Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA CONCURSO DE INFRACÇÕES CONCURSO DE INFRAÇÕES CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ÁLCOOL DESOBEDIÊNCIA QUALIFICADA ALCOOLEMIA | ||
Data do Acordão: | 11/14/2019 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Decisão: | FIXADA JURISPRUDÊNCIA | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA A VIDA EM SOCIEDADE / CRIMES CONTRA A SEGURANÇA DAS COMUNICAÇÕES / CRIMES CONTRA O ESTADO / CRIMES CONTRA A AUTORIDADE PÚBLICA / RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA À AUTORIDADE PÚBLICA. DIREITO ESTRADAL – PROCEDIMENTOS DE FISCALIZAÇÃO / PROCEDIMENTO PARA FISCALIZAÇÃO DA CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL OU DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS / IMPEDIMENTO DE CONDUZIR. | ||
Doutrina: | - Germano Marques da Silva, Crimes rodoviários: pena acessória e medidas de segurança, Universidade Católica Editora, 1996, p. 14; - Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Dirietos do Homem, 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, Novembro de 2015, p. 1026-1027; - Tolda Pinto, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Pinto de Albuquerque / José Branco (org.), Universidade Católica, 2010, p. 397. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 292.º, N.º 1 E 348.º, N.ºS 1, ALÍNEA A) E 2. CÓDIGO DA ESTRADA (CE): - ARTIGO 154.º, N.º 2. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 23-05-2018, PROCESSO N.º 122/17.9GCSEI.C1; - DE 06-02-2019, PROCESSOS N.º 71/15.5JDLSB.S1; - DE 24-04-2019, PROCESSO N.º 308/12.2TAABF.S1. | ||
Sumário : | «O condutor de um veículo automóvel na via pública que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apresenta uma TAS igual ou superior a 1,20g/l, que é advertido que não pode conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes e que, não respeitando tal advertência, vem a fazê-lo com uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l, comete, em concurso com o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos arts. 154.º, n.º 2, do CE e 348.º, nºs. 1, al. a), e 2, do CP, 2 crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1, do CP.» | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no pleno das secções criminais: I. Relatório
1. O Ministério Público interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Setembro de 2017, alegando que este se encontra em oposição, relativamente à mesma questão de direito, com o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de 3 de Junho de 2016, proferido no processo n.º 810/15.4PFPRT.P1, que indica como acórdão fundamento[1] nos termos do n.º 2 do artigo 438.º do Código de Processo Penal (CPP). Apresenta motivação, em que conclui nos seguintes termos (transcrição): «1. Pelo acórdão recorrido proferido por este Tribunal da Relação do Porto, em 27.Set.2017, no âmbito do Recurso Penal n.º 103/17.2PFPRT.P1, da 4ª Secção, foi decidido que o condutor de veículo automóvel em via pública que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue apresenta uma TAS de 1,6567g/l, e que, decorridas 2 horas, ou seja, no período de 12 horas seguintes, apesar de advertido de que estava impedido de o fazer, nos termos do art.º 154.º, n.º 1 do Código da Estrada, vem depois a ser encontrado, de novo, a conduzir com uma taxa de alcoolemia de 1,245g/l, comete dois crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, em concurso real com o crime de desobediência qualificada p. e p. pelos art.ºs 154.º, n.º 2, do Código da Estrada e 348.º, n.º 2, do Código Penal; 2. Por sua vez, pelo acórdão fundamento deste mesmo Tribunal da Relação do Porto, de 03.Junho.2016, proferido no âmbito do Processo n.º 810/15.4PFPRT.P1, da 1.ª Secção, transitado em julgado, foi decidido que a conduta do arguido que, depois de fiscalizado e detido por agentes policiais por conduzir um veículo automóvel na via pública sob influência do álcool com uma TAS igual ou superior a 1,20g/l e de ter sido advertido de que não podia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, vem depois a fazê-lo ainda com uma TAS igual ou superior a 1,20g/l, comete apenas um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e um crime de desobediência; 3. Verifica-se, assim, oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito, tendo ambos sido proferidos no âmbito da mesma legislação, ou seja, na vigência dos art.ºs 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada e 292.º, n.º 1, e 348.º, n.º 2, estes do Código Penal; 4. A questão a resolver no presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é a de se saber se um condutor de veículo automóvel em via pública que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue apresenta uma TAS igual ou superior a 1,20g/l e que, no período de 12 horas seguintes, apesar de advertido de que estava impedido de o fazer, nos termos do art.º 154.º, n.º 1, do Código da Estrada, vem depois a ser encontrado, de novo, a conduzir ainda com uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,20g/l, comete apenas o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos art.ºs 154.º, n.º 2, do Código da Estrada e 348.º, n.º 2, do Código Penal, ou, também, em concurso real, um outro crime de condução de veículo em estado de embriaguez; (...).». 2. Por acórdão da secção criminal de 26 de Setembro de 2018, foi decidido que o recurso devia prosseguir por se reconhecer a oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, em situações de facto substancial e circunstancialmente idênticas, no domínio da mesma legislação. 3. Cumprido o disposto no n.º 1 do artigo 442.º do CPP, o Ministério Público, pela Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal, apresentou desenvolvidas alegações, formulando as seguintes conclusões: «1. A problemática relativa ao concurso de crimes, que é das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no artigo 30.º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. 2. O critério determinante do concurso é, assim, o que resulta da consideração dos tipos efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico. 3. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial. 4. Assim, há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções). 5. Mas não basta atender apenas ao bem jurídico violado, é preciso ainda ter em atenção que o autor e sua conduta são também igualmente constitutivos do tipo objectivo de ilícito, pelo que é preciso verificar se o comportamento global do agente reflecte uma pluralidade de sentidos autónomos de ilicitude típica. 6. Assim, verifica-se que, enquanto no crime de condução em estado de embriaguez, o bem jurídico protegido consiste na segurança rodoviária e estamos perante um crime de perigo abstracto, no crime de desobediência qualificada o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado e é um crime de dano. 7. Para além disso, verifica-se que estamos ainda perante a prática de duas acções típicas distintas por parte do agente: no caso do crime de desobediência qualificada a acção típica consiste em, não acatando a ordem que lhe foi dada, conduzir veículos automóveis no período de 12 horas subsequentes a um exame de álcool no sangue com resultado igual ou superior a 1,20 g/l. 8. Enquanto a acção típica no crime de condução em estado de embriaguez consiste na condução sob o seu efeito, acima dos limites definidos na lei. 9. Para além disso verifica-se que no caso vertente estamos perante duas condutas autónomas onde ocorre uma óbvia renovação da vontade criminosa do arguido. 10. A consumação da primeira resolução criminosa cessou quando o agente foi objecto de fiscalização e autuação pela primeira vez, já que com a fiscalização pelos órgãos de polícia criminal terminou qualquer possível continuidade entre os dois actos de condução de veículo em estado de embriaguez, isto independentemente da maior ou menor distância temporal entre eles. 11. E a nova resolução criminosa verifica-se quando o agente decide conduzir novamente com uma TAS igual ou superior a 1, 2 gr/l e em desobediência a uma ordem dada pela autoridade competente. 12. Para além disso, a decisão do arguido de conduzir, novamente, apesar de o fazer no período das 12 horas, agindo desta forma em desobediência a uma ordem dada, é independente da resolução criminosa de conduzir em estado de embriaguez. Até porque o arguido pode por exemplo saber que a sua TAS é inferior ao limite legal (porquanto efectuou um teste num aparelho particular) e mesmo assim tomar a decisão de conduzir desobedecendo a uma ordem legítima. 13. Uma vez que estamos perante uma situação de concurso efectivo entre o crime de desobediência qualificada e o crime de condução em estado de embriaguez não se verifica a ofensa do princípio ne bis in idem. 14. Concluímos assim que se o condutor de veículo automóvel que se encontrava a conduzir um veículo na via publica como uma TAS igual ou superior a 1,20gl, tendo sido notificado que por esse motivo se encontrava impedido de conduzir pelo período de 12 horas, voltar a conduzir e for novamente submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apresentar resultado positivo, comete, em concurso real, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, previstos e punidos pelo artigo 292.º do Código Penal e um crime de desobediência qualificada, previsto e punido no artigo 154.º, n.º 1, do Código da Estrada e 348.º, n.º 2, do Código Penal.» Propondo que o conflito de jurisprudência seja resolvido no seguinte sentido: «O condutor de um veículo automóvel, na via pública, que submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue apresenta uma TAS igual ou superior a 1,20g/l, que é advertido que não pode conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes e que, não respeitando tal advertência, vem a fazê-lo, com uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l, comete, em concurso real, com o crime de desobediência qualificada, p. e p. nos art.ºs 154.º, n.º 2, do CE e 348.º, n.º 2, do CP, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do C.P.» 4. Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 443.º do CPP), cumprindo decidir. II. Fundamentação Da oposição de julgados; da questão de direito 5. A decisão tomada na secção criminal, no acórdão de 26 de Setembro de 2018, que afirmou a oposição de julgados, não vincula o pleno das secções criminais, pelo há que reexaminar a questão, ainda que sucintamente e usando as considerações do acórdão preliminar, que se perfilham. 6. O acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27 de Setembro de 2017 e transitou em julgado em 16 de Outubro de 2017. O acórdão fundamento, também do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Junho de 2016, proferido no processo n.º 810/15.4PFPRT.P1[2], transitou em julgado a 17 de Junho de 2016. O recurso foi interposto pelo Ministério Público no dia 3 de Novembro de 2017, dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, previsto no n.º 1 do artigo 438.º do CPP. Estão assim verificados os pressupostos formais do recurso, a que se referem os artigos 437.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, e 438.º, n.º 1, do CPP. O recorrente tem legitimidade, os acórdãos em conflito são de tribunal de Relação, transitaram em julgado, não sendo admissível recurso ordinário do acórdão recorrido, e o recurso para fixação de jurisprudência foi interposto no prazo legal. Cumpre, pois, verificar a oposição relevante. 7. Como se afirma no acórdão de 26 de Setembro de 2018, proferido ao abrigo do artigo 441.º, n.º 1, do CPP, ambos os acórdãos se ocupam da mesma questão de direito, a qual consiste em saber se o condutor de veículo automóvel na via pública que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apresenta uma TAS igual ou superior a 1,20g/l, cometendo, assim, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, e que, no período de 12 horas seguintes, apesar de advertido de que estava impedido de o fazer, nos termos do artigo 154.º, n.º 1, do Código da Estrada, e de que, conduzindo, cometeria um crime de desobediência, vem a ser encontrado, de novo, a conduzir um veículo automóvel com uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,20g/l, comete apenas o crime de desobediência qualificada p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 2, do Código da Estrada e 348.º, n.º 2, do Código Penal, ou se comete, também, em concurso real com este crime de desobediência, um outro crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. nos termos do artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal. As situações de facto descritas nos dois acórdãos mostram-se substancialmente idênticas, pois que, em ambos os casos, os condutores dos veículos foram sujeitos a acções de fiscalização para detecção de álcool no sangue no exercício da condução, foi-lhes, nesse acto, detectada taxa de alcoolemia superior a 1,2g/l, foram informados, nessa ocasião, que não podiam conduzir durante as 12 horas seguintes, sob pena de, fazendo-o, incorrerem na prática de crimes de desobediência, e, durante esse período de 12 horas, o primeiro duas horas depois e o segundo 1 hora e 40 minutos depois, estando a conduzir os mesmos veículos automóveis, foram, de novo, sujeitos a acções de fiscalização com a mesma finalidade, sendo-lhes detectada taxa de alcoolemia no sangue superior a 1,2g/l. Apesar da identidade de situações de facto, a resposta à questão de direito suscitada foi dada em termos divergentes e contraditórios. Com efeito, no acórdão recorrido foi decidido que o arguido, condutor do veículo automóvel, cometeu dois crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal – os crimes verificados em cada um dos dois momentos de fiscalização –, em concurso real com o crime de desobediência qualificada p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 2, do Código da Estrada e 348.º, n.º 2, do Código Penal, por não ter respeitado a ordem de não conduzir nas 12 horas seguintes à primeira fiscalização. Porém, no acórdão fundamento foi decidido que o arguido, condutor de veículo automóvel, cometeu apenas um crime de condução de veículo em estado de embriaguez – o crime verificado no primeiro acto de fiscalização – e um crime de desobediência – por não ter respeitado a ordem de não conduzir nas 12 horas seguintes à primeira acção de fiscalização –, ambos p. e p. por aquelas mesmas disposições legais. Os acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação, ou seja, na vigência dos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, e 292.º, n.º 1, e 348.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção originária do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, e deram respostas opostas à questão de direito enunciada. Assim, o pleno das secções criminais confirma a decisão proferida em conferência da secção criminal, por acórdão de 26 de Setembro de 2018, de verificação da oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito. O acórdão recorrido 8. A fundamentação da tese afirmativa do concurso de crimes, perfilhada no acórdão recorrido, assenta nas seguintes razões (transcrição): «Não podemos concordar com os fundamentos (…) para considerar que, na hipótese que estamos a analisar, o agente comete apenas o crime de desobediência qualificada e não o outro de condução do veículo em estado de embriaguez. Nem vemos como possa considerar-se que o crime de desobediência qualificada consome o de condução de veículos em estado de embriaguez. Como não vemos, tão pouco, como aceitar que o acto típico está na ingestão de bebidas alcoólicas e que, portanto, a condução sob estado de embriaguez no período das 12 horas abrangidas pela proibição faça parte da mesma unidade criminosa. A nosso ver, os bens jurídicos violados, as resoluções criminosas e as acções típicas são distintas, impondo considerar que existe um concurso real de crimes e não um concurso aparente de normas. A desobediência qualificada consiste na violação da proibição de conduzir veículos nas 12 horas a seguir a um exame de pesquisa de álcool no sangue com resultado positivo. O bem jurídico directamente protegido é a autonomia intencional do Estado. Este bem jurídico é atingido pelo simples facto de haver desobediência à proibição de condução; independentemente de o agente se encontrar ou não em estado de embriaguez pode acontecer que o agente conduza no período crítico de 12 horas e não seja sequer submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue, ou que o seja mas o teste tenha resultado negativo e não deixa de haver crime de desobediência por causa disso. A resolução criminosa é a decisão de iniciar a condução contra aquela proibição, que também é independente da resolução criminosa de conduzir em estado de embriaguez. O agente pode saber que a sua TAS já é inferior ao limite legal – por exemplo se fez o teste num aparelho particular não homologado – e mesmo assim tomar a decisão de desobedecer, e também não deixa de ser punido pela desobediência. A decisão de conduzir no período da proibição tem autonomia em relação à decisão de conduzir nesse período, mas ainda sob estado de embriaguez. Por fim, a acção típica na desobediência é simplesmente conduzir veículos no período de 12 horas, independentemente de persistir ou não o estado de embriaguez – já vimos que a pessoa pode não estar nesse estado e não deixa de incorrer no crime de desobediência. Ao passo que a acção típica no crime de condução de veículo em estado de embriaguez não é a ingestão de álcool mas sim a condução sob o seu efeito, acima dos limites definidos. Se o agente, além de conduzir no período de 12 horas abrangido pela proibição, o fizer, de novo, em estado de embriaguez, a acção decorre de uma diferente resolução criminosa, que abarca não só o acto de condução mas também o seu condicionamento pela ingestão de álcool. O bem jurídico violado é igualmente outro: a segurança rodoviária. E a acção típica também diferente: conduzir com uma TAS igual ou superior a 1,20g/l. Sendo assim, aplicando a regra do artigo 30.º do CP, vemos que o agente deve ser punido em concurso real pelos crimes de desobediência qualificada e de condução de veículos em estudo de embriaguez. Não há entre as normas uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpção. Não há violação do princípio ne bis in idem porque, como vimos, os factos que justificam a punição são distintos.» Terminando assim: «Expresso o nosso entendimento sobre esta questão, é nítido que o arguido terá de ser condenado por um segundo crime de condução em estado de embriaguez, em concurso real com o primeiro e com o de desobediência qualificada. O arguido, cerca de duas horas depois de se submeter ao teste que detectou uma TAS de 1,56g/l, encontrava-se de novo a conduzir o veículo automóvel com uma TAS de 1,24g/l, sabendo que não lhe era permitido e querendo fazê-lo, de forma livre, deliberada e consciente, ciente de que actuava contra uma proibição legal. Concluímos, portanto, que para além dos crimes pelos quais foi condenado, o arguido praticou outro crime de condução em estado de embriaguez, previsto no artigo 292.º n.º 1 do CP.» O acórdão fundamento 9. Decidindo em sentido contrário, o acórdão fundamento apresenta as seguintes razões (transcrição)[3]: «Se bem que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez se consume logo que o agente, tendo uma TAS igual ou superior a 1.2 g/l, inicia a condução, não se esgota nesse momento. A consumação prolonga-se no tempo, persiste enquanto se mantiver o exercício da condução nesse estado. Por isso pode qualificar-se como um crime duradouro, que se caracteriza justamente por o estado antijurídico ter “uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 296). Retornando ao caso concreto, quando iniciou o exercício da condução, depois de se ter colocado em estado de embriaguez, o arguido, certamente, projectou fazê-lo até atingir o seu destino (provavelmente, dada a hora tardia, o seu domicílio). Se, a meio caminho, tivesse uma avaria na sua viatura (ou uma indisposição provocada pela embriaguez) e fosse obrigado a imobilizá-la, ninguém dotado de razoabilidade e bom senso diria que ele teve de renovar o respectivo processo deliberativo (é dizer, renovar a intenção de agir) ao retomar o exercício da condução automóvel. A decisão criminosa é uma só e o dolo do arguido abarca, ab initio, uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispôs logo a praticar até ao destino final. Ora, as coisas não deixam de ser assim só porque foram agentes policiais que o obrigaram a interromper o exercício da condução para o fiscalizarem. O que aqui temos é um processo resolutivo inicial que não se esgota com a detenção pelo OPC, mas sim com a chegada ao destino que o arguido tinha em mente quando iniciou a viagem. Há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de determinação volitiva, a par da manifesta homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal levam-nos a concluir pela unidade no crime de condução de veículo em estado de embriaguez. Mas, que assim não seja, mesmo que se entenda (…) que há, necessariamente, renovação da decisão criminosa, nem por isso se poderá, afoitamente, concluir pela pluralidade de infracções. Frequentemente, ocorrem situações em que o comportamento do agente é subsumível a vários tipos ou o mesmo tipo legal é várias vezes preenchido pelo mesmo comportamento e, quando assim sucede, a essa pluralidade tanto pode corresponder uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude típica (caso em que teremos concurso efectivo de crimes) como poder retirar-se do comportamento global do agente um sentido de ilicitude dominante, ou (quando o mesmo tipo é preenchido várias vezes) um único sentido de ilicitude. Perfilhamos, pois, o entendimento de que decisivo para a determinação da unidade ou pluralidade de crimes é a “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal” (Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, 1018/1019). E na “apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto” desempenha papel fundamental o julgador, que não poderá ficar-se pela simples aplicação automática das normas sobre concurso de crimes, sobretudo das normas do artigo 30.º do Código Penal. Como identificar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica no comportamento global do agente? Seguindo, de perto, o ensinamento daquele Mestre (ob. cit.), dir-se-á que, se o facto global, apenas preenche um tipo legal, será de presumir que estamos perante uma unidade de facto punível. Presunção que pode ser elidida se se mostrar que o mesmo tipo legal de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente. Se, face às normas efectivamente aplicáveis, o comportamento global do agente preencher vários tipos legais, haverá concurso, que, no entanto, pode ser aparente ou efectivo. Cristalinamente, a pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global do agente constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos de ilícito autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efectivo, puro ou próprio. Porém, tal presunção pode ser elidida se e quando os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercepcionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas –, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o artigo 77.º do Código Penal. Assim acontece nos casos de relacionamento entre um crime instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente, ou seja, quando um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos. “Parece aqui particularmente claro – afirma o Autor que vimos seguindo – que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração; enquanto, do outro lado, a sua consideração como conformadora de um concurso impuro não viola o mandamento (também ele jurídico-constitucional) de esgotante apreciação porquanto ele deverá influenciar a medida da pena do concurso (…). Impõe-se, por isso, a conclusão de princípio favorável a um concurso aparente. Sem que importe, uma vez mais, a existência ou não de uma conexão objectiva (parentesco dos bens jurídicos violados) ou subjectiva (unidade ou pluralidade de resoluções) entre os tipos legais violados pelo comportamento global”. O comportamento global do arguido depois que foi fiscalizado e detido pelos agentes policiais por conduzir um veículo automóvel na via pública sob influência do álcool e de ter sido advertido de que não poderia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes preenche os tipos legais de desobediência e de condução de veículo em estado de embriaguez. Mas esse comportamento do arguido deverá considerar-se dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, pois é patente que ele agiu movido pelo propósito de não acatar a proibição temporária de conduzir. A condução do veículo surge como o meio necessário de concretizar a desobediência e nesta se esgota a sua danosidade social. Temos, então, um concurso aparente de crimes, pois o sentido de ilícito da desobediência surge como absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da condução automóvel sob influência do álcool, pelo que autonomizar o conteúdo de ilícito desta (condução) significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto. Sujeitar o caso à incidência das regras da punição do concurso de crimes contidas no artigo 77.º do Código Penal afigura-se desproporcionado e politico-criminalmente desajustado. Seria violar a proibição, constitucionalmente consagrada (artigo 29.º, n.º 5, da CRP), de punir o arguido duas vezes pelo mesmo facto.»[4] Normas com relevo para a decisão 10. Como se referiu (supra, 7), os acórdãos em oposição foram proferidos no âmbito da mesma legislação, ou seja, na vigência dos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, e 292.º, n.º 1, e 348.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção originária do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março. Dispõe o artigo 154.º do Código da Estrada, sob a epígrafe “Impedimento de conduzir”: «1 - Quem apresentar resultado positivo no exame previsto no n.º 1 do artigo anterior ou recusar ou não puder submeter-se a tal exame, fica impedido de conduzir pelo período de doze horas, a menos que comprove, antes de decorrido esse período, que não está influenciado pelo álcool, através de exame por si requerido. 2 - Quem conduzir com inobservância do impedimento referido no número anterior é punido por crime de desobediência qualificada. 3 - O agente de autoridade notifica o condutor ou a pessoa que se propuser iniciar a condução nas circunstâncias previstas no n.º 1 de que fica impedido de conduzir durante o período estabelecido no mesmo número, sob pena de crime de desobediência qualificada. (...)». O artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, impõe aos condutores o dever de se submeterem às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool, o qual, nos termos do artigo 153.º, é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito. Por sua vez, o artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal prevê e pune a condução de veículo em estado de embriaguez nos seguintes termos: «1 - Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.» Finalmente, o artigo 348.º do Código Penal, prevê e pune o crime de desobediência, dispondo: «1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. 2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada». Jurisprudência sobre a questão 11. A jurisprudência dos tribunais da Relação encontra-se dividida acerca da questão, sendo claramente maioritária no sentido da tese do acórdão recorrido, isto é, de que se verifica uma situação de concurso real de crimes. A título exemplificativo, podem, neste sentido, mencionar-se os citados acórdãos do Tribunal da Relação do Évora de 21.6.2011, no processo n.º 441/10.5GTABF.E1, e de 20.12.2011, no processo n.º 237/09.7GBPSR.E1, e do Tribunal da Relação do Porto de 9.9.2015, no processo n.º 73/15.1GDAND.P1[5], bem como os acórdãos de 20.4.2016, no processo n.º 794/15.9PFPRT.P1[6], de 28.9.2016, no processo n.º 95/16.5PFPRT.P1[7], de 19.4.2017, no processo n.º 507/16.8PTPRT.P1[8], de 26.10.217, no processo n.º 102/17.4PTPRT.P1[9], e de 11.4.2018, no processo n.º 449/17.0PFPRT.P1[10], do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.2.2018, no processo n.º 563/17.GBGMR.G1[11][12], os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 17.6.2016, no processo n.º 672/14.9PFPRT.P1[13], e de 26.10.2016, no processo n.º 242/16.7PFPRT.P1[14]. e o acórdão de 23.05.2018, no processo n.º 122/17.9GCSEI.C1[15], do Tribunal da Relação de Coimbra. No essencial, todos eles, à semelhança do que sucede com o acórdão recorrido, assentam a sua fundamentação na pluralidade das resoluções criminosas e na diversidade dos bens jurídicos protegidos, para concluir pela existência de um concurso real entre os dois crimes referidos. 12. Em sentido diverso, de que é apenas cometido o crime de desobediência, encontramos, por exemplo, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 11.11.2009, no processo n.º 516/09.3PTPRT.P1[16], e de 25.1.2017, no processo n.º 167/16.6GAVGS.P1[17]. Em síntese, entende-se nestes acórdãos, à semelhança do que sucede no acórdão fundamento, que o acto gerador da responsabilidade criminal é a ingestão de bebidas alcoólicas e que, portanto, nas doze horas abrangidas pela proibição, em que os efeitos do álcool perduram, a condução de veículos por uma segunda vez insere-se ainda na mesma unidade criminosa, não constituindo outro crime de condução de veículo em estado de embriaguez, sob pena de violação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29.º n.º 5, da Constituição, dado que o arguido estaria a ser submetido a julgamento, mais do que uma vez, com base na mesma fonte geradora de responsabilidade criminal. Defendem assim que, detectada a condução de veículo automóvel com TAS superior a 1,20 g/l, esgota-se a possibilidade de imputação de novo crime punível pelo artigo 292º, do Código Penal, até completa eliminação pelo organismo dos efeitos do álcool, convencionada pelo legislador em 12 horas, restando a imputação do crime de desobediência se o arguido for encontrado a conduzir durante esse período. Contributos da doutrina 13. A questão suscitada na presente fixação de jurisprudência não tem merecido desenvolvido tratamento específico por parte da doutrina. Com efeito, versando especificamente a temática do concurso entre os crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, e o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 2, do Código da Estrada e 348.º, n.º 2, do Código Penal, encontram-se apenas as anotações de Tolda Pinto[18] e Pinto de Albuquerque[19]. O primeiro limita-se a reproduzir o acórdão da Relação do Porto do 11.11.2009[20]: «detectada a condução de veículo automóvel com TAS superior a 1,20g/l, esgota-se a possibilidade de imputação de novo crime punível pelo artigo 292.º do Código Penal, até completa eliminação pelo organismo dos efeitos do álcool, convencionada pelo legislador em 12 horas, restando a imputação do crime de desobediência se o arguido for encontrado a conduzir durante tal período. É ilegal, por violação do princípio da necessidade, a ordem para submissão a novo exame de pesquisa de álcool no ar expirado naquele convencionado período de 12 horas». O segundo, comentando o artigo 292.º do Código Penal: «Há concurso aparente (subsidiariedade expressa) entre o crime de condução perigosa e o crime de condução sob efeito do álcool ou de estupefacientes. Detectado o arguido com taxa superior a 1,2g/l, não pode ser-lhe imputado novo crime de condução sob efeito do álcool (12 horas seguintes). Se ele continuar a conduzir, só comete o crime de desobediência, ficando consumido o crime de condução sob o efeito do álcool». O crime de desobediência qualificada por inobservância do impedimento de conduzir 14. O n.º 1 do artigo 81.º, inserido na Secção XII, sob a epígrafe «Regras especiais de segurança», do Capítulo I do Título II do Código da Estrada (a que se referem as disposições seguintes sem menção ao diploma legal) proíbe a condução sob influência de álcool: «É proibido conduzir sob influência de álcool (…)». Nos termos do n.º 2, «considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico». «A conversão dos valores do teor de álcool no ar expirado (TAE) em teor de álcool no sangue (TAS) é baseada no princípio de que 1 mg de álcool por litro de ar expirado é equivalente a 2,3 g de álcool por litro de sangue» (n.º 4). O exercício da condução sujeita os condutores a dever de obediência «às ordens legítimas das autoridades com competência para regular e fiscalizar o trânsito» (n.º 1 do artigo 4.º). O n.º 1, alínea a), do artigo 152.º impõe aos condutores o dever de se submeterem às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool: «1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas: a) Os condutores (…)», diz o preceito. Nos termos do n.º 1 do artigo 153.º «o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito». Dispondo o n.º 2 que «Se o resultado do exame (…) for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente: a) Do resultado do exame; b) Das sanções legais decorrentes do resultado do exame (…)»[21]. O resultado é considerado positivo quando o condutor se dever considerar «sob influência de álcool» – isto é, «quando a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l ou igual»[22], o que constitui contra-ordenação grave [artigo 145.º, n.º 1, al. l)], ou «quando a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l »[23], o que constitui contra-ordenação muito grave [artigo 146.º, al. j)] – ou quando o condutor conduzir «em estado de embriaguez» – isto é, «com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l» –, o que constitui o crime p. e p. pelo artigo 292.º do Código Penal. Sob a epígrafe «Impedimento de conduzir», estabelece o artigo 154.º: «1 – Quem apresentar resultado positivo no exame previsto no n.º 1 do artigo anterior ou recusar ou não puder submeter-se a tal exame, fica impedido de conduzir pelo período de doze horas, a menos que comprove, antes de decorrido esse período, que não está influenciado pelo álcool, através de exame por si requerido. 2 – Quem conduzir com inobservância do impedimento referido no número anterior é punido por crime de desobediência qualificada. 3 – O agente de autoridade notifica o condutor ou a pessoa que se propuser iniciar a condução nas circunstâncias previstas no n.º 1 de que fica impedido de conduzir durante o período estabelecido no mesmo número, sob pena de crime de desobediência qualificada. 4 – (…)». Este regime reproduz[24], no essencial, o anteriormente estabelecido no artigo 6.º (fiscalização sob influência de álcool) do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril[25], editado no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 31/89, de 23 de Agosto, que concedeu autorização ao Governo para «legislar sobre segurança rodoviária»[26], que dispunha: «4 - Se os resultados forem positivos, sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o condutor será imediatamente impedido de conduzir, cessando este impedimento decorridas 12 horas, a menos que antes se verifique a inexistência de qualquer suspeita de influência de álcool através de exame requerido pelo condutor. 5 - Será igualmente impedido de conduzir, nos termos do número anterior, quem se proponha iniciar a condução apresentando uma taxa de alcoolémia igual ao superior a 0,50 g/l. 6 - A não observância do impedimento previsto nos n.ºs 4 e 5 será punida como desobediência qualificada.» 15. Do exposto resultam, desde já, esclarecidos alguns elementos essenciais necessários à dilucidação da questão que nos ocupa. Em síntese: (1) o condutor que, numa acção de fiscalização, apresente uma TAS igual ou superior a 0,50 g/l (ou 0,20 g/l no caso dos condutores abrangidos por regime especial), fica impedido de conduzir pelo período de 12 horas, a não ser que comprove, através de novo teste requerido por si, que não se encontra influenciado pelo álcool; (2) o condutor que não respeitar este impedimento é punido pelo crime de desobediência qualificada (n.º 2 do artigo 154.º); (3) o agente da autoridade notifica o condutor (ou a pessoa que se propuser a conduzir nessas condições) de que fica impedido de conduzir e da consequência penal resultante da não observância do impedimento; (4) o impedimento de conduzir é independente da gravidade e da natureza da infracção verificada pelo agente de autoridade na acção de fiscalização (contra-ordenação, grave ou muito grave, ou crime); (5) o impedimento tem a duração de 12 horas, a partir do momento em que é verificada a infracção, sendo irrelevante que, durante esse período, o condutor continue ou não em estado de influenciado pelo álcool ou em estado de embriaguez, só podendo ser encurtado no caso de o condutor comprovar que já não se encontra nesse estado. 16. O crime de desobediência encontra-se previsto no artigo 348.º do Código Penal, cujo n.º 1 dispõe: «Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. Nos termos do n.º 2 «A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada». Podendo incluir-se na categoria dos denominados «crimes de violação de dever»[27], o crime de desobediência, que protege a função de autoridade pública, constitui um caso que a doutrina costuma indicar de lei penal aberta ou de lei penal em branco[28]. Dado o carácter subsidiário do tipo, a qualificação de um comportamento como crime de desobediência pode resultar da subsunção a uma disposição legal que concretamente comine a sua punição como desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º; ou à alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito, na ausência disposição legal, que requer a cominação de desobediência pelo agente de autoridade[29]. O caso da desobediência qualificada prevista no artigo 154.º, n.º 2, do Código da Estrada enquadra-se, assim, na previsão do n.º 1, al. a), e do n.º 2 do artigo 348.º do Código Penal[30]. A conduta proibida reconduz-se, em substância, à violação de um dever de não conduzir – obrigação de omissão, de non facere – resultante de impedimento legal de conduzir, imposto ao condutor mediante comunicação regularmente efectuada pelo agente da autoridade que procedeu à fiscalização (n.º 3 do mesmo preceito). O bem jurídico protegido pelo crime de desobediência, como vem sendo unanimemente entendido na doutrina e na jurisprudência, é a «autonomia intencional do Estado», traduzida nos poderes de autoridade que lhe são constitucional e legalmente atribuídos para a prossecução dos interesses públicos que tem o dever de assegurar, e «de uma forma particular a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos»[31]. No caso em análise visa-se, por esta via, assegurar as condições de segurança do trânsito na via pública mediante a imposição de uma medida administrativa de impedimento de conduzir de forma a prevenir o perigo criado pela ingestão de bebidas alcoólicas durante um período de tempo que o legislador considerou adequado à eliminação do álcool e do perigo que a sua presença no organismo representa[32]. E, por esta forma, pôr termo e impedir a continuação de uma actividade de condução sob a influência do álcool – ou em estado de embriaguez, no caso de a influência exceder 1.20 g/l – que constitui infracção prevista e punida como contra-ordenação ou como crime, consoante a TAS revelada no acto de fiscalização. A consumação do crime de desobediência, que da perspectiva do bem jurídico protegido se inclui na categoria dos crimes de dano[33], ocorre com a realização da acção ou com a não omissão que contrariem a ordem ou a proibição legitimamente emitida e comunicada. No crime de desobediência qualificada previsto no art.º 154.º, n.º 2, do Código da Estrada, o tipo objectivo realiza-se, no que ora releva, no não cumprimento do dever de não condução de veículos durante as 12 horas subsequentes ao termo do procedimento do exame que apresentou resultado positivo, sem, nesse período, ter comprovado que não está influenciado pelo álcool através de exame por si requerido. A acção típica consiste assim na violação da proibição de conduzir veículos automóveis durante esse período de tempo. O bem jurídico tutelado é ofendido com o simples não cumprimento da proibição de conduzir, independentemente de, como já se notou, o agente se encontrar ou não em estado de embriaguez, mesmo que este não detenha qualquer taxa de alcoolemia no sangue. O tipo subjectivo exige o dolo em qualquer uma das suas modalidades (artigo 14.º do Código Penal), consistente na decisão de iniciar a condução contra aquela proibição de conduzir no período de 12 horas, subsequentes a um exame de pesquisa de álcool no sangue com resultado igual ou superior a 1,20 g/l. O crime de condução em estado de embriaguez 17. O crime de condução em estado de embriaguez está previsto no artigo 292.º, n.º 1, inscrito no Capítulo IV (Dos crimes contra a segurança das comunicações) do Título IV (Dos crimes contra a vida em sociedade) do Código Penal, que dispõe: «Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal»[34]. O bem jurídico protegido pela norma penal é a segurança da circulação rodoviária, embora, indirectamente, se protejam outros bens jurídicos que se prendem com a segurança das pessoas face ao trânsito dos veículos, já que a segurança no tráfego evita riscos e lesões para a vida ou integridade física[35]. Trata-se de um crime de mera actividade, de perigo abstracto[36], pois que o perigo não é elemento do tipo legal, mas simplesmente motivo da proibição; o comportamento é tipificado em nome da perigosidade da actividade para o bem jurídico, sem que seja necessária a sua comprovação no caso concreto, sendo o agente punido independentemente de ter criado um perigo efectivo para o bem jurídico[37]. Citando Figueiredo Dias, a este propósito, «temos como exemplo a condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292.º), em que o condutor embriagado é punido pelo facto de o estado em que se encontra constituir um perigo potencial para a segurança rodoviária» [38]. O perigo é presumido pelo legislador, ficando dispensada qualquer averiguação sobre a perigosidade do facto. Existe uma «presunção inilidível de perigo, já que o legislador, partindo do princípio de que certos factos constituem normalmente um perigo de lesão, pune-os como crime consumado, independentemente da averiguação de um perigo efectivo no caso concreto». Sendo assim, como observa Germano Marques da Silva[39], no plano processual, basta a prova da acção típica, na medida em que, no crime de perigo abstracto «é a própria acção que é em si mesma considerada perigosa, segundo a experiência comum aceite pelo legislador», não sendo, nestes casos, de «exigir a prova da criação de uma concreta situação de perigo para determinados bens jurídicos, bastando fazer prova da acção típica». Ao nível objectivo, este tipo legal de crime exige uma acção de conduzir um veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, prolongada no tempo, cuja consumação, tendo uma certa duração, dependente da vontade do agente, ocorre logo que se inicia a actividade de condução, criando-se um estado antijurídico que perdura até à sua cessação, o que, sublinha Figueiredo Dias, constituindo uma «unidade típica de acção», «tem grande importância prático-normativa para efeitos de concurso»[40]. Por sua, vez, o tipo subjectivo exige o dolo em qualquer uma das suas modalidades (artigo 14.º do Código Penal), consistente na intenção do agente de conduzir o veículo sabendo ser portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l, podendo ainda ser praticado por meio de uma actuação negligente (“pelo menos por negligência”, diz o artigo 292.º, n.º 1 – artigo 15.º do Código Penal). O concurso - unidade e pluralidade de crimes 18. A questão colocada na presente fixação de jurisprudência remete para a problemática da unidade e pluralidade de crimes[41]. Com efeito, o que importa determinar é se o segundo momento da conduta do arguido, que, impedido de conduzir por se encontrar em estado de embriaguez, foi novamente encontrado a conduzir em estado de embriaguez no período de duração do impedimento, preenche simultaneamente um crime de desobediência e um outro crime de condução em estado de embriaguez ou se a conduta se reconduz apenas à execução do crime de desobediência em concurso com um único crime de condução em estado de embriaguez. A resposta a dar à questão convoca, pois, o artigo 30.º do Código Penal[42]. 19. Dispõe o artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal que “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Sob a epígrafe “concurso de crimes e crime continuado”, este artigo pôs termo à anterior controvérsia doutrinária e jurisprudencial[43] sobre a equiparação entre os casos de concurso real e concurso ideal de infracções. De acordo com este preceito, o critério determinante da unidade ou pluralidade de crimes, de que deve partir-se, é, pois, o tipo legal de crime violado e não o número de acções praticadas pelo agente. Existe um concurso de crimes, nos termos do artigo 30.º, n.º 1, quando «o comportamento global imputado ao agente – traduza-se ele numa unidade ou pluralidade de acções – preenche mais que um tipo legal de crime, previsto em mais que uma norma concretamente aplicável, ou preenche várias vezes o mesmo tipo legal de crime previsto pela mesma norma concretamente aplicável». «Decisivo» da unidade ou pluralidade de crime não é a unidade ou pluralidade de acções em si mesmas consideradas, «mas a unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados pela conduta de um mesmo agente». «Foi este o critério sempre vivamente sufragado por Eduardo Correia e, na sua esteira, pela jurisprudência portuguesa praticamente unânime na vigência do nosso CP actual»[44]. E, assim sendo, equiparado o tratamento legal das duas figuras[45], perde relevância, a distinção entre o concurso ideal e o concurso real de crimes, isto é, entre aqueles casos em que o agente – e do mesmo agente se deve tratar – com uma só conduta preenche várias vezes o mesmo tipo legal de crime (concurso ideal homogéneo) ou mais que um tipo legal de crime (concurso ideal heterogéneo) e os casos em que o agente pratica várias condutas preenchendo várias vezes o mesmo tipo legal de crime (concurso real homogéneo) ou mais que um tipo legal de crime (concurso real heterogéneo)[46]. O que interessa é o número de tipos legais de crime preenchidos pela conduta do agente ou o número de vezes que um tipo legal foi preenchido por essa conduta. Revisitando o conhecido pensamento de Eduardo Correia, transposto na formulação do n.º 1 do artigo 30.º, «o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-penal, correspondem a uma certa actividade. Pluralidade de crimes significa pluralidade de valores jurídicos negados. Se a actividade do agente preenche vários tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais, e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal, e estamos, portanto, perante uma única infracção». Sendo este o ponto de partida, é necessário, porém, que à pluralidade de bens jurídicos violados se possa acrescentar uma «pluralidade de resoluções – no sentido de determinações de vontade, de realizações do projecto criminoso –, o juízo de censura será plúrimo», sendo «necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação». Porém, necessário se torna também que os tipos de crime se mostrem «efectivamente» preenchidos, pois bem pode suceder que, «olhadas as relações de mútua exclusão e subordinação», de «hierarquia», entre as normas aparentemente aplicáveis, se deva concluir pela inexistência de pluralidade de crimes, problema que deve ser resolvido por via da análise das relações (entre normas) de especialidade, subsidiariedade, alternatividade, consumpção e consumpção impura[47]. Como é unanimemente aceite, a figura clássica do «concurso aparente» (unidade de lei), que não se encontra regulado no Código Penal[48], pode levar ao afastamento de uma ou várias normas incriminadoras sempre que estas devem recuar perante a norma ou normas dominantes que devam ser aplicáveis a um concreto comportamento criminoso. O concurso aparente (de normas) reconduz-se, pois, a um problema de interpretação das normas incriminadoras, na decorrência e no respeito pelo princípio segundo o qual ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime (proibição do ne bis in idem), reconhecendo-se a sua existência sempre que a conduta criminalmente punível corresponde, em abstracto, a várias fattispecies sancionatórias previstas na lei, sem que se possa efectivamente falar de vários crimes autónomos, pois que apenas uma ou algumas delas são concretamente aplicáveis. Às questões que a este respeito se podem colocar é dada actualmente resposta pelos critérios que permitem estabelecer relações de especialidade, de subsidiariedade e de consumpção[49]. Na insuficiência dos demais critérios (especialidade e subsidiariedade), resolver-se-ão tais questões por via do princípio da consumpção, sendo que, na concepção de Figueiredo Dias[50], haverá que equacionar-se a solução (na consumpção), não em termos de concurso de normas ou de unidade de lei (a que se reconduz o concurso aparente), mas de «unidade de facto», em função do «sentido do ilícito dominante». Nesta acepção, a expressão «concurso aparente», no sentido de que, em tais casos, «as normas que contêm tipos legais de crimes se não aplicam – como no concurso – umas ao lado das outras, mas uma em vez de outras», deve servir, não para resolver questões de relação lógico-jurídicas entre normas (de interpretação), mas para designar o chamado «concurso impuro ou impróprio» correspondente aos casos em que, «apesar do concurso de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pelo comportamento global» (artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal), «se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude», «que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados», o que conduz a que a punição deva ser «encontrada na moldura legal que incorpora o sentido dominante do ilícito e na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida (concreta) da pena»[51]. 20. A tese do acórdão fundamento, que subsidiariamente afirma seguir o pensamento de Figueiredo Dias[52], requer que sobre este se centre mais demorada atenção. Sintetizando o seu pensamento, diz Figueiredo Dias: «Haverá que eventualmente começar por determinar se uma pluralidade de normas ou de leis incriminadoras convocadas em abstracto por um certo conteúdo de ilícito são concretamente aplicáveis umas ao lado das outras ou se, diferentemente, há uma(s) norma(s) que prevalece(m) sobre a(s) outra(s) e exclui(em) por conseguinte por conseguinte a sua aplicação. Se, face às normas concreta e efectivamente aplicáveis, vários tipos legais se encontram preenchidos pelo comportamento global, haverá concurso, mas não necessariamente concurso efectivo ou puro» – caso em que «os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis (art. 30.º-1)». «Este pode não existir se se verificar que à pluralidade de normas efectivamente aplicáveis corresponde, apesar dela, um sentido jurídico-social de ilicitude material dominante, verificando-se então um concurso aparente ou impuro. Se apenas um tipo legal foi preenchido, será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual no entanto, também ela, pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente». O que «significa que o procedimento tem sempre que ser completado com um trabalho de apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto». Continuando: «concurso de crimes existe sempre que o comportamento global imputado ao agente – traduza-se ele numa unidade ou pluralidade de acções – preenche mais que um tipo legal de crime, previsto em mais que uma norma concretamente aplicável, ou preenche várias vezes o mesmo tipo legal de crime previsto pela mesma norma concretamente aplicável: Art.º 30.º-1.»; «esta figura do concurso de crimes, à primeira impressão unitária, divide-[se] em duas categorias: a do concurso efectivo, puro ou próprio, em que se verifica uma pluralidade de sentidos do comportamento global; e a do concurso aparente, impuro ou próprio, em que, no comportamento global, se verifica uma absoluta dominância ou prevalência de sentidos de ilícito concorrentes, mas assim dominados, subordinados, dependentes ou acessórios»[53]. Ou seja, a «presunção» de que a pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global constitui (…) uma pluralidade de sentidos de ilícito autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso efectivo» «pode ser elidida porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se interseccionam ou parcialmente se cobrem de tal forma que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante (…) que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art.º 77.º», o que «significaria na generalidade das situações violação da proibição (jurídico-constitucional: ne bis in idem) de dupla valoração – de uma parte – da matéria proibida e do conteúdo do ilícito respectivo»[54]. Esta «dominância» de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer «em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global»[55], seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global[56] 21. O que, a este propósito, importa sublinhar, para a economia da decisão, é que este pensamento[57], radicando na «velha teoria da consumpção», se «compatibiliza» com o artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, que inclui quer os casos de «concurso efectivo ou próprio», quer os casos de «concurso aparente ou impróprio». Nas palavras do Autor, pode «então dizer-se, num esforço continuado de compatibilização da doutrina que defendemos com o texto do art. 30.º-1, que nestes casos se verifica uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes “efectivamente cometidos”»[58]. E ainda que, comportando-se estas duas figuras, no âmbito do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, a distinção entre elas se deve repercutir ao nível das consequências jurídicas. Enquanto ao concurso efectivo é aplicável uma pena única conjunta, nos termos do artigo 77.º, «faltam inteiramente, no ordenamento jurídico português vigente, normas expressas onde se contenha o regime de punição cabido às hipóteses de concurso aparente, tornando-se por isso indispensável ao intérprete construí-lo, rigorosamente de acordo com as intenções político-criminais e os princípios dogmáticos que lhe subjazem». Pelo que, devendo ser efectuada aquela distinção, a punição se deverá efectuar pelo tipo de crime dominante, a que corresponde moldura penal mais grave, sendo os demais, na sua própria tipicidade, tidos em conta como factores agravantes da medida da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal[59]. Este (o da punição) é, porém, um aspecto que não se comporta no âmbito do objecto do processo, em que está em causa, unicamente, a questão de saber se se verifica ou não uma situação de concurso de crimes, nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal. 22. A consideração do bem jurídico e da pluralidade de juízos de censura, determinada pela pluralidade de resoluções, como referente da natureza efectiva da violação plural, tem sido indicada na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça como essencial para determinar se, em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados, existe, efectivamente, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, na linha do pensamento de Eduardo Correia plasmado no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, com a consideração de elementos da posição doutrinária de Figueiredo Dias. 22.1. Na jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal, o critério teleológico para determinar as normas efectivamente violadas (crimes efectivamente cometidos) só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados[60]. Refere-se no acórdão de 27-05-2010 (Proc. 474/09.4PSLSB.L1.S1)[61]: «O critério determinante do concurso é, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico. (…) O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes “efectivamente cometidos”, é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado). Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração – concurso impróprio, aparente ou unidade de lei. A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segundo regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção. Especialmente difícil na sua caracterização é a consunção. Diz-se que há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cfr. v. g. H. H. Jescheck e Thomas Weigend, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, p. 788 e ss.). A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial. O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id. est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática». A esta metodologia já tinha sido dada expressão no acórdão de 13.10.2004 (Proc. n.º 3210/04)[62], onde se refere expressamente que «O critério da efectividade do concurso de crimes ("crimes efectivamente cometidos") do artigo 30.º do Código Penal é, como se referiu, um critério teleológico, remetendo essencialmente ao critério do bem jurídico protegido em cada crime, do seu sentido e alcance. Como os tipos legais de crime protegem bens jurídicos, a confluência ou a pluralidade de protecção tem de revelar-se decisiva para reduzir a (aparente) pluralidade à (efectiva) unidade, sem o que seria afectado o princípio da proibição da dupla valoração». 22.2. O recurso a este critério evidencia-se no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 10/2013, de 5 de Junho de 2013[63], em que se lê: «O comportamento do agente tanto se pode consubstanciar num só facto ou numa só acção, como em vários factos ou acções. Na realidade, a partir de um só facto ou de uma só acção podem integrar-se diversos tipos legais, por violação simultânea de diversas normas incriminadoras, bem como o mesmo crime plúrimas vezes, por violação da mesma norma incriminadora; igualmente a partir de vários factos, ou de várias acções, pode realizar-se o mesmo crime plúrimas vezes, por violação repetida da mesma norma incriminadora, bem como diversos crimes, por violação de diversas normas incriminadoras. Qualquer uma destas hipóteses configura um concurso de crimes, uma vez que este sucede quando o mesmo agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer mediante vários factos. Somos assim reconduzidos ao que a propósito concluiu Eduardo Correia quando escreveu que, de acordo com uma concepção normativista do conceito geral de crime, a unidade ou pluralidade de crimes é revelada pelo "número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. (...). Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados. (...) Pelo que, deste modo, chegamos à primeira determinação essencial de solução do nosso problema: se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção". (…) O tipo legal é, pois, o portador, o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados os tribunais e o intérprete. Se todos os juízos de valor jurídico-criminais hão-de ser fornecidos, através de tipos legais de crimes, é, por outro lado, certo que cada tipo legal há-de ser informado por um específico valor jurídico-criminal. Consequentemente, se diversos tipos legais de crime são preenchidos, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais, da mesma maneira que, se um só tipo é realizado, um só valor nega a actividade criminosa do agente». 22.3. A jurisprudência deste Tribunal tem sublinhado também a necessidade de ponderação do critério da unidade ou pluralidade de resoluções criminosas e de juízos de censura, ao lado do critério teleológico. Lê-se neste mesmo acórdão: «(…) a consideração da «culpa», elemento essencial ao conceito de crime, constitui um limite do critério segundo o qual se determinaria a unidade ou pluralidade de infracções, pela unidade ou pluralidade de tipos realizados. A unidade de tipo legal preenchido não importará definitivamente a unidade das condutas correspondentes, na medida em que, sendo vários os juízos de censura que as ligam à personalidade do seu agente, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável, e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes. Tais juízos de reprovação têm de ser desdobrados, e repetidos, sempre que uma pluralidade de resoluções, e de resoluções no sentido de determinações de vontade, tiver iluminado o desenvolvimento da actividade do agente. (…) O índice da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando, fundamentalmente, à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. A experiência, e as leis da psicologia, referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que, porventura, inicialmente os abrangia a todos, se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação». E afirma-se em jurisprudência mais recente: «De acordo com o art. 30.º, n.º 1, do CP, em caso de repetição da conduta, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Este preceito consagra um critério teleológico, e não naturalístico, para distinguir entre unidade e pluralidade de crimes. (…) a várias condutas naturalísticas subsumíveis ao mesmo tipo legal pode corresponder um único crime. Neste último caso, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. Sempre que exista uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de actos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto existirá apenas um crime. Caso haja sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e portanto de infracções. A unidade de infracções pressupõe porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas acções naturalísticas. É este basicamente o critério vertido no n.º 1 do art. 30.º do CP, segundo a lição de Eduardo Correia. (…) Analisados os factos dos autos, conclui-se pela unidade criminosa, ou seja, pela prática de um só crime de burla qualificada e de um único crime de falsificação, dada a unidade de resolução que presidiu a todo o comportamento do arguido desde o início até ao final» (acórdão de 06.02.2019, Proc. 71/15.5JDLSB.S1)[64]. 22.4. Outra jurisprudência inspira-se predominantemente, de forma directa, no pensamento de Figueiredo Dias, quando afirma que «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes»[65]. Lê-se no acórdão de 18.01.2018, Proc. 534/16.5GALNH.L1. S1, num caso de concurso de crimes de incêndio[66]: «Figueiredo Dias (…) considera que “da pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global é legítimo concluir, prima facie, que aquele comportamento revela uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude”, verificando-se um “concurso de crimes efectivo, puro ou próprio”. Acrescenta que merecem “exactamente o mesmo tratamento jurídico-penal os casos em que ao comportamento global é concretamente aplicável apenas uma norma típica, mas esta foi violada mais que uma vez pelo comportamento global”. Só não será assim quando “os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social”, casos em que à pluralidade de violações típicas não corresponde “uma pluralidade de crimes efectivamente cometidos”». Depois de referir os critérios de dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares adoptados pelo Autor, conclui: «Ora, no caso, o arguido, em momentos diferentes, ainda que próximos, provocou dois incêndios de relevo, pondo fogo a duas habitações integradas em edifícios independentes, situados na mesma urbanização, mas em artérias distintas e pertencentes a pessoas diferentes, criando num caso perigo para a vida, para a integridade física e para bens patrimoniais de valor elevado de umas pessoas e no outro os mesmos perigos para outras pessoas, além de danos materiais a cada um dos proprietários. Neste contexto, a unidade de resolução não estabelece entre os dois incêndios provocados pelo arguido qualquer conexão que apresente qualquer dos respectivos sentidos de ilicitude típica dominante relativamente ao outro, os quais aparecem assim como absolutamente autónomos, havendo por isso que concluir pela pluralidade de crimes de incêndio efectivamente cometidos e, logo, autonomamente puníveis (…). Já assim não acontece no que se refere à pretensão de que se considere estarem os dois crimes de violação de domicílio numa situação de concurso efectivo com os dois crimes de incêndio. Aqui, preenchendo embora cada uma das condutas do arguido os tipos legais de incêndio e de violação de domicílio, o sentido de ilicitude típica relativo a cada um dos incêndios é absolutamente dominante em relação ao sentido de ilícito presente na correspondente violação de domicílio, que é como que absorvido por aquele, funcionando aqui o critério da “unidade de sentido do acontecimento global”, acima caracterizado, pois a violação de domicílio de cada uma das ofendidas foi um meio de que o arguido se serviu para conseguir o fim visado que era provocar incêndio no interior de cada uma das habitações. (…) Conclui-se assim pela existência de concurso aparente entre cada um dos incêndios e a violação de domicílio respectiva. As violações de domicílio relevarão em sede de determinação da pena de cada um dos incêndios». Idêntico entendimento encontra-se reflectido no acórdão de 12.07.2018, Proc. 72/17.9JACBR.S1, em que se concluiu pela existência de concurso aparente entre roubo e sequestro, não obstante o ofendido ter sido privado da liberdade de locomoção durante mais de duas horas, em virtude de a privação da liberdade ter estado associada à realização do roubo, que se foi consumando por etapas[67]. Apreciação 23. Perante o que vem de expor, o exame da questão suscitada no recurso requer, numa primeira aproximação, que se averigúe se o bem jurídico protegido pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez está já protegido, com a mesma amplitude, pelo crime de desobediência qualificada e, por outro lado, se a conduta do agente pode (ou não) merecer uma pluralidade de juízos de censura, determinados pela pluralidade de resoluções do agente na sua actuação. 24. Como anteriormente se analisou (supra, 16 e 17), são distintos os bens jurídicos protegidos pelo tipo-de-ilícito de desobediência qualificada e pelo tipo-de-ilícito de condução de veículo em estado de embriaguez, pelo que não é possível afirmar que o conteúdo do ilícito revelado na conduta global do arguido se pode determinar exaustivamente apenas por uma das leis penais aplicáveis. Esta diversidade de bens jurídicos protegidos pelas normas incriminadoras conduz-nos, assim, desde logo, a concluir, prima facie, pela existência de um concurso de infracções. Entendendo-se o advérbio «efectivamente» utilizado no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, como pretendendo referir-se ao concurso efectivo de crimes, isto é, a uma verdadeira pluralidade de infracções, por oposição ao mero concurso aparente (de normas) – que, como se sublinhou (supra, 18 e 19), se reconduz a um problema de interpretação para determinar quais delas, com exclusão das outras, são aplicáveis ao caso concreto –, revela-se, no caso concreto, uma situação de concurso, nos termos deste preceito. 25. Esta conclusão, como também já se salientou, pressupõe que, no caso, se mostram afastadas as relações de especialidade ou de subsidiariedade entre normas ou, ainda, de consumpção[68]. 25.1. Com efeito, numa relação de especialidade, de entre as normas típicas abstractamente aplicáveis uma norma especial se identifica que afasta uma outra de carácter geral, que com aquela se coloca numa relação lógica de subordinação, aplicando-se então o princípio lex specialis derogat legi generali, acontecendo uma tal subordinação precisamente por a norma especial conter um elemento ou vários elementos adicionais, sejam eles relativos à culpa ou à ilicitude, que o caso concreto também revela, e que essa outra norma já não contemplaria para a solução jurídica por si apresentada. É o que sucede, designadamente, nas relações entre um tipo fundamental e um tipo agravado ou privilegiado, ou entre um tipo simples e um tipo complexo[69]. 25.2. Por seu turno, a subsidiariedade, expressa ou tácita, entre tipos-de-ilícito penais ocorre quando a aplicação das normas de um tipo só se torna possível quando não existam outras, abstractamente aplicáveis, que cominem pena mais grave, por virtude de uma relação lógica de interferência ou de sobreposição (lex primaria derogat legi subsidiariae)[70]. É o que sucede entre o crime de condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal) – que se assume como tipo subsidiário quando à condução nas condições aí descritas «não couber pena mais grave por força de outra disposição legal» (n.º 1, in fine) – e o de condução perigosa de veículo rodoviário (artigo 291.º, n.º 1, al. a), do Código Penal), mas em que, neste, o perigo para o bem jurídico, em vez de meramente abstracto, assume um carácter concreto, fazendo por isso parte do tipo, sendo também por isso maior o grau de ofensividade adveniente da violação da norma[71]. No âmbito da subsidiariedade implícita se incluem os casos, em que, apesar do silêncio da lei, se alarga a tutela penal a factos que correspondem a «estádios evolutivos, antecipados ou intermédios de um crime consumado» (actos preparatórios, tentativa) «ou como formas menos intensas de agressão do mesmo bem jurídico» (crimes de dano e crimes de perigo, crimes de perigo abstracto e crimes de perigo concreto, autoria e cumplicidade)[72]. 25.3. Finalmente, ocorre consumpção «quando o conteúdo de um ilícito típico inclui, em regra, o conteúdo de outro facto, de tal modo que a condenação apenas pelo ilícito mais grave exprime já de forma bastante o desvalor de todo o comportamento materialmente considerado»[73], visto na sua globalidade (lex consumens derogat legi consumptae). Sendo que nestes casos se tomam em consideração os factos nas suas conexões típicas, entre si, e «se assume que o legislador teria levado implicitamente em conta esta circunstância, ao editar as molduras penais respectivas». Como se tem notado, a relação de consumpção assenta numa valoração acerca do conteúdo de ilicitude material das normas em concurso, deixando-se identificar «sempre que a realização de um crime comporta também a relação de outro cujo desvalor normativo é absorvido ou consumido pelo primeiro que comporta consequências sancionatórias mais graves»[74]. Assim, defende Figueiredo Dias, esta figura tem um âmbito mais restrito que o que lhe é conferido por Eduardo Correia, que nela abrangia as «relações de mais e de menos que se estabelecem entre os valores jurídico-criminalmente protegidos», ou seja, casos a resolver por via das relações de especialidade e de subsidiariedade: estando em causa «um problema axiológico e teleológico de relacionamento de sentidos de conteúdos de ilícito», e não um problema lógico de relações entre normas» («de unidade de normas ou de leis»), os casos de consunção constituem um caso «de pluralidade de normas concretamente aplicáveis», suscitando, por isso, um «problema de concurso de crimes»[75]. É, por conseguinte, nesta base, que se configura a construção doutrinária que conduz à distinção entre concurso «efectivo ou próprio» e concurso «aparente ou impróprio» (supra, 19 e 20). 26. Aqui chegados, verificando-se que, no caso sub judice, o tipo-de-ilícito de desobediência qualificada e o tipo-de-ilícito de condução de veículo em estado de embriaguez, para além de tutelarem bens jurídicos distintos, incriminam condutas típicas que, como se analisou (supra, 14 a 17), não coincidem na respectiva descrição, quer objectiva quer subjectiva, há que concluir, desde logo, pelo afastamento de relações de especialidade ou de subsidiariedade entre eles. Por outro lado, para que, no presente caso, existisse uma relação de consumpção, tornar-se-ia necessário que se pudesse descortinar, na intenção e teleologia da lei, um sentido que levasse a concluir que a previsão típica do crime de desobediência qualificada, até pela moldura penal mais grave nele prevista, visou abranger a punição da conduta típica de condução de veículo em estado de embriaguez, levando a que se considerasse afastada na sua aplicação a norma do artigo 292.º, n.º 1, em favor da contida no artigo 348.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal. Como se viu (supra, 16), no crime de desobediência qualificada, a acção típica consiste na violação da proibição de conduzir veículos automóveis nas 12 horas subsequentes a um exame de pesquisa de álcool no sangue com resultado igual ou superior a 1,20 g/l. O bem jurídico tutelado é atingido com a simples desobediência à proibição de conduzir, independentemente de o agente se encontrar ou não em estado de embriaguez. A resolução criminosa consiste em decidir e livremente iniciar a condução contra aquela proibição, que assume autonomia em relação à decisão de conduzir sob a influência do álcool. Por seu turno, no crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a acção típica consiste em conduzir um veículo automóvel sob o efeito do álcool, isto é, com uma taxa de alcoolemia no sangue igual ou superior a 1,20 g/l. Assim sendo, não é possível identificar qualquer elemento de relação entre os dois tipos de crime, por conexão ou intercepção típicas, ou por parcial sobreposição ou predominância de protecção do bem jurídico, que, numa apreciação global dos factos, permita concluir que, com a punição da desobediência, se realize também a punição da condução sob influência de álcool – seja em função da unidade de desígnio criminoso, seja em função da estreita conexão situacional (intercedente entre diversas realizações típicas homogéneas), seja porque os ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global (supra, 20) –, isto é, que se verifica que uma das normas concretamente aplicáveis se impõe, pelo seu sentido de ilicitude, com absoluta dominância ou prevalência sobre a outra. Em síntese, não se revela, perante o conteúdo de protecção destas, uma qualquer relação de instrumentalidade ou de funcionalidade que imponham uma consumpção, antes se manifestando sentidos de ilicitude diferentes, que preservam a sua autonomia, devendo, por conseguinte, concluir-se no sentido de que o comportamento do agente, verificado no momento da segunda fiscalização policial, realiza a previsão típica dos crimes de desobediência e de condução em estado de embriaguez. Importa, todavia, sublinhar que, mesmo que assim não fosse, excluído que se mostra o concurso aparente de normas, sempre seria irrelevante para efeitos do preenchimento da previsão do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, que a situação se pudesse reconduzir à figura do concurso «efectivo ou puro» ou, por via da consumpção, à do concurso «aparente ou impuro», na construção doutrinária de Figueiredo Dias. Com efeito, como o próprio Autor defende, ambas as figuras se incluem na previsão deste preceito, relevando a distinção, como acima se mencionou, unicamente para efeitos de punição (supra, 20). 27. O que está em causa no presente caso, não é, porém, a questão da punição do concurso dos crimes, de acordo com a modalidade (doutrinariamente) identificada, mas apenas a da verificação da sua própria existência. É quanto a esta questão que ocorre a oposição de acórdãos, pois que, enquanto no acórdão recorrido se concluiu que o agente pratica dois crimes de condução em estado de embriaguez, em concurso com o crime de desobediência, no acórdão fundamento alcançou-se principal conclusão diversa, ou seja, a de que o agente cometeu um único crime de condução em estado de embriaguez em concurso com um crime de desobediência (supra, 5 a 9). Na sua essência, a questão consiste, agora, em saber se, ao voltar a conduzir no período de impedimento de 12 horas após a fiscalização, o agente comete, para além do crime de desobediência, um outro crime de condução em estado de embriaguez. Averiguado que o comportamento do agente preenche autónoma e efectivamente os crimes de desobediência e de condução em estado de embriaguez resta, pois, determinar se esse comportamento, na sua globalidade, preenche mais que uma vez (duas vezes) o mesmo tipo de crime de condução em estado de embriaguez. 28. Para Eduardo Correia o «número de vezes» que o mesmo tipo de crime foi preenchido deveria contar-se pelo número de juízos de censura, o que deveria reconduzir-se a uma pluralidade de processos resolutivos, de resoluções ou de decisões criminosas ou à renovação do mesmo processo. Esta pluralidade seria excluída, em regra, pela continuidade temporal das várias condutas, «sempre que, de acordo com as circunstâncias do caso, devesse aceitar-se que “o agente executou toda a sua actividade sem ter que renovar o respectivo processo de motivação”»[76]. 29. Como se vê dos factos provados, em ambos os momentos de fiscalização estava o agente influenciado pelo álcool, em estado de embriaguez, em ambas as ocasiões tinha consciência dessa influência e das duas vezes decidiu conduzir sabendo que a lei lho vedava, e conduziu. A ideia de que a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso é a «génese» do crime de condução de veículo em estado de embriaguez é juridicamente irrelevante. Como decorre da descrição típica do artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, a responsabilidade criminal do arguido decorre, não da circunstância de ele ter ingerido bebidas alcoólicas (uma ou duas vezes), mas da circunstância de ele ter conduzido em estado de embriaguez, sob o efeito de ingestão de bebidas alcoólicas. O que é relevante é que ele tenha conduzido em estado de embriaguez uma segunda vez, que, nessa situação, tenha voltado a conduzir, que esta segunda actividade de condução corresponda a uma nova resolução criminosa e que, assim sendo, se devam identificar, no comportamento do agente, duas unidades típicas de acção. Com se viu, a consumação da primeira resolução criminosa cessou quando o arguido foi fiscalizado e autuado pela primeira vez e impedido de conduzir. Como acima se esclareceu (supra, 17), ao nível objectivo, este tipo legal de crime exige uma acção de conduzir um veículo, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, prolongada no tempo, cuja consumação, tendo uma certa duração, dependente da vontade do agente, ocorre logo que se inicia a actividade de condução, criando-se um estado antijurídico que perdura até à sua cessação. Recuperada a liberdade de movimentação, após a intervenção policial, o arguido teve necessariamente, de formular um novo desígnio criminoso para voltar a conduzir, diferente do primeiro e dele separado por um lapso de tempo preenchido por acontecimentos especialmente relevantes (fiscalização, autuação e notificação do impedimento de conduzir com advertência das legais consequências). Depois desta fiscalização e autuação, depois de alertado para o seu estado de alcoolemia, o arguido, ao decidir conduzir e ao conduzir de novo, formou uma segunda resolução criminosa, que até tem um alcance, designadamente, quanto à sua gravidade, necessariamente diferente do da primeira resolução, precisamente, porque ele já havia sido alertado para a sua situação por uma autoridade policial. Com efeito, com a intervenção policial, foi interrompida a actividade criminosa e definitiva e irreversivelmente quebrada qualquer possível continuidade entre as duas acções de condução, independentemente da sua proximidade espácio-temporal. Deste modo, havendo duas decisões de delinquir, ambas consumadas em actividades separadas e independentes, não pode deixar de se concluir que o agente violou duas vezes a mesma norma de proibição de condução de veículo em estado de embriaguez, porquanto em ambos os momentos estava influenciado pela referida substância e em ambas as ocasiões tinha consciência dessa influência e das duas vezes decidiu conduzir sabendo que a lei lho vedava. 30. O comportamento do agente, na sua globalidade, traduz-se, assim, em duas unidades típicas de acção, separadas, distintas e autónomas, interrompidas pela acção policial, que as fez cessar em momentos diversos, as quais, por duas vezes, violam a mesma norma legal incriminadora, devendo, por conseguinte, concluir-se por um sentido de ilicitude plural, ou seja, pela pluralidade de crimes. Pelo que se deve concluir que, com o seu comportamento, ao voltar a conduzir após a interrupção da anterior actividade de condução pelo agente de autoridade, que a fez cessar, o arguido preencheu, por duas vezes, o tipo de crime previsto no artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, cometendo dois crimes p. e p. por este preceito, situação que se reconduz à previsão do n.º 1 do artigo 30.º do mesmo diploma. 31. Em conformidade com o exposto, e tendo em conta o que anteriormente se concluiu quanto à autonomia do crime de desobediência (supra, 26), se deve, por conseguinte afirmar, em conclusão final, como no acórdão recorrido, que o condutor de um veículo automóvel na via pública que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apresenta uma TAS igual ou superior a 1,20g/l e advertido de que não pode conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, e que, não respeitando tal advertência, vem a fazê-lo com uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l, comete, em concurso com o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos os artigos 154.º, n.º 2, do Código da Estrada e 348.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal. III. Decisão 32. Face ao exposto, os juízes que constituem o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça decidem: a) Confirmar o acórdão recorrido; b) Fixar a seguinte jurisprudência: «O condutor de um veículo automóvel na via pública que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apresenta uma TAS igual ou superior a 1,20g/l, que é advertido que não pode conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes e que, não respeitando tal advertência, vem a fazê-lo com uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l, comete, em concurso com o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 2, do Código da Estrada e 348.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal». Sem custas (artigo 522.º, n.º 1, do CPP). Cumpra-se o disposto no n.º 1 do art.º 444.º do CPP. Supremo Tribunal de justiça, 14 de Novembro de 2019. Lopes da Mota (relator) * Júlio Pereira Clemente Lima Nuno Gonçalves Santos Cabral Pires da Graça Raul Borges Nuno Gomes da Silva Manuel Augusto de Matos Margarida Blasco (voto vencida de acordo e acompanhando as declarações de voto dos Exmºs Senhores Conselheiros Helena Moniz e Carlos Almeida) Manuel Braz (vencido, aderindo no essencial às declarações de voto dos Conselheiros Helena Moniz e Carlos Almeida) Helena Moniz (vencida com voto junto, subscrevo igualmente o voto do Senhor Conselheiro Carlos Almeida) Francisco Caetano (vencido, subscrevendo as declarações dos Conselheiros Helena Moniz e Carlos Almeida) Carlos Almeida (vencido de acordo com a declaração que junto e com a declaração de voto da Srª Conselheira Helena Moniz) António Joaquim Piçarra (Presidente) _____ Voto de vencida Nesta fixação de jurisprudência pretende-se responder à seguinte questão: aquele que, conduzindo veículo automóvel na via pública, tendo sido submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue e tendo apresentado um valor igual ou superior a 1,20g/l, voltando a conduzir, ainda com uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,20 g/l, nas 12 horas seguintes, apesar de ter sido advertido, nos termos do art. 154.º, n.º 1, do Código da Estrada, para o não fazer, deve ser punido apenas pelo crime de desobediência previsto no art. 154.º, n.º 2, do Código da Estrada, em articulação como o disposto no art. 348.º, n.º 2, do CP, ou deve ser punido por este em concurso com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no art. 292.º, n.º 1, do CP? Nesta pergunta os tipos legais de crime em confronto são dois: - o tipo legal de crime previsto no art. 292.º, n.º 1, do CP, que pune todo aquele que, dolosa ou negligentemente, conduz veículo na via pública com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l; neste caso é aplicada pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias, “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”; trata-se de um crime de perigo abstrato que visa proteger o bem jurídico da segurança na circulação rodoviária, bastando para tanto que o condutor do veículo se encontre nas condições descritas no tipo; e - o crime de desobediência qualificada, previsto no art. 154.º, n.ºs 1 e 2, do CE, sempre que o condutor que se tenha submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue e apresente um resultado positivo, tendo sido advertido da proibição de conduzir por um período de 12 horas, volte a conduzir veículo sem respeitar o impedimento (a menos que comprove, mediante exame por si requerido, já não estar influenciado pelo álcool), caso em que a sua conduta é punida pelo crime de desobediência qualificada, isto é, na pena de prisão até 2 anos, ou pena de multa até 240 dias (nos termos do art. 348.º, n.º 2, do CP); trata-se, pois, de um especial crime de desobediência, uma vez que não se resume a uma mera desobediência a uma ordem ou mandado legítimo, mas um crime de desobediência por ter realizado uma conduta ilícita que o legislador presumiu como perigosa para a segurança rodoviária por ter considerado que naquele período de 12 horas a condução ainda seria realizada sob efeito de álcool — e só assim se compreende que mesmo desobedecendo à ordem de não conduzir naquele período de 12 horas não integre o crime se provar que já não estava sob influência do álcool; trata-se, pois, de um crime que protege igualmente o bem jurídico da segurança rodoviária. Deve ainda afirmar‑se que o tipo legal previsto no art. 154.º, n.ºs 1 e 2, do CE, nunca faz qualquer remissão para o disposto no art. 348.º, n.º 1, al. a), do CP, ou seja, não determinou o legislador que a condução naquele período de 12 horas após ter sido advertido do impedimento constituía um crime de desobediência simples, tal como resulta do disposto no art. 348.º, n.º 1, al. a), do CP, pelo que a punição com base neste dispositivo constitui uma punição contra legem. Ora, conduzindo naquele período de 12 horas, sem que se prove que já não conduz sob uma taxa de alcoolemia proibida, o agente preenche o tipo legal de crime previsto no art. 154.º, n.º s 1 e 2, do CE. Se, além disto, se provar que conduziu com uma taxa de álcool igual ou superior a 1,2g/l deve ainda ser punido pelo crime previsto no art. 292.º, n.º 1, do CP? Nos termos do art. 292.º, n.º 1, do CP, o legislador estabeleceu uma subsidiariedade expressa, uma vez que determinou que a pena será a ali prevista “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Quer se siga a doutrina que faz uma interpretação formal da lei, em estreita obediência ao que o legislador determinou, e entende que se deve punir a conduta do agente segundo o tipo prevalecente, quer se siga o entendimento de que deve ser realizada uma interpretação material de ambos os normativos, devendo o tipo afastado proteger essencialmente o mesmo bem jurídico do tipo prevalecente, quer se adote uma posição intermédia que defende a regra da subsidiariedade quando ambos os tipos em confronto tenham a mesma finalidade protetora[77], sempre se concluirá que o tipo prevalecente neste caso é o tipo de desobediência qualificada previsto no art. 154.º, n.ºs 1 e 2, do CE, não só porque se protege através deste tipo o bem jurídico da segurança rodoviária (naquele período de 12 horas), como ambos os tipos apresentam a mesma finalidade protetora – a proteção antecipada da segurança de todos os intervenientes no tráfico rodoviário relativamente a condutas que se apresentam abstratamente como perigosas. Seguindo ainda a posição expressamente defendida por Figueiredo Dias[78], que analisa o problema em sede de unidade de norma, não haveria nunca que restringir a cláusula de subsidiariedade expressa ao critério material da proteção do mesmo bem jurídico, valendo somente o teor literal de um dos tipos que restringe a sua aplicação à inexistência de outro que comine pena mais grave, caso em que prevaleceria também aqui o crime de desobediência qualificada previsto no art. 154.º, n.ºs 1 e 2, do CE. Se, pelo contrário, a figura da subsidiariedade for reconduzida a uma figura ampla de consunção, como em Eduardo Correia[79], também o crime prevalecente neste caso deverá ser o crime de desobediência qualificada previsto no art. 154.º, n.ºs 1 e 2, do CE, punível com a pena cominada no art. 348.º, n.º 2, do CP, em obediência ao “inteiro conteúdo de ilícito e de culpa”[80] que se mostra incluído no tipo legal de crime mais gravoso. Punir o condutor que, depois de advertido, volta a conduzir veículo com taxa de álcool igual ou superior a 1,2g/l simultaneamente pelo crime de condução em estado de embriaguez e pelo crime de condução após “impedimento de conduzir” punido como desobediência qualificada, quando ambos os tipos pretendem sancionar a conduta abstratamente perigosa de condução sob influência de álcool, constitui uma dupla punição pelo mesmo comportamento, em violação do princípio do ne bis in idem. Do exposto resulta que a jurisprudência fixada devia ser a seguinte: O condutor que, após ter sido advertido de que está impedido de conduzir num período de 12 horas por ter conduzido com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, ainda que preencha o tipo legal de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, deve ser punido com a pena de prisão até 2 dois anos ou a pena de multa até 240 dias, nos termos do disposto no art. 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada em articulação com o art. 348.º, n.º 2, do CP, por ser esta a norma prevalecente nos termos do art. 292.º, n.º 1, última parte, do CP. 14-11-2019 Helena Moniz __________ Voto vencido pelos fundamentos que sinteticamente indico: 1 – O impedimento de conduzir pelo período de 12 horas estabelecido pelo n.º 1 do artigo 154.º do Código da Estrada assenta no pressuposto de que, durante esse período, o condutor que foi ou que deveria ter sido submetido a exame para pesquisa de álcool no ar expirado se encontra ainda sob a influência do álcool. 2 – Um tal impedimento só deixará de existir se o visado comprovar, através de exame por si requerido, que antes de terminar esse período já não se encontra sob a influência do álcool. 3 – A incriminação da conduta de quem violar uma tal proibição como constituindo um crime de desobediência qualificada visa, em primeira linha, como a generalidade dos crimes de desobediência, tutelar a autonomia intencional do Estado. 4 – Porém, esse bem jurídico, dada a sua própria natureza de bem jurídico intermédio, tem, no quadro desta específica incriminação, uma função instrumental da segurança rodoviária. 5 – Ao proibir de conduzir aquele que pressupõe estar ainda influenciado pelo álcool, o legislador visa contribuir para o reforço da segurança rodoviária e, por esta via, evitar a perda de vidas, a lesão da integridade física e a destruição do património das pessoas. 6 – Esta concreta proibição constitui uma mera adaptação a uma situação específica da genérica proibição de conduzir sob influência do álcool e em estado de embriaguez estabelecida no Código da Estrada e no Código Penal. 7 – Nesta visão das coisas, o artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal não tutela um bem jurídico diferente do protegido pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada e pelo artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal. 8 – Estas duas incriminações visam contribuir para incrementar a segurança rodoviária. 9 – Ora, na parte final do n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal, o legislador estabeleceu que uma tal incriminação só seria aplicável se pena mais grave não coubesse à conduta por força de outra disposição legal, ou seja, estabeleceu a subsidiariedade expressa desta incriminação. 10 – Sendo o crime de desobediência qualificada punível com uma pena de prisão até 2 anos ou com uma pena de multa até 240 dias, medida abstracta da pena que corresponde ao dobro da estabelecida para a condução em estado de embriaguez, é aquela a disposição legal prevalecente, afastando a aplicação da pena estabelecida para o crime previsto no Código Penal. 11 – Por isso, deve entender-se, a meu ver, que, na situação em apreço, a conduta da pessoa que, depois de ter apresentado um resultado positivo no exame de pesquisa de álcool no ar expirado, conduzir um veículo nas 12 horas seguintes ao dito exame estando ainda em estado de embriaguez deve ser punida como consubstanciando apenas um crime de desobediência qualificada. 12 – Partindo da actual concepção de Figueiredo Dias quanto à unidade de lei e ao concurso de crimes, diremos que a incriminação da desobediência qualificada afasta a aplicação da incriminação de condução em estado de embriaguez por entre as normas existir uma relação de subsidiariedade expressa estabelecida na parte final do n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal. 13 – Na terminologia tradicional, diríamos que a relação de subsidiariedade expressa é geradora de concurso aparente entre as normas incriminadoras, o que conduz também à punição da conduta como consubstanciando apenas um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada e pelo artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal. 14 – Resta dizer que o facto de o agente que conduzia o veículo durante o período de interdição ter efectivamente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l constitui um factor a valorar para a determinação da medida concreta da pena aplicável pelo crime de desobediência qualificada. ² Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Novembro de 2019 ___________________________ (Carlos Rodrigues de Almeida) __________ [1] Acórdão proferido em recurso do Ministério Público que confirmou a sentença de 12.11.2015, em processo sumário, da Secção de Pequena Criminalidade da Instância Local do Porto, que havia condenado o arguido pela prática de um único crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de um crime de desobediência qualificada. A sentença recorrida, noticia o acórdão fundamento, adoptou a solução do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.11.2009, ECLI:PT:TRP:2009:516.09.3PTPRT.P1.AA (Maria Deolinda Dionísio), assim sumariado: «I – Detectada a condução de veículo automóvel com TAS superior a 1,20g/l, esgota-se a possibilidade de imputação de novo crime punível pelo artigo 292º do C.Penal, até completa eliminação pelo organismo dos efeitos do álcool, convencionada pelo legislador em 12 horas, restando a imputação do crime de desobediência se o arguido for encontrado a conduzir durante tal período. II - É ilegal, por violação do princípio da necessidade, a ordem para submissão a novo exame de pesquisa de álcool no ar expirado naquele convencionado período de 12 horas». |