Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P2799
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOURENÇO MARTINS
Nº do Documento: SJ200211130027993
Data do Acordão: 11/13/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2 V M V N GAIA
Processo no Tribunal Recurso: 110/01
Data: 04/04/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : I - Para integrar o elemento típico da "confiança do menor para educação e assistência", a que se refere o artigo 173º do CPenal, não é de subscrever a tese de que deverão existir, por parte do agente, o "tratamento e a reputação", elementos da posse de estado previstos nas presunções de paternidade - artigos 1831º, n.º1, parte final, e n.º 2, 1871º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Civil -, pois seria lançar mão de elementos aleatórios, gizados para institutos completamente diferentes.
II - Mas a relação de dependência não se pode extrair do facto de a mulher do arguido ter sido nomeada tutora da menor de 14 anos, sua irmã e ofendida com as relações sexuais, nem de passar a integrar o agregado familiar da tutelada e também cunhada, porquanto o arguido não detém o poder paternal, não participa na tutela, nem partilhava nenhum poder/dever jurídico de educação ou assistência da menor.
III - A "confiança" tem de provir da lei, de sentença ou de um acto (contrato ou outro negócio jurídico) em que manifestamente tenha nascido esse dever de educação ou assistência.
IV - Extravasaria para além dos limites da interpretação extensiva, considerar abrangida naquele tipo de ilícito a conduta do recorrente sem que esteja demonstrada aquela "confiança" da menor, ainda que esta pudesse depender da economia conjunta do casal.
V - Porém, os factos são susceptíveis de preencher o crime do artigo 174º ("Actos sexuais com adolescentes") do CPenal, agravado pela afinidade, enfoque que pode configurar não apenas uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação - artigo 358º do CPPenal - não estando ao alcance dos poderes deste Supremo Tribunal, desde logo por carência de condições para execução do que se dispõe no n.º 2 do artigo 359º do CPPenal, pelo que os autos devem baixar, para esse efeito, à 1.ª Instância.
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I


1. No processo comum n.º 110/01.OPECSC, da 2.ª Vara Mista (1.ª Secção), da comarca de Vila Nova de Gaia, mediante acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento:
A, casado, desempregado, nascido a 16 de Março de 1965 na freguesia de Cedofeita, concelho do Porto, filho de ........ e ........, residente na Rua ........, ...., 2º esq., em Vila Nova de Gaia,
imputando-se-lhe a prática de factos susceptíveis de integrar a autoria de um crime de abuso sexual de menor dependente, previsto e punível pelo artigo 173º, n.º 1, com referência ao artigo 172º, n.º 2, agravado pelo artigo 177º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal.
A final, por acórdão de 4 de Abril de 2002, o Colectivo deliberou condenar o arguido:
- pela prática de um crime de abuso sexual de menor dependente, de que vinha acusado, na pena de dois anos e dez meses de prisão;
- no pagamento à vítima B de indemnização no valor de cinco mil euros (€ 5.000,00);
- suspender-lhe a execução da pena de prisão pelo prazo de 5 anos, na condição de proceder ao depósito, à ordem deste processo, da quantia referida, no prazo de dez meses.
2. Discordando da decisão, dela o arguido interpõe recurso, concluindo a motivação do modo seguinte:
"21º A alegada «confiança de facto» não se abriga nem no espírito nem num «mínimo de correspondência verbal» do art.º 173º-1 C.P. ( cf. ainda o art.o 9º-2 do Cód. Civil).
22º A subsunção in casu de uma alegada «confiança de facto» ao art.º 173º, n.º 1 C.Penal constituiu uma forma de qualificação (integração) analógica e incriminatória vedada pelo princípio da legalidade ínsito no art.º 1º, n. º 3 do mesmo diploma legal.
23º Os pressupostos - fundamentais - para se considerar da existência in concreto de uma «confiança de facto» deverão ser o tratamento e a reputação, afinal, dois dos elementos da posse de estado previstos nas presunções de paternidade ( que in casu a tutela da mulher do arguido veio suprir) dos art.o 1831º-1, parte final, e n.º 2, art.º 1871º-1, al. a), ambos do Código Civil.
24º Para se verificar in concreto a denominada «confiança de facto», mostra-se imprescindível a verificação in casu quer de actos de tratamento (dimensão psico--afectiva e económica ou material) quer de uma reputação pública que inequívoca e comprovadamente a revelem.
