Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2444/07.8TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: RUÍDO
CASA DE HABITAÇÃO
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Data do Acordão: 02/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECURSO DA REVISTA PRINCIPAL PARCIALMENTE PROCEDENTE. O RECURSO DA REVISTA SUBORDINADA IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
1. Os réus que, no gozo da sua habitação (um apartamento), produzem reiteradamente ruídos (resultantes de bater de portas, arrastar de cadeiras, caída de objetos no chão, vozes, etc.) perturbando o sossego da autora, no interior da sua habitação, situada por baixo daquela onde os réus habitam, incorrem em responsabilidade civil, por danos não patrimoniais, se, depois de avisados pela autora, não alteram os seus comportamentos, que, assim, se tornam conscientemente ilícitos e culposos.

2. Julga-se adequada a indemnização de €7.500, atribuída pelo Tribunal da Relação, segundo juízos de equidade, à autora, pelos danos não patrimoniais, correspondentes à lesão do direito ao sossego, que durante vários anos sofreu, em consequência do ruído causado pelos réus, moradores no apartamento situado no andar por cima do seu.

Decisão Texto Integral:

Processo n. 2444/07.8TVLSB.L1.S1

- Recurso principal:

Recorrentes: AA, BB e Outros

 Recorridos: CC e DD

 

- Recurso subordinado:

 Recorrentes: DD

 Recorridos: AA e Outros.

I. RELATÓRIO


1. Em 2007, CC e DD propuseram ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra AA e mulher BB; EE e mulher FF; GG e mulher HH, pedindo a condenação destes a realizarem as obras no 8.° Esquerdo, do prédio sito na Avenida ..., necessárias para garantir, na sua habitação, sita no 7.° Esquerdo, a segurança e a qualidade ambiental devidas, e a indemnizar a Autora pelos danos não patrimoniais produzidos pela continuada lesão do direito ao repouso e qualidade de vida, em valor a liquidar não inferior a €15.000,00.

Alegaram, em síntese, que a autora tem residência habitual no referido 7o andar esquerdo, há mais de 30 anos; que adquiriu o mesmo em 1994; que o autor arrendou o andar para a residência da família; que os quatro primeiros RR compraram o 8.° andar esquerdo por escritura de 27.5.2004; que os 5.° e 6.° RR. residem habitualmente no imóvel; que em Dezembro de 2003 os 5.° e 6.° RR lhes comunicaram que iriam proceder a obras licenciadas; que entre Janeiro e Junho de 2004 tiveram lugar obras com demolição de paredes e pavimentos e com utilização de equipamentos apenas autorizados em obras exteriores; que antes das obras não se ouviam passos, vozes, fechar de portas, arrastar de cadeiras, colocação ou queda de objetos no chão e funcionamento de eletrodomésticos; que por força da realização das obras se passaram a ouvir estes ruídos, com violação das normas legais sobre acústica; que estes ruídos se verificam habitualmente à noite e para lá das 2 horas da manhã; que se veio a verificar que as obras foram ilegalmente realizadas.

2. Os RR contestaram, arguindo as exceções [que vieram a ser julgadas improcedentes] da incompetência material do tribunal e a ilegitimidade passiva dos primeiros e segundos RR, por nenhuma responsabilidade terem tido na execução das obras. Alegaram que as obras realizadas consistiram na substituição do soalho, pintura geral, substituição das louças das casas de banho e equipamentos da cozinha, com reformulação compartimentação e transformação em marquises das varandas contíguas a um dos quartos e cozinha a tardoz; e que as obras em nada diminuíram as características de isolamento acústico da fração.

Os primeiros e segundos RR deduziram reconvenção, pedindo a condenação dos autores no pagamento de €25.000,00.

3. Foram requeridas e admitidas várias perícias, com nomeação de peritos pelo tribunal: foi realizado exame de avaliação acústica; foi realizada uma perícia colegial para apuramento das diversas alterações efetuadas no 8o andar.

4. No decurso da audiência de julgamento, a Autora reformulou o seu pedido nos seguintes termos:

- que se condenem os RR a repor a laje de betão dos pavimentos da sua fração com o grau de estabilidade equivalente ao original existente antes da execução das obras; se a reposição for entendida como excessivamente onerosa, no pagamento de indemnização equitativa (n. 3 do art. 566° CC);

- na aplicação sob os pavimentos da manta resiliente tecnicamente adequada à insonorização exigida pela legislação acústica dos edifícios;


- na reposição das paredes contíguas à junta de dilatação ou, pelo menos, à execução da adequada insonorização dos armários agora existentes no lugar das mesmas paredes;
- a realizar as obras descritas no prazo máximo de oito meses sobre o trânsito em julgado da sentença e a pagar sanção pecuniária compulsória diária não inferior a €100,00 por cada dia além do mesmo prazo;

- em indemnização em valor não inferior a €25.000,00 pelos danos sofridos pela A. resultantes da violação do direito ao repouso, ao sono e ao ambiente equilibrado;

- em multa por violação culposa e reiterada do dever de cooperação (art. 542°, n.° 2, c) do CPC).

5. Foi proferida sentença na qual se decidiu:

- julgar a ação totalmente improcedente por não provada, absolvendo-se os RR. do pedido;

- julgar a reconvenção totalmente improcedente por não provada, absolvendo-se os AA. do pedido.

6. Inconformada com essa decisão, a Autora interpôs recurso de apelação.
7. Entretanto, os réus interpuseram recurso de agravo contra o despacho proferido em 18.02.2009, que indeferiu parcialmente os seus requerimentos com as referências 4213388 e 4231288, respeitantes ao âmbito e conteúdo das perícias requeridas pelos autores, bem como ao modo de notificação entre as partes.

8. A Relação de Lisboa decidiu nos seguintes termos:

- Negar provimento ao agravo interposto pelos réus, mantendo-se a decisão recorrida;

- Julgar a apelação parcialmente procedente, condenando-se todos os réus a realizar obras de insonorização na fração correspondente ao 8o esq. do prédio urbano sito na Av. ..., com entrada pelo n.000-…, de forma a que sejam respeitados, entre essa fração e a fração correspondente ao 7o esq., os índices de isolamento sonoro plasmados no Decreto-Lei n. 129/2002, de 11/05, fixando-se o prazo máximo de oito meses para a sua realização, a contar do trânsito em julgado do presente acórdão;

- Condenar os réus GG e mulher HH no pagamento à autora de uma indemnização pelos danos não patrimoniais causados no montante de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros);

- No demais, confirmar a sentença recorrida.

Este acórdão viria a ser retificado, por decisão de 20.12.2018, na sequência de requerimento da Autora, tendo sido corrigidos os seguintes pontos:

- Quanto à identidade do último adquirente da fração onde foram realizadas as obras, admitiu-se existir um erro de escrita, tendo-se decidido que onde consta a referência a “II”, no facto 30 e a fls. 37 do acórdão, deve passar a constar “JJ”.

- Quanto aos danos que a autora passou a sofrer após o terminus das obras, admitiu-se a existência de um lapso de escrita, e decidiu-se que onde se refere “apurou-se que esses danos perduraram desde o ano de 2015”, passar a referir-se que “apurou-se que esses danos perduraram desde o ano de 2005”.

9. Não se conformando com o decidido pelo Tribunal da Relação, os réus AA e Outros interpuseram recurso de revista, em cujas alegações formularam as conclusões que se transcrevem:

«1o- A Recorrente, apenas pede a regular observância das regras legais aplicáveis ao caso em análise.

2o- Na decisão ora em recurso existe a necessidade de se proceder à revogação da decisão judicial de primeira instância que determinou o objeto das perícias de fls.

De igual modo,

3o- Decidir sobre a questão relacionada com a matéria de facto alterada com a consequente revogação total ou parcial da sentença inicial.

4o- No âmbito da determinação da prova pericial, no douto despacho saneador de fls., a 11 de novembro de 2008, relegou-se para momento posterior a admissão dos meios de prova apresentados pelas partes.

5o- Em 20 de novembro de 2008, os Recorridos, notificaram os Recorrentes, do teor das perícias que entenderam requerer enquanto meio de prova.

6o- A 22 de dezembro de 2008, são os Recorrentes notificados de simples despacho de fls. 229, que admite as requeridas perícias à insonorização, à construção e à escrita do interveniente principal.

7o-  Por requerimento de  fls.,   a   14  de  janeiro   de  2009,   os Recorrentes pronunciaram-se sobre o teor dos pedidos de perícia, apesar de não terem sido notificados nos termos e para os efeitos do disposto no art. 578.° n. 1 do C.P.C, (versão aplicável).

8o- No âmbito dos ensaios acústicos pretendidos pelos Recorridos, os Recorrentes manifestaram a discordância pelos quesitos genéricos e abusivos sobre o ruído.

9o- Os Recorridos não definiam o tipo de ruído que pretendiam ver medido, qual o dispositivo normativo aplicável em concreto atendendo ao momento temporal da realização das obras em causa, qual o momento noturno ou diurno para as medições pretendidas e qual a garantia que era oferecida pelas frações propostas para análise de manterem os elementos estruturais e pavimento original de há cerca de 40 anos.

Por fim,

10o- Constatou-se a falta de estabelecimento de interligação entre a perícia solicitada e a douta base instrutória de fls. .

11o- Não existiu despacho sobre a posição dos Recorrentes e marcaram-se diligências como se nada se passasse e as perícias estivessem assentes sem discussão.

12°- Os Recorrentes insistiram pelo cumprimento da legalidade.

13o- Alertaram os Recorrentes para a necessidade de identificação dos técnicos designados pelo Tribunal, à forma como eram cumpridos os requisitos do n. 2 do art° 578.° do C.P.C, (versão aplicável) no que respeitava à fixação do objeto da perícia e à determinação da sua incidência sobre os artigos da base instrutória, bem como, qual era a fundamentação legal para o início de novo contraditório com os Recorridos sobre toda esta matéria.

14o- O objeto da perícia nasce através a justificação das dúvidas surgidas sobre a matéria de facto que se pretende ver esclarecida com a diligência.

15°- A parte requerente teria de estabelecer a necessária correlação com a matéria de facto que pretende ver provada em sede de audiência de discussão e julgamento, cfr. art. 577° do C.P.C, (versão aplicável).

16°- Caso não se entendesse a perícia requerida como impertinente ou dilatória, deveria o Julgador ter ouvido a parte contrária.

17o- Os Recorrentes teriam de ser notificados para que se pronunciassem sobre o objeto proposto, aderindo a este ou sugerindo a sua ampliação ou restrição e apenas após a avaliação das duas posições deveria determinar-se judicialmente o objeto final da perícia.

18o- A posição dos Recorrentes não foi pesada na formação da decisão de ordenar a perícia, tendo-se determinado o início de diligências de forma ilegal e em incumprimento dos requisitos normativos estabelecidos para esta matéria.

19o- Esta questão é abordada na jurisprudência, conforme se invoca a título de exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05 de Março de 2002, in CJ/STJ, 2002, 1o - 126.

20o- Na douta decisão a quo aceita-se a ocorrência de uma nulidade processual, concorda-se com a posição dos Recorrentes de verificação de uma violação da legalidade nos termos dos art.s  201° n. 1 e 578° n. 1 ambos do C.P.C, (versão aplicável).

Mas,

21°- Nega-se provimento à pretensão dos Recorrentes, tanto para mais que tais perícias ou a ausência de algumas delas, no entendimento de quem julgou em segunda instância, "...não influiu no exame e decisão da causa (quod abundat non nocet).

No entanto,

22o- Os resultados das perícias influenciaram de forma menor a decisão em primeira instância.

Mas,

23o- Na segunda instância foram fulcrais para amparar a pretensão da Recorrida.

Ou seja,

24o- Apesar de ser constatada a ilegalidade, em simultâneo, a mesma é desvalorizada em notório prejuízo dos Recorrentes.

25o- Uma decisão sobre uma matéria que envolve uma responsabilidade técnica específica, exige uma ponderação e um prudente arbítrio que não se verificou de forma alguma.

26o- Sobre a matéria pronunciaram-se autores Prof. Alberto dos Reis, in comentário ao C.P.C., 2o vol., p. 484 e 486 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1956, p. 165 no sentido da determinação da nulidade do ato que não cumpre o formalismo legalmente expresso e anulados os termos subsequentes que desse ato dependam absolutamente.

27o- Uma perícia deficientemente estruturada e mal enquadrada não pode ser admitida.

28o- No que concerne à alteração da matéria de facto, em sede de contra-alegações no recurso de apelação de fls., os Recorrentes pediram a sua rejeição liminar.

Dado que,

29o- A Recorrida pedia uma reapreciação superior de facto e de direito, com base na reapreciação da prova gravada, beneficiando do alargamento do prazo de recurso, cfr. art° 638° n. 7 do C.P.C. .

30o- Para uma sentença notificada às partes em 05 de Abril de 2017 (Ref. CITIUS n° 365099982 quanto à parte recorrente), a Recorrida entregou as suas alegações a 27 de Maio de 2017 (Ref CITIUS n.15175401).

31o- Não especificou a Recorrida os concretos pontos de facto que estariam incorretamente julgados, bem como não identificou quais os exatos meios probatórios do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que determinariam no seu entendimento decisão diversa da recorrida sobre a matéria de facto impugnada, cfr. art° 640º n°s 1 e 2 do C.P.C.

32o- A Recorrida nas conclusões da sua apelação de fls. apenas menciona o Ponto n.18 interligando-o com o Ponto n.19, nada dizendo sobre a imputação direta que teria de obrigatoriamente de fazer sobre a factualidade provada que pretendia ver alterada.

33o- Ao exceder os trinta dias de prazo para recorrer, beneficiando de dez dias suplementares para reapreciação de prova gravada, cfr. n. 7 do art.° 638.° do C.P.C., não cumprindo a razão de ser desta prorrogação temporal para o impulso processual pretendido, o recurso era extemporâneo.

34o- Em alternativa à rejeição liminar, o Tribunal da Relação de Lisboa, concluí que "de forma implícita, impugna-se também o facto provado sob o n. 28 (...), propugnando-se que se considere não provado."

35o- Pela segunda vez, reconhece-se a ilegalidade apontada pelos Recorrentes mas desvaloriza-a em novo benefício da Recorrida.

Nesta sequência,

36o- A douta decisão ora em recurso, para sustentar a posição da Recorrida socorre-se das medições acústicas realizadas no prédio em questão.

37o- São comparados a perícia efetuada nos 6° e 7° andares direitos do imóvel id. a fls. com os valores obtidos nos 7° e 8° andares esquerdos do mesmo edifício e objeto dos presentes autos.

38o- Nas ditas frações (6°/ 7° direitos), existiria a configuração estrutural e pavimento de origem do edifício (tacos de madeira exótica em zonas secas e cerâmico nas zonas húmidas).

Assim,

39o- Concluí o Tribunal da Relação que se existia diferenças de valores acústicos entre o 7° e o 8° esquerdos tal resultaria das obras/alterações realizadas que diminuíram o isolamento acústico.

Mas,

40o- Tal suposição onde assenta a condenação dos Recorrentes colide com a prova plasmada na primeira sentença de fls. que recordemos aponta para a inexistência de alterações estruturais.

41o- Comparando o 8.° andar esquerdo com os ditos 6.° e 7.° andares direitos, o soalho continuava com "revestimento em mosaico cerâmico nas zonas húmidas e reguado de madeira nas zonas secas".

Pelo que,
42o- Os tacos exóticos seriam após as obras réguas de madeira, ou seja, as zonas secas continuavam cobertas com madeira e, inclusive, até se verificando um enchimento de determinada área.

43o- Ao constatar supostas demolições de paredes, a decisão ora em recurso omite a realidade dos factos constante da sentença de fls.

44o- Cita-se a decisão em primeira instância: "Esta possibilidade esbarra no depoimento de KK, vizinho do piso, que conhecia a casa anteriormente às obras em causa. Segundo esta testemunha, pré-existia a abertura entre a saía do prédio em apreço e a saía do prédio ao lado. As saías já estavam abertas, tinha sido o dono da obra, fogo aquando da construção, a proceder à alteração para si próprio, era uma penthouse, pelo que a estrutura da sala não se alterou, (...) Também a R. FF depôs referindo que visitou a casa uma vez antes do início das obras e que constatou que a sala já anteriormente estava aberta, que se tratava de uma sala enorme."

45o- O andar dos Recorrentes não era comparável com o da Recorrida ou com os ditos 6° e 7° direitos.

46o- A alteração real, que poderia ter tido influência nos níveis do ruído, passou pela substituição da alcatifa do anterior proprietário (que erradamente o Tribunal da Relação identifica a fls. 27 da decisão ora em recurso como sendo AA) pelos Recorrentes pais que a retiraram, não se sabendo se foi colocado ou não por baixo da cobertura de madeira algum tipo de material resiliente, mas que, sem qualquer tipo de fundamentação probatória, os Senhores Juízes Desembargadores em causa afirmam não existir.

Mais,
47o- Conforme consta a fls., a fração foi vendida a terceiros que não são parte do pleito, há mais de quatro anos, cfr. ponto 30 da matéria provada da sentença de primeira instância.

Ora,

48o- O novo proprietário realizou obras e a Recorrida afirma "ter deixado de ter o mesmo nível de incómodo desde que a casa foi vendida", conforme resulta do texto da decisão de primeira instância e nunca colocado em causa.

49o - Numa eventual execução para prestação de facto, como conseguem os Recorrentes realizar a obra num espaço cuja propriedade pertence a terceira pessoa que não foi tida ou achada nos presentes autos?

50o - A Recorrida sabendo da existência de um novo proprietário nunca provocou a sua intervenção processual, tornando-o parte na ação judicial em curso.

Assim,

51o- No título executivo existirá um sujeito que não foi parte da ação judicial que deu origem ao mesmo, constituindo um fundamento fulcral de oposição à execução fundada em sentença, o da inexequibilidade do título, uma vez que o dito II, id. a fls. em nada foi condenado.

52o- A força executiva de uma sentença provém das garantias que a mesma oferece como certificação da existência da obrigação, pelo que, o atual proprietário do 8° andar esquerdo deveria ser parte na mesma.

53o- O Tribunal da Relação de Lisboa criou uma absoluta incerteza sobre a constituição ou existência da invocada obrigação, e sobre a titularidade de quem pode repor o direito lesado e sobre a adstrição dos Recorrentes a tal obrigação impossível de cumprir, violando um direito fundamental dos Recorrentes ao coloca-los em tal posição, crfr. n.2 do art.18º da C.R.P.

54o- Este direito litigioso e judicial de que a Recorrida se arroga para interferir na propriedade de terceiros, afetando o seu uso normal, abusando do seu direito à habitação, nem sequer foi levado a registo.

55o- A Recorrida para acautelar eventuais efeitos que se pretendesse obter em referência ao 8° andar id. a fls. deveria tê-lo feito, uma vez que "Os direitos não inscritos no registo devem ser tratados como direitos "clandestinos", que não produzem quaisquer efeitos contra terceiros", in Antunes Varela e Henrique Mesquita, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127°, p. 23, cfr. art.s 2.° n. 1 alínea v), 3. n.1 alínea a) 5.° n.1 do C.R.Pred. . Por fim,

56o- Os Recorrentes pais são condenados a pagar € 7.500,00 à Recorrida por "danos que perduram desde o ano de 2015."

Novamente,

57o- A decisão em recurso esquece-se da venda da fração em 2014 e condena os Recorrentes pais que já não habitavam por cima da Recorrida a pagarem uma indemnização àquela.

58o- A Recorrida a permanecer inalterada a decisão é recompensada por uma diminuição das condições acústicas que presentemente e desde 2014 não são fonte de qualquer queixa.

59° - Com relevância para a decisão a formular, estão violados pela sua indevida apreciação o teor dos arts. 335°; 1305°; 1346.° todos do C.C.; 201º n.1; 319° e segs.; 577°; 578° n.1 todos do C.P.C. (versão aplicável); 311° e segs.; 638° n. 7; 640.° n.°s 1 e 2; 729° todos do C.P.C, (versão atual); 2.° n° 1 alínea v), 3.° n° 1 alínea a) 5.° n° 1 do C.R.Pred.; 18° n. 2 da C.R.P. .

Deve, pois, a douta decisão ser revogada e substituída por douto acórdão que consagre a posição articulada do Recorrente com as legais consequências. Assim se fará JUSTIÇA»

10.  A recorrida DD apresentou contra-alegações, defendendo a inadmissibilidade e a improcedência dos recursos.

11. Por sua vez, a autora (recorrida no recurso principal) interpôs recurso subordinado, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«a) foi usado o martelo perfurador no levantamento do pavimento da cozinha dos Réus;

b) dos documentos 8 da p.i. e de fls. 665 e 666 decorre que a cozinha da fracção dos Réus não se situa sobre o 7° esquerdo da autora, mas sim sobre o 7 direito, contíguo;

c) portanto, a perfuração da laje para o andar da autora resultou do uso do martelo demolidor noutro(s) pavimento(s), além do da cozinha;

d) o martelo demolidor/perfurador de betão é um equipamento legalmente destinado exclusivamente ao uso exterior, seja qual for a sua potência;

e) mesmo a sua emissão de ruído no exterior está sujeita a limites máximos, de modo a minorar os efeitos gravosos para a saúde humana;

f) por conseguinte, o seu uso dentro de habitações é proibido;

g) no seu todo, as obras ruidosas aí executadas, diariamente, durante mais de seis meses são ilegais, porque o seu licenciamento foi indeferido pela CML

h) privaram a autora do direito à tranquilidade e ao ambiente equilibrado dentro da própria habitação, o que constitui manifestos danos não patrimoniais relevantes em termos compensatórios e de reprovação dos agentes;

 i) a autora não estava legalmente onerada com a prova da posse pelos Réus da documentação requerida;

 

j) era aos Réus que competia negar essa posse, após terem sido notificados para a juntar aos autos;

 k) porém, ficaram silentes, o que traduz legalmente a recusa de entrega da documentação possuída;

l) por conseguinte, impunha-se inverter o ónus da prova sobre a alteração do pavimento/laje, porquanto era impossível à autora recorrer a outro meio de prova para a realizar;

 m) ao recusar juntar a documentação requisitada pelo Tribunal, que legalmente possuíam, os Réus violaram com gravidade o dever de cooperação e prejudicaram definitivamente a realização do direito à prova da autora;

 n) retiraram, assim, todo o benefício da violação do dever de boa fé processual, sem que a sua má fé fosse sancionada;

o) durante quase dez anos, a autora sofreu, diariamente, os efeitos nocivos do ruído causado pelos Réus sobre o sono, o descanso e a saúde, em suma;

 p) a indemnização fixada não valorou em termos equitativos a intensidade da culpa e a gravidade dos efeitos de uma violência tão persistente sobre a sua integridade pessoal.

 q) assim, sucessivamente, foram violadas as normas dos artigos 662° n.1 CPC e 376° n.1 CC; 1o, 2o, 3o a), anexo I 10 e o preâmbulo (1) da directiva 2000/14/CE e o dec-lei 76/2002; 18°, 25° e 66° CRP 496° n.1 CC; 218° e 344° n°2 CC, 429°, 431°, 417°, 3o e T CPC, 20° CRP; e 542° n°2 c) CPC; 25° e 18° n. 1 CRP, 496° n°s 1 e 4 CC).

Termos em que pede a Vossas Excelências a revogação parcial do acórdão da Relação e que seja feita Justiça»

12. Os recorridos [recorrentes no recurso principal] apresentaram contra-alegações, defendendo a improcedência da pretensão da recorrente.

*

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS:

1. A admissibilidade dos recursos:

1.1. A revista interposta pelos réus (recorridos na apelação) é, claramente, admissível, por terem ficado vencidos na decisão da segunda instância e se verificarem os requisitos do art.671º, n.1 do CPC.

1.2. A revista subordinada (interposta pela autora) é também admissível, nos termos do art.633º do CPC, porquanto o pedido formulado em matéria de danos não patrimoniais tinha o valor de €25.000 e a decisão recorrida concedeu-lhe uma indemnização de €7.500.

1.3. Sobre o prazo para a interposição do recurso de apelação, os réus/recorrentes afirmam [nos pontos 28º a 34º das conclusões das suas alegações] que tal recurso teria sido extemporâneo pelo facto de a ré ter beneficiado do prazo adicional previsto no art. 638º, n.7 do CPC, apesar de não ter especificado os concretos pontos de facto que estariam incorretamente julgados (art.640º). O tribunal da Relação não atendeu a essa alegada extemporaneidade. E decidiu corretamente a aplicação das regras processuais, pois a apelante impugnou efetivamente a matéria de facto tendo por base depoimentos gravados. Para o efeito, é irrelevante a qualidade técnica da alegação ou a improcedência da pretensão da recorrente, como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente entendido. Veja-se, por exemplo, o acórdão de 08.02.201 (relatora Maria da Graça Trigo)[1].

Assim, não tendo a apelação sido extemporânea, tal não se reflete no presente recurso de revista.

1.4. Além da revista respeitante ao mérito da causa, os réus estenderam o recurso à parte da decisão que decidiu o recurso de agravo. Efetivamente, os réus haviam interposto recurso de agravo contra o despacho da primeira instância, proferido em 18.02.2009, que indeferiu parcialmente os seus requerimentos, com as referências 4213388 e 4231288, respeitantes ao âmbito e conteúdo das perícias requeridas pelos autores (nomeadamente, tendo em vista o conhecimento das condições de insonorização do imóvel), bem como ao modo de notificação entre as partes.

