Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8891/20.2T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: CONHECIMENTO PREJUDICADO
INTERESSE EM AGIR
TRÂNSITO EM JULGADO
Data do Acordão: 09/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIDO O OBJECTO DO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- A admissibilidade do recurso pressupõe que o recorrente tenha interesse em agir ou interesse processual.

II- No âmbito dos recursos, o interesse em agir encontra-se ligado à utilidade efectiva na intervenção do tribunal superior, traduzido na possibilidade de a questão submetida ter uma repercussão favorável ao recorrente no processo em que o recurso foi interposto. Se o recorrente não alcança, com o recurso, qualquer efeito útil, não tem interesse em agir.

III- Não tem interesse em agir o recorrente que, em face da decisão do Tribunal da Relação de considerar improcedente a excepção de prescrição, apreciando-a em duas vertentes: i) - a interrupção do prazo de prescrição nos termos do artigo 323.º, n.º 2 do Código Civil e ii) - a suspensão do prazo de prescrição por aplicação do disposto no artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, apenas põe em causa esta segunda, verificando-se o trânsito em julgado quanto àquela primeira questão.

Decisão Texto Integral:


Processo 8891/20.2T8LSB-A.L1.S1

Revista

30/22

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou contra EMEL - Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa, E.M., S.A. acção declarativa comum, peticionando que se reconheça ao Autor a categoria profissional de técnico superior no nível I entre 4 de Maio de 2015 e 31 de Dezembro de 2016 e a condenação da Ré a colocar o Autor no nível II da categoria profissional de técnico superior entre 1 de Janeiro de 2017 e 31 de Dezembro de 2018, bem como a pagar-lhe a quantia total de € 33.111,77, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal relativas a diferenças salariais.

Citada, a Ré contestou, arguindo, além do mais, a excepção peremptória de prescrição.

Foi proferido saneador sentença, que julgou improcedente a excepção peremptória de prescrição e determinou o prosseguimento dos autos para realização da audiência de julgamento.

A Ré interpôs recurso de apelação do despacho saneador na parte em que conheceu da excepção de prescrição.

O Tribunal da Relação proferiu acórdão, negando provimento à apelação e confirmando a decisão recorrida.

A Ré veio interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

1. O art.º 7º n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março (na redacção conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril), preconizou a suspensão dos prazos para instaurar ações judiciais.

2. Aquela norma estabeleceu meramente a suspensão de todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais praticáveis no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais, demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, ministério público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal.

3. Assim sendo só ficaram sujeitos àquela suspensão os atos processuais e procedimentais praticáveis (se já estivesse em curso um processo judicial: é esta a interpretação suscitável) nas diversas jurisdições, ao regime das férias judiciais (Cfr. n.º 1 do art.º 137º do CPC, o qual prevê que: “Sem prejuízo de atos realizados de forma automática, não se praticam atos processuais nos dias em que os tribunais estiverem encerrados, nem durante o período de férias judiciais”).

4. O regime das férias judiciais para a suspensão de prazos no âmbito do art.º 7º n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março (na redacção conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 deAbril) só pode abranger os processos judiciais já em curso: instaurados em juízo.

5. Anão ser assim, um prazo não judicial (prazo substantivo) ficaria suspenso, antes mesmo de existir uma ação em tribunal, ficando sujeito a um regime (das férias judiciais) pressupondo a existência de um processo judicial.

6. A intenção do legislador (como já acontece no regime das férias judicias) foi apenas a de reduzir o peso da pendência da tramitação judicial dos diversos intervenientes profissionais do foro (magistrados, funcionários judiciais, advogados, agentes de execução, administradores de insolvência, entre outros) evitando deslocações físicas aos Tribunais, reduzindo assim a circulação de pessoas e o respetivo risco de contágio (então mais sublimado).

7. A Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março não possui qualquer previsão que consagre a aplicabilidade do regime de férias judiciais (no âmbito da suspensão dos prazos processuais) a prazos que não corressem termos em tribunal (leia-se o art.º 7º n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, na redacção conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 deAbril).

8. O legislador consagrou as soluções mais acertadas, exprimindo o seu pensamento em termos adequados (Cfr. art.º 9º n.º 3 do CC) e fê-lo distinguindo uma norma concreta para suspensão de prazos adjetivos/processuais de uma norma específica para prazos substantivos, sem incluir nesta última qualquer menção a matérias de âmbito laboral e se não o fez teve, certamente, um propósito claro.

9. A jurisprudência também aponta no sentido do prazo consagrado no artigo 337º do CT [1 (um) ano (365 dias), parecendo ser mais do que suficiente (o legislador assim o considera há vários anos) para que um ex-trabalhador exerça os seus direitos de crédito] ser substantivo.

10. Seria legítimo indagar, à luz de um entendimento distinto do exposto e porque a sua sustentação só poderia advir (na sua génese) de considerar que uma norma do CT (como por exemplo o art.º 337º) é influenciável pelo regime das férias judiciais, se (assim sendo, em contrário da tese que perfilhamos) as demais dezenas de prazos fixados no CT [ex: art.ºs 5º, n.º 5, al. b), 7º, n.º 2, al. b), 8º, n.º 2, 18º, n.º 4, 21º, n.º 4, 36º, n.º 1, al. b) 37º, n.º 2, 37º-A, n.º 2, 38º, n.º 1, 40º, n.ºs 1, 2, 3, 5, 7, 8 e 10, 41º, n.ºs 1 e 3, 42º, n.ºs 3 e 4, entre muitos outros] também estivessem suspensos e sujeitos ao regime das férias judiciais (?) e se a resposta fosse afirmativa, sem conceder, com que sentido se justificaria tal interpretação já que também são prazos substantivos do CT?

11. A resposta parece terá de ser negativa, até porque existiram disposições especiais que estabeleceram, objetiva e indubitavelmente, a suspensão de prazos substantivos (o que não se verificou com as regras/prazos do CT), tais como o art.º 8º da Lei n.º 1-A/2020 (na redacção da Lei n.º 4-A/2020, de 16 de Abril que suspendeu os efeitos da caducidade e da revogação, denúncia e oposição à renovação efetuadas pelo senhorio: manifestamente, prazos não adjetivos) e também o artigo 4º do DL n.º 10-J/2020, de 26 de Março que consagrou moratórias em relação a certos créditos.

12. O prazo consagrado para o processo declarativo comum (Cfr. art.º 337º, n.º 1, do CT) não é adjectivo, pois não pressupõe a existência de um processo judicial, consagrando apenas sim um limite temporal para a respetiva instauração em juízo e por esse motivo o mesmo não está protegido pelo regime das férias judiciais, estando por isso fora do âmbito deaplicação do artigo 7ºn.º1 daLein.º1-A/2020 de19 deMarço (naredacção conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 deAbril).

13. Nem o CPC, nem o CPT possuem qualquer remissão para o CT, nem este último para aqueles outros diplomas, i.e., o regime das férias judiciais (vide artigo 137º, n.º 1 do CPC e artigo 26º, n.º 2 do CPT) é eminentemente um sistema do direito adjetivo/processual, não se aplicando a qualquer prazo fixado no direito substantivo, como é o caso das regras temporais de reação aos despedimentos previstas no CT.

O Autor apresentou contra-alegações.

O Tribunal da Relação admitiu o recurso.

Cumpre apreciar e decidir.

x

Definindo-se o âmbito do recurso pelas suas conclusões, temos, como única questão em discussão, a de saber se o artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, que determinou a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos durante a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, é aplicável ao prazo de prescrição previsto no artigo 337.º, n.º 1 do Código do Trabalho.           

x

Como factualidade relevante temos a descrita no relatório deste acórdão.          

x

Cumpre apreciar e decidir:

Atento o modo como a Recorrente configurou o recurso, a sua procedência não teria qualquer efeito útil para o mesmo.

Deste modo, a Recorrente não tem interesse em agir quanto ao presente recurso.

E ainda que se entendesse que não está em causa o pressuposto do interesse em agir, sempre a apreciação do presente recurso configuraria a prática de um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do Código de Processo Civil.

Foi dado cumprimento ao disposto no artº 655º do mesmo diploma.

A admissibilidade do recurso pressupõe que o recorrente tenha interesse em agir ou interesse processual.

Este pressuposto corresponde à concretização em sede recursiva do pressuposto processual geral de interesse em agir, que se caracteriza como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir o processo.

No âmbito dos recursos, o interesse em agir encontra-se ligado à utilidade efectiva na intervenção do tribunal superior, traduzido na possibilidade de a questão submetida ter uma repercussão favorável ao recorrente no processo em que o recurso foi interposto. Se o recorrente não alcança, com o recurso, qualquer efeito útil, não tem interesse em agir.

Este pressuposto não se confunde com a legitimidade, na medida em que o recorrente pode ter decaído quanto à questão ou questões objecto do recurso e não ter, contudo, face às circunstâncias concretas, necessidade de recorrer ao recurso.

Conforme refere Abrantes Geraldes, na anotação ao artigo 641.º, a propósito dos pressupostos processuais em matéria de recursos ordinários:

“d) Interesse processual: não se confundindo com a legitimidade processual, não poderão deixar de se verificar o interesse em agir, na perspetiva do direito à interposição de recursos, a fim de evitar desperdícios da atividade jurisdicional com questões que não apresentam qualquer utilidade objetiva. Posto que não exista um preceito que especificamente trate de tal pressuposto ele é visível, por exemplo, nos arts. 644.º, n.º 4, 660.º e 671.º, n.º 4, Quando referem que o provimento da impugnação de impugnação de decisões interlocutórias exige a verificação de um efectivo interesse para o recorrente. Faltando interesse processual, o juiz a quo ou o relator no tribunal a de quem estão legitimados a indeferir o recurso, tendo em conta, respectivamente, o que se dispõe nos arts. 641.º, n.º 2, al. a), 652.º, n.º 1, al. b) e 655.º” (in “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 6.ª Edição Actualizada, 2020, págs. 216).

A expressão “vencido” constante do art. 631.º do CPC deve ser entendida no sentido de parte objectivamente afectada ou prejudicada pela decisão, pelo que o vencimento ou decaimento devem ser aferidos segundo um critério material, que tome em consideração o resultado final da acção e a sua projecção na esfera jurídica da parte, e não numa perspectiva formal, em função dos fundamentos ou razões que ditaram a decisão ou da adesão ou não adesão do juiz à posição expressada pela parte sobre a matéria litigiosa”- Ac. do STJ de 17-06-2021, Revista n.º 2066/11.9TJPRT-D.P1.S1 - 2.ª Secção

O interesse em agir deve ser apreciado de acordo com os princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça, que impõem que se encontre uma solução proporcional e adequada, que não vede o acesso necessário ou útil nem permita o acesso supérfluo e inútil.

No caso vertente, compulsadas as conclusões da Recorrente, que delimitam o objecto do recurso, verifica-se que esta apenas põe em causa a decisão do Tribunal da Relação na parte em que considerou que o prazo de prescrição esteve suspenso entre 9 de Março e 3 de Junho de 2020 por força do disposto no artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março[1].

Sucede que o acórdão do Tribunal da Relação não se limitou a julgar improcedente esta excepção com fundamento na referida suspensão do prazo. Com efeito, o Tribunal da Relação apreciou a excepção de prescrição em duas vertentes[2]:

I) a interrupção do prazo de prescrição nos termos do artigo 323.º, n.º 2 do Código Civil;

ii) a suspensão do prazo de prescrição por aplicação do disposto no artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março.

Quanto à primeira questão, o Tribunal da Relação considerou que “Na verdade, atenta a data da cessação do contrato de trabalho – 20 de Abril de 2019 – o prazo de prescrição dos créditos do A. iniciou-se no dia seguinte nos termos do artigo 337.º, n.º 1 do Código do Trabalho – 21 de Abril de 2019 – e terminaria no mesmo dia do ano subsequente – dia 21 de Abril de 2020.

Assim, situando-se o dies a quo para a contagem do prazo de prescrição no dia 21 de Abril de 2019, dia seguinte àquele em que o A. cessou as suas funções ao serviço da R., o dies ad quem do prazo de prescrição dos créditos laborais emergentes da violação ou cessação deste contrato de trabalho nos termos do artigo 337.º do Código do Trabalho se situa em 21 de Abril de 2020.

Pelo que é de considerar que a prescrição se interrompeu em 20 de Abril de 2020 nos termos do artigo 323.º, n.º 2 do CC, antes pois do referido dia 21 de Abril de 2020, que constituía o dies ad quem daquele prazo prescricional que, assim, se não chegou a completar”.

O Tribunal da Relação considerou assim que o prazo de prescrição se interrompeu em 20.04.2020 nos termos do artigo 323.º, n.º 2 do Código Civil, ou seja em data anterior ao termo do prazo (21.04.2020), desconsiderado de qualquer suspensão.

Ora, tendo a Recorrente restringido o objecto do recurso à questão da aplicação do artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020[3] ao prazo de prescrição do artigo 337.º, n.º 1 do Código do Trabalho, a decisão quanto à primeira questão transitou em julgado.

Por conseguinte, mesmo que o recurso viesse a ser julgado procedente e se considerasse que o prazo não se suspendeu, ainda assim a excepção de prescrição sempre seria improcedente, por o prazo se ter interrompido antes do respectivo termo. Com a consequente inutilidade para a Recorrente da procedência do recurso, não tendo a mesma, como se adiantou supra, interesse em agir.

E também como já se afirmou, mesmo que assim não fosse,  sempre a apreciação do presente recurso configuraria a prática de um acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do Código de Processo Civil.

x

Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em não conhecer do objecto do recurso.

Custas pela Recorrente.                                      

                                                                                  

Lisboa, 07/09/2022

Ramalho Pinto (Relator)

Domingos José de Morais

Mário Belo Morgado

                     

Sumário (elaborado pelo Relator).

        

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[1] Pese embora a recorrente defenda a inaplicabilidade do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, as instâncias aplicaram o n.º 3 do mesmo preceito.

[2] Conforme sintetizado no acórdão recorrido:

Nas conclusões das alegações que apresentou, a recorrente invoca que os créditos peticionados pelo A. estariam extintos às 24 horas do dia 20 de Abril de 2020 e que não é aplicável o art. 323.º, n.º 2 do CC pois entre a data da instauração da acção e a passagem do prazo de prescrição não chegaram a decorrer cinco dias de intervalo e o A. não diligenciou pelo pedido de citação urgente da R..

Invoca, ainda, que o prazo de prescrição previsto no artigo 337.º do Código do Trabalho é de natureza substantiva e se encontra fora do âmbito de aplicação do artigo 7.º da Lei n.° 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção conferida pela Lei n.° 4-A/2020, de 06 de Abril, pelo que o referido prazo de prescrição dos créditos do A. não se suspendeu até ao dia 3 de Junho de 2020”.
[3] Pese embora a recorrente defenda a inaplicabilidade do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, as instâncias consideraram aplicaram o n.º 3 do mesmo preceito.