Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1229/05.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: DIREITOS FUNDAMENTAIS
ADEQUAÇÃO SOCIAL
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :


I - Só a violação ilícita e culposa dos direitos fundamentais dos Autores ( direito à saúde e ao repouso) é susceptível de fundamentar a condenação dos Réus.

II- Para que se verificasse a ilicitude da sua conduta na permissão de que os seu cães ladrassem à noite, era necessário que os Autores lograssem provar a relação de causalidade entre os latidos do cães e a sua falta de sono, o que não lograram provar, tanto mais que esta ocorre só em algumas noites.

IV- Ainda que se entendesse, numa atenuação do rigor interpretativo, que a afirmação conjectural da Relação sobre a possibilidade ou probabilidade de os episódios de insónia dos AA, em algumas noites, serem consequência do ladrar dos cães referidos, equivaleria ao estabelecimento da exigível conexão causal, admitindo-se que tal juízo seria bastante para preencher o conceito de causalidade adequada entre a conduta permissiva dos Autores e as insónias comprovadas dos Réus, verificar-se-ia, relativamente à colisão dos direitos fundamentais já referidos no Acórdão, a falta dos princípios de proporcionalidade e de adequação ( também referido como de razoabilidade) essenciais para a determinação do direito prevalente no caso em apreço.

V-É que a convivência comunitária, como a que ocorre nas cidades, implica real ou potencialmente, «ex natura rerum», algumas contrariedades e incomodidades que os elementos do grupo social sujeitam-se a suportar, para poderem continuar a viver no meio urbano que escolheram.

VI- Trata-se da conhecida figura dogmática da área do Direito Penal, transponível, vantajosamente, para a jurídico-civil, designada por adequação social (do alemão sozial Adäquanz, expressão cunhada por Hans Welzel), que constata a tolerância comunitária para certos condutas que, em abstracto se poderiam considerar como infracções, mas que, em homenagem às concretas necessidades da convivência social e aos valores preponderantes na interacção comunitária, em dado momento histórico, são comummente suportadas como toleráveis.

VII -Isto porque, como é sabido, na convivência social em núcleos populacionais densos, impõem-se algumas restrições de interesses individuais, para que todos possam viver em conjunto em espaços necessariamente limitados.

VIII- -Daí que não baste falar-se in abstracto na prevalência ou preponderância de uma espécie de direitos fundamentais em relação a outra, como parece ser a tese dos Recorrentes, condensada na conclusão j) das suas alegações e acima transcrita, antes se exigindo a avaliação concreta do circunstancialismo fáctico de cada situação, tendo em pauta os referidos princípios.
IX- Por isso mesmo, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 15.03. 2007, desta mesma Secção Cível, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Oliveira Rocha, decidiu-se, na parte que ora interessa:
«Caso a caso, importa averiguar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante
Decisão Texto Integral:


RELATÓRIO


AA e BB, residentes na Rua ......, ......, no Restelo, em Lisboa, intentaram contra CC, DD e EE, residentes na Rua ......, ......, no Restelo, em Lisboa, acção declarativa sob a forma de processo ordinário, através da qual pedem a condenação dos Réus a adoptarem as medidas que, eficazmente e em definitivo, impeçam os seus animais de continuarem a incomodar os Autores e, para o caso de o não conseguirem, a proceder à definitiva remoção dos referidos animais do prédio em que habitam, fixando-se uma sanção pecuniária compulsória de € 500.00, por cada dia de atraso no cumprimento das normas que vierem a ser decretadas.

Fundamentaram os Autores, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de possuírem os Réus, seus vizinhos, no jardim da sua moradia, numa jaula, dois cães, que estão constantemente a ladrar, privando os autores, bem como a filha destes, de descanso e tranquilidade, o que se tem agravado substancialmente nos últimos tempos.