Embora a presente ação tenha entrado em juízo em 2007 e, por isso, lhe continuem a ser aplicáveis algumas normas que estavam em vigor a essa data, tal não se verifica em matéria de agravos, cuja matéria não é suscetível de revista. Apesar de numa primeira análise, de natureza sumária, sobre a reclamação apresentada pelos recorrentes, a revista tivesse sido admitida em globo, concluiu-se, agora, depois de análise colegial de natureza mais aprofundada sobre os requisitos de admissibilidade e o âmbito do objeto do recurso, que os recursos que tiveram por objeto decisões interlocutórias respeitantes à produção da prova pericial não são suscetíveis de revista, nos termos do art.671º, n.2 do CPC. Acresce que, não estando em causa a aplicação de regras sobre prova tabelar, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa nunca poderia ser alvo de recurso de revista, como dispõe o art.674º, n.3 do CPC.

2. Objeto dos recursos:

2.1.O objeto do recurso principal:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes [Arts.608º, n.2; 635º, n.4; 639º do CPC], e descontando as conclusões constantes dos pontos 2º a 27º, que respeitam à matéria do agravo (que não integra o objeto do presente recurso), conclui-se que a questão central a decidir é a de saber se a decisão recorrida fez a correta aplicação da lei quando condenou os réus a realizarem obras de insonorização no imóvel supra identificado.

2.2. O objeto do recurso subordinado:

Das conclusões das alegações da recorrente extrai-se a questão de saber se a decisão recorrida fez a correta aplicação do direito na parte em que condenou os terceiros réus no pagamento de uma indemnização de €7.500, a título de danos não patrimoniais, ou se esse montante devia ser mais elevado, como reclama a recorrente [particularmente, alíneas a) a h), o) e p)]

Nas alíneas i) a n), a recorrente discorre sobre regras respeitantes ao apuramento da matéria probatória, e não sobre uma concreta questão jurídica que tivesse sido decidida pelo acórdão recorrido. Ora, nos termos do art.682º, n.2 do CPC, a decisão recorrida quanto à matéria de facto não pode ser alterada; e nos termos do art. 674º, n.3, o erro na apreciação das provas não pode ser objeto de revista, exceto na hipótese previstas na última parte dessa norma, que manifestamente não se verifica no caso concreto. Deste modo, não podem aquelas alegações sustentar uma concreta questão suscetível de integrar o objeto do recurso.

3. A factualidade provada:

Em 1a instância, foi dada como provada a seguinte matéria de facto:

«1- A propriedade da fracção autónoma correspondente ao 7º esqº do prédio urbano sito na Av. ..., com entrada pelo n. 000-…, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n. 1653/19680916, da freguesia de …, encontra-se registada a favor dos AA. através da inscrição G - ap. 14 de 26-1-1994 (doc. de fls. 10 a 13).

2- A propriedade da fracção autónoma correspondente ao 8º esqº do prédio urbano sito na Av. ..., com entrada pelo n. 000-…, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n. 1653/19680916, da freguesia de … encontra-se registada a favor dos RR. AA, casado no regime de comunhão de adquiridos com BB, e EE, casado no regime de comunhão de adquiridos com FF, através da inscrição G -/ ap. 11 de 27-5-2003 (doe. de fls. 13 a 15).

3 - Os 5º e 6º RR são familiares dos demais RR. e residem habitualmente no andar.

4 - Por carta datada de 17-12-2003, os RR GG e HH comunicaram aos AA. que, na qualidade de promitentes compradores do 8º andar, iriam iniciar obras, devidamente licenciadas, de ajustamento do andar às suas necessidades habitacionais, que pediam desculpa pelos eventuais incómodos que a mesmas pudessem causar-lhes e que para qualquer esclarecimento poderiam ser contactados através de um número de telefone que indicavam (doc. de fls. 16).

5- Por carta datada de 24-10-2005, a A. comunicou aos RR. GG e HH que durante algum tempo pensara que o ruído excessivo provindo do andar decorria da instalação da nova residência, que aguardou que o mesmo cessasse, que estivera ausente durante cerca de nove meses, que, apesar de a situação ter melhorado significativamente durante o dia, tal não sucede com as noites, ouvindo-se falar, andar, fechar portas ou o usar de objectos no chão, ruídos que nunca antes a haviam importunado antes, que até já ouviu o ruído do aspirador depois das 0.30 horas provindo de tal andar e marteladas até mais tarde, que, por isso, presumia haver uma deficiente insonorização na sequência das obras levadas a cabo no andar e que aguardava a cooperação dos mesmos no sentido de eliminar as causas do problema (doc. de fls. 18).

6- A Autora dirigiu aos RR. GG e HH, AA e EE as cartas com o teor de fls. 17 e 20 a 23.

7 -  Em 21 de Agosto de 2006 a A. deu entrada a um requerimento na Câmara Municipal de …, pedindo que relativamente ao 8º andar lhe fosse certificado o teor integral do requerimento e da licença concedida para as obras efectuadas na mesma fracção entre Dezembro de 2003 e Junho de 2004 e o teor integral da respectiva licença de utilização, com o esclarecimento de que as mesmas tinha sido levadas a cabo pela empresa "Germano Silva, Lda.".

8 - A Câmara Municipal de … informou que para o andar em causa apenas fora solicitada uma licença a que correspondeu o proc. 1880/ED/2003, pedido esse indeferido, razão pela qual não constavam as licenças cujas certificações eram requeridas pela A. (doe. de fls. 24 a 34).

9 - Os AA. e os RR. maridos são advogados.

10 - Os AA. começaram a residir no 7º esquerdo há mais de 30 anos, tendo o A. deixado de aí habitar há cerca de 15 anos.

11 - O andar foi arrendado pelo A. para residência da família.

12 - Nos primeiros dias de Janeiro de 2004, as obras estavam em curso durante o horário de expediente habitual.

13 - E prosseguiram diariamente durante alguns meses, com menor ruído a partir de Junho.

14 - As obras produziram os ruídos habituais inerentes.

15 - Durante o período diurno das obras era incómodo estar no 7º esq.° por causa do ruído.


16 - O que levava os AA. a evitarem permanecer em casa durante o horário normal de trabalho do empreiteiro.

17 - Foi utilizado martelo perfurador no levantamento do pavimento da cozinha.

18 - Durante o levantamento do pavimento e a realização das obras houve lugar a perfuração da laje para o 7° esq.°.

19 - Os AA. mandaram reparar os estragos emergentes da perfuração.

20 - A A. esteve ausente do país durante cerca de 9 meses

21- Após o seu regresso, a A. começou a queixar-se de ouvir as actividades domésticas normais dos residentes do 8º andar, incluindo passos, vozes, fechar de portas, arrastar de cadeiras, colocação ou queda de objectos no chão, funcionamento de electrodomésticos e outros, o que antes só excepcionalmente ocorria.

22 - Tais ruídos são susceptíveis de se verificar durante todo o dia.

23 - O ruído provocou transtornos ao descanso, sono e concentração da A.

24 - O prédio foi construído há mais de trinta e cinco anos.

25- As obras decorreram sempre durante o dia, no período normal de trabalho.

26 - Foram os terceiros RR. que fizeram executar as obras, por intermédio de um empreiteiro por si escolhido e pago.

27- São os terceiros RR. que vivem no andar.

 28 - Algumas das obras realizadas no 8o esq. consistiram em substituição dos pavimentos, incluindo soalho, pintura geral, substituição das louças das casas de banho, equipamentos de cozinha, reformulação da compartimentação e amarquisamento de varandas contíguas a um dos quartos e cozinha a tardoz (facto alterado)[2].

29. As obras foram levadas a cabo por "Germano Umbelino da Silva, Lda.".

30. Na pendência da acção, os RR. EE e AA venderam e II[3] comprou o 8.° esq.°, o que foi registado pela ap. 1723, de 2-6- 2014 (doc. de fls.1269). [facto retificado

Após reapreciação da matéria de facto, a segunda instância deu, ainda, como provados os seguintes factos:

«a.) A diminuição do isolamento acústico entre o 7o andar esq. e o 8o andar esquerdo foi causada pelas obras realizadas neste último pelos 3°s réus, de alteração da composição do revestimento dos pavimentos nas zonas secas, de demolição da parede que separava parcialmente as salas de jantar e de estar, e da demolição da parede dupla na zona dos quartos, paredes essas confinantes com a junta de dilatação, e da construção de mais uma casa de banho, tendo-se apurado, em face dos ensaios acústicos realizados, os seguintes resultados:

1.  de acordo com a metodologia expressa no Regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.129/2002. de 11/05:

i. isolamento a sons aéreos entre a sala de estar do 7o esq. e a sala de estar do 8o esq.: 45dB e  após correcção (factor de incerteza), 48dB;

ii. nível sonoro no interior da sala de estar do 7o esq. devido a percussão no interior da sala de estar do 8o esq.: 69dB e, após correcção (factor de incerteza), 66dB;

iii. isolamento aos sons aéreos entre o quarto do 7o esq. e o quarto sobreposto do 8o esq.: 49dB e, após correcção (factor de incerteza), 52dB;

iv. nível sonoro no interior do quarto do 7o esq. devido a percussão no interior do quarto sobreposto do 8o esq. - 66dB e, após correcção (factor de incerteza), 63dB.

2. de acordo com a metodologia expressa no Dec. Lei n.  9/2007, de 17/01:

i. isolamento a sons aéreos entre a sala de estar do 7o esq. e a sala de estar do 8o esq.: 49dB e, após correcção (factor de incerteza), 52dB;

ii. nível sonoro no interior da sala de estar do 7o esq. devido a percussão no interior da sala de estar do 8oesq.: 64dB e, após correcção (factor de incerteza), 61 dB;

iii. isolamento aos sons aéreos entre o quarto do 7o esq. e o quarto sobreposto do 8o esq.: 51dB e, após correcção (factor de incerteza), 54dB;

iv. nível sonoro no interior do quarto do 7o esq. devido a percussão no interior do quarto sobreposto do 8o esq. - 64dB e, após correcção (factor de incerteza), 61 dB.

b) Durante as obras realizadas no 8o esq. foi demolida parte da fachada tardoz.

c) E foi construída mais uma casa de banho, o que contribuiu para o agravamento da deficiência de insonorização, tendo sido totalmente substituídos os esgotos.»

***

4. O direito aplicável:

4.1. Quanto ao recurso principal:

O acórdão recorrido, revogando a decisão da primeira instância, condenou os réus a realizarem obras de insonorização, no supra identificado 8º andar esquerdo.

Tal decisão foi sustentada na conclusão de que a diminuição das condições acústicas entre o 7º esquerdo e o 8º esquerdo não derivou da retirada da alcatifa anteriormente existente neste último ou das condições estruturais do edifício, mas sim das obras realizadas, após as quais passou a ouvir-se, no 7º esquerdo, o ruído produzido pelas atividades domésticas normais dos residentes do 8º andar, incluindo passos, vozes, fechar de portas, arrastar de cadeiras, colocação ou queda de objetos no chão, funcionamento de eletrodomésticos e outros, o que antes só excecionalmente ocorria, provocando transtornos ao descanso, sono e concentração da autora.

Foram ainda alinhadas (após alteração da decisão sobre a matéria de facto) as seguintes razões para justificar aquela decisão: “(…) de acordo com a metodologia expressa no Regulamento aprovado pelo Dec. Lei n. 129/2002, de 11/05, o nível sonoro no interior da sala de estar do 7o esq. devido a percussão no interior da sala de estar do 8o esq., não se mostra conforme (devia ser igual ou inferior a 60db e é, após correcção (factor de incerteza), de 66dB; e o nível sonoro no interior do quarto do 7o esq. devido a percussão no interior do quarto sobreposto do 8o esq. também não se mostra conforme (devia ser igual ou inferior a 60 db e é, após correcção, de 61db); e o isolamento a sons aéreos entre a sala de estar do 7° esq. e a sala de estar do 8o esq. é, após correcção (factor de incerteza), de 48dB, quando devia ser igual ou superior a 50db.

E para além dos valores apurados não serem conformes ao Dec. Lei n.129/2002, vigente à data da realização das obras, a diminuição das condições acústicas afecta a autora no seu direito ao repouso, sono e tranquilidade

Nesta sequência, entendeu-se, no acórdão recorrido que: «(…) o ruído produzido no 8o esq. passou a afectar a autora no seu direito ao repouso, o que constitui manifestamente uma violação ilícita do direito da autora, máxime do seu direito de personalidade.

Assim, não se tratando de uma situação de simples incómodos, mas da violação efectiva do direito ao repouso e da tranquilidade da autora, terá se se concluir que se trata de um prejuízo substancial (ou seja, um dano considerável) para uso do seu imóvel, o qual vai para além dos limites socialmente toleráveis e lesa, realmente, a integridade pessoal da autora.

E verificando-se uma colisão entre o direito ao descanso da autora e o direito dos réus de usufruírem da fracção nos moldes que entenderem, sempre prevalecerá o direito ao repouso

Nessa linha, veio o acórdão recorrido a concluir: «(…) a forma de conciliar os direitos da autora e dos réus (art.335° do C. Civil), passa pela realização de obras de insonorização na fracção correspondente ao 8o esq., de forma a que sejam respeitados os índices de isolamento sonoro plasmados naquele diploma legal [DL n. 129/2002], sem que se justifique impor as concretas obras a executar, nomeadamente a reposição das paredes contíguas à junta de dilatação ou a insonorização dos armários agora existentes no lugar das paredes, cabendo aos réus efectuar as obras que entenderem para alcançar aquele objectivo.

 Essa obrigação recai sobre todos os réus

4.1.2. O modo como se justificou a condenação de todos os réus (tanto os proprietários como os promitentes-compradores moradores) a realizar as obras no 8º esquerdo radicou no entendimento de que essa obrigação constituiria uma obrigação real ou “propter rem”, nos seguintes termos: «(…) a obrigação de eliminar a situação material violadora do direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, constitui uma obrigação propter rem, pois que tem o seu fundamento em normas que, em vista da protecção do ambiente, sujeitam a propriedade a certo estatuto (…)».

 E acrescentou-se: «(…) os 1ºs e 2ºs réus são responsáveis enquanto proprietários da fracção correspondente ao 8o esq. à data da constituição daquela obrigação e os 3°s réus são responsáveis enquanto causadores do acto ilícito

4.1.3. Por outro lado, constando dos autos que o 8º esquerdo foi vendido no decurso da ação (em 2014), não podendo, por isso, os anteriores proprietários realizar obras nesse local, a obrigação de realizar as obras de insonorização foi também estendida aos atuais proprietários (que nunca foram chamados aos presentes autos).

Tal entendimento foi justificado nos seguintes termos: «(…) já após o nascimento da obrigação propter rem, os 1ºs e 2°s réus alienaram a fracção a JJ[4], sem que este tivesse sido habilitado no lugar daqueles a intervir na acção.

Todavia, para além de se entender que o credor da obrigação propter rem pode exigir o cumprimento ao subadquirente, precisamente com fundamento de que a dívida acompanha o direito real de cujo estatuto emerge, vinculando todo aquele a quem a respectiva titularidade sucessivamente for pertencendo (..), no caso, resulta do art. 263°, n.3, do CPC, que os efeitos da decisão a proferir estendem-se ao adquirente da coisa na pendência da acção, fazendo contra ele caso julgado.

Os 1ºs e 2°s réus, a partir da venda da fracção correspondente ao 8o esq. passaram a agir como substitutos processuais do adquirente, litigando em nome próprio, mas em prossecução dum interesse que só indirectamente é seu (…)»

4.1.4. Insurgem-se os réus, nas suas alegações de recurso, contra a condenação na obrigação de realizarem as referidas obras de insonorização, e entendem que o cumprimento dessa obrigação é impossível, dado o facto de o imóvel ter sido alienado a terceiro, em 2014.

4.1.5. A revista do acórdão recorrido impõe, desde logo, a necessidade de se concluir se a obrigação de realizar as supra referidas obras, enquanto meio de tutela dos direitos da autora ao sossego e repouso, deve manter-se ou não.

Caso a resposta seja afirmativa, haverá que determinar o âmbito subjetivo daquela obrigação, concluindo se ela deve considerar-se uma obrigação real e, por isso, extensível ao atual proprietário, caso em que, por força do art.263º, n.3 do CPC se equacionará a produção dos efeitos da decisão em relação a quem não esteve em juízo (o que pressuporá também concluir que existiu venda de coisa ou direito litigioso).

Caso se conclua que a resposta à primeira parte da questão deve ser negativa, ficará, naturalmente, prejudicado o conhecimento do segundo segmento da questão.

 

4.1.6. O conflito em análise enquadra-se na temática da colisão de direitos, em sentido amplo, com expressão legal no art.335º do CC, pois quer os réus, moradores no 8º esquerdo, quer a autora, moradora no 7º esquerdo, são proprietários dos respetivos apartamentos, que ambos destinaram a habitação.

Dos respetivos direitos de propriedade (art.1305º do CC) emergem faculdades de uso dos correspondentes apartamentos que, quando abstratamente consideradas, não se apresentam como tipicamente conflituantes. Todavia, no caso concreto, o conflito decorre do modo como os réus exercem as suas faculdades de gozo do local onde habitam (o 8º esquerdo), cuja repercussão sonora afeta a autora (moradora no 7º esquerdo), não tanto no conteúdo funcional das suas faculdades de gozo, mas sobretudo na dimensão imaterial ou estritamente pessoal que o direito de gozar um imóvel habitacional confere ao seu titular (independentemente da natureza real ou obrigacional do direito), onde se identifica o direito ao sossego e ao repouso, que, por sua vez, constituem também expressões de direitos fundamentais, dotados de tutela constitucional. Pode convocar-se, a este propósito, o art.26º da CRP, onde se consagra o direito ao normal desenvolvimento da personalidade, mas também o próprio art.65º (direito à habitação), do qual se extrai a tutela da habitação condigna, onde se incluiu a dimensão do conforto, que não se reduz a uma vertente física ou funcional, mas compreende também a tutela do último reduto da intimidade, onde se materializa o direito ao descanso, ao sossego e ao silêncio.

4.1.7.  No caso concreto, identifica-se, assim, um conflito ao nível do exercício de direitos subjetivos, ou seja, uma colisão de direitos (art.335º do CC), que, radicando na titularidade de direitos da mesma espécie, não se reduz a um conflito de direitos de propriedade (mesmo tendo presente que esta também acomoda limitações, nos termos do art.1305º do CC). Deste modo, o critério da cedência mútua, previsto no n.1 do art.335º do CC, não poderia impor à autora a compressão do seu direito fundamental ao sossego e descanso.

Como afirmam P. Pais de Vasconcelos e P. L. Pais de Vasconcelos: «As palavras da lei não são muito felizes, pelo que o artigo 335º não deve ser interpretado à letra, mas antes aplicado de acordo com a sua ratio. O sentido do artigo 335º é o de distinguir situações em que os direitos em conflito podem ser hierarquizados e situações em que existe entre eles uma relação de paridade. A concretização do regime do artigo 335º do Código Civil exige uma ponderação dos direitos em conflito»[5].

 

4.1.8. Em geral, não sendo o exercício de direitos conflituantes voluntariamente harmonizado, a hierarquização de direitos, tendo em vista a tutela da lesão ilícita do direito ao sossego, enquanto expressão da tutela geral de personalidade, consagrada no art.70º do CC, é suscetível de assumir variadas configurações, que compreendem, para além da responsabilização civil, medidas restritivas ou proibitivas do desenvolvimento, total ou parcial, de determinadas atividades.

Encontram-se na jurisprudência múltiplas decisões ilustrativas da diversidade de soluções concretas que têm sido encontradas para tutela do direito ao sossego, respeitando, maioritariamente, à lesão desse direito por quem desenvolve atividades comerciais ou industriais (no mesmo edifício ou em edifícios próximos).

Vejam-se, por exemplo, os seguintes acórdãos, nos quais se decidiu limitar o período de funcionamento da atividade emissora de ruídos que afetavam o direito ao descanso de quem se encontrava no interior das respetivas habitações, e ainda (no último aresto infra) deslocar a fonte do ruído:

- Acórdão do STJ, de 18.09.2018 (relator Pedro Lima Gonçalves), em cujo sumário se pode ler:

«O ruído provocado pela laboração de uma lavandaria da ré, instalada no rés-do-chão, no estado de saúde da autora, a residir no 1.º andar do mesmo prédio, configura um conflito de direitos: o direito da autora à integridade física e moral e a um ambiente de vida sadio – arts. 25.º e 26.º, n.º 1, ambos da CRP, e 70.º do CC – e o direito da ré a desenvolver a sua actividade económica – art. 61.º da CRP.

(…) Na consideração de que (i) os barulhos provocados são incómodos e impossibilitam a autora de descansar no período de funcionamento da lavandaria (entre as 08 e as 21 horas) e (ii) contribuem para o agravamento de síndrome depressiva da autora, com terapêutica de descanso; que (iii) a autora tem uma residência secundária e (iv) a ré exerce a actividade no local há vários anos, na harmonização dos dois direitos, mostra-se equilibrada a decisão de limitar a laboração da lavandaria ao período diário compreendido entre as 09 e as 19 horas»[6]

- Acórdão do STJ, de 18.10.2018 (relatora Rosa Tching), em cujo sumário se lê:

«Demonstrado que a atividade fabril da ré provoca vibrações e ruídos constantes, que rapidamente se transferem para a casa de habitação dos autores, fazendo-a vibrar de forma constante, particularmente a cozinha, e que o facto da ré laborar, ininterruptamente 24 horas por dia e 6 dias por semana, afeta o descanso dos autores, impedindo-os de dormir convenientemente, causando-lhes stress e desgaste psicológico acentuado e provocando-lhes transtornos de memória e cansaço, impõe-se dar prevalência ao direito dos autores ao repouso, ao sono e à tranquilidade, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, sobre os interesses empresariais da ré.

Neste contexto e sob pena de preclusão da efetividade da tutela dos direitos de personalidade dos autores, impõe-se, de igual modo, afirmar a essencialidade da proibição de laboração da ré no período que decorre entre as 22 horas e as 6 horas e ao domingo como forma adequada e proporcional de assegurar aos autores um descanso noturno de oito horas e um maior período de repouso e de tranquilidade no interior do seu domicílio ao domingo (dia de descanso semanal), e, desse modo, minimizar a afetação da saúde e integridade física e psicológica dos autores[7]

- Acórdão do STJ, de 29.06.2017 (relator Lopes do Rego), em cujo sumário se pode ler: «É ilícita a atividade, geradora de excesso de ruido noturno, ocorrida em espaço controlado pelos titulares do estabelecimento de diversão e lesiva do direito fundamental de personalidade dos autores, impedidos de descansar no interior do seu próprio domicílio, por tal comportamento traduzir violação de um direito de personalidade que, pela sua natureza e relevância, não pode deixar de se ter, em princípio, por prevalecente sobre os interesses empresariais dos RR. em explorarem, no local, uma atividade de discoteca/estabelecimento de dança durante largos períodos noturnos. (…) Existindo uma relação de concausalidade, sendo a lesão do direito de personalidade e os consequentes danos resultado, quer de um facto imputável ao próprio réu, por ocorrido em espaço por ele controlado, quer do impacto ambiental negativo global, associado a comportamentos no exterior de terceiros/utentes, pode o lesante ser chamado a responder - na medida dessa concausalidade - pela indemnização devida aos lesados, a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais»

Neste caso, a decisão foi a seguinte:

« - condenam-se os RR. a fazer cessar, de imediato, a utilização do estabelecimento por eles explorado como espaço noturno de dança/discoteca/ emissão de música, abstendo-se de o utilizar para esses fins entre as 22.00 horas e as 07.00 horas do dia seguinte;

- repõe-se a condenação dos RR. no pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos AA., decretada em 1ª instância, no montante global de €8.000,00 (oito mil euro), distribuídos nos termos ali determinados»[8]

- Acórdão do STJ, de 03-10-2019 (relatora Rosa Tching), em cujo sumário se lê:

«(…) demonstrado que o direito dos autores ao sono e ao repouso está a ser interrompido e afetado, diariamente, entre as 3 e as 5 horas pelo barulho estridente dos galos e galinhas que os réus criam num anexo, que dista apenas 4,3 metros da casa dos autores, impõe-se ter por prevalecente o referido direito dos autores, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, sobre o direito de propriedade dos réus e os interesses destes em fazer criação de galinhas e galos». Os réus foram condenados a deslocarem as aves para local onde não perturbassem o direito ao descanso dos autores[9].

4.1.9. No caso concreto, o direito da autora ao sossego não é afetado por uma qualquer atividade comercial ou industrial, mas sim pelo uso “corrente” de um imóvel destinado a habitação, pelo que qualquer medida restritiva ou temporalmente limitadora do uso desse bem não seria, pela sua própria natureza, uma solução adequada (por afetar o próprio direito à habitação dos réus).

O acórdão recorrido encontrou a solução para a tutela do direito da autora ao sossego, impondo aos réus a obrigação de realizarem obras de insonorização no imóvel onde os ruídos são produzidos (o 8º esquerdo). E estabeleceu essa obrigação de forma indeterminada, ou seja, sem indicação da concreta tipologia de obras a realizar. Foi apenas estabelecido um objetivo: que as obras conferissem ao imóvel o nível de isolamento sonoro plasmado no DL n.129/2002.

4.1.10.   Pode, desde já, afirmar-se que a decisão recorrida não fez, nesta parte, a correta aplicação do direito ao caso concreto, nomeadamente, do disposto nos artigos 70º, n.2 e 335º, n.1 do CC.

Por um lado, no acórdão recorrido, o conteúdo da obrigação de fazer obras de insonorização não foi determinado, nem é, a partir dessa decisão, objetivamente determinável. A realização de obras (qualquer tipo de obras) destinadas a conferir ao imóvel o nível de isolamento sonoro previsto no DL n.129/2002 não constou especificamente dos segmentos do pedido dos autores. O que eles pediram foi a reposição de paredes que os réus demoliram dentro do seu apartamento, a reposição da laje de betão e a aplicação de uma manta resiliente tecnicamente adequada à insonorização exigida pela legislação sobre acústica dos edifícios.

Acresce que, nada na factualidade provada habilita a concluir que antes de os réus terem realizado as obras existia, entre os dois apartamentos, o nível de isolamento acústico correspondente aos parâmetros estabelecidos por aquele diploma, que os réus são, agora, condenados a garantir (concluiu-se apenas que a autora não costumava ouvir barulhos).

Importa ter presente que as obras que os réus realizaram no apartamento onde viviam (o 8º esquerdo), e que diminuíram o isolamento acústico entre os dois apartamentos, não foram obras ilícitas.

Por outro lado, embora se tenha dado como provado que as obras realizadas no apartamento dos réus diminuíram as condições de isolamento acústico, a afetação dos direitos da autora ao sossego e descanso não decorre causalmente das caraterísticas do imóvel (8º esquerdo) em si mesmo, mas sim do modo como esse imóvel é usado pelas pessoas que nele habitam.

Não resulta da factualidade provada que o imóvel intervencionado pelos réus tenha qualquer problema de segurança (por exemplo, risco de ruina ou colapso) que só pudesse ser solucionado com a realização de determinadas obras.

As condições acústicas resultantes das obras só relevam se o imóvel for usado de forma a que o som se propague ao andar de baixo, em termos de lesar o direito ao sossego da autora, o que terá a ver com o modo de uso e o respeito pelos horários de descanso.

Não é, todavia, a existência de todo e qualquer ruído que afetará esse direito, pois em prédios de habitação coletiva, será natural que se oiçam sempre alguns ruídos.

A autora clama pela tutela do direito ao descanso, que se concretiza na garantia de um nível de ausência de ruído necessário para que qualquer pessoa possa repousar, dormir ou até concentrar-se no desenvolvimento de uma atividade intelectual quando se encontra na sua habitação.

Se o local de habitação é, por excelência, o reduto da tutela máxima do direito ao sossego e repouso, é também, com extensões e intensidades diversas, lugar de convívio social, onde os moradores recebem visitas, afetando, em alguma medida, o sossego dos vizinhos, em prédios de habitação coletiva. Mas também as atividades de rotina diária dos moradores são suscetíveis de afetar o sossego de outros moradores, dependendo do nível de cuidado com que tais atividades sejam desenvolvidas, tendo em conta as caraterísticas de propagação do ruído próprias de cada unidade habitacional.

Nesta medida, o respeito pelo direito ao sossego entre moradores de apartamentos contíguos exige que quanto menor o nível de isolamento acústico entre as unidades habitacionais, maior deverá ser o nível de cuidado com que se desenvolvem atividades domésticas de rotina ou de convívio social causadoras de ruídos. Quem não pretende intensificar o nível de cuidado no modo como desenvolve atividades ruidosas no seu apartamento, sempre pode dotar esse local de materiais e equipamentos técnicos que impeçam ou atenuem a propagação do ruido entre unidades habitacionais contíguas.

Não tomando nenhuma dessas medidas, e mantendo o modo de uso do imóvel, depois de saber que lesa o direito de outros ao sossego, o agente passa a desenvolver um comportamento ilícito e culposo que o fará incorrer em responsabilidade pelos danos causados com a violação do direito ao sossego, nos termos do art.483º do CC.

Esta solução decorre expressamente da tutela geral da personalidade consagrada no artigo 70º do CC.

Aliás, foi a solução indemnizatória que o acórdão recorrido estabeleceu como medida de tutela dos danos que a autora sofreu entre 2005 e 2014.

A obrigação de realizar obras de insonorização serviria apenas a tutela de potenciais danos futuros que a autora viesse a sofrer. Embora o art.70º, n.2 do CC compreenda a tomada de medidas destinadas a evitar lesões futuras, pelas razões supra expostas, pode concluir-se que a obrigação da transformação física do imóvel, operada mediante a realização de obras (de natureza ainda indefinida) constituiria uma compressão do direito de propriedade injustificada face à necessidade de tutelar os direitos da autora, os quais podem ser eficazmente respeitados através de um uso correto do imóvel localizado no piso superior àquele onde se localiza a sua habitação.

Concluindo-se, assim, que os réus não devem ser condenados a realizar aquelas obras, ficam prejudicadas as questões supra enunciadas de saber se o dever de realizar tais obras se transmitiria ao terceiro que adquiriu o imóvel em 2014 e que não foi chamado aos presentes autos.

 

 

4.1.11.  Nos pontos 56 a 58 das conclusões das suas alegações, os recorrentes parece que pretendem impugnar o montante indemnizatório [€7.500] concedido a título de danos não patrimoniais. Todavia, não rebatem diretamente esse segmento condenatório, pois não alegam que tenha existido errada aplicação da lei no que respeita aos pressupostos da responsabilidade civil ou à quantificação dos danos. Baseiam a sua argumentação apenas num argumento que decorre de um manifesto lapso de escrita, existente no acórdão recorrido (posteriormente retificado), que consistiu em ter-se escrito que a violação do direito ao sossego da autora se teria iniciado em 2015, quando era absolutamente evidente que se pretendia escrever 2005. Partindo desse lapso quanto às datas, reduzem a sua argumentação ao facto de, tendo o imóvel sido vendido em 2014, não poderem os réus (que nele antes habitavam) ser condenados a pagar qualquer indemnização.

Deve, assim, concluir-se que os recorrentes não puseram em causa (porque não quiseram) os fundamentos da condenação em indemnização pelos danos morais que a autora sofreu por violação do seu direito ao sossego.

Ainda que tivessem, expressamente, impugnado esse segmento da condenação, não lhes assistiria razão, porquanto, nesta matéria, a segunda instância decidiu acertadamente que se verificavam os fundamentos de facto e de direito para conceder à autora uma indemnização pelos danos não patrimoniais, como infra (no ponto respeitante à análise do recurso subordinado) melhor se justificará (e que nesta parte da decisão se faz valer).

 

***

4.2. Quanto à revista subordinada:

4.2.1. A Autora começou por pedir uma indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da violação do direito ao repouso, ao sono e ao ambiente equilibrado, no valor de € 15.000 tendo, depois, alterado o pedido para €25.000.

O acórdão recorrido concedeu-lhe a indemnização de €7.500.

Na revista subordinada, quanto ao montante indemnizatório respeitante aos danos não patrimoniais, a autora alega que, durante quase dez anos, sofreu diariamente os efeitos nocivos do ruído causado pelos réus sobre o sono, o descanso e a saúde, e que a indemnização fixada não valorou em termos equitativos a intensidade da culpa e a gravidade dos efeitos de uma violência tão persistente sobre a sua integridade pessoal [alíneas o) e p) das conclusões das suas alegações].

Tal como se entendeu no acórdão recorrido, nesta matéria, há que distinguir dois períodos: o que respeita à execução das obras, ao longo do ano de 2004; e o que respeita ao uso do imóvel pelos 5º e 6º Réus [ou seja, o terceiro casal de réus], após a conclusão daquelas obras.

4.2.2. Quanto à produção de ruídos durante a execução das obras e eventuais danos causados à autora, o acórdão recorrido não podia ter decidido de modo diverso, face à matéria de facto apurada, pois, apesar de se ter provado que foi usado um martelo perfurador nessa atividade [ponto 17 da factualidade provada], não se apurou que a autora se encontrasse em casa na altura do uso de tal equipamento.

Por outro lado, como decorre da factualidade provada, as obras não foram executadas ao fim de semana, nem no período noturno, mas sim durante o horário normal de trabalho, tendo a Autora evitado permanecer em casa durante o período normal de trabalho do empreiteiro [pontos 12, 16, 25 da factualidade provada]. Assim, apesar de se ter apurado que a Autora sofreu incómodos, durante esse tempo [ponto 15 dos factos provados], a factualidade provada não é suficiente para demonstrar o nível de gravidade desses incómodos e a sua consequente relevância indemnizatória.

4.2.3. No que respeita aos ruídos decorrentes do uso do imóvel pelos 5º e 6º Réus, após a conclusão daquelas obras, e depois de a autora ter regressa ao 7º esquerdo [após ter estado 9 meses ausente do país – ponto 20 da factualidade provada], deve ter-se presente que a segunda instância deu como provado que a realização das obras no 8º andar esquerdo diminuíram o isolamento acústico entre esse andar e o 7º andar esquerdo, por confronto com a situação existente antes da realização dessas obras.

Como supra referido, não sendo a realização das obras no 8º andar (pelos seus proprietários ou por quem por eles autorizado) um tipo de atividade que, pela sua própria natureza, apresente qualquer ilicitude, há, porém, que ter presente que os moradores do 8º andar esquerdo (beneficiários diretos das obras realizadas) tinham, a partir da conclusão dessas obras, que ter adotado um modo de uso adequado à diminuição do isolamento acústico, tendo em vista a salvaguarda do direito ao sossego da autora, moradora no andar de baixo.

Como consta da factualidade provada, por carta datada de 24.10.2005, a Autora comunicou aos réus GG e HH que durante as noites se podia ouvir falar, andar, fechar portas ou o usar de objetos no chão, ruídos que nunca antes a haviam importunado, que até ouviu o ruído do aspirador, depois das 0.30 horas, provindo de tal andar e marteladas até mais tarde, que, por isso, presumia haver uma deficiente insonorização na sequência das obras levadas a cabo no andar e que aguardava a cooperação dos mesmos no sentido de eliminar as causas do problema.

A partir do recebimento dessa carta os Réus, habitantes do 8º esquerdo, não podiam ignorar que o modo como usavam o imóvel, atendendo às caraterísticas de insonorização resultantes das obras, lesava os direitos da Autora ao descanso e sossego.  

Não tendo havido eliminação dos ruídos que afetavam os direitos da Autora, o comportamento dos réus que habitavam o imóvel tem de qualificar-se como ilícito, porque violador de direitos absolutos da Autora, e, pelo menos, negligente. 

A Autora moveu a presente ação, em 2007. Todavia, o imóvel foi vendido em 2014 [doc. de fls.1269 dos autos], não tendo o respetivo adquirente sido chamado aos presentes autos, pelo que a factualidade alegada e provada, no que respeita a danos não patrimoniais, não abrange o período posterior à venda do imóvel.

Está, assim, em causa, apenas, o modo como o comportamento dos supra identificados 5º e 6º Réus lesou o direito ao sossego da Autora, entre 2005 e 2014, e as consequências indemnizatórias desse comportamento.

Entendeu-se no acórdão recorrido que: «Para a determinação da indemnização a atribuir por danos não patrimoniais, o tribunal há-de decidir segundo a equidade, tomando em consideração "o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso" (n.3 do mesmo artigo 496° e artigo 494°). Deverá ainda atender-se ao que vem sendo decidido pelos tribunais, em especial pelo STJ, em casos semelhantes, por força do estatuído no n° 3 do art. 8° do C.C.

No caso em apreciação apurou-se que esses danos perduraram desde o ano de 2005. Ponderando a gravidade do dano, a culpabilidade do lesante, a situação económica previsível da lesada e dos responsáveis, e, em geral, as regras de prudência e bom senso, fixa-se em €7.500,00 euros o valor da indemnização devida, calculado por referência à presente data.»

Da factualidade provada pode concluir-se que durante o período em que o 5º e 6º réus [também designados como terceiros réus] viveram no 8º esquerdo, e após o regresso da autora ao 7º esquerdo (2005), os ruídos apontados no ponto n.21 dos factos provados, que eram suscetíveis de se ouvirem durante todo o dia (ponto 22) lhe causaram transtorno do descanso, do sono e da concentração (ponto 23).

Tendo a autora informado os réus, em outubro de 2005 (ponto 5 dos factos provados), sobre o incomodo que os ruídos lhe causavam, e tendo proposto a presente ação em tribunal, em 2007, invocando a existência dos ruídos e a consequente afetação do seu direito ao sossego, tinham os réus, moradores no 8º esquerdo, a plena consciência de que violavam ilicitamente direitos de personalidade da autora. Encontravam-se, portanto, verificados os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art.483º do Código Civil, com a consequente obrigação de indemnizar a autora pelos danos sofridos, os quais pela sua própria natureza só podem ser quantificados com recurso a critérios de equidade, como decorre dos artigos 496º, n.4 e 566º, n.3 do CC.

Revendo o modo como o acórdão recorrido ponderou a factualidade provada, e tendo presentes os valores indemnizatórios que a jurisprudência tem concedido em casos tematicamente equiparáveis, concluiu-se que essa decisão, sendo tomada segundo critérios de equidade, não se encontra desfasada da restante jurisprudência.  

Neste sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão do STJ de 29.11.2016 (relator Alexandre Reis), que confirmou a decisão do tribunal da Relação (a qual, por sua vez, tinha confirmado o decidido em primeira instância), que concedeu uma indemnização de € 2.500 ao autor, cujo direito ao repouso era afetado pelo desenvolvimento de uma atividade económica que implicava a entrada e saída de viaturas automóveis, durante toda a noite, no rés-do-chão do prédio onde o autor habitava[10].

Veja-se, ainda, o acórdão do STJ, de 29.06.2017 (relator Lopes do Rego) que condenou os réus a indemnizarem os autores em €5.000 e em €3.000, respetivamente, pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência do ruído proveniente de uma discoteca que funcionava entre as 22 horas e as 7 horas da manhã[11].

Em resumo, a indemnização de €7.500 que o acórdão recorrido concedeu à autora é comportável nos parâmetros decisórios que a jurisprudência tem vindo a seguir em casos de violação do direito ao sossego e repouso, pelo que, considerando o disposto no art.8º, n.3 do CC, tal decisão não merece censura, não existindo fundamento para alterar aquele montante.

Por outro lado, decidindo nesses termos, não se pode concluir que o acórdão recorrido tenha violado alguma das normas invocadas pela autora/recorrente subordinada nas conclusões das suas alegações [662° n.1 CPC e 376° n.1 CC; 1o, 2o, 3o a), anexo 1, 10 e o preâmbulo (1) da directiva 2000/14/CE e o Dec-lei 76/2002; 18°, 25° e 66° CRP 496° n.1 CC; 218° e 344° n° 2 CC, 429°, 431°, 417°, 3o e T CPC, 20° CRP;  e 542° n° 2 c) CPC; 25° e 18° n. l CRP, 496° n°s 1 e 4 CC]. Particularmente, não se identifica a violação de qualquer preceito constitucional, nem a recorrente, nas conclusões das suas alegações, explicita em que consistiria tal hipotética violação.

*

DECISÃO: Pelo exposto, decide-se:

Quanto ao recurso principal

Considerar o recurso principal parcialmente procedente, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou os réus a realizarem as obras de insonorização.

 Quanto ao recurso subordinado:

Manter a decisão recorrida na parte em que concedeu à autora/recorrente subordinada a indemnização de €7.500, negando-se, portanto, provimento ao recurso subordinado.

Custas: 1/3 a cargo dos recorrentes; 2/3 a cargo da recorrida.

Lisboa, 27 de fevereiro de 2020

Maria Olinda Garcia – Relatora

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/05a1fa11c236ad648025822e005e14c8?OpenDocument

[2] Facto alterado pela segunda instância.
[3] Com a retificação do acórdão (supra referida) o nome do adquirente foi corrigido, dado existir um lapso de escrita, devendo passar a ler-se: JJ.
[4] O nome do adquirente (atual proprietário) foi corrigido por acórdão retificador proferido em 20.12.2018.
[5] Teoria Geral do Direito Civil, 9ª ed. (páginas 301-302).
[6] Proc. n. 4964/14.9T8SNT.L1.S3

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/00abbc446417d50180258314004d0163?OpenDocument&Highlight=0,direito,ao,repouso

[7] Proc. n. 3499/11.6TJVNF.G1.S2

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/05c3c30b36cf0fc98025832a005979db?OpenDocument&Highlight=0,direito,ao,repouso

[8] Proc. n. 117/13.1TBMLG.G1.S1

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/615ff5dbce841a818025814f00519fd0?OpenDocument

[9] Proc. n. 3722/16.0T8BG.G1.S1

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/38342e6f187a14cf802584880055ecea?OpenDocument&Highlight=0,direito,ao,repouso

[10] Proc. n. 7613/09.3TBCSC.L1.S1, in

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a4ad03aaa6d934278025807a00589b2f?OpenDocument

[11] Proc. n. 117/13.1TBMLG.G1.S1, in

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/615ff5dbce841a818025814f00519fd0?OpenDocument