Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1001
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUIS FONSECA
Descritores: FORÇA PROBATÓRIA
ESCRITA COMERCIAL
Nº do Documento: SJ200305220010012
Data do Acordão: 05/22/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1192/02
Data: 10/10/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I- As notas de crédito e de débito não fazem prova plena da sua coincidência à realidade, sendo objecto de livre apreciação pelos tribunais.
II- A circunstância de ter sido especificado o conteúdo de determinado documento, apenas prova que esse documento tem determinado conteúdo, já não a correspondência à realidade desse conteúdo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" demanda "B - Contabilidade, Investimento e Gestão Internacional, Lda", pedindo a condenação da ