Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2852
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
QUESTIONÁRIO
FALSAS DECLARAÇÕES
Nº do Documento: SJ200610070028521
Data do Acordão: 10/17/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : As falsas declarações prestadas, no âmbito de um contrato de seguro, por parte do segurado, determinam, nos termos do art. 429º do C. Comercial, a sua anulabilidade.
O questionário traduz-se numa facilitação concedida pelo segurador ao segurado através do qual lhe indica as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco.
Como assim, é irrelevante saber do nexo causal entre as declarações inexactas e o sinistro: o que pesa na apreciação da Seguradora é a base circunstancial necessária e decisiva à celebração do contrato nas condições pactuadas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I -

"AA" intentou, no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, acção ordinária contra Empresa-A, S.A pedindo a sua condenação no pagamento do montante das prestações vencidas e por ela pagas à Empresa-B, bem como no pagamento das prestações vincendas e juros.
Para tanto, alegou que ela e o seu marido celebraram com a R. um seguro do ramo vida, vinculando-se esta por tal contrato a pagar à Empresa-B, por efeito de mútuo que esta concedera a si e seu marido, certa quantia em caso de morte ou invalidez permanente dos segurados, sendo que a ela (A.) sobreveio invalidez absoluta e definitiva.

Contestou a R., pugnando pela improcedência da acção, alegando, no essencial, que a A. não prestou, em questionário fornecido com vista à celebração do contrato de seguro, informações verdadeiras, pelo que o dito contrato é nulo.

A A.. replicou.

Seguiu-se o saneamento do processo e a selecção dos factos provados e destinados à produção de prova.
Após julgamento, veio a ser proferida sentença a julgar a acção procedente e a condenar a R. no pedido.

No seguimento de apelação interposta pela R. para o Tribunal da Relação de Guimarães, a decisão da 1ª instância veio a ser anulada com vista à ampliação da matéria de facto.
Concretizada esta, foi, de novo, proferida sentença a julgar procedente a acção.

Novamente apelou a R. e com êxito, já que a Relação de Guimarães, revogando a decisão da 1ª instância, julgou a acção improcedente e absolveu aquela do pedido.

Com esta decisão não se conformou a A., que recorreu para este STJ, pedindo revista e consequente condenação da R. no pedido que inicialmente formulou.
Para tanto, juntou a respectiva minuta que fechou do seguinte modo:

- Está em causa nos autos um contrato de seguro que, além de formal e facultativo, é de adesão, porquanto comporta um conjunto de cláusulas já previamente elaboradas e que proponentes e destinatários se limitam a subscrever ou aceitar.

- As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.

- A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato, e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

- O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante determinado que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.

- "Cláusulas excluídas dos contratos singulares" que se consideram excluídas dos contratos singulares, entre outras, as cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5° (al. a)), e as cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo (al. b)).

- Resulta da Lei que cabe ao predisponente, dessas cláusulas, o ónus da prova de que houve comunicação integral e adequada das mesmas à outra parte.

- Assim, e desde logo, teria a Recorrente de alegar e provar de que a matéria pela qual pretendia ver recusado o pagamento à Recorrida lhe foi dita e explicada.

- A Recorrente não alegou que informou a Recorrida que se esta sofresse de alguma doença o seguro seria nulo.

- Resulta da factualidade apurada que quando a Recorrida preencheu o questionário a, 18 de Setembro de 1999, desconhecia que padecia de epitrocleite em virtude de ter ficado demonstrado que só veio a ter conhecimento do carácter maligno em 27.02.02.

- Resulta ainda provado que tais lesões, e só essas, impossibilitam a continuação da actividade profissional da Recorrida, acarretando-lhe uma incapacidade permanente de 85%, e que tais lesões são permanentes e irreversíveis e agravam-se com o decurso do tempo.

- Resulta igualmente como provado que a Recorrente informou a Recorrida aquando a subscrição do contrato de seguro, que se esta não pudesse exercer a sua actividade laboral e não pudesse auferir rendimentos do seu trabalho, o capital seguro seria para liquidar a dívida à Empresa-B.

- Deste modo cumpre concluir que a Recorrente não logrou fazer prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito invocado e comprovado pela Recorrida.

Em contra-alegações, a R. defendeu a manutenção do aresto impugnado, sem, no entanto, deixar de pedir, subsidiariamente, a improcedência da acção, tendo em conta as condições gerais e particulares da apólice, onde se descreve que estado de invalidez absoluta e definitiva será aquele que determina que a pessoa segura, "em consequência de doença susceptível de constatação médica, fique total e definitivamente incapacitada de exercer qualquer actividade remunerável e necessite de recorrer, de modo contínuo, à assistência de terceira pessoa para efectuar os actos normais da vida diária, não sendo possível prever qualquer melhoria, com base nos conhecimentos médicos actuais". Evidenciou, ainda, que a A.. não é portadora de um tal grau de invalidade definitiva e absoluta por doença e não tem necessidade de acompanhamento de uma terceira pessoa, como resulta da resposta negativa ao quesito 18º.

II -
As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1 - A A.. e o seu marido BB subscreveram com a R. um contrato de seguro denominado "Ramo Vida - Seguros de Grupo", titulado pela apólice n° 5.000.500.

2 - A subscrição do referido contrato de seguro foi exigida à A. e ao seu marido pela Empresa-B em virtude de esta ter concedido aqueles, a 15.12.93, um mútuo no montante de 7 600 000$00, para aquisição de casa própria e permanente, hipotecando para o efeito à fracção adquirida pela A.. e seu marido, melhor identificada pela letra "B", a qual corresponde ao rés-do-chão direito, destinada a habitação, com uma garagem na cave, e uma divisão no sótão, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito no lugar da ....., freguesia de Meadela, do concelho de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o n° 1258 da dita freguesia de Meadela, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n° 2271, mútuo que aqueles se obrigavam a pagar no prazo de 25 anos a contar daquela data.

3 - Pelo referido contrato de seguro, a R. garantia o pagamento do capital máximo em dívida em cada anuidade ao beneficiário em caso de morte, invalidez total e permanente por acidente, invalidez absoluta e definitiva por doença ocorrida à pessoa segura.

4 - As pessoas seguras no referido contrato eram a A. e o seu marido e o beneficiário, quer em caso de morte, quer em caso de invalidez, era a Empresa-B.

5 - Aquando da subscrição do contrato de seguro, a R. informou a A. de que, se não pudesse exercer a sua actividade laboral e não pudesse auferir rendimentos do seu trabalho, o capital seguro seria para liquidar a dívida à Empresa-B.

6 - A A.. apresenta limitação dos movimentos e dores no cotovelo esquerdo que irradiam para o braço e antebraço a partir de um ponto de origem situado na epitróclea daquele lado.

7 - Aquelas dores surgem após os esforços e/ou os movimentos repetidos.

8 - As lesões descritas em 6) e 7) acarretam para a A. uma incapacidade permanente de 85% e implicam que tenha de ser reclassificada profissionalmente.

9 - A apólice do contrato de seguro referido em 1) foi subscrita em 15.09.99.

10 - Em 18.09.99, a A. preencheu o questionário clínico junto a fls. 48, no qual declarou "não ter ocultado qualquer facto que possa influir na decisão que a Empresa-A deve tomar acerca do seguro proposto sobre a minha vida...".

11 - No referido questionário, a A.. declarou ainda que o seu estado de saúde actual era perfeito, que não tinha consultado ultimamente nenhum médico, que não tinha baixas frequentes por doença e que não tomava nenhum medicamento regularmente.

12 - Respondeu ainda negativamente a todas as questões que lhe foram feitas sobre antecedentes pessoais, nomeadamente sobre as perturbações e doenças ali mencionadas.
13 - A A.. declarou ainda que naquele ano havia feito exames complementares de diagnóstico e que havia obtido bons resultados.

14 - Em Janeiro de 2002, a A. detectou um nódulo na mama esquerda.

15 - A A. marcou de imediato uma consulta no médico cirurgião Dr. CC.

16 - Aquele médico suspeitou de malignidade e marcou uma cirurgia com urgência.

17 - A qual veio a ocorrer a 27.02.02.

18 - A A. foi informada de que o nódulo era maligno.

19 - A A. foi submetida a segmentectomia de transição dos quadrantes superiores da mama esquerda mais esvaziamento axilar ganglionar hemilateral por carcinoma da mama esquerda.

20 - O exame histiológico extemporâneo pós-operatório confirmou a existência de carcinoma invasor com 3 cm com margens de exerese cirúrgica sufinentes e superiores a 10 mm.

21 - O exame imunohistopatológico definitivo confirmou a existência de carcinoma invasor (5.0.E) com 3 cm de maior diâmetro (T2) com gânglios metastizados dos 19 isolados do produto do esvaziamento ganglionar (N1), R.E. positivo, C-erb-B2 negativo.

22 - A A.. efectuou quimioterapia mais radioterapia e hermonoterapia sequencial.

23 - Como resultado dos tratamentos efectuados, a A. ficou a sofrer de rigidez da articulação da escápula umeral à esquerda e do membro superior à esquerda.

24 - Aquelas lesões impossibilitam a continuação da actividade profissional da A..

25 - E acarretam-lhe uma incapacidade permanente de 85%.

26 - As referidas lesões são permanentes e irreversíveis e agravam-se com o decurso do tempo.

27 - Em consequência daquelas lesões, a A. sente dores.

28 - E mantém tratamentos diários.

29 - A A. não aufere quaisquer rendimentos do seu trabalho.

30 - A A. omitiu que tinha sido submetida a diversos tratamentos cirúrgicos, nomeadamente em Julho de 1999.

31 - Omitiu que padecia de epitrocleite.

32 - A doença e lesões referidas em 6), 7) e 8) são anteriores à celebração do contrato de seguro.

III -

Quid iuris?

Nas várias conclusões apresentadas a A.. (e nas quais se confunde as mais das vezes a sua situação de recorrente com a da R. que é aqui recorrida) defendeu a revogação do acórdão e a repristinação do julgado pelo Tribunal de 1ª instância, fazendo ênfase no facto de a R. não a ter informado das consequências derivadas de sofrer doença.

Fez salientar, ainda, o facto (provado) de no momento em que preencheu o questionário, a 18 de Setembro de 1999, desconhecer que padecia de epitrocleite, só vindo a tomar conhecimento do seu carácter maligno em 27 de Fevereiro de 2002.

Ora bem.

É certo que a A.. prestou declarações inexactas ao responder falsamente ao questionário que a R. lhe apresentou antes da outorga do contrato. Isto é o suficiente para, como foi perfeitamente esclarecido no aresto impugnado, ser sancionado o comportamento da recorrente e o contrato ser declarado nulo, tendo em conta o preceituado no art. 429º do C. Comercial

Em bom rigor, teremos de dizer que não estamos aqui perante um caso de nulidade de contrato, mas antes de um caso de mera anulabilidade, uma vez que os interesses em jogo apenas justificam esta sanção; com efeito, o regime severo da nulidade encontra apoio em motivos de interesse público, o que não é manifestamente o caso - cfr. sobre este ponto, Moitinho de Almeida, in Contrato de Seguro, pág. 61, José Vasques, in O Contrato de Seguro, pág. 379).

Para este último A., o art. 429º do C. Comercial constitui "um afloramento do erro do vício da vontade" - "trata-se, assim, de situação em que a seguradora se decide a perseguir a função económico-social do negócio partindo de um conhecimento erróneo de uma previsão enganosa". Daí que - continua - essa declaração torne o negócio anulável, não se vendo razões para, tendo classificado a situação prevista no artigo 429º como erro de vício de vontade, lhe associar uma sanção diferente e mais grave que aquela que o legislador fixou quando tratou da figura nos seus contornos basilares".

No entanto não são todas as inexactidões que conduzem ao vício referido, mas tão-somente aquelas que determinam a avaliação dos riscos por parte da seguradora: se esta soubesse de tais circunstâncias não teria certamente celebrado o contrato, ou teria celebrado o mesmo noutras condições.

Esta consequência da nulidade (melhor: anulabilidade), prevista no preceito legal supra referido, está ancorada na previsibilidade de a Segurador não celebrar o contrato sabendo que o potencial segurado sofre de determinadas maleitas, ou até de o celebrar mas noutras condições, após a devida ponderação de riscos.

E é nesta ordens de ideias que entra em cena a importância do chamado "questionário". Através dele, a seguradora indica ao potencial segurado as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco - são aquelas que determinam a celebração do contrato e as suas condições.

Como se diz no acórdão impugnado, o elemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao segurado, "na medida em que se presume não serem aí feitas perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato".

Daí que seja irrelevante saber do nexo causal entre as declarações inexactas e o sinistro: independentemente de se saber se tal nexo se verifica ou não, o que pesa na apreciação da Seguradora é a base circunstancial necessária e decisiva à celebração do contrato nas condições pactuadas.

A tal base, repete-se, não é, não pode ser, indiferente saber se o potencial segurado sofre desta ao daquela maleita - se tal fosse, de todo em todo irrelevante, não se compreenderia a função do questionário.

Como escreve Moitinho de Almeida, "uma falsa declaração concernente ao risco pode influir na balança de ambas as prestações, levando à fixação de um prémio inferior ao que seria estabelecido conhecida a realidade, ou mesmo determinando a aceitação pelo segurador de um contrato que, de modo algum não aceitaria".

E, mais à frente, acrescenta que "o questionário traduz-se numa facilitação concedida pelo segurador ao segurado e não parece justo, assim, que possa redundar em prejuízo daquele" (in obra citada, pág. 73 e ss.).

O que fica dito sobre a relevância da inexactidão das declarações colhidas através de questionário prévio ao potencial segurado vale tanto para os contratos celebrados e resultantes de negociações prévias, como também e sobretudo para os chamados contratos de adesão.

Com efeito, é nestes que tem perfeita justificação a elaboração de questionário com vista à ponderação por parte da seguradora dos riscos a correr com a celebração do contrato que lhe é proposto.

Dito isto, é tempo de concluir pela irrelevância do que vem defendido nas conclusões do recurso que à nossa consideração foi trazido, sem prejuízo do reparo de a recorrente ter aproveitado a oportunidade para suscitar "questões novas", avessas à nossa cognição por mor da finalidade dos recursos (apreciação do mérito das questões decididas pelo tribunal inferior e não decisão sobre "questões novas").

Invocada a nulidade (mais correctamente, a anulabilidade do contrato firmado) e nada tendo a A., ora recorrente, objectado em relação à oportunidade de tal invocação, outra conclusão não pode ser tirada que não seja a da procedência da tese que a Seguradora trouxe a pretório: foi o que acertadamente fez o acórdão recorrido.

Por mera cautela, a Seguradora lançou mão do preceituado no art. 684º, nº1, do CPC e pediu, subsidiariamente, a improcedência da acção.

Atenta a falência da tese avançada pela recorrente-A., perde, naturalmente, todo o interesse a análise de tal pedido subsidiário por parte da Seguradora.

IV -

Em conformidade com o exposto e sem necessidade de qualquer outra consideração, decide-se negar a revista da A. e julgar prejudicado o conhecimento do mérito da revista da R.

Custas, aqui e nas instâncias, pela A.


Lisboa, 17 de Outubro de 2006
Urbano Dias
Paulo Sá
Borges Soeiro