Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7353/15.4T8VNG-A.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
PRESUNÇÃO DE CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
ACTO DE DISPOSIÇÃO
ATO DE DISPOSIÇÃO
DISPOSIÇÃO DE BENS
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – RECURSOS / INCIDENTES DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA / INSOLVÊNCIA CULPOSA.
Doutrina:
-Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, 1973, FDL, p. 62;
-Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, p.62 e 64;
-Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 7.ª Edição, p. 282.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 14.º, N.º 1 E 186.º, N.º 2, ALÍNEA D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 14-11-2014, PROCESSO N.º 1444/08, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 29-06-2010, PROCESSO N.º 1965/07.7BFAF-A.G1, IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 1-06-2007, PROCESSO N.º 0731779, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - A disposição de bens a que alude a alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE não se reconduz apenas aos atos de alienação.

II - Tendo os insolventes prometido vender a certo credor, com eficácia real, o seu direito sobre um imóvel, imóvel que traditaram para esse credor, e tendo o tribunal retirado a ilação de que com tais procedimentos se pretendeu, no mínimo, beneficiar o promissário e prejudicar os demais credores, estamos, nos termos e para os efeitos da referida norma, perante um ato de disposição de um bem em proveito de terceiro.

III - O nº 2 do art. 186º do CIRE estabelece presunções iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência.

IV - A circunstância do negócio de promessa de venda ter sido posteriormente resolvido em benefício da massa pelo administrador da insolvência, não implica, para efeitos de qualificação da insolvência, a conclusão e que tudo se passa como se a dita promessa não tivesse existido.

V - A presunção de culpa fundada na alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE aplica-se ao insolvente pessoa singular, sendo para o caso indiferente que não seja uma empresa ou que não seja comerciante.

Decisão Texto Integral:

                  

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Foi oportunamente declarada (Comarca do Porto - V.N. Gaia - Inst. Central - 2ª Secção de Comércio - J2) a insolvência de AA e mulher BB (doravante denominados Insolventes), na sequência do que teve lugar a abertura do incidente de qualificação da insolvência.

O Administrador da Insolvência apresentou parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, sendo afetados por essa qualificação os dois Insolventes.

Concluiu, com base nos factos que aduziu, e aqui dados por reproduzidos, que os Insolventes levaram a efeito negócios fictícios com o intuito de prejudicar os credores da insolvência.

O Ministério Público pronunciou-se igualmente no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa, sendo afetados por essa qualificação os dois Insolventes.

Os Insolventes deduziram oposição, sustentando, com base nos factos que alegaram, e aqui dados por reproduzidos, que a insolvência devia ser qualificada como fortuita.

Seguindo o procedimento seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença que:

1. Qualificou a insolvência como culposa;

2. Declarou afetados pela qualificação da insolvência como culposa os Insolventes AA e BB;

3. Decretou a inibição dos Insolventes para administrarem patrimónios de terceiros pelo período de sete anos;

4. Declarou a inibição dos Insolventes para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de sete anos;

5. Determinou a perda de quaisquer créditos dos Insolventes sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;

6. Condenou os Insolventes a indemnizarem os credores da Insolvente no montante dos créditos não satisfeitos após o término da liquidação do ativo, até às forças do respetivo património, valor a apurar em liquidação de sentença.

Inconformados com o assim decidido, apelaram os Insolventes.

Fizeram-no sem êxito, pois que a Relação do Porto confirmou, embora com fundamentação não coincidente, a sentença recorrida.

Mantendo-se inconformados, pedem os Insolventes revista.

Da respetiva alegação extraem as seguintes conclusões:

A. O recurso é interposto do douto acórdão proferida nos autos a folhas 404 e seguintes, o qual, pesem embora as modificações decretadas relativamente à sentença de 1ª Instância, decidiu manter a qualificação da insolvência como culposa.

B. Um contrato-promessa de compra e venda, ainda que com eficácia real e tradição do objecto, não se reconduz a um ato de disposição de bens;

C. A tradição da coisa consubstancia uma mera detenção, como foi aqui o caso, pelo que é precária, indexada, como é evidente, à sorte do contrato promessa, pelo que essa atribuição de detenção não constitui também um ato de disposição de bens;

D. A lei - artigo 186.º, n.º 2, al. d) do CIRE - quando fala em disposição quer referir a ato de alienação;

E. O contrato promessa do ponto 20 do provado foi resolvido pelo Sr. A.I. em benefício da massa, pelo que os efeitos de tal resolução operam, como é sabido ex nunc, ou seja, o contrato resolvido é “destruído” e tudo de passa como se nunca tivesse existido, o que torna inconsistente dizer-se que o contrato promessa em causa implicou uma diminuição efetiva do património dos insolventes;

F. Ademais, não se verifica nos autos, que a diminuição da garantia patrimonial dos credores do insolvente seja correlativa de igual diminuição provinda o acto de disposição do património deste em favor do devedor ou de terceiro, pressuposto este exigível para a aplicação da norma que sustenta a decisão do douto acórdão.

G. Conclui-se que não se verificou in casu qualquer ato de efetiva disposição de bens, exigida pelo supracitado art. 186.º, n.º 2, al. d) do CIRE, sendo também de concluir que, objetivamente, não houve qualquer prejuízo para os credores, visto que o imóvel prometido vender se manteve no património da massa insolvente, de cuja titularidade, aliás, nunca saiu e para a qual se mostra, de resto, apreendido;

H. O nº 2 do art.186º do CIRE não se aplica em caso de insolvência singular, como o dos presentes autos, sem prejuízo do previsto no nº 4 do preceito, aqui inaplicável em virtude de os insolventes não serem uma empresa, ou seja, uma organização de capital e trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica, como dispõe o art. 5º do CIRE., e também não serem comerciantes, ou seja e segundo o art. 13º do Código Comercial, não são pessoas que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão;

I. Não sendo de aplicar a presunção inilidível do nº 2 do art.186º do CIRE, a qualificação da insolvência como culposa carecia da demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento, o que os autos não evidenciam;

J. Destarte, o douto acórdão em crise deve ser revogado, qualificando-se a insolvência como fortuita.

                                                           +

O Ministério Público aLLu papel, onde, citando jurisprudência vária, se limitou a dizer que o recurso era inadmissível.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

Da questão prévia da inadmissibilidade do recurso

Diferentemente do que pretende o Ministério Público, não se aplica ao caso o art. 14º, nº 1 do CIRE, mas sim o regime geral dos recursos tal como constante do CPCivil. De resto, o Ministério Público terá incorrido em lapso, visto que se estriba exclusivamente em jurisprudência produzida no âmbito no processo especial de revitalização (PER), quando a verdade é que não é desse tipo de processo que estamos aqui a tratar.

Como é jurisprudência reiterada deste Supremo (v., por todos, o acórdão de 14 de Novembro de 2014, processo nº 1444/08, disponível em www.dgsi.pt), o art. 14º, nº 1 do CIRE é de aplicação restrita ao processo de insolvência em si mesmo e aos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência (e ainda ao processo de revitalização). Não se aplica aos procedimentos declarativos que correm por apenso, e que são autónomos ou diferenciados processualmente daqueles outros, como é precisamente o caso do procedimento de qualificação da insolvência.

Improcede pois a questão prévia da inadmissibilidade do recurso.

E dado que, conquanto a sentença da 1ª instância tenha sido confirmada, não está constituída uma situação de dupla conforme (verifica-se uma situação de fundamentação essencialmente diferente), impõe-se conhecer do recurso.

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

É questão a conhecer:

- Qualificação da insolvência.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes, após a modificação feita operar pelo acórdão recorrido:

1. CC intentou ação de insolvência contra AA e BB em 18/8/2015.

2. Os requeridos não deduziram oposição nessa ação, pelo que, por sentença de 5/10/2015, transitada em julgado, foram declarados insolventes.

3. O insolvente AA foi sócio e gerente das sociedades “DD & C.ª, Lda.”, “EE - ..., Lda.” e “FF - Sociedade Imobiliária, Lda.”

4. A insolvente BB nunca foi gerente dessas sociedades e nunca pertenceu a qualquer órgão social das mesmas.

5. Em 2/7/2009 foi declarada a insolvência de “DD & C.ª, Lda.” - cfr. fls. 14

6. Em 13/11/2012 foi declarada a insolvência de “EE - ..., Lda.” - cfr. fls. 16

7. Em 1/10/2015 foi declarada a insolvência de “FF - Sociedade Imobiliária, Lda.” cfr. fls. 17

8. Os insolventes prestaram avais e fianças às sociedades referidas em 3., constituindo-se solidariamente responsáveis no âmbito de financiamentos concedidos a essas empresas.

9. Em virtude da declaração de insolvência das referidas sociedades, os insolventes foram interpelados para, na qualidade de avalistas, honrarem os seus compromissos.

10. A propriedade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º 1007/19890712 encontra-se registada a favor de GG e de AA - fls. 86 insolvência.

11. Sobre esse imóvel encontra-se registada, desde 30/6/2005, uma hipoteca a favor da HH para garantia do montante máximo de €459.750,00.

12. Essa hipoteca foi outorgada por escritura pública em 9/6/2005 para garantia de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela “DD & Companhia, Lda.”

13. Na execução que corre termos sob o n.º 1196/12.4T2OVR na comarca do Baixo Vouga em que é exequente a II, CRL foi penhorado o imóvel referido em 8.

14. A HH reclamou créditos nessa execução, tendo sido proferida sentença em 7/11/2013 que graduou os créditos reconhecidos a esse credor em primeiro lugar - cfr. fls. 131 e seguintes da insolvência

15. No âmbito dessa execução foi designado o dia 6/5/2015 para a abertura de propostas em carta fechada - fls. 156

16. A venda ficou sem efeito em virtude de PER que os, aqui, insolventes apresentaram a 04/03/2016 - fls. 138/155

17. Por documento particular intitulado “contrato de fiança” datado de 30/4/2009 os insolventes declararam constituírem-se fiadores e principais pagadores da sociedade “EE - …, Lda.” nos termos constantes de fls. 21 verso/22 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

18. Por contrato-promessa de compra e venda datado de 27/9/2010 os insolventes, conjuntamente com GG e mulher JJ, proprietários em comum do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art. 1746.º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º …, declararam prometer vender à sociedade “KK, Lda.” esse imóvel, livre de ónus e encargos, pelo preço de € 290.000,00, declarando ter sido paga pela promitente compradora o valor de € 250.000,00 por compensação com igual montante que a segunda é credora dos primeiros conforme cópia junta a fls. 22 verso e 23 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

19. Por novo contrato particular datado de 30/1/2012 denominado “Contrato-promessa de compra e venda” os insolventes, conjuntamente com GG e mulher JJ, declararam prometer vender à sociedade “KK, Lda.” esse imóvel, livre de ónus e encargos, pelo preço de € 300.000,00, sendo que foi declarado que como sinal era pago o valor de € 250.000,00 por compensação com igual montante que os primeiros outorgantes estavam obrigados a restituir à segunda, conforme cópia junta a fls. 23/24 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

20. No dia 24/10/2014 foi outorgado por escritura um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real cuja cópia se encontra junta a fls. 25 e seguintes e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

21. Sobre o imóvel referido em 10 encontra-se registada a promessa de alineação a favor de “KK, Lda.” conforme resulta da cópia junta a fls. 35 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

22. Em 24/10/2014 os insolventes, conjuntamente com GG e mulher JJ, subscreveram o documento denominado “Declaração e Acordo” cuja cópia se encontra junta a fls. 28 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, através do qual declararam “reiterar nesta data a entrega, ou seja, a tradição material a favor de KK, Lda. (…) que já tinha recebido, as chaves do prédio urbano (…)”.

23. Nos autos de insolvência da “FF - Sociedade Imobiliária, Lda.” sobre 16 prédios que garantem o crédito da HH por força de hipotecas em 2006 e 2010 encontram-se registadas promessas de alineação com eficácia real a favor da LL - Imóveis, Lda.

Foi considerado não provado que:

1. A insolvente BB assinou documentação no âmbito dos negócios que o seu marido mantinha, desconhecendo a sua natureza e sem se aperceber quais as obrigações que assumia.

2. A “DD e C.ª, Lda.” cedeu à KK um crédito no valor de €1.203.000,00 que detinha sobre a “EE-…, Lda.” pelo valor de €250.000,00.

De direito

Quanto à matéria das conclusões B., C., D., F., G. e I.:

Nestas conclusões começam os Insolventes por sustentar que a lei - artigo 186.º, n.º 2, al. d) do CIRE - quando fala em “disposição” refere-se a ato de alienação, sendo que o contrato-promessa de compra e venda com eficácia real e tradição do objecto que celebraram não se reconduz a um ato de disposição de bens. Mais sustentam que a tradição do prédio prometido deu causa a uma mera detenção, sendo que a atribuição da detenção não constituiu um ato de disposição de bens.

Sobre esta temática ponderou o acórdão recorrido o seguinte:

«Resta-nos, assim, para apreciação a celebração do contrato promessa a que alude o ponto 20. da fundamentação factual, nos termos do qual no dia 24/10/2014, os insolventes  outorgaram uma escritura de “um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real” na qual prometeram vender à “KK - …, Lda.” (actualmente designada por LL–Imóveis, Lda.) pelo preço de €290.000,00 o único bem imóvel de que eram proprietários e cuja entrega e, portanto, tradição material, ocorreu também nessa data (cfr. ponto 22. da fundamentação) que aquela passou a gozar, usar e usufruir (cfr. citado documento).

A questão que agora importa dilucidar é se a outorga do referido contrato promessa com tradição da coisa (imóvel) integra a factiespecie de alguma das alíneas do citado artigo 186.º do CIRE e concretamente das referidas pelo tribunal recorrido.

Ora, pensamos, salvo melhor entendimento, que a referida factualidade se enquadra na alínea d) do nº 2 citado normativo.

A referida alínea contempla a situação de os administradores terem disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.

Efectivamente, o proveito pessoal ou de terceiros compreende todas as situações em que os bens da sociedade insolvente são colocados à disposição do administrador ou de terceiros, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando, independentemente disso, é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio e esta fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.

Como atrás supra se referiu o imóvel objecto do contrato promessa foi entregue, no acto da sua celebração à promitente compradora, que dele passou a usar, gozar e usufruir em seu benefício e que logo arrendou em 18/10/2014 (cfr. cópia do contrato de arrendamento junto aos autos)

Aliás, a celebração do referido contrato promessa dotado de eficácia real com tradição da coisa a favor do promitente-comprador equivale, em termos práticos, a um acto de transferência da sua propriedade já que, nos termos do artigo 106.º, nº 1 do CIRE, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa sob pena da produção dos efeitos previstos no n.º 5 do artigo 104º.

E a circunstância de o Administrador poder resolver tal acto a favor da massa insolvente, nos termos dos artigos 120º e 121º, do CIRE, não retira o carácter culposo da conduta dos ora recorrentes insolventes, pois que, é necessário não esquecer que a qualificação da insolvência como culposa não implica renúncia nem prejudica o accionamento pelo administrador de insolvência dos mecanismos jurídicos de tutela dos interesses dos credores, designadamente a referida resolução.»

Este ponto de vista do acórdão recorrido afigura-se-nos inteiramente correto.

O que significa que não pode ser subscrito o entendimento dos Recorrentes.

Justificando:

Dizem os Recorrentes que a promessa de venda com eficácia real e tradição que foi contratada não constitui um ato de disposição, nos termos e para os efeitos da alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE. Implicitamente (por exclusão de partes) estão a entender que se tratou de um ato de administração.

Mas não é assim.

Castro Mendes (Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, 1973, FDL, p. 62) ensina-nos que “são actos de administração os actos de uso e fruição normal do património, incluindo nesses actos a venda das coisas cujo destino normal económico se traduz na sua alienação (os frutos dum pomar, por exemplo). São actos de disposição aqueles com que se diminui o património ou se altera a sua composição quanto a elementos estáveis do património, aqueles cuja utilização se não faz normalmente pela sua alienação”. Mais acrescenta que “A distinção só faz sentido não colocada em absoluto mas referida a uma coisa. Não há actos de disposição e actos de administração, mas actos de disposição de e actos de administração de (…)”. Também Manuel Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, p.62) nos diz que “(…) entra na mera administração tudo quanto diga respeito. 1) a prover à conservação dos bens administrados; 2) a promover a sua frutificação normal. Por outro lado é seguro também que não pertencem à mera administração - sendo actos de disposição - os negócios que alterem a própria substância do património administrado, que importem a substituição de uns bens por outros, que afectem, numa palavra, o capital administrado, pondo-o em risco, por importarem um novo e diverso investimento desse capital”. Mais adverte este Mestre (p. 64) que negócios de disposição e negócios de alienação “Não são a mesma coisa, ao contrário do que muitas vezes se é tentado a supor”.