Mais alegaram que, perante a inércia dos Réus e a falta de eficácia da acção da autoridade policial a que recorreram, intentaram contra aqueles um procedimento cautelar, vindo o mesmo a terminar por transacção, uma vez que os Réus colocaram coleiras eléctricas nos cães, impedindo-os de ladrar com tanta intensidade.

Contudo, e porque os animais deixaram depois de usar as ditas coleiras, os Autores intentaram contra os Réus novo procedimento cautelar onde os mesmos foram intimados a adoptarem medidas necessárias a eficazmente impedir os seus animais de os continuarem a incomodar, ou, caso o não conseguissem de imediato, a entregar os cães a um fiel depositário.
Alegaram ainda os Autores que, perante a reiteração da passividade dos Réus, solicitaram a remoção dos animais para o canil municipal, já que o ruído provocado pelos mesmos lesa gravemente o respectivo direito ao repouso, descanso e tranquilidade, bem como o direito à saúde da sua filha menor, registando já os Autores um profundo mal estar, caracterizado por cansaço e por irritabilidade extremos, o que determinou alterações no rendimento profissional do autor, e no rendimento escolar da filha.

Computaram os Autores os danos sofridos em consequência do comportamento dos réus, para efeito de compensação, em € 15.000,00.

Citados, os Réus apresentaram contestação, na qual impugnaram os factos alegados pelos Autores, nomeadamente salientando não ser verdade que tivessem os animais numa jaula, sendo que os mesmos apenas ladram quando alguém se aproxima do portão da sua casa ou estaciona o automóvel em frente.

Mais alegaram os Réus que os cães em causa são de guarda, assim se compreendendo que a maioria das casas do bairro – dotadas de condições para o efeito – os possuam, tanto mais que os assaltos são cada vez mais frequentes, tendo eles próprios afeição e apego aos animais.

Alegaram ainda os Réus o comportamento agressivo do autor e que os animais são atiçados intencionalmente pelos autores, nomeadamente com objectos e pedras, uma das quais fracturou um vidro do veículo automóvel de um deles, por forma a justificarem a sua infundada tese de falta de sossego, tendo apresentado queixas-crime por tais factos, bem como pelos insultos e pelas ameaças que lhes são dirigidas, incluindo à respectiva filha.

Invocaram também os Réus que são os autores responsáveis pela produção de maiores ruídos e incómodos, quer mercê do cão que também possuem, quer mercê de obras que fizeram no quintal, quer mercê da celebração do seu casamento em casa.

Alegaram também os réus que, por virtude da transacção celebrada nos autos de Procedimento Cautelar n° 2.113/04.OTVLSB, da 3ª Secção da 7ª Vara Cível de Lisboa, colocaram coleiras eléctricas nos animais, por forma a evitar mais queixas, o que manifestamente não impediu os autores de continuarem a suscitar conflitos de proximidade, à semelhança do que já fizeram com outros vizinhos, ao contrário deles próprios, que residem naquele bairro há trinta e cinco anos, de forma pacífica.

Invocaram, por fim, os Réus, danos morais e psicológicos com toda esta situação, bem como a privação da companhia dos seus animais, por decisão cautelar, pedindo a improcedência da acção e a absolvição dos réus da totalidade do pedido e que lhes sejam restituídos os cães e ainda a condenação dos autores, como litigantes de má fé, em montante a arbitrar pelo Tribunal, a título de multa a favor do Estado.
Após a legal tramitação, efectuou-se o julgamento da acção, tendo sido proferida sentença que decidiu:
Absolver os Réus, CC, DD e EE, dos pedidos aqui formulados contra si pelos Autores, AA e mulher, BB;
Absolver os Autores do pedido de condenação respectiva como litigantes de má fé, aqui formulado contra si pelos réus.

Inconformados, interpuseram os Autores recurso de Apelação da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa que, todavia, julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Ainda inconformados, os Réus vieram interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

CONCLUSÕES

a) O douto Acórdão recorrido ao concordar com a decisão de primeira instância, considerando que "axiológica e normativa superioridade dos direitos de personalidade, sobre os direitos de propriedade, não se verifica no caso concreto, isto é, os contornos circunstanciais dos interesses dos Autores, por um lado, e dos interesses dos Réus, por outro, não justificam que se imponha a estes o sacrifício do seu direito, face à natureza da lesão do direito daqueles (principio da proporcionalidade), sob pena de uso de um meio intolerável para os Réus, afectados pelas medidas restritivas requeridas (principio da razoabilidade)" enferma de manifesto erro de julgamento, bem como aplica de forma errada a disposição prevista no artigo 335° do Código Civil, e viola o artigo 70° do Código Civil e os artigos 26° e 66° a Constituição da República Portuguesa;

b) Está assente que os cães em causa nos presentes autos "ladram" e "ladram, em determinadas ocasiões, do dia e da noite" e que "em algumas noites os Autores tiveram dificuldades em dormir" (cfr. artigos 10, 11 e 12 dos factos considerados provados), pelo que é, assim, certo que o ruído provocado pelos animais dos Réus afectou, pelo menos em algumas noites, o direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos Autores e da sua filha, integrando-se este no elenco dos direitos de personalidade, e, como tal, abrangido pela tutela geral da personalidade prevista no artigo 70° do Código Civil;

c) Os Autores pretenderam com os presentes autos fazer cessar a titulo definitivo a situação atrás descrita provocada pelos animais em causa, por forma a proteger a sua saúde e a evitar a continuação da lesão do direito ao descanso seu e da sua filha, sendo certo que o direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos Autores só será assegurado se os Réus forem proibidos de terem os animais em causa na sua propriedade ou, em alternativa, se forem condenados a adoptarem as medidas necessárias para que os mesmos se mantenham em silêncio, designadamente mediante um sistema de coleiras electrificadas ou outro que cumpra o fim previsto;

d) Está igualmente assente que os animais em causa "são cães de guarda, bastante utilizados para protegerem habitações e darem alerta a prováveis tentativas de furto em habitações", e que "ladram como qualquer outro cão do seu porte, isto é, ladram de forma correspondente ao porte que têm" bem como que "ladram como qualquer animal da espécie, entre outras situações, quando alguém se aproxima do portão da casa dos Réus ou quando algum automóvel estaciona em frente do portão", pelo que a sentença de primeira instância reconheceu não só que os cães ladram como aliás os Réus têm os mesmos para esse fim, ou seja ladrarem e darem alerta;

e) O douto Acórdão recorrido confirmou o entendimento da decisão de primeira instância que considerou que o "direito de fruírem e usarem, quer a casa, quer o jardim, quer os cães da forma que melhor entendessem", consubstancia igualmente um direito fundamental, designadamente o direito à propriedade e à segurança dos Réus, considerando assim que estaremos perante um conflito de direitos, e que, neste caso concreto, "a normativa superioridade dos direitos de personalidade sobre os direitos de propriedade não se verifica", sendo com base neste pressuposto errado que o douto Acórdão recorrido recorre ao n° 1 do artigo 335° do Código Civil, ou seja considerar que estamos perante direitos iguais ou da mesma espécie, ou sequer comparáveis;

f) Não está em causa nos presentes autos o direito de propriedade do imóvel dos Réus, nem tão pouco o direito dos Réus possuírem animais nessa mesma propriedade. Os Autores jamais quiseram impor quaisquer limites ao direito de propriedade dos Réus nem que estes deixem de terem os animais que bem entendam. Os Réus são livres de terem os animais que quiserem na sua propriedade desde que esses animais respeitem o direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos Autores;

g) A pretensão dos Autores não põe em causa o direito à segurança dos Réus, pois para assegurar esse direito não serão exclusivamente necessários cães. Muito menos cães que ponham em causa o descanso dos vizinhos. Existem inúmeros outros sistemas de segurança aos quais os Réus poderão recorrer sem causar qualquer prejuízo a terceiros;
h) Mesmo na hipótese configurada no douto Acórdão recorrido, não há sequer, nesse caso, uma verdadeira colisão de direitos, visto a lei estabelecer uma relação de subordinação entre eles, pois ainda que o direito de propriedade seja um direito fundamental não podemos de modo algum considerar que o mesmo esteja no mesmo patamar do direito ao repouso, descanso e tranquilidade, são direitos desiguais pelo que ao contrário do que se entende no douto Acórdão recorrido, é manifesto que não pode o direito à propriedade e segurança dos Réus sobrepor-se ao direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos Autores;

i) Os direitos de personalidade, e o direito à qualidade de vida são direitos subjectivos absolutos, oponíveis erga omnes, impondo a todos um dever geral de abstenção da prática de actos que os ofendam pelo que perante comportamentos que lesem direitos dessa natureza deve um Tribunal decretar as medidas adequadas para que tal situação não se mantenha;

j) O direito de personalidade dos Autores prevalece, nos termos do artigo 335°, n° 2, do Código Civil, e como são doutrina e jurisprudência pacíficas, aliás extensamente citadas no douto Acórdão recorrido, sobre o direito dos Réus em possuírem animais na sua propriedade, não havendo, neste caso, uma verdadeira colisão de direitos, visto a lei estabelecer uma relação de subordinação entre eles, pelo que sendo desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior (cfr. artigo 335°, n° 2, do Código Civil);

Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.


FUNDAMENTOS

Das instâncias, vem fixada, como provada, a seguinte factualidade:

1. AA e BB, aqui Autores, são donos da moradia sita na Rua ............, n° ......, no Restelo, em Lisboa, onde residem ( A );

2. FF nasceu no dia 31 de Julho de 1987, sendo registada corno filha de AA e de BB- conforme certidão de nascimento respectiva, que é fls. 133 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida;

3. CC, DD e EE, aqui Réus, são vizinhos dos Autores e residem na moradia sita na Rua ........., n° ......, no Restelo, em Lisboa, contígua à destes ( B );

4. Os Réus possuem no jardim da sua moradia, identificada no facto enunciado sob o número 3, dentro de um canil, dois cães de raça pastor alemão ( 1º );

5. A área residencial onde se situa a casa dos autos, devido às suas condições, permite aos donos das casas terem animais nos jardins e quintais, para companhia e guarda ( 43º );

6. A maioria das casas do bairro onde se situa a casa dos autos, possuem cães alojados nos jardins ou quintais ( 40º );

7. Os cães servem de guarda às casas, e os assaltos são cada vez mais frequentes ( 41º );

8. Há muitos anos que os Réus têm tido animais em casa, muito antes de os Autores irem viver para a moradia em causa nos autos ( 42º );

9. Os cães em causa nos autos (referidos no facto enunciado sob o número 4) são cães de guarda, bastante utilizados para protegerem habitações e darem o alerta a prováveis tentativas de furto em habitações ( M );

10. Os cães referidos no facto anterior ladram ( 2º );

11. Os cães ladram, em determinadas ocasiões, do dia e da noite ( 3º );

12. Os cães ladram como qualquer outro cão do seu porte, isto é, ladram de forma correspondente ao porte que têm ( 4º );

13. Os cães ladram como qualquer animal da espécie, entre outras situações, quando alguém se aproxima do portão da casa dos Réus, ou quando algum automóvel estaciona em frente do portão ( 24º );

14. Em algumas noites, os autores tiveram dificuldade em dormir (6º e 7º );

15. A filha dos autores tem de se levantar todos os dias pelas sete horas da manhã, para ir para a escola ( C );

16. Os autores solicitaram, por diversas vezes, aos réus que adoptassem medidas, de modo a que os seus cães, pelo menos durante a noite, deixassem de ladrar (D);

17. Os autores viram-se forçados, por diversas vezes, a denunciarem os factos em causa nos autos, às autoridades policiais competentes, de modo a que as mesmas interviessem e intimassem os réus a não prejudicarem o seu descanso ( E );

18. Os autores chamaram a polícia por causa dos cães ( 21º );

19. O autor marido chama a polícia local ( 31º );

20. A polícia desloca-se ao local ( 32º );

21. Um dos réus tem uma filha, que anda a estudar no curso de farmácia e que acorda cedo, a qual não se sente incomodada com o barulho produzido pelos cães ( 29º );

22. A querela em causa nos autos tem sido presenciada pela filha do réu referida no artigo anterior ( 30º );

23. Os autores têm um cão, que por vezes também ladra ( 33º );

24. Os autores fizeram obras na sua moradia ( 35º );

25. Os autores celebraram o seu casamento em casa, na véspera de um exame de admissão à faculdade da filha do réu GG, e fizeram barulho ( 36º);

26. Os autores, em 31 de Março de 2004, intentaram uma Providência Cautelar não especificada, no sentido de que fossem adoptadas, pelos réus, as medidas que eficazmente impedissem os animais de os continuarem a incomodar, correndo a mesma termos sob o n° 2113/04.OTVLSB, na 3ª Secção da 7ª Vara Cível de Lisboa, sendo actualmente o Apenso A dos presentes autos ( F );

27. No âmbito dos autos de Procedimento Cautelar referidos na alínea anterior, os aqui réus comprometeram-se, mediante acordo celebrado com os aqui autores, em 2 de Junho de 2004, «a adoptar as medidas necessárias para que os seus animais não façam barulho e não punham em causa o direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos Autores» ( G );

28. Os autores concordaram com o acordo referido no facto anterior, pois, após a propositura da providência cautelar referida no facto enunciado sob o número 26 (Apenso A), os réus tinham adoptado medidas que impediam os animais de ladrar, nomeadamente colocando nos animais coleiras eléctricas, que os impediam de ladrar com tanta intensidade ( H );

29. O acordo referido no facto enunciado sob o número 27, foi homologado por sentença datada de 03 de Junho de 2004 ( I );

30. Em face das queixas dos autores, na sequência da providência cautelar referida nos factos anteriores (Apenso A), e por sugestão dos mesmos, os réus adoptaram as medidas necessárias aconselhadas, que consistiam na colocação de coleiras eléctricas nos animais - apesar do seu desagrado, acederam, para evitar mais queixas ( 38º );

31. Em determinada altura, os cães usaram coleiras eléctricas e depois passaram a usar coleiras a gás ( 14º );

32. Os autores, intentaram em 22 de Julho de 2004, uma nova Providência Cautelar, no sentido de que fossem adoptadas pelos Réus as medidas que eficazmente impedissem os animais de continuarem a incomodá-los, a qual correu termos sob o n° 4495/04.5TVLSB, na 2ª Secção da 14ª Vara Cível de Lisboa, sendo actualmente o Apenso B dos presentes autos ( J );

33. Por despacho proferido a 28 de Janeiro de 2005, nos autos referidos no artigo anterior, foi a providência julgada totalmente procedente por provada, e os réus intimidados a «adoptarem as medidas necessárias que eficazmente impeça, os seus animais (dois cães de raça pastor alemão) de continuar a incomodar os Requerente, e, caso não o consigam de imediato, a procederem à entrega dos mesmos a um fiel depositário» ( K );

34. Nos autos de Procedimento Cautelar referidos no facto enunciado sob o número 32 (Apenso B), os autores requereram, em 29 de Abril de 2004, a execução da decisão cautelar e, assim, solicitaram a remoção dos referidos cães para o Canil Municipal de Lisboa, sendo essa remoção concretizada em 14 de Março de 2005 (L );

35. Os cães, antes de serem removidos de casa, ladravam em determinadas ocasiões do dia e da noite ( 17º );

36. Os cães ladram de forma correspondente ao seu porte desde, pelo menos, dois anos antes de serem removidos de casa dos réus (18º);

37. Os factos em causa nos autos iniciaram-se por volta de 2002, dando azo a um Processo-Crime instaurado pelos réus contra os autores, que correu termos com o n° 357/02.9SELSB, no 3° Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, onde o autor marido foi acusado pelo crime de injúrias, previsto e punível pelo art. 181°, n° 1 do C.P., e demandado por uma indemnização cível de € 5.000.00. vindo a ser absolvido de ambos, por sentença de 08 de Junho de 2005, transitada em julgado - conforme certidão judicial que é fls. 147 a 155 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida ( N);

38. Na casa dos réus, já foram encontradas pedras na cobertura da piscina (27º );

39. O carro de um dos réus foi encontrado com um vidro partido (28º);
Como se colhe do relatório do presente acórdão, o pedido formulado na presente acção foi «a condenação dos réus a adoptarem as medidas que, eficazmente e em definitivo, impeçam os seus animais de continuarem a incomodar os autores e, para o caso de o não conseguirem, a proceder à definitiva remoção dos referidos animais do prédio em que habitam, fixando-se uma sanção pecuniária compulsória de € 500.00, por cada dia de atraso no cumprimento das normas que vierem a ser decretadas».
Com base no acervo factual apurado e definitivamente fixado, as Instâncias julgaram improcedente tal pedido.
Fizeram-no de forma fundada e fundamentada, adiante-se já.
Efectivamente, com relevo para a pretendida decisão, ficou provado que:

11. Os cães ladram, em determinadas ocasiões, do dia e da noite ( 3º );

12. Os cães ladram como qualquer outro cão do seu porte, isto é, ladram de forma correspondente ao porte que têm ( 4º );

13. Os cães ladram como qualquer animal da espécie, entre outras situações, quando alguém se aproxima do portão da casa dos Réus, ou quando algum automóvel estaciona em frente do portão ( 24º );

34. Os cães, antes de serem removidos de casa, ladravam em determinadas ocasiões do dia e da noite ( 17º );

35. Os cães ladram de forma correspondente ao seu porte desde, pelo menos, dois anos antes de serem removidos de casa dos réus (18º);

Por outro lado, relativamente à alegada privação do sono dos autores, apenas vem provado que:

14. Em algumas noites, os autores tiveram dificuldade em dormir (6º e 7º );

Em primeiro lugar, cumpre salientar que mal se divisa a conexão causal entre o ladrar dos cães e a dificuldade de dormir que os autores tiveram em algumas noites, se é que existe tal conexão.
Tal nexo causal é, como se sabe, essencial para se poder aquilatar de qualquer violação de direitos dos autores, designadamente a violação dos invocados direitos fundamentais à saúde e ao descanso, por banda dos Réus.
Esse nexo de causalidade constitui matéria de facto, pelo menos no plano naturalístico, pelo que, a existir, teria de constar do acervo factual provado.
Note-se que a Relação, quanto a esse concreto aspecto, limita-se a formular uma hipótese, um juízo puramente conjectural, perante o facto provado nº 14 com o seguinte teor «Em algumas noites, os autores tiveram dificuldade em dormir», afirmando que «admite-se que essa circunstância haja sido em consequência do ladrar dos cães», sendo tal admissão de possibilidade ou mesmo de probabilidade, insuficiente para estabelecer como provado o referido nexo causal entre os latidos dos cães e a insónia dos Autores verificada em «algumas noites» e, consequentemente, entre a conduta permissiva dos Réus e a falta de descanso dos Autores.
Doutra banda, e como é sabido, não pode o Supremo Tribunal de Justiça tirar conclusões ou formular juízos em matéria de facto, competindo-lhe apenas, como Tribunal de revista, aplicar definitivamente aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, o regime jurídico que julgue adequado (nº 1 do artº 729º do CPC).
Todavia, para se poder subsumir a matéria de facto apurada pelas Instâncias nos conceitos jurídicos ou categorias legais pertinentes ( julgamento de direito), importa que haja, para tanto, material factual inequívoco.
Só a violação ilícita dos direitos fundamentais dos Autores ( direito à saúde e ao repouso) é susceptível de fundamentar a condenação dos Réus nos termos pedidos na presente acção,
Porém, para que se verificasse a ilicitude da sua conduta na permissão de que os seu cães ladrassem à noite, era necessário que os Autores lograssem provar a relação de causalidade entre os latidos do cães e a sua falta de sono, o que não lograram provar, tanto mais que só em algumas noites.
Nem se diga, como fazem os Recorrentes, que a 1ª Instância considerou, na sentença proferida, que «não obstante não revestir a intensidade inicialmente reclamada pelos Autores, os cães violam, com o seu ladrar, em algumas ocasiões, o direito ao irrestrito sono nocturno daqueles».
Sendo verdade que a asserção foi produzida na sentença referida, menos verdade não é, que tal conclusão não se apoia no acervo factual apurado nem se apresenta fundamentada.
Isto por um lado.
Por outro, como é evidente, o único juízo a ter em consideração no presente recurso, neste concreto ponto da matéria de facto é, logicamente, o que a 2ª Instância, como Instância soberana em julgamento da matéria de facto, formulou no acórdão proferido, e que acima se transcreveu, o que, como vimos se trata de um juízo insuficiente para a caracterização do nexo de causalidade, não tendo este Supremo Tribunal possibilidade legal de o modificar ou completar.
Ainda que se entendesse, numa atenuação do rigor interpretativo, que a afirmação conjectural da Relação sobre a possibilidade ou probabilidade de os episódios de insónia dos AA, em algumas noites, serem consequência do ladrar dos cães referidos, equivaleria ao estabelecimento, pela Relação, da exigível conexão causal, admitindo-se que tal juízo seria bastante para preencher o conceito de causalidade adequada entre a conduta permissiva dos Autores e as insónias comprovadas dos Réus, verificar-se-ia, relativamente à colisão dos direitos fundamentais já referidos no Acórdão, a falta dos princípios de proporcionalidade e de adequação ( também referido como de razoabilidade) essenciais para a determinação do direito prevalente no caso em apreço.

É que a convivência comunitária, como a que ocorre nas cidades, implica real ou potencialmente, «ex natura rerum», algumas contrariedades e incomodidades que os elementos do grupo social sujeitam-se a suportar, para poderem continuar a viver no meio urbano que escolheram.
Trata-se da conhecida figura dogmática da área do Direito Penal, transponível, vantajosamente, para a jurídico-civil, designada por adequação social (do alemão sozial Adäquanz, expressão cunhada por Hans Welzel), que constata a tolerância comunitária para certos condutas que, em abstracto se poderiam considerar como infracções, mas que, em homenagem às concretas necessidades da convivência social e aos valores preponderantes na interacção comunitária, em dado momento histórico, são comummente suportadas como toleráveis.
Isto porque, como é sabido, na convivência social em núcleos populacionais densos, impõem-se algumas restrições de interesses individuais, para que todos possam viver em conjunto em espaços necessariamente limitados.
Daí que não baste falar-se in abstracto na prevalência ou preponderância de uma espécie de direitos fundamentais em relação a outra, como parece ser a tese dos Recorrentes, condensada na conclusão j) das suas alegações e acima transcrita, antes se exigindo a avaliação concreta do circunstancialismo fáctico de cada situação, tendo em pauta os referidos princípios.
Por isso mesmo, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 15.03. 2007, desta mesma Secção Cível, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Oliveira Rocha, decidiu-se, na parte que ora interessa:
«Caso a caso, importa averiguar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante».
Mais adiante, lê-se no referido aresto:
«No caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respectiva avaliação, refere Capelo de Sousa (O Direito Geral de Personalidade, pag. 547), «abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivização de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo». E exemplifica:
«Assim, quando num prédio de habitação seja montado um estabelecimento em que habitualmente haja produção de ruídos ou de cheiros susceptíveis de incomodar gravemente os habitantes do prédio, o direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida destes deve considerar-se superior ao direito de exploração de actividade comercial ou industrial ruidosa ou incómoda. Mas, já o direito ao sossego, à tranquilidade e ao repouso dos moradores não prevalece sobre o direito de propriedade alheio, face aos ruídos normalmente provocados por vozes de aves domésticas legitimamente mantidas em quintais de residências vizinhas».

Ou, como ensina Pessoa Jorge (Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág.201), «…No nº 2 desse normativo estabelece-se, na hipótese de colisão de direitos
desiguais ou de espécie diferente, a prevalência do que se considerar superior, a definir em concreto».

Ora o circunstancialismo fáctico da presente acção, apurado pelas Instâncias e definitivamente fixado no acervo plasmado no presente Acórdão, é de molde a desenhar a conduta dos Réus como exercício do seu direito de propriedade sobre os cães e da posse dos mesmos para guarda e segurança das suas pessoas e bens, como claramente ressalta, para além dos já referidos factos provados, também dos factos 4º a 9ª que, para maior comodidade de consulta, se transcrevem:

4. Os Réus possuem no jardim da sua moradia, identificada no facto enunciado sob o número 3, dentro de um canil, dois cães de raça pastor alemão ( 1º );

5. A área residencial onde se situa a casa dos autos, devido às suas condições, permite aos donos das casas terem animais nos jardins e quintais, para companhia e guarda ( 43º );

6. A maioria das casas do bairro onde se situa a casa dos autos, possuem cães alojados nos jardins ou quintais ( 40º );

7. Os cães servem de guarda às casas, e os assaltos são cada vez mais frequentes ( 41º );

8. Há muitos anos que os Réus têm tido animais em casa, muito antes de os Autores irem viver para a moradia em causa nos autos ( 42º );

9. Os cães em causa nos autos (referidos no facto enunciado sob o número 4) são cães de guarda, bastante utilizados para protegerem habitações e darem o alerta a prováveis tentativas de furto em habitações ( M );

Bem elaboradas se mostram, pois, as conclusões da Relação ao afirmar que:
«Da prova produzida não pode deixar de se concluir que é mínimo o atentado ao descanso e sossego dos autores.
A intensa e imperiosa convivência entre as pessoas leva a considerar que nas relações de vizinhança há que tolerar, obviamente até certo ponto, algum ruído e alguma incomodidade que todos causam uns aos outros como, de resto, ficou demonstrado nos autos.
Os próprios autores, pese embora sofram de alguma hipersensibilidade ao ruído provocado pelos cães dos réus, eles próprios são igualmente produtores de ruído – v. nºs 23 a 25 dos Fundamentos e Facto – sendo certo que os autores também têm na sua habitação um cão que não pode deixar de ladrar, sendo susceptível de causar algum incómodo a outras pessoas igualmente hipersensíveis ao ruído.

Em face da prova produzida entende-se que a reduzida intensidade da incomodidade sofrida pelos autores e a ausência de consequências decorrentes dessa incomodidade, não deve levar à pretendida limitação dos direitos dos réus à propriedade privada.
Não é aceitável, atento o circunstancialismo fáctico apurado, que os réus/apelados não possam utilizar plenamente a respectiva moradia e nela deter os seus cães».

Em face de todo o exposto, nada resulta no sentido da procedência da presente acção, como uniformemente decidiram as Instâncias, pelo que, soçobrando as conclusões que condensam a matéria alegada pelos Recorrentes, só há que declarar a improcedência do presente recurso.

DECISÃO

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Custas pelos Recorrentes.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Setembro de 2010

Álvaro Rodrigues (Relator)
Teixeira Ribeiro
Bettencourt de Faria