Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3853/20.2T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
RESPONSABILIDADE CIVIL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
DIREITO À IMAGEM
JOGADOR DE FUTEBOL
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa.

II. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.

Decisão Texto Integral:
                                                  

I - Relatório

O Autor propôs no Juízo Central Cível ... uma ação declarativa, com processo comum, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 36.000,00, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 10.902,58, tudo no total de € 46.902,58, e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal; e, a título de indemnização por danos não patrimoniais, uma quantia nunca inferior a € 5.000,00, acrescida também dos juros vencidos, no montante de € 2.147,95, tudo no total de € 7.147,95, e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.

Alegou, para o efeito e em síntese, que a Ré utiliza, sem a sua autorização, o seu nome, a sua imagem e as suas características pessoais e profissionais nos videojogos de que é produtora, denominados FIFA 2019 e FIFA MANAGER 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, comercializados em todo o mundo por empresas “subsidiárias” da Ré (destacando-se na Europa a EZ Swiss Sarl que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão), e que, em resultado da utilização indevida da sua imagem, o Autor sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.

A Ré suscitou a questão da incompetência internacional, por não se verificar nenhum dos fatores de conexão elencados no artigo 62.º do Código de Processo Civil, requerendo o conhecimento dessa questão e a sua absolvição da instância.

Notificado, veio o Autor pronunciar-se no sentido da competência dos tribunais portugueses, alegando a aplicabilidade do critério de competência territorial constante do artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a), do artigo 62.º, do mesmo diploma, mais alegando a dificuldade séria e apreciável da propositura da ação nos Estados Unidos da América, o que constitui também um fator de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses.

Foi proferida decisão que julgou o tribunal incompetente internacionalmente para apreciação e decisão da presente ação e absolveu a Ré da instância.

O Autor recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em 13 de janeiro de 2022, julgou improcedente a apelação, tendo confirmado a decisão da 1.ª instância.

O Autor interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça deste acórdão, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

a) Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos que julgou o recurso interposto, pelo Autor, improcedente e, em consequência, manteve a decisão recorrida, que julga os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento da ação e, em consequência, absolve a ré da instância.

b) Assim, salvo diferente entendimento, o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, objeto do presente recurso, incorre em manifesta violação das regras de competência internacional, mais concretamente, na violação das disposições firmadas no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento 1215/2012 e no artigo 62.º, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Civil.

c) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados

d) Entende o ora Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida

e) No que respeita ao caso concreto e ao uso indevido da imagem do Autor, os jogos da ré, com o conteúdo lesivo, são difundidos por esta, para serem utilizados e guardados em vários instrumentos tecnológicos, de diversas pessoas, a qualquer momento, em qualquer lugar.

f)     É o que sucede, por exemplo, com a colocação dos jogos em linha/ambiente digital, altamente potenciada com a expansão do uso da Internet e da qual a ré beneficia largamente para aumentar a divulgação e exploração comercial dos seus jogos e, bem assim, os avultados lucros daí advenientes.

g) Acresce que, conforme demonstrado nos autos, inclusive, através de diversa documentação junta com a petição inicial, os jogos da ré são comercializados em suporte físico em Portugal, nas mais variadas lojas, como por exemplo, nas lojas da especialidade, nas grandes superfícies, na Worten, na Fnac, na Mediamarket, entre tantas outras.

h) E imagine-se que, alguém escrevia um livro em sua casa denegrindo ou simplesmente fazendo uso não autorizado da imagem da personalidade “A” ou até que esse alguém pintava um quadro com uma imagem menos abonatória dessa mesma personalidade “A”.

i) Apenas não poderia ser invocado qualquer dano pela personalidade “A” pela utilização ilícita da sua imagem, se tal livro e tal quadro não saíssem nunca da casa do seu autor.

j) O mesmo já não se pode afirmar se tal livro e/ou tal quadro fossem promovidos, divulgados e comercializados por todo o mundo, inclusive, no local de residência daquela personalidade “A”, nomeadamente, em estabelecimentos de toda a espécie.

k) É assim, manifesto que os danos ocorreriam em todos os locais onde essa comercialização e divulgação tivesse lugar.

l) Esta lógica é, pois, plenamente aplicável aos jogos da ré, pelo que estando os jogos disponíveis a nível mundial, o dano não é provocado só nos Estados Unidos.

m) Por isso, a tese sufragada no acórdão recorrido, apenas faria sentido, salvo o devido respeito, se os jogos, com a imagem do Autor, apenas fossem produzidos em solo norte-americano e não transpusessem as suas fronteiras, para ser comercializados pela ré por todo o mundo sob todas as formas disponíveis, ou seja, online e em suporte físico.

n) E, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.

o) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, sendo que a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua ação nos jogos de que é proprietária com vista à sua divulgação mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.

p) O que releva, in casu, é o país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indiretas do facto desencadeador da obrigação de indemnização.

q) E Tribunal de Justiça já elaborou orientações para a interpretação do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento no que diz respeito ao «lugar da materialização do dano», sendo que quanto a determinados domínios específicos (por exemplo, a responsabilidade por violação de direitos de personalidade na Internet) admitiu o critério do centro de interesses principais do lesado.

r) Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e eDate Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de argumentação, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça de 25-10-2005.

s) É este o contexto que nos encontramos, mas que o Tribunal a quo desconsidera totalmente, desvalorizando, de igual modo a proteção que a pessoa humana e a sua imagem merecem no ciberespaço.

t) O Julgador não pode deixar de estar atento à evolução tecnológica e à expansão dos fenómenos dela resultantes, de forma a evitar decisões totalmente desfasadas da realidade em que vivemos atualmente

u) O facto constitutivo essencial desta causa reporta-se à produção e divulgação dos jogos utilizando a imagem e o nome do Autor, sem sua autorização, mas – ao contrário do referido no acórdão recorrido - a sua divulgação e exploração comercial não se localiza, exclusivamente, em solo norte-americano

v) Conforme demonstrado, essa divulgação ocorre em todo o mundo e, também, em Portugal, pelo que há, obviamente, uma repercussão do facto danoso, também, em todo o território nacional.

w) O centro de interesses do Autor é em Portugal, pelo que estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da ação.

x) E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e proteção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil e sendo arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.º n.º 4 do Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.

y) Mais se diga ainda que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.

z) Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação dos fatores de conexão previstos no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento 1215/2012 e nas alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.

aa) Teria, assim, de improceder a deduzida exceção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação dos elementos de conexão referidos.

bb) A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem.

cc) Face ao que antecede, o acórdão em crise violou o disposto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento 1215/2012, nas alíneas a), b) e c) do artigo 62.º e no artigo 71.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, o artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70.º, 72.º e 79.º do Código Civil.

A Ré respondeu, sustentando a decisão recorrida.

                                               *

II – Objeto do recurso

Considerando as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre verificar se os tribunais portugueses são competentes para apreciar o mérito da presente ação.

                                               *

III – O direito aplicável

1. A questão

Está em discussão neste recurso a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o mérito da presente ação.

Com a sua propositura, o Autor pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização, por violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem.

Para tanto, invoca que a Ré, que tem sede no Estado da Califórnia, dos Estados Unidos da América, utiliza, sem a sua autorização, o seu nome e a sua imagem, que inclui as suas características pessoais e profissionais, nos videojogos F... e F..., 2011, 2012, 2013 e 2014, os quais são produzidos pela Ré nos Estados Unidos e comercializados em todo o mundo por empresas “subsidiárias” da Ré (destacando-se na Europa a EZ S... Sarl que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão), resultando dessa atuação a ofensa do direito ao nome e à imagem do Autor.

Os danos invocados pelo Autor são a exposição do seu nome e da sua imagem sem o recebimento de qualquer contrapartida, a influência negativa que a invenção de atributos físicos e técnicos àquele, nos referidos videojogos, poderá ter na sua vida profissional e pessoal, e os estados psicológicos de perturbação, desgosto, tristeza e revolta que o Autor sentiu ao constatar a utilização não consentida do seu nome e da sua imagem.

A causa de pedir invocada pelo Autor é plurilocalizada, uma vez que tem contactos com diferentes ordenamentos jurídicos. O Autor tem nacionalidade portuguesa e reside em Portugal, a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia), a produção dos jogos ocorreu precisamente nesse local, a difusão comercializada do nome e da imagem do Autor, sem consentimento deste, verificou-se por todo o mundo, e os sentimentos negativos experienciados pelo Autor sucederam nos locais onde ele se encontrava durante todo este período.

O acórdão recorrido, em consonância com anteriores acórdãos das Relações proferidos em ações idênticas, interpostas por outros jogadores de futebol profissional [1], decidiu que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para julgar a presente ação, com o principal argumento de que não se verificaram em território nacional os danos causados pela invocada atuação ilícita da Ré, uma vez que não é o local onde o jogo é vendido ao consumidor final que constitui o elemento relevante para atribuição da competência internacional, mas antes o local onde o referido jogo foi criado e posto em circulação, por ser nesse local que ocorreram os factos constitutivos do direito invocado pelo Autor, incluindo os danos diretos invocados.

2. A competência internacional dos tribunais portugueses

O artigo 37.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, incumbe a lei de processo de fixar os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, dispondo o artigo 59.º do Código de Processo Civil que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º do mesmo diploma.

O Regulamento Europeu que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial é o denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012). Com exceção das ações previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, onde não se inclui a presente ação, é condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro. Se este requisito não se verificar, como sucede na presente ação, dado que a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América, o referido Regulamento determina que a competência dos tribunais dos Estados Membros seja a definida pelas leis internas destes (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis).

Como não existe nenhum instrumento internacional que vincule o Estado Português em matéria de competência judiciária aplicável à presente ação, é, portanto, à luz do disposto nos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I, bis, que deve ser determinada a competência dos tribunais portugueses para decidir a presente ação.

No artigo 62.º do Código de Processo Civil são enunciados os três critérios autónomos de atribuição da competência internacional, com origem legal, aos tribunais portugueses – o da coincidência (alínea a), o da causalidade (alínea b) e o da necessidade (alínea c). A escolha destes critérios visou corresponder à exigência de uma tutela efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, conferindo competência aos tribunais portugueses quando, pela sua proximidade com as partes e com as provas, se encontrem em condições de melhor dirimirem os litígios que necessitam de uma intervenção jurisdicional.

Segundo o critério da coincidência, que recorre a uma técnica legislativa de remissão intrasistemática [2], os tribunais portugueses são competentes sempre que a ação possa ser proposta em Portugal, segundo as regras específicas da competência territorial, estabelecidas na lei portuguesa (artigo 70.º e seguintes do Código de Processo Civil), atribuindo-se, assim, a estas regras a funcionalidade suplementar de determinarem a competência internacional dos tribunais portugueses, para além de definirem a competência territorial interna. A ideia que inspira a adoção deste critério é a de que os elementos de conexão utilizados para estabelecer a competência territorial interna traduzem um elo suficientemente forte entre a causa e o Estado português para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais.

No presente caso, estamos perante uma ação em que se pretende efetivar a responsabilidade civil extracontratual, pela violação, por ato ilícito, de direitos de personalidade, dispondo o artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.

ALBERTO DOS REIS [3] justificou a opção por este critério instrumental, no Código de Processo Civil de 1939, por ser no lugar onde o facto foi praticado que devem encontrar-se as melhores provas da ocorrência e dos danos por ele produzidos. É a proximidade do tribunal com as provas dos factos que integram os diferentes elementos da causa de pedir de uma ação de responsabilidade extracontratual que é determinante da escolha do forum delicti comissi.

No entanto, a aplicação deste critério para aferir a competência territorial interna revela algumas dificuldades e divergências quando a ação ofensiva decorre em local diferente onde se produzem os danos, uma vez que, nesse caso, as provas dos factos que integram a causa de pedir se encontrarão espacialmente dispersas, registando-se opiniões no sentido de que, em caso de dissociação entre o lugar do facto causal e o lugar onde o dano se produziu, o lesado pode propor a ação respetiva em qualquer um destes lugares [4], à semelhança do que ocorre quando a ação se desenvolve plurilocalizadamente, em contraponto com posições menos flexíveis que sustentam que, nessas situações, releva apenas o local onde ocorreu o comportamento do agente violador de direitos do lesado  [5].

Cremos, no entanto, que essas dificuldades não se colocam quando o artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, funciona como norma ad quam, das regras definidoras da competência internacional, uma vez que, segundo o critério da causalidade (artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil), os tribunais portugueses têm competência para decidir os litígios em que algum dos factos que integram a sua causa de pedir ocorra em território português [6]. Sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas ações de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as ações em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da causa de pedir [7].

No entanto, nestas situações, deve exigir-se, de modo a evitar que a competência determinada por este critério possa ser considerada exorbitante, que esses elementos da causa de pedir traduzam uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, designadamente que um significativo acervo das provas a produzir presumivelmente se situe em Portugal, numa aplicação da teoria do forum non conveniens [8].

É essa, aliás, a leitura que também tem sido feita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia das normas gémeas do artigo 7.º, 2), do Regulamento Bruxelas I bis, e dos artigos 5.º, n.º 3, dos anteriores instrumentos legais europeus que tiveram por objeto o estabelecimento de regras comuns de competência judiciária em matéria cível e comercial, a Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, a Convenção de Lugano de 16.09.1988, a Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e o Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, tendo, nesses casos, o Tribunal aplicado, com temperança, a regra da ubiquidade [9] [10].

3. A jurisprudência do TJUE

Mas, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem também uma importante jurisprudência precisamente em matéria de competência internacional, relativa a ações de responsabilidade civil extracontratual por violações de direitos de personalidade, como os direitos ao nome, à imagem e à honra, através de meios de exposição globais, aplicando o artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis e as normas que lhe antecederem contidas nos artigos 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, da Convenção de Lugano de 16.09.1988, da Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e do Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000 [11].

O artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis, nas situações em que o demandado não tenha domicílio num Estado-Membro, como ocorre no presente caso, ao determinar uma remissão para as regras do direito processual civil do Estado Membro cujo tribunal é chamado a pronunciar-se, em matéria de competência internacional, sendo estas as normas aplicáveis nessas situações, denuncia que essas regras internas também fazem parte de um mesmo sistema de regras de conflito de competências instituído pelo Regulamento, que se pretende global e coerente [12]. Não deixamos, pois, de estar também aqui perante uma remissão intrasistemática, apesar da sua aparência extrasistemática [13]. Este convívio, por efeito desta remissão, no nosso ordenamento jurídico das regras de direito europeu sobre a competência internacional dos tribunais dos Estados Membros da União Europeia, incluindo os tribunais portugueses (neste caso, o Regulamento Bruxelas I bis), e as regras do direito processual civil português sobre a mesma matéria, embora com um âmbito de aplicação distinto,  exige a preservação da coerência sistémica do nosso ordenamento jurídico. Não só o conteúdo das normas internas sobre competência internacional não devem conduzir a soluções díspares com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria, o que tem sido objeto de preocupação do legislador nacional, como a sua interpretação deve ter em consideração a leitura que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem efetuado das normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno. A harmonia do ordenamento jurídico pede que critérios idênticos na definição da competência internacional dos tribunais, apesar de provirem de fontes distintas, tenham uma aplicação coincidente, sendo certo que a jurisprudência do TJUE tem um papel fundamental na interpretação do direito europeu.

O TJUE, no Acórdão de 7.03.1995, BB, I... Inc, C... SARL e C... Ltd contra P..., S.A. [14], relativamente à propositura de uma ação em que se pedia o pagamento de uma indemnização por difamação cometida através de um artigo publicado no jornal France Soir, à venda em vários países europeus, incluindo Inglaterra, onde a vítima residia, começou por sustentar que a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, utilizada no artigo 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas de 27.09.1968, deveria ser interpretada no sentido de que a vítima pode intentar uma ação de indemnização contra o editor da publicação difamatória quer nos órgãos jurisdicionais do Estado onde se situa o estabelecimento da editora, quer nos órgãos jurisdicionais de cada Estado em que a publicação foi divulgada e onde a vítima alega ter sofrido um atentado à sua reputação, os quais seriam competentes para conhecer apenas dos danos causados no Estado do tribunal onde a ação foi proposta.

Neste aresto, o Tribunal considerou:

(...)

21. (...) que o lugar do evento causal, do ponto de vista da competência jurisdicional, pode constituir um critério de vinculação não menos significativo do que o critério do lugar onde o dano se materializou, podendo cada um deles, segundo as circunstâncias, revelar-se especialmente útil do ponto de vista da prova e da organização do processo.

(...)

23. Estas considerações, feitas a propósito de danos materiais, devem ser válidas também, pelas mesmas razões, no caso de prejuízos não patrimoniais, nomeadamente os causados à reputação e à consideração de uma pessoa singular ou coletiva por uma publicação difamatória.

(...)

28. O lugar de materialização do prejuízo é o local em que o facto gerador, implicando a responsabilidade extracontratual do seu autor, produziu efeitos danosos em relação à vítima.

29. No caso de uma difamação internacional através da imprensa, o atentado feito por uma publicação difamatória à honra, à reputação e à consideração de uma pessoa singular ou coletiva manifesta-se nos lugares onde a publicação é divulgada, quando a vítima é aí conhecida.

30. Daqui resulta que os órgãos jurisdicionais de cada Estado contratante onde a publicação difamatória foi divulgada e onde a vítima invoca ter sofrido um atentado à sua reputação são competentes para conhecer dos danos causados nesse Estado à reputação da vítima.

31. Com efeito, de acordo com o imperativo de uma boa administração da justiça, fundamento da regra de competência especial do artigo 5., n. 3, o tribunal de cada Estado contratante em que a publicação difamatória foi divulgada e onde a vítima invoca ter sofrido um atentado à sua reputação é territorialmente o mais qualificado para apreciar a difamação cometida nesse Estado e determinar o alcance do prejuízo correspondente.

(...)

No entanto, uns anos volvidos, no importante Acórdão de 25.10.2011, e-Date A... GmbH contra X e CC contra M... Limited [15], relativamente à propositura de ações de responsabilidade civil pela publicação em portais noticiosos na Internet de referências à condenação de X pelo homicídio de um conhecido ator e aos encontros amorosos de DD e EE, já se entendeu que o artigo 5.º, ponto 3, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, deveria ser interpretado no sentido de que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio na Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade extracontratual pela totalidade dos danos causados, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do lugar onde se situa o estabelecimento da pessoa que emitiu esses conteúdos, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro onde se encontra o centro dos interesses do lesado.

Neste aresto, após se transcreverem múltiplas passagens do anterior acórdão BB, I... Inc, C... SARL e C... Ltd contra P..., S.A., acima mencionado, discorre-se nos seguintes termos:

(...)

45. Todavia, como alegaram tanto os órgãos jurisdicionais de reenvio como a maioria das partes e dos interessados que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, a colocação em linha de conteúdos num sítio na Internet distingue-se da difusão, circunscrita a um território, de um meio de comunicação impresso, na medida em que visa, em princípio, a ubiquidade dos referidos conteúdos. Estes podem ser consultados instantaneamente por um número indefinido de internautas em todo o mundo, independentemente de qualquer intenção da pessoa que os emitiu, relativa à sua consulta para além do seu Estado‑Membro de estabelecimento e fora do seu controlo.

46. Afigura-se, portanto, que a Internet reduz a utilidade do critério relativo à difusão, na medida em que o âmbito da difusão de conteúdos colocados em linha é, em princípio, universal. Além disso, nem sempre é possível, no plano técnico, quantificar essa difusão com certeza e fiabilidade relativamente a um Estado-Membro em particular, nem, por conseguinte, avaliar o dano exclusivamente causado nesse Estado-Membro.

