o artigo 1565 criou direito, alargando os efeitos da convenção compromissoria.
Para atacar estas razões, dizem os recorrentes que uma norma não pode ser simultaneamente de direito substantivo e de direito adjectivo, mas ha manifesto vicio no raciocinio.
E evidente que uma norma singela não pode ser ao mesmo tempo de direito substantivo e de direito processual,mas outro não pode afirmar-se quanto a uma disposição complexa, como e a do artigo 1565 do Codigo de Processo Civil, pois que as disposições desse tipo podem conter normas de natureza diferentes.
Tal preceito e de direito substantivo na parte em que tem por valida a clausula compromissoria e por obrigatorio o compromisso a requerimento da parte contraria, e de direito processual na parte em que determina o modo de fazer funcionar essa obrigação do compromisso.
Louvam-se tambem os recorrentes para fazer submeter aquela obrigatoriedade aos dominios do direito adjectivo, na doutrina dos chamados negocios juridicos processuais.
Certos tratadistas de direito, não obstante a diversidade existente entre relação processual e relação contratual, mas porque em muitos casos a vontade das partes determina efeitos juridicos no processo, pretendem transportar para o campo do direito adjectivo a doutrina do negocio juridico no direito privado. Hugo Rocco, um dos criadores da ideia, ainda deficiente e imperfeita no dizer do professor Doutor A. Reis, Processo ordinario e sumario, pagina 164 - começa por distinguir entre actos processuais e actos extraprocessuais. Quanto a estes, diz aquele professor, no lugar citado, ao expor a doutrina daquele tratadista italiano: "As partes realizam certos actos juridicos com um conteudo processual, mas porque, os realizam fora do processo e antes mesmo de existir o processo, não podem incluir-se tais actos na categoria dos negocios juridicos processuais. E o que sucede com o compromisso arbitral, com a chamada clausula compromissoria, com o pactum de non petendo e o pactum de foro prorogado. Trata-se de negocios juridicos extraprocessuais, regulados pelos principios de direito privado, mas que produzem efeitos de caracter processual. Daqui flui que a invocação da teoria dos negocios de direito processual não se quadra a tese dos recorrentes.
E coincidente com aquele conceito de Rocco a exposição da doutrina feita pelo Doutor Manuel Rodrigues,
Lições de Direito Processual Civil, coligidas por João de Matos e Sant'Ana Godinho, pagina 130. Ai se diz, a proposito dos negocios juridicos processuais, que são negocios no processo "e assim se distinguem dos negocios de direito processual e extraprocessuais, que são declarações de vontade que não fazem parte integrante do processo e são regulados pelos principios de direito privado".
Reconhecida, assim, a natureza substantiva da referida obrigatoriedade do compromisso arbitral, o problema que resta e de aplicação da lei civil no tempo.
Ora, como diz o ilustre representante do Ministerio Publico em seu douto parecer, nenhuma das teorias sobre a não retroactividade das leis da guarida a pretensão de submeter a clausula que se discute ao citado artigo 1565.
Para a teoria classica dos direitos adquiridos - que inspirou o artigo 8 do nosso Codigo Civil, a lei nova respeita todos os direitos adquiridos no periodo da vigencia da lei antiga, e so as simples expectativas ou faculdades juridicas podem ser livremente alteradas pela nova lei.
Ora pela clausula compromissoria de que se trata logo foi reconhecido aos contraentes o direito de renuncia ao juizo arbitral convencionado e ate fixado o montante da indemnização a pagar pelo renunciante ao contraente cumpridor, estando-se, portanto, em face de direito adquirido na vigencia da lei antiga.
Para a teoria que distingue as situações juridicas objectivas, ou poderes legais, das subjectivas ou individuais, so estas são de respeitar pela nova lei, mas no caso em analise, quando surgiu a nova lei, subjectivara-se ja nos contratantes, por um acto de vontade - a convenção - o poder legal objectivo, ao tempo existente, de renunciar ao juizo convencionado.
Para a teoria do facto passado (factum praeteritum, os factos são regulados pela lei vigente ao tempo em que se realizam e essa mesma lei se aplica aos efeitos ou consequencias juridicas desses factos, e certo e que a renuncia apareceria aqui como efeito do regime legal das clausulas compromissorias na vigencia do Codigo de 1876.
A obrigatoriedade do compromisso instituida no citado artigo 1565 não e, pois, extensiva a clausula compromissoria em causa.
Outras reflexões podia suscitar o assento, baseadas no caracter supletivo das normas reguladoras das relações contratuais e sua influencia para com as estipulações compromissorias com reserva da faculdade de renuncia, mas isso e materia que excede, porventura, os limites do recurso.
Pelo exposto, acordam os do Supremo Tribunal de Justiça em confirmar o acordão recorrido, negando, assim, provimento ao recurso.
E estabelecem o seguinte assento:
O artigo 1565 do Codigo de Processo Civil, na parte em que confere o direito de efectivar o compromisso arbitral, não e aplicavel as clausulas compromissorias estipuladas na vigencia do Codigo de 1876.
Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 23 de Julho de 1957

Agostinho Fontes (Relator) - A. Sampaio Duarte - Sousa Carvalho - Eduardo Coimbra - Carlos Saavedra - Lopes Cardoso - Perestrelo Botelheiro - Sousa Pinto - Julio M. de Lemos - Piedade Rebelo - A. Gonçalves Pereira - Mario Cardoso - Lencastre da Veiga - A. Baltasar Pereira.