Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3564
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA LEITE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
BRISA
PRESUNÇÃO DE CULPA
LEI INTERPRETATIVA
Nº do Documento: SJ200711130035646
Data do Acordão: 11/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Para que uma lei nova possa ser interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face dos textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que lei nova vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.
II - Perante as divergências na doutrina e na jurisprudência relativas à natureza da responsabilidade indemnizatória respeitante aos danos resultantes de acidentes de viação ocorridos nas vias classificadas como auto-estradas, torna-se manifesta a natureza interpretativa da norma constante do art. 12.º da lei n.º 24/2007, de 18-07, da iniciativa, aliás, do órgão legislativo nacional próprio (art. 161.º, al. c), da CRP), como meio de pôr termo à patente diversidade de decisões sobre a regra da imputação do ónus da prova em tais circunstâncias.
III - Ao acidente dos autos, ocorrido em 14-02-2002, que consistiu no atropelamento do cadáver de um cão de grande porte pelo veículo conduzido pelo Autor, da sua propriedade, com o consequente despiste e embate no separador central da auto-estrada concessionada à “Brisa - Auto Estradas de Portugal, S.A.” aplica-se - retroactivamente - a presunção consagrada no mencionado art. 12.º.
IV - Não lograram as Rés (a chamada Brisa e a seguradora, para quem aquela havia transferido a sua responsabilidade civil), ilidir tal presunção de culpa da concessionária, pois provou-se que o canídeo entrou na faixa de rodagem da auto-estada, onde foi atropelado mortalmente e que o posto da Brisa tinha sido advertido do prévio atropelamento e morte do animal, que permanecia na faixa de rodagem, não tendo removido o canídeo antes de o Autor circular nesse mesmo local e se despistar.
V - Incumpriu, por isso, a Brisa a obrigação de proporcionar aos utilizadores da via em causa as condições de segurança indispensáveis ao processamento na mesma do trânsito rodoviário (cf. Base XXXVI, n.º 3 do contrato de concessão constante do DL n.º 294/97, de 24-10, aqui aplicável, atenta a data da ocorrência).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – AA demandou na vara mista da comarca de Braga a Ré COMPANHIA DE SEGUROS BB, S A, hoje com a denominação COMPANHIA DE SEGUROS BB-......., S. A., peticionando a condenação desta, para quem a Brisa - Auto Estradas de Portugal, S. A. por contrato de seguro havia transferido a sua responsabilidade indemnizatória, no pagamento da quantia de € 44.776,79, acrescida de juros de mora desde a citação, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe advieram de um acidente de viação, ocorrido no dia 14/02/2002, pelas 22h 45m, quando, conduzindo o seu veículo, matrícula ..– .... – .., pela auto-estrada A3, no sentido sul-norte, e a velocidade inferior a 90 Km/h, tendo-se-lhe deparado um canídeo de grande porte, depositado na faixa de rodagem por onde circulava, travou, com o objectivo de evitá -lo, despistando-se e embatendo no separador central.

Na contestação que apresentou, a Ré seguradora, para além de impugnar os factos alegados, bem como a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos peticionados, deduziu o chamamento da sua segurada, atenta a franquia que sobre esta última impende.

Admitido o requerido chamamento, a Brisa aderiu aos precisos termos da contestação que fora apresentada pela sua seguradora.

Após despacho saneador, foi ordenada a apensação da acção sumaríssima, que, com fundamento nos mesmos factos, CC COMPANHIA DE SEGUROS, S A havia instaurado contra BRISA AUTO ESTRADAS DE PORTUGAL, para ser indemnizada da quantia de € 1.008,45 de indemnizações salariais, que havia pago ao A, no âmbito do acidente de trabalho, e de € 36,77, paga à ARS do Norte.

Na sentença proferida, a Ré e a chamada foram condenadas, solidariamente, no pagamento ao A da quantia de € 24.169,93, acrescida dos respectivos juros moratórios, e aquela última no pagamento à CC da quantia de € 1.045,22, acrescida de juros moratórios, decisão essa integralmente confirmada pela Relação de Guimarães, na sequência de apelação da Ré e da chamada.

Vêm, agora, estas últimas pedir revista do Acórdão prolatado, em cujas conclusões sustentam que a responsabilidade da BRISA assume natureza extracontratual.

Contra alegando, o A pronunciou-se pela confirmação do decidido.

Após vistos, cumpre decidir.

II – Quanto à matéria de facto, nos termos dos arts. 713º, n.º 6 e 726º do CPC, remete-se para a que a Relação teve por provada.

III – Nas conclusões das recorrentes, estas referem, que, contrariamente ao decidido pela Relação, que considerou que a responsabilidade da BRISA reveste natureza contratual, tal responsabilidade, como vem já pelas mesmas sustentado nos
seus articulados, assume natureza extracontratual, pelo que, não tendo ficado provado por parte do A, a quem tal incumbia, que a conduta da chamada tenha sido ilícita e culposa, àquele não assiste o direito a haver a indemnização que lhe foi arbitrada.
Ora, relativamente aos acidentes de viação ocorridos nas auto-estradas, como ocorre na situação reportada nos autos, formaram-se, na jurisprudência e na doutrina, duas correntes, como vem proficientemente explanado no Acórdão deste Supremo de 02/02/2006 (Proc. 3021/05), aqui seguido de perto.
Assim, e para uns, nos casos de vias como tal classificadas, sujeitas ao pagamento de portagem, tem lugar a celebração de um contrato inominado de utilização da via em causa, celebrado entre o utente que paga a respectiva taxa de utilização e a concessionária que fornece o serviço com segurança, pelo que, no domínio do regime da responsabilidade contratual a tal aplicável, em caso de acidente, funciona contra a concessionária a presunção de culpa decorrente do art. 799º do CC, cabendo, portanto, à mesma a prova de que agiu sem culpa, invertendo, assim, a presunção juris tantum imposta por lei – arts. 342º, 344º, n.º 1 e 350º daquela nomeada codificação.
Já, por outro lado, e para outros, não se verifica a celebração de qualquer contrato entre o utente e a concessionária, já que o único negócio jurídico realizado se traduz no contrato de concessão outorgado entre aquela última e o Estado, pelo que a responsabilidade da mesma reveste natureza meramente aquiliana, por omissão do cumprimento dos deveres de cuidado e segurança destinados à salvaguarda dos interesses dos utilizadores da referida via rodoviária, situação essa em que o ónus da prova relativo à culpa da concessionária, quanto ao incumprimento de tais deveres, impende sobre o respectivo utente/lesado – art. 487º do CC.
Porém, a Lei n.º 24/2007, de 18/07, veio dispor no seu art. 12º:
Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a :
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;

Cumpre, assim, apurar, para efeitos da sua aplicação à situação que nos vem presente, a natureza da norma em causa, já que, como princípio geral, vigora na codificação substantiva civil nacional, o da não retroactividade – art. 12º, n.º 1 -, o qual, porém, não é extensível às normas interpretativas – art. 13º, n.º 1.
Ora, para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, sendo que, se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora – Introdução do Prof. Baptista Machado, pág. 247.
Perante as antecedentemente enunciadas divergências relativas à natureza da responsabilidade indemnizatória respeitante aos danos resultantes de acidentes de viação ocorridos nas vias classificadas como auto-estradas no PRN, torna-se manifesta a natureza interpretativa da referida norma, da iniciativa, aliás, do órgão legislativo nacional próprio – art. 161º, al. c) da CRP -, como meio de pôr termo à patente diversidade de decisões sobre a regra da imputação do ónus da prova em tais circunstâncias.

Temos, portanto, que, perante a presunção que assiste ao A/lesado, incumbia às recorrentes ilidir a mesma.
E, da factualidade que se mostra apurada:
O A circulava pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido, Porto-Valença.
O A deparou com um objecto depositado na faixa de rodagem por onde seguia.
O objecto na faixa de rodagem, que fez o A travar e virar à esquerda para o evitar, era um canídeo, que, antes, tinha sido atropelado pelo veículo ..-..-...
O carro da assistência da Brisa encontrava-se na via do lado esquerdo, atento o sentido norte-sul.
O posto da Brisa tinha sido advertido da verificação desse acidente e da morte do animal, que permanecia na faixa de rodagem.
A Brisa depois de saber do acidente verificado com o SF e da morte do canídeo deslocou-se ao local, mas não removeu o canídeo antes de o A circular nesse mesmo local e se despistar em virtude do mesmo.
O canídeo entrou na faixa de rodagem da auto-estrada. decorre, à saciedade, que a aludida presunção de culpa da concessionária, quanto ao incumprimento da obrigação de proporcionar aos respectivos utilizadores da via em causa das condições de segurança indispensáveis ao processamento na mesma do trânsito rodoviário, não foi minimamente ilidida, nomeadamente através do cumprimento do preceituado na Base XXXVI, n.º 3 do contrato de concessão constante do DL n.º 294/97, de 24/10, aqui aplicável, atenta a data da ocorrência do acidente.

Improcedem, assim, a totalidade das conclusões das recorrentes.

IV – Face ao exposto, vão negadas as revistas interpostas.

Custas por cada uma das respectivas recorrentes.


Lisboa, 13 de Novembro de 2007
Sousa Leite (Relator)
Salreta Pereira
João Camilo