47. As dificuldades de aplicação, no contexto da Internet, do referido critério da materialização do dano decorrente do acórdão BB, já referido, contrastam, como o advogado-geral salientou no n.° 56 das suas conclusões, com a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo que viola o referido direito está disponível em qualquer ponto do globo.

48. Há, portanto, que adaptar os critérios de conexão recordados no n.° 42 do presente acórdão no sentido de que a vítima de uma violação de um direito de personalidade através da Internet pode intentar, em função do lugar da materialização do dano causado na União Europeia pela referida violação, uma ação num foro a respeito da integralidade desse dano. Tendo em conta que o impacto de um conteúdo colocado em linha sobre os direitos de personalidade de uma pessoa pode ser mais bem apreciado pelo órgão jurisdicional do lugar onde a pretensa vítima tem o centro dos seus interesses, a atribuição de competência a esse órgão jurisdicional corresponde ao objetivo de boa administração da justiça recordado no n.° 40 do presente acórdão.

49. O lugar onde uma pessoa tem o centro dos seus interesses corresponde em geral à sua residência habitual. Todavia, uma pessoa pode ter o centro dos seus interesses igualmente num Estado-Membro onde não reside habitualmente, na medida em que outros indícios, como o exercício de uma actividade profissional, podem estabelecer a existência de um nexo particularmente estreito com esse Estado.

50. A competência do órgão jurisdicional do lugar onde a pretensa vítima tem o centro dos seus interesses é conforme ao objetivo de previsibilidade das regras de competência (v. acórdão de 12 de Maio de 2011, BVG, C-144/10, ainda não publicado na Coletânea, n.° 33), igualmente a respeito do demandado, dado que a pessoa que emite o conteúdo danoso está, no momento da colocação em linha desse conteúdo, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas que são objeto deste. Deve, portanto, considerar‑se que o critério do centro de interesses permite simultaneamente ao demandante identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao demandado prever razoavelmente o órgão jurisdicional no qual pode ser demandado (v. acórdão de 23 de Abril de 2009, FF e ..., C-533/07, Colect., p. I-3327, n.° 22 e jurisprudência referida).

51. Por outro lado, em vez de uma ação fundada em responsabilidade pela totalidade do dano, o critério da materialização do dano decorrente do acórdão BB, já referido, confere competência aos órgãos jurisdicionais de cada Estado-Membro em cujo território um conteúdo colocado em linha esteja ou tenha estado acessível. Estes são competentes para conhecer apenas do dano causado no território do Estado-Membro do órgão jurisdicional em que a ação foi intentada.

(...)

Mais tarde, no Acórdão de 17.10.2017, ... OU e GG contra ... AB [16], relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação numa página da Internet de dados incorretos e comentários difamatórios sobre uma sociedade comercial estónia, entendeu-se que o artigo 7.º ponto 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, deveria ser interpretado no sentido de que uma pessoa coletiva que alega que os seus direitos de personalidade foram violados pela publicação de dados incorretos a seu respeito na Internet e pela não supressão de comentários a ela relativos pode intentar uma ação destinada a obter a retificação desses dados, a supressão desses comentários e a reparação da totalidade do dano sofrido nos tribunais do Estado-Membro no qual se situa o seu centro de interesses.

Neste aresto, após se transcreverem múltiplas passagens do acórdão antes mencionado, acrescenta-se:

(...)

32. No contexto específico da Internet, o Tribunal de Justiça declarou, contudo, num processo relativo a uma pessoa singular, que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade pela totalidade dos danos causados nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro onde se encontra o centro dos seus interesses (acórdão de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising, C-509/09 e C-161/10, EU:C:2011:685, n.º 52).

33. Quanto a esses conteúdos, a alegada violação é, com efeito, geralmente sentida mais intensamente no centro de interesses da pessoa visada, tendo em conta a reputação de que goza nesse local. Assim, o critério do «centro de interesses da vítima» traduz o local onde, em princípio, o dano causado por um conteúdo em linha se materializa, na aceção do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, de modo mais significativo.

(...)

Finalmente, no recente Acórdão de 21-12-2021, Gtflix Tv contra DR [17],  relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação em sítios e fóruns Internet de afirmações depreciativas da sociedade Gtflix Tv que se dedica à produção e difusão de conteúdos audiovisuais para adultos, voltou a ser reafirmada a jurisprudência dos acórdãos anteriormente mencionados, com transcrição das suas passagens mais relevantes, pronunciando-se no sentido que a ação indemnizatória poderá sempre ser proposta nos órgãos jurisdicionais de cada Estado-membro onde aquelas afirmações depreciativas tenham estado acessíveis ao público, mesmo que esses órgãos não sejam competentes para conhecer dos pedidos de retificação e supressão desses conteúdos.

4. A aplicação ao caso concreto

Na resolução da questão que é colocada neste recurso, designadamente na aplicação do critério da causalidade constante do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, iremos seguir de perto a linha definida por esta jurisprudência, não só porque a isso aconselha a preservação da coerência e harmonia do nosso ordenamento jurídico, mas também porque reconhecemos nessa linha um equilíbrio ponderado da valorização dos critérios a adotar na determinação do(s) tribunal(ais) que se encontra(m) em melhores condições para administrar a justiça, numa situação de violação de direitos de personalidade através de meios de divulgação global. Note-se que a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a dimensão dos danos localizados no país do foro é diminuta, não sendo aí que previsivelmente se encontra um número significativo das provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização.  

O facto daquela jurisprudência se debruçar, na maioria das situações, sobre violações de direitos de personalidade, através da Internet, não desaconselha a sua transposição para o presente caso, em que o instrumento da ofensa a esses direitos são videojogos mundialmente comercializados, em larga escala, uma vez que também a exposição dos seus conteúdos se carateriza pela ubiquidade, não tendo uma divulgação circunscrita a um território. Eles são visionados e operados por um número indefinido de jogadores, espalhados por todo o mundo, fora de qualquer controle do seu produtor, pelo que as ponderações efetuadas pelo TJUE, tendo em consideração a divulgação mundial de conteúdos ofensivos dos direitos de personalidade pela Internet, são aplicáveis a este caso.

Relembre-se que, na presente ação, o Autor fundamenta o pedido indemnizatório, por responsabilidade extracontratual, na violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem, no facto de um “seu avatar” ser um dos muitos protagonistas dos videojogos mundialmente comercializados F... e F..., 2011, 2012, 2013 e 2014, produzidos pela Ré, sem que tenha dado autorização para que o seu nome e imagem fossem utilizados, invocando como danos a ressarcir a exposição pública não autorizada do seu nome e imagem sem qualquer contrapartida, a influência negativa que a invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles jogos poderá ter na sua vida profissional e pessoal e os estados psicológicos de perturbação, desgosto, tristeza e revolta que aquela utilização não autorizada lhe provocou. Na versão apresentada na petição inicial, esses videojogos foram produzidos nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia) e foram e são comercializados e difundidos por todo o mundo por empresas “subsidiárias” da Ré, (destacando-se na Europa a EZ S... Sarl que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão), tendo o Autor domicílio em Portugal e jogado profissionalmente desde 2003-2004 até aos dias de hoje em clubes portugueses, com exceção das épocas de 2013/2014 e 2014/2015 , em que jogou no ..., na ....

Antes de iniciarmos a verificação da relevância dos diversos elementos de conexão, convém frisar que, consoante já afirmava Manuel de Andrade [18], citando o processualista italiano Enrico Redenti, a competência internacional afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos como o autor configura a relação jurídica controvertida, e não, pelo que, mais tarde, será o quid decisum.

Conforme já acima tínhamos concluído, dado estarmos perante uma ação com uma causa de pedir complexa, do ponto de vista da competência jurisdicional, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, podem constituir critérios de vinculação quer o lugar do evento causal, quer o lugar onde o dano se materializou, podendo cada um deles, segundo as circunstâncias, revelar-se especialmente útil, do ponto de vista da prova e da organização do processo, para se determinar qual é o tribunal ou tribunais que se encontram em melhores condições para proferir uma decisão de mérito informada.

Relativamente ao lugar onde ocorreu a ação causal do dano, há que ter em consideração, que a ação violadora do direito ao nome e à imagem, através de um conteúdo divulgado de forma difusa por todo o mundo, compreende não só a produção dos videojogos em causa, processo em que se inclui o nome e se representa a imagem num determinado suporte físico ou digital, mas também a sua exposição pública através da comercialização mundial generalizada desses suportes [19]. Apesar de na petição inicial se dizer que essa comercialização era efetuada por empresas “subsidiárias” da Ré, designadamente por EZ S... Sarl, que assumia a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, não deixa o Autor de imputar a divulgação pública apenas à Ré, responsabilizando-a por todos os danos resultantes desses atos. Não devendo, neste momento, efetuar-se qualquer juízo sobre a imputabilidade da ação ilícita alegada pelo Autor para dele retirar a competência do tribunal, há que apenas relevar a perspetiva do Autor, apresentada na petição inicial, de que a Ré é a responsável pela produção, lançamento no mercado e divulgação por todo o mundo dos videojogos F... e F....

Assim, a ação causal imputada à Ré, pelo Autor, nesta ação, ocorre inicialmente nos Estados Unidos da América (a produção dos videojogos) e desenvolve-se, posteriormente, em todo o mundo (a comercialização dos videojogos), uma vez que a lesão deste tipo de bens de personalidade ocorre com a divulgação pública não autorizada do nome e da imagem do lesado [20].

Coisa diferente da lesão destes direitos de personalidade, são os danos que dela terão resultado na versão apresentada pelo Autor. Se a ação lesiva dos direitos do Autor se inicia, mas não se completa com a produção dos videojogos contendo o nome e a imagem do Autor sem o seu consentimento, já, os danos, ou seja as consequência negativas para o lesado que resultaram dessa ação causal poderão ou não ocorrer no mesmo lugar em que essa ação teve lugar [21]. É sobretudo neste ponto que nos afastamos da tese do acórdão recorrido e dos demais acórdãos da Relação acima referenciados na nota 1. Os danos na ofensa aos direitos de personalidade ao nome à imagem são realidades distintas do ato lesivo e claramente diferenciadas quando este é apenas resumido à atividade criadora do suporte que contém o conteúdo lesivo, não se considerando a atividade de divulgação púbica generalizada.

Quanto ao lugar onde os danos invocados pelo Autor se verificaram, revelando-se uma tarefa impossível avaliar com certeza e fiabilidade os danos causados em cada um dos países onde o conteúdo que utilizava o seu nome e imagem foi exposto, deve seguir-se o critério apontado pela jurisprudência do TJUE, segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objetivo da boa administração da justiça.

Nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a ação em que se reclame o pagamento de uma indemnização desses danos poderá ser intentada em qualquer uma das jurisdições desses Estados, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais, evitando-se, com esta restrição, os inconvenientes do denominado forum shopping.

Na presente ação, durante os anos em que o Autor situa a violação do direito ao seu nome e imagem (desde finais de 2009, pelo F... e finais de 2018, pelo F...), com exceção das épocas desportivas de 2013/2014 e 2014/2015, que o Autor jogou numa equipa romena, o seu centro de interesses localizava-se em Portugal, uma vez que foi aí que o Autor praticou, profissionalmente, a sua atividade desportiva.

Esta localização presumida dos danos pelos quais o Autor responsabiliza a Ré é confirmada pelo tipo de danos diretos, e não meramente reflexos, alegados na petição inicial. Foi em Portugal que a utilização do seu nome e imagem poderá ter influído na comercialização dos referidos videojogos, uma vez que foi, predominantemente, nas competições desportivas portuguesas que o Autor interveio como jogador profissional; foi em Portugal que se poderá ter refletido a influência negativa provocada pela invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles videojogos, prejudicando a sua vida profissional e pessoal, uma vez que foi aí que o Autor, predominantemente, desenvolveu a sua atividade profissional e viveu; e foi em Portugal que o Autor poderá ter experienciado a alegada perturbação, desgosto, tristeza e revolta que a utilização do seu nome e imagem não autorizada lhe terão provocado, pois foi aí que o Autor, com exceção das épocas de 2013/2014 e 2014/2015, se encontrava.

Estando o centro de interesses do Autor predominantemente localizado em Portugal desde o momento em que este situa o início da violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem (finais de 2009, relativamente ao F... e finais de 2018, relativamente ao F...), tendo sido aí que terão ocorrido os danos invocados pelo Autor, não há razões para que, a coberto do critério da causalidade admitido pelo artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, não se considerem os tribunais portugueses competentes para julgar esta ação, uma vez que, estando nós, perante uma causa de pedir complexa, os danos alegados terão ocorrido predominantemente em Portugal, pelo que será no nosso país que se encontrará um significativo acervo das provas a produzir com vista à realização da justiça.

Esta conclusão não constitui de forma alguma o reconhecimento de uma competência exorbitante, uma vez que releva uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, assim como não fere qualquer interesse legítimo da empresa demandada, uma vez que, atenta a comercialização global dos videojogos por si produzidos, é expetável que possam ocorrer litígios com eles relacionados em qualquer parte do globo, em que sejam chamados a intervir os órgãos jurisdicionais locais, além de que a sua estrutura organizacional, atenta a sua dimensão, sempre lhe permitirá, sem excessivas dificuldades, produzir as provas que entenda necessárias em Portugal.

Por estas razões, deve o recurso interposto ser acolhido, reconhecendo-se competência aos tribunais portugueses para julgarem a presente ação, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil.

                                               *

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, julgando-se improcedente a exceção da incompetência internacional do Juízo Central Cível ..., e determinando-se o prosseguimento do processo.

                                               *

Custas dos recursos de apelação e revista pela Ré.

                                               *

Notifique.

                                               *

Lisboa, 24 de maio de 2022

João Cura Mariano (relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha


________

[1] Acórdãos da Relação de Coimbra de 26.10.2021, Proc. 3239/20 (Rel. Cristina Neves), e de 08.03.2022, Proc. 4167/20 (Rel. Pires Robalo), da Relação de Lisboa de 13.01.2022, Proc. 24974/19 (Rel. António Valente), da Relação do Porto de 10.02.2022, Processo 637/20 (Rel. Deolinda Varão), e da Relação de Évora de 24.02.2022, Proc. 4157/20 (Rel. José António Moita), de 08.03.2022.
[2] DÁRIO MOURA VICENTE, A Competência Internacional no Código de Processo Civil Revisto, em “Aspectos do Novo Código de Processo Civil”, LEX, 1997, pág. 84, e LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol. III, tomo 1, 3.ª ed., 2019, Almedina, pág. 337, nota 1334.
   Sustentando a inutilidade deste critério, face à dupla funcionalidade das normas de competência territorial, num alinhamento com o sistema alemão, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A Competência e a Incompetência nos Tribunais Comuns, 3.ª ed., AAFDL, 1990, pág. 54, Apreciação de Alguns Aspectos da Revisão do Processo Civil – Projecto, na Revista da Ordem dos Advogados 55 (1995), pág. 367 e seg., e em Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., LEX, 1997, pág. 99-100,
[3] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1º, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1960, pág. 195.
[4] Vg. REMÉDIO MARQUES, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2011, pág. 336.
[5] V.g. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, vol. I, pág. 102.
[6] O aditamento da parte final da redação deste artigo, conferindo competência aos tribunais portugueses quando apenas alguns dos factos que integram a causa de pedir ocorram em território português, foi efetuado pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, que reviu o Código de Processo Civil de 1961, consagrando a orientação jurisprudencial e doutrinal que vinha sendo seguida nesse sentido (v.g. ALBERTO DOS REIS, ob. cit., pág. 136-137, BAPTISTA MACHADO, La Competence Internationale em Droit Portugais, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 41 (1965), pág. 101, ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declarativo, vol. II, Almedina, 1982, pág. 26-29, e o Assento do S.T.J. n.º 6/94, de 17.02.1994, pub. no D.R. de 30.03.1994), tendo este critério sido reposto pelo Código de Processo Civil de 2013, após a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, o ter suprimido do artigo 65.º do Código de Processo Civil de 1961, com fundadas críticas da doutrina (v.g. LEBRE DE FREITAS, Competência ou Incompetência Internacional dos Tribunais Portugueses ?, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 69, vol. I/II.
[7] LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 348-349, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, cit., pág. 119, RITA LOBO XAVIER, Elementos de Direito Processual Civil. Teoria Geral. Princípios. Pressupostos, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, pág. 215, nota 31, e LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Almedina, 2018, pág. 155-156.
   Sobre as vantagens da aplicação do critério da causalidade nas causas de pedir complexas, como sucede nas ações de responsabilidade civil extracontratual, com exemplos elucidativos, LEBRE DE FREITAS, est. cit.
[8] Sobre esta modelação restritiva do princípio da causalidade, FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, Almedina, 2018, pág. 444-445,  RUI MOURA RAMOS, A Reforma do Direito Processual Civil Internacional, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 130, n.º 3879, pág. 167-168, LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 348-349,  RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 204, Almedina, 2018, e JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, AAFDDL, 2022, vol. I, pág. 279.
[9] Sobre essa jurisprudência, RUI MOURA RAMOS, Le Droit International Privé Communautaire des Obligations Extracontractuelles, em “Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional”, vol. II, Coimbra Editora, 2007, pág. 80 e seg., LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 131, JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., pág. 191-193, ISABEL ALEXANDRE, Direito Processual Civil Internacional I, AAFDL, 2021, pág. 203-204, e JOANA COVELO DE ABREU, Tribunais Nacionais e Tutela Jurisdicional Efetiva. Da Cooperação à Integração Judiciária no Contencioso da União Europeia, Almedina, 2019, pág. 143-144.
[10] Sobre a “rule of ubiquity”, na aplicação do artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis, THOMAS KADNER GRAZIANO, The Law Applicable to Cross-Border Damage to the Environment, Yearbook of Private Law, 2008, vol. 2007, pág. 74-76.
[11] Sobre esta jurisprudência, LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 132-133, ALEXANDRE DIAS PEREIRA, O Tribunal Competente em Casos da Internet Segundo o Acórdão «edate advertising» do Tribunal de Justiça da União Europeia, Revista Jurídica Portucalense, n.º 16, 2014, pág. 3-10, e JOÃO CASTRO MENDES, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., pág. 191-193.
    Efetuando uma leitura crítica desta Jurisprudência, ELSA OLIVEIRA DIAS, Do Tribunal Competente Para Apreciar Litígios Relativos a Responsabilidade Extracontratual Decorrente da Violação de Direitos de Personalidade, Revista do CEJ, 1.º semestre 2016, n.º 1, que, aderindo à posição do Advogado Geral no processo eDate/Martinez, defende a relevância do local onde se localize o centro de gravidade do conflito entre os bens e os interesses em jogo, convocando a globalidade da situação para determinar a competência do Tribunal.
[12] Neste sentido o Parecer 1/03 do TJUE, de 07.02.2006, § 148.
[13] Sobre estes dois tipos de remissão, BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2021 (reimpressão), pág. 105-108.
[14] Processo C-68/93, EU:C:1995:61 [15] Processos apensos C-509/09 e C161/10, EU:C:2011:685.
[16] Processo C-194/16, EU:C:2017:766.
[17] Processo C-251/2020, EU:C:2021:1036.
[18] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1956, pág. 88-89.
[19] Neste sentido, ELSA DIAS OLIVEIRA, Da Responsabilidade Civil Extracontratual por Violação de Direitos de Personalidade em Direito Internacional Privado, Almedina, 2011, pág. 400-409.
[20] ELSA DIAS OLIVEIRA, ob. cit., pág. 405-407.
[21] ELSA DIAS OLIVEIRA, ob. e loc. cit., pág. 407-410, sobre a distinção entre o lugar da lesão e o lugar do danos destes direitos de personalidade.