25º A decisão recorrida não dá qualquer nota da verificação in casu do pressuposto da reputação, pois nem sequer era propósito da acusação fazer prova nesse sentido, já que sempre perfilhou uma noção de «confiança de facto» distinta da ora sufragada.
26º Pelo que, a douta decisão recorrida não deveria, salvo o devido respeito, ter aplicado o art.o 173º-1 do Código Penal.
27º Por conseguinte, a decisão recorrida violou os comandos do artigo 173º, n.º 1, com referência ao art.o 172º, n.º 2, agravado pelo art.º 177º-1, al, a), todos do Código Penal.
28º Assim, em vez de condenar o arguido pelos factos de que vinha acusado, o douto Tribunal a quo devê-lo-ia ter absolvido.
29º Pelo que, salvo o (muito) devido respeito, deverá a decisão recorrida ser revogada nos sobreditos termos".
Respondeu o Dig.mo Procurador da República na 2.ª Vara Mista a sustentar o bem fundado da argumentação do acórdão recorrido, que deve ser mantido.
3. Admitido o recurso, após exame preliminar, colheram-se os vistos legais.
Procedeu-se à audiência a que se refere o artigo 423º do Código de Processo Penal, com observância do formalismo respectivo, tendo sido produzidas alegações orais.
Cumpre ponderar e decidir.
II
O Colectivo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
"O arguido é cunhado da ofendida B, nascida em 16/4/1984.
Por entretanto os seus pais terem falecido, por sentença judicial proferida pelo 1º Juízo do Tribunal de Família do Porto em 5 de Fevereiro de 1998, à ofendida foi-lhe nomeada tutora a sua irmã C, casada com o arguido.
Por altura da decisão judicial, a B foi viver para a residência do arguido e mulher, sita na Rua ......, nesta cidade, onde também morava uma outra irmã solteira.
A partir desse momento, a menor passou a estar na dependência de facto do arguido, dado ser ele e a sua mulher (tutora da ofendida) quem velavam pela sua habitação, alimentação, vestuário e educação.
Aproveitando-se dessa relação de dependência, bem como do facto de a B ser portadora de uma debilidade mental e perturbação emocional que determinam que a mesma seja facilmente influenciável, a partir de meados de 1998 o arguido passou a envolver-se sexualmente com a menor.
Assim, desde aquela data, e até ao início de 2000, o arguido por várias vezes teve relações sexuais completas com a B no interior da residência onde ambos moravam, tendo para isso introduzido o seu pénis erecto na vagina da menor, onde o friccionava até ejacular.
A menor somente aceitava a cópula porque tinha medo que, ao recusar-se, o arguido se zangasse e a expulsasse de casa, o que para si significava o abandono, dado não ter outro local onde viver.
O acto sexual tinha lugar às sextas feiras à tarde, dado ser nessa altura o único momento em que mais ninguém se encontrava em casa, sendo que o arguido previamente ia buscar a menor à escola, por volta da hora do almoço, e a conduzia para a residência onde, a sós, tinha com ela as mencionadas relações sexuais.
A menor era virgem.
O arguido sabia que a menor, que apresentava atraso mental, somente consentia na prática das múltiplas, completas e continuadas relações de sexo porque se encontrava numa relação de dependência de facto perante si, e apesar disso actuou nos termos atrás referidos com o propósito de satisfazer os seus instintos sexuais.
Agiu livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
Em meados de 2000, a menor B foi retirada do agregado familiar da irmã, sua tutora naquela data, e integrada num Lar de acolhimento no Porto, onde ainda se encontra.
Tem sido acompanhada em consultas de Pedopsiquiatria, no Hospital D. Maria Pia.
A irmã C, de quem gosta muito, já não é sua tutora, tendo a menor sido confiada ao Lar onde foi acolhida.
O arguido encontra-se desempregado, recebendo subsídio de desemprego no valor mensal de, pelo menos, 67.000$00.
A mulher trabalha, auferindo mensalmente quantia não inferior a 71.000$00.
Vivem em casa própria, adquirida com recurso a crédito bancário, pagando mensalmente a respectiva prestação.
Concluiu o 6º ano de escolaridade.
Tem carro próprio, do ano de 1997.
Não consta que tenha antecedentes criminais.
Conta com o apoio da mulher, que se encontra grávida de 6 meses, desde que esta tem conhecimento dos factos.
Não demonstra qualquer arrependimento.
Após a morte dos seus pais, foi depositada numa conta bancária à ordem da menor a quantia de cerca de 700.000$00, que se ignora se ainda existe, não tendo esta quaisquer bens.
Além deste bem, os seus pais deixaram alguns terrenos, ainda não partilhados.
Para além das suas irmãs, a menor tem tios, que desde a altura dos factos se afastaram dela, à semelhança das irmãs, por lhe imputarem culpa na produção dos factos.
" Não se provou que:
- A ofendida aceitava a cópula porque, além do mais, tinha medo que o arguido lhe batesse;
- Após a cópula, e para não despertar desconfiança junto das irmãs da B, o arguido levava-a à paragem do autocarro, de onde esta apanhava o transporte para casa na companhia da outra irmã solteira.
"Fundamentação
"Os factos acima dados como provados resultam do teor dos documentos de fls. 13 (certidão de nascimento da menor), 39-40 (exame de sexologia forense), 34 (certidão de registo criminal do arguido) e 120 (informação clínica relativa à menor), das declarações do arguido (que admitiu ter tido relações sexuais com a menor), bem como dos depoimentos das testemunhas B (ofendida, que relatou a forma como ocorreram os factos), C (mulher do arguido e irmã da ofendida), D (psicóloga que recebeu, através da linha de emergência da criança maltratada, uma denúncia relativa ao caso dos autos, tendo acompanhado a partir daí a menor) e C (assistente social, que acompanhou a testemunha D).
Quanto à relação de dependência, extrai-se directamente da nomeação como tutora da ofendida da mulher do arguido, e do facto de a B ter passado a integrar o seu agregado familiar, cabendo a ambos os cônjuges cuidar da sua educação e assistência, e vivendo dos proventos do casal.
Relativamente às condições pessoais do arguido, fez-se fé nas suas próprias declarações, e ainda no depoimento de sua mulher, que relevaram ainda no que concerne à situação pessoal da menor.
Quanto aos factos não provados, não foi produzida qualquer prova incidente sobre os mesmos".
III
O objecto do recurso, circunscrito pelas conclusões, consiste em saber se existia ou não a situação de «confiança" da menor, a que se refere o artigo 173º, n.º 1, do CPenal, na altura em que o recorrente praticou os factos que lhe são imputados.
1. Vejamos as disposições legais, ainda antes de atentar no que se disse no acórdão sobre a fundamentação jurídica.
Inserido nos "Crimes contra a autodeterminação sexual", o artigo 172º
("Abuso sexual de crianças"), do CPenal, dispõe:

"1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2 - Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos. (...).

E o artigo 173º, sobre "Abuso sexual de menores dependentes":

1 - Quem praticar ou levar a praticar os actos descritos nos nºs 1 ou 2 do artigo 172º, relativamente a menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. (...).

Agravando as penas, estipula-se no artigo 177º:

1 - As penas previstas nos artigos 163º a 165º e 167º a 176º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela;(...).
Os três preceitos foram objecto de revisão pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro.
2. O que se discute é a interpretação do excerto "menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência" do artigo 173º, acabado de transcrever, a fim de apurar se a situação descrita integra este elemento do tipo.
Diz o Colectivo a este propósito:
"Exige o tipo legal, em primeiro lugar, que entre o menor (de 14 a 18 anos de idade) e o agente exista a mencionada relação de dependência, ou seja, que o menor tenha sido entregue ao agente para educação ou assistência, através da lei (caso do exercício do poder paternal) ou de decisão judicial (por exemplo, a tutela ou a adopção), e ainda os casos em que o menor tenha sido confiado de facto ao agente para educação ou assistência (1).
Ora, no caso dos autos, resulta dos factos dados como provados encontrarem-se preenchidos todos os elementos objectivos do tipo legal de crime em análise: na verdade, o arguido, que tinha, de facto, a seu cargo a educação e assistência da menor de 14 anos B, por via da nomeação da sua mulher como tutora da mesma, teve por diversas vezes relações sexuais de cópula completa com a vítima.
De notar que, desde a reforma operada ao Código Penal em 1998, o tipo não exige que o agente actue com abuso da sua função ou da sua posição, e que o acto sexual tenha lugar sem o consentimento do menor, bastando o puro e simples preenchimento dos elementos acima descritos".
E mais adiante, sobre a agravação:
".... dispõe este preceito ( o artigo 177º, entenda-se) que a pena prevista para o tipo legal de crime analisado será agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo "se a vítima for ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela".
Ora, o arguido é casado com uma irmã da vítima, sendo consequentemente afim de 2º grau na linha colateral da B (artigo 1581º, n.º 2, do Código Civil).
Em consonância, ...conclui-se ter cometido o arguido um crime de abuso sexual de menor dependente agravado, previsto e punido pelos arts. 173º, n.º 1, e 177º, n.º 1, al. a), do Código Penal".
3. Recompilemos da matéria de facto provada os elementos para agora considerados relevantes:
- O arguido é cunhado da ofendida B, ao tempo de 14 anos de idade;
- Tendo-lhe falecido os pais, por sentença de 5 de Fevereiro de 1998, foi nomeada tutora da ofendida a sua irmã C, casada com o arguido;
- Por essa altura, a ofendida foi viver para a residência do arguido e mulher ( a sua irmã e tutora);
- Segundo o douto acórdão, "a partir desse momento, a menor passou a estar na dependência de facto do arguido, dado ser ele e a sua mulher (tutora da ofendida) quem velavam pela sua habitação, alimentação, vestuário e educação", tendo-se aproveitado dessa relação de dependência, bem como do facto de a ofendida ser portadora de uma debilidade mental e perturbação emocional para o envolvimento sexual com ela, o qual durou cerca de um ano e meio.
3.1. Estava ou não a menor ofendida (também) confiada para educação ou assistência, ao ora recorrente?
Para o recorrente a «confiança de facto» a que o acórdão se refere não se abriga nem no espírito nem num «mínimo de correspondência verbal» com o texto do artigo 173º, n.º 1, constituindo a incriminação feita pelo acórdão recorrido uma forma de aplicação analógica vedada pelo princípio da legalidade ínsito no art.º 1º, n. º 3 do CPenal.
Do seu ponto de vista, não tinha "um estatuto jurídico que impusesse deveres (jurídicos) especiais ou próprios para educar ou assistir a menor". Acolhendo-se a preceitos da lei civil, entende que para verificação da «confiança de facto» deverão existir o "tratamento e a reputação", dois dos elementos da posse de estado previstos nas presunções de paternidade - artigos 1831º, n.º1, parte final, e n.º 2, 1871º, n.º1, alínea a), ambos do Código Civil.
Refuta o Ministério Público esta "construção" do recorrente por não haver na lei qualquer indicação de que à mesma se deva recorrer; antes o legislador pretendeu uma fórmula abrangente de protecção do menor. Constituindo o arguido e sua mulher, entretanto nomeada tutora dela, uma unidade familiar, repartiam os esforços e as responsabilidades por ambos, segundo um juízo de normalidade e das regras da experiência comum.
E parece-nos que com razão.
Extrair das presunções de paternidade da lei civil, através do conceito de posse de estado - "ser a pessoa reputada e tratada como filho por ambos os cônjuges" ou "quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público" - os elementos integradores da confiança do menor para educação e assistência (artigo 173º), afigura-se que é lançar mão de elementos aleatórios, gizados para institutos completamente diferentes (aliás, para logo se concluir, no caso, como inócuos, uma vez que não fora feita nem projectada qualquer prova sobre os mesmos).
Tese que não é de subscrever.
Afirmação essencial do douto acórdão recorrido é, todavia, a de que o "arguido, ...tinha, de facto, a seu cargo a educação e assistência da menor de 14 anos B, por via da nomeação da sua mulher como tutora da mesma", em conformidade com o que se diz na fundamentação da convicção do Colectivo - "quanto à relação de dependência, extrai-se directamente da nomeação como tutora da ofendida da mulher do arguido, e do facto de a B ter passado a integrar o seu agregado familiar, cabendo a ambos os cônjuges cuidar da sua educação e assistência, e vivendo dos proventos do casal".
Duvida-se, porém, que seja de aceitar tal fundamentação.
Percorrendo as regras do Código Civil relativas ao poder paternal e à tutela, as ilações que se retiram não confirmam o ponto de vista do Colectivo.
Mesmo no caso de normal exercício de poder paternal que expressamente se diz pertencer, por princípio a ambos os pais (artigo 1901º, n.º 1), casos existem em que apenas um o exerce (artigo 1903º).
Passando ao instituto da tutela, vê-se que é sua função suprir a incapacidade do menor - artigo 124º - o qual deve obediência ao tutor (artigo 128º) em tudo quanto não seja ilícito ou imoral, sendo que o domicílio do menor sujeito a tutela é o do respectivo tutor (artigo 85º, n.º 3).
A tutela é exercida por uma só pessoa - cfr., v. g., o artigo 143º do mesmo diploma -, sem prejuízo do papel do conselho de família e do tribunal.
Dispõe-se no artigo 1924º, n.º 1: " A tutela é exercida por um tutor e pelo conselho de família".
Nos termos do artigo 1935º, ainda do Ccivil, o tutor tem os mesmos direitos e obrigações dos pais, com algumas modificações e restrições, devendo o tutor exercer a tutela com a diligência de um bom pai de família.
Por conseguinte, quer por ausência de poder paternal, quer por não participação na tutela da menor ofendida, o recorrente não partilhava nenhum poder/dever jurídico de educação ou assistência da menor.
É verdade que a menor, por virtude da tutela, passa a estar domiciliada com a tutora e, portanto, a poder residir com o casal.
Mas extrair a relação de dependência directamente da nomeação da mulher do arguido como tutora da ofendida, e do facto de a B ter passado a integrar o seu agregado familiar, não parece curial, pois não estava afastado que o arguido porventura se viesse a opor a tal coabitação e integração no agregado familiar da tutelada e também cunhada.
Muito menos se poderá entender que esta era uma simples questão de facto, que ficava resolvida com as afirmações dadas como "provadas".
3.2. Apesar de tudo, a questão subsiste: sem que se tivesse estabelecido uma relação de confiança para educação e assistência da menor emanando de um acto ou negócio jurídico, só porque a menor passou a viver na morada da tutora, que era também a do arguido, seu cônjuge, pode dizer-se-lhe, apesar de tudo, confiada para educação e assistência ao recorrente?
A "confiança" tem de provir da lei, de sentença ou de um acto (contrato ou outro negócio jurídico) em que manifestamente tenha nascido esse dever de educação ou assistência. Certo que existem deveres sociais de solidariedade entre familiares - a menor era cunhada do arguido -, mas insuficientes, a nosso ver, para suportar a especial obrigação de não atentar contra a autodeterminação sexual da menor aqui prevista.
Estaremos em presença de um tipo legal em que a acção ilícita é descrita em termos de uma relação específica com o autor e da qual se faz derivar um dever especial cuja lesão dá origem a uma ilicitude juridico-penalmente (mais) relevante (2).
Ora, não parece adequado, sem extravasar para além dos limites da interpretação extensiva, considerar abrangido no tipo de ilícito a conduta do recorrente sem que esteja demonstrada aquela "confiança" da menor, ainda que esta pudesse depender da economia (3) (conjunta) do casal, atitude, porém, que o arguido assumia voluntária e unilateralmente.
Nesta perspectiva, o recurso merece provimento.
IV
No entanto, os factos que constavam da acusação e os que vieram a considerar-se provados são susceptíveis de outro enquadramento jurídico-penal.
Com efeito, nos termos do preceito do artigo 174º ("Actos sexuais com adolescentes":
"Quem, sendo maior, tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor entre 14 e 16 anos, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

Conduta que é agravada pela relação de afinidade do arguido com a menor - artigo 177º, n.º 1, alínea a), do CPenal.
A menor era virgem na altura da prática de cópula com o arguido, era portadora de debilidade mental e perturbação emocional que determinavam ser a mesma facilmente influenciável.
Só que esta modificação, porque assenta num novo enfoque dos factos, pode configurar não apenas uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação - artigo 358º - mas uma alteração substancial (4).
Sendo assim, a observância do disposto no artigo 359º não está ao alcance dos poderes deste Supremo Tribunal, desde logo por carência de condições para execução do que se dispõe no n.º 2 do artigo 359º do CPPenal.
V
Em harmonia com o exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em revogar o acórdão recorrido, baixando os autos à 1.ª Instância a fim de ser observado o disposto no artigo 359º do CPPenal, procedendo-se depois em conformidade.
Sem custas.

Lisboa, 13 de Novembro de 2002
Lourenço Martins
Pires Salpico
Leal Henriques
Borges de Pinho
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(1) Cf. Maria João Antunes, in "Comentário Conimbricense ao Código Penal", I, pág. 556.
(2) Cfr. Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal - Parte General, trad., Comares, Granada, 1993, p. 247; Günter Stratenwerth, Parte General, I, Edersa, 1982, p. 76.
(3) É de notar que a educação ou assistência são alternativas e não cumulativas.
(4) Cfr. artigo 1º, alínea f), do CPPenal: "Alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis".