Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
029959
Nº Convencional: JSTJ00002678
Relator: MARIO CARDOSO
Descritores: CONVOLAÇÃO
ULTRAMAR
CONDENAÇÃO POR FACTOS DIVERSOS
INDIGENA
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ195907210299592
Data do Acordão: 07/21/1959
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IªS 31-07-1959; BMJ 89 , 379
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 2/1959
Área Temática: DIR PROC PENAL. DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS.
Legislação Nacional: CP886 ARTIGO 349 ARTIGO 361 PARUNICO.
D 39817 DE 1954/09/15 ARTIGO 16 N5 N7.
D 39666 DE 1954/05/20 ARTIGO 25 ARTIGO 53.
CPP29 ARTIGO 358 ARTIGO 447 ARTIGO 448 ARTIGO 669.
D 39997 DE 1954/12/29.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RLM PROC29959 DE 1957/11/02.
Sumário :
No processo penal contra indigenas, regulado no Decreto n. 39817, de 15 de Setembro de 1954, e aplicavel o artigo 447 do Codigo de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça, em Tribunal Pleno:

Na comarca de Inhambane, foi condenado, em recurso de setença do Juiz Municipal do Julgado do mesmo nome, o indigena A na pena de
4 anos de prisão maior substituida por 5 anos e 4 meses de trabalhos publicos como autor do crime de homicidio preterintencional, previsto e punido pelo paragrafo unico do artigo 361 do Codigo Penal, na pessoa de sua amante, indigena, de nome B.
Subido o processo em recurso oficioso ao Tribunal da Relação de Lourenço Marques foi a referida decisão alterada por convolação, que se considerou permitida nos processos a que se refere o Decreto n. 39817, de 15 de Setembro de 1954, do referido crime do artigo 361, paragrafo unico voluntario consumado previsto no artigo 349, ambos do Codigo Penal, por se entender estar provada a intenção de matar que no Julgado Municipal e na comarca se considerara faltar e embora tal intenção não constasse do despacho de recebimento da acusação e de classificação.
Foi, em consequencia, o reu condenado na pena de 16 anos de prisão maior substituida por 21 anos e 4 meses de trabalhos publicos.
E manifesta a oposição do decidido nesse acordão com o resolvido pelo mesmo tribunal em seu acordão de 2 de Novembro de 1957, certificado a folhas 45, sobre a mesma questão de direito pois neste se julgara que não podia em recurso da sentença e nos processos de que trata o referido Decreto n. 39817, fazer-se a aludida convolação e que devia o processo ser anulado desde o despacho de classificação inclusive baixando ao julgado para que o mesmo despacho fosse substituido por outro em que, considerando-se haver no processo indicios da intenção de matar, se indiciasse o arguido como autor do crime do artigo 349 do Codigo Penal.
Não admitindo ambos os acordãos recurso ordinario para o Supremo (artigo 53 do decreto n. 39666, de 20 de Maio de 1954) e tendo o ultimo transitado em julgado, interpos, o digno representante do Ministerio Publico junto do Tribunal da Relação de Lourenço Marques o presente recurso extraordinario para este Tribunal, de conformidade com o disposto no artigo 669 do Codigo de Processo Penal, a fim de se fixar jurisprudencia sobre a referida materia de direito.
Reconhecendo-se existirem os requisitos legais para por este Tribunal Pleno ser feita a uniformização da jurisprudencia quanto a questão assim oportunamente decidida foi o recurso mandado seguir pelo acordão de folhas 62.
Na suas alegações o excelentissimo Ajudante do Procurador -Geral junto deste Tribunal, com desenvolvimento e doutamente, deu o seu parecer no sentido de dever essa jurisprudencia firmar-se no sentido contrario ao do acordão recorrido.
Não houve contra-alegação.
O que tudo visto e decidindo:
Não foi posto em duvida, nem pode se-lo, que o despacho de indiciação, ou recebimento da acusação e classificação a que se refere o n. 5 do artigo 16 do Decreto n. 39817, de 15 de Setembro de 1954, em que se relatara o crime com todas as circunstancias e se indicarão as disposições penais violadas, corresponde ou equivale ao despacho de pronuncia a que se alude no artigo 447 do Codigo de Processo Penal. Constam dele os elementos integrantes desse despacho referidos no artigo 358 do mesmo Codigo.
Ora resulta do determinado nesse artigo 447 e no artigo 448 que o Tribunal não podera conhecer por infracção diferente daquela por que o reu foi acusado, sendo mais grave do que ela, desde que os seus elementos constitutivos não sejam factos que constem do despacho de pronuncia ou equivalente, so podendo condenar por infracção diversa se os factos que resultarem da discussão da causa tiverem por efeito diminuir a pena.
Tal disposição, como o entende o insigne Professor Beleza Santos - Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 63, pagina 385 - consigna a regra de ser a sentença condenatoria limitada pelo ambito da acusação constante do despacho de pronuncia ou de decisão equivalente.
Trata-se de uma importante garantia de defesa para o reu que se apoia no principio do favor defensionis de facil justificação e que consiste em não poder o reu ser condenado senão por factos de que, oportunamente, lhe tenha sido dado conhecimento.
No caso do acordão recorrido, tais factos, consistentes em ter o arguido apertado a garganta da vitima que rolou pelo chão gritando, admitindo-se na autopsia que tenha havido colapso cardiaco por serem pouco visiveis os sinais de asfixia sem referencia a intenção de matar, mereceram, no dito despacho, a qualificação no paragrafo unico do artigo 361 do Codigo Penal e foram os levados ao conhecimento do arguido por notificação do mesmo despacho com a advertencia feita, nos termos do n. 7 do citado artigo 16, de que podia requerer, em 5 dias, as diligencias que entendesse, certamente no sentido de defender-se em relação aos factos de que era acusado.
Nada se opõe a aplicação do referido principio-garantia, consignado, de resto, na lei processual criminal comum que esta em vigor no Ultramar desde 1 de Julho de 1931, aos indigenas das Provincias Ultramarinas.
Não ha disposição expressa que autorize o seu afastamento e, pelo contrario, esta ela de inteira harmonia com o sentido de salvaguarda da defesa enunciado na Constituição Politica e reafirmado pela Lei Organica do Ultramar Portugues e em disposições de Leis especiais nomeadamente as sobre o regime prisional e a reforma penal, tornadas extensivas ao dito Ultramar ressalvadas certas disposições particulares no interesse, porem, dos indigenas e sem enfraquecimento da sua protecção legal, por força do disposto no Decreto n. 39997, de 29 de Dezembro de 1954.
Do constante do relatorio do Decreto n. 39666, de 20 de Maio de 1954 resulta o respeito pelos direitos dos indigenas e aquele fim de protege-los com a aplicação embora, de leis especiais para eles mas com a subsidiaria das leis penais comuns na falta dessas disposições especiais, como expressamente o determina o seu artigo 25.
Pelo Decreto n. 39817, actualmente em vigor e no dominio do qual foram lavrados os acordãos em oposição, o processado dos casos crimes relativos a indigenas, sendo, e facto, de grande simplicidade de termos, esta, como doutamente o faz notar o ilustre representante do Ministerio Publico, orientado no sentido das maximas garantias de defesa e sem conter qualquer disposição que implique um desvio da citada regra, basilar do processo penal, do artigo 447 do respectivo Codigo.
Não procedem assim as razões que se dão para a não aplicação desse artigo a casos como o dos autos: o atrasado grau de civilização de indigenas cuja defesa não vai para alem do conteudo das suas respostas.
Não pode criar-se uma excepção (não contida na Lei implicita ou explicitamente) em materia de direitos de defesa, concedidos em termos constitucionais a todos os portugueses e não contrariada pelas disposições legais da protecção aos indigenas nas Provincias Ultramarinas, que, antes, ressalvam as leis penais comuns, restringindo esses direitos quanto a eles exactamente com fundamento naquela situação de atraso e de fraquesa que a lei tomou em consideração precisamente para, pelas citadas disposições especiais, os proteger.
Não tendo passado em julgado o despacho de indiciação e classificação por dele não haver recurso independente do que se interpos da sentença final, que recorrida foi de oficio, nada obsta a que, na primeira instancia, esse despacho seja alterado para a inclusão do facto indiciado, a confirmar quanto a sua existencia, em julgamento, imprescindivel para a rigorosa qualificação da ocorrencia, como o e a intenção de matar, que o douto Tribunal, em recurso, considerou existir nos autos dentro do ambito legal da sua competencia.
Em consequencia, dando-se provimento ao recurso, se revoga o acordão recorrido determinando-se que os autos baixam ao Tribunal a quo para fazer aplicação da jurisprudencia obrigatoria que se estabelece com o seguinte assento:
No processo penal contra indigenas regulado no Decreto n. 39817, de 15 de Setembro de 1954, e aplicavel o artigo 447 do Codigo de Processo Penal.


Lisboa, 21 de Julho de 1959

Mario Cardoso (Relator) - S. Figueirinhas - A. Sampaio Duarte - Lencastre da Veiga - Agostinho Fontes - Campos de Carvalho - Silva e Sousa - Toscano Pessoa - Sousa Monteiro - Carlos de Miranda - Lopes Cardoso- A. Freitas Costa - Morais Cabral - Eduardo Coimbra.