Ora, não se dedicando os Insolventes, profissional ou empresarialmente, à venda de imóveis próprios ou comuns (ou sequer alheios; não confundir, entretanto, os Insolventes com as sociedades de mediação imobiliária de que eram sócios) - tudo como, de resto, confessam na conclusão H. - nem se tratando de imóvel cujo destino normal económico fosse a venda (património instável ou volátil), é óbvio que a promessa de venda em causa não se inseriu no âmbito de qualquer uso e fruição normal do património dos Insolventes. Logo, não se traduziu num ato de administração.

Ao invés, traduziu-se num ato de disposição, por isso que se inseriu no âmbito do propósito de alteração do património estável dos Insolventes. Alteração essa traduzida na projetada perda, por via o referido contrato-promessa, do direito de propriedade sobre o imóvel e no correspetivo ingresso do preço da venda - ingresso que, aliás, já teria tido lugar (v. cláusula 1ª do contrato-promessa) - no património dos Insolventes. Se adicionarmos a isto a contratada eficácia real da promessa e a contratada tradição do imóvel (e sendo que a beneficiária da promessa de venda “passou a usar, gozar e fruir” o prédio, como decorre da “Declaração e Acordo” de fls. 28), não vemos como se possa duvidar que estamos perante um verdadeiro ato de disposição, pese embora não de alienação (pelo menos formalmente). Diz bem o acórdão recorrido quando diz, e repete-se, que “…a celebração do referido contrato promessa dotado de eficácia real com tradição da coisa a favor do promitente-comprador equivale, em termos práticos, a um acto de transferência da sua propriedade já que, nos termos do artigo 106.º, nº 1 do CIRE, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa sob pena da produção dos efeitos previstos no n.º 5 do artigo 104º.).

Mais sustentam os Insolventes que não se mostra existir qualquer diminuição da garantia patrimonial dos credores, nem o proveito da sociedade que recebeu o prédio.

Mas também aqui carecem de razão.

Como se aponta no acórdão recorrido, o proveito do terceiro exigido na alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE é compaginável com todas as situações em que os bens do insolvente são afetados (disponibilizados) ao terceiro, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens do insolvente é transferida para o terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido a este que use, goze e frua os bens, que deles retire as respetivas utilidades em benefício próprio. Neste caso o insolvente fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietário desses bens, ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos. E é precisamente esta última hipótese que ocorre no caso vertente.

É certo, entretanto, que para os fins em presença só há que falar em proveito quando o ato de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional (se existe correspondência prestacional do terceiro, não há proveito deste, mas sim o recebimento do que lhe compete, justa e legitimamente, receber). Porém, é também esta falta de correspondência que se verifica no caso vertente. Pois que a promessa de venda em causa deve ser lida ou compreendida à luz da interpretação que lhe foi emprestada pelo tribunal que julgou a correspetiva matéria de facto, ou seja, o tribunal de 1ª instância. Ora, percorrendo a sentença ali proferida (motivação da decisão de facto) vê-se que se concluiu que tal negócio traduziu o propósito dos Insolventes de “subtrair ao seu património o único bem que possuíam sem que existisse qualquer contrapartida para a massa insolvente” e que, com outros atos, “foi a forma que o insolvente encontrou (…) para, no mínimo, beneficiar essa credora (KK) em relação aos demais credores e, no caso da sua insolvência pessoal, subtrair o único património imobiliário à massa insolvente”. Embora o tribunal ora recorrido tenha decidido eliminar (mas, note-se bem, unicamente por se tratar de matéria jurídico-conclusiva, não por rejeitar as ilações que lhe estavam subjacentes) o que constava do ponto 25 dos factos considerados provados, tal não impede que, agora em sede própria (ou seja, em sede de subsunção dos factos no direito, ou sede jurídico-conclusiva), se leia ou compreenda a dita promessa de venda à luz da motivação avançada pelo tribunal de 1ª instância (não há qualquer incompatibilidade ou contradição entre uma coisa e outra). Donde, vista essa motivação, é indubitável que o ato de disposição do direito ao imóvel que foi levado a cabo pelos Insolventes representou para a sociedade beneficiária da promessa de venda o proveito ilegítimo previsto na supra citada norma legal. Do mesmo passo que representou para o património visível dos Insolventes o afastamento do seu direito ao prédio.

Relativamente à alegada circunstância do imóvel ter sido entretanto apreendido para a massa insolvente, é de dizer que, contrariamente ao que pretendem os Insolventes, estamos perante argumentação absolutamente irrelevante para o caso. Trata-se de uma circunstância subsequente aos comportamentos que aqui estão sob escrutínio, que em nada contende com o anterior ato de disposição do bem em proveito do terceiro. Apenas sucede que se tratou de um ato de disposição em proveito de terceiro que acabou mal sucedido, mas isto não tem a virtualidade de apagar o comportamento culposo anterior.

Ora, verificada que está in casu a ocorrência de comportamento subsumível à supra citada norma legal, é apodítico qualificar a insolvência como culposa (mesmo que eventualmente possam existir outras causas que tenham concorrido para a insolvência). Pois que estamos em presença de uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência (v., no sentido desta consideração do nexo de causalidade nas hipóteses do nº 2 do art. 186º do CIRE, Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 7ª ed., p. 282, e, entre muitos outros, os acórdão da Relação de Guimarães de 29 de Junho de 2010, processo nº 1965/07.7BFAF-A.G1 e da Relação do Porto de 18 de Junho de 2007, processo nº 0731779, disponíveis em www.dgsi.pt).

Improcedem pois as conclusões em destaque.

Quanto à matéria da conclusão E,:

Sustentam os Insolventes nesta conclusão que o contrato-promessa em causa foi resolvido em benefício da massa insolvente, e daqui que tudo se passa como se nunca tivesse existido. Donde, seria irrelevante tal contrato-promessa para os fins em presença.

Trata-se, porém, de entendimento carecido de qualquer fundamento.

Do que estamos a tratar é do comportamento culposo dos Insolventes nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, sendo absolutamente desinteressantes para o caso as ocorrências jurídico-processuais subsequentes, como seja a anunciada resolução do negócio em benefício da massa insolvente.

Também aqui diz bem o acórdão recorrido quando observa que “…a circunstância de o Administrador poder resolver tal acto a favor da massa insolvente, nos termos dos artigos 120º e 121º, do CIRE, não retira o carácter culposo da conduta dos ora recorrentes insolventes, pois que, é necessário não esquecer que a qualificação da insolvência como culposa não implica renúncia nem prejudica o accionamento pelo administrador de insolvência dos mecanismos jurídicos de tutela dos interesses dos credores, designadamente a referida resolução.”

Improcede pois a conclusão em destaque.

Quanto à matéria da conclusão H.:

Dizem aqui os Insolventes que o nº 2 do art. 186º do CIRE não é de aplicação ao caso, por isso que, sendo pessoas singulares, não são uma empresa nem são comerciantes.

Mas não é assim.

A circunstância dos Insolventes, pessoas singulares, não serem uma empresa nem serem comerciantes não os afasta das consequências legais da insolvência, como, de resto, não os afastou da própria declaração de insolvência. Isto porque estão legalmente sujeitos a insolvência e às suas consequências tanto os empresários e comerciantes como os não empresários e não comerciantes, sendo para o caso indiferente que sejam pessoas coletivas ou pessoas singulares.

E por isso o nº 4 do citado artigo manda aplicar a norma do nº 2, com as necessárias adaptações, à pessoa singular insolvente, onde a isso se não opuser a diversidade de situações. Ora, nada se vislumbra na letra ou no espírito da alínea d) do referido nº 2 do art. 186º que sugira a ideia de que a sua aplicação deva ser restrita a pessoas não singulares, não empresárias e não comerciantes. Como nos diz Menezes Leitão (ob. cit., p. 284) “(…) com excepção da situação referida na alínea e) (…), todos os restantes factos mencionados podem facilmente ser aplicáveis à insolvência de pessoas singulares (…)”.

Quanto à matéria da conclusão J.:

Pelo que fica dito, improcede esta conclusão, impondo-se a qualificação da insolvência como culposa.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Regime de custas:

Os Recorrentes são condenados nas custas do recurso.

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Lisboa, 15 de Fevereiro de 2018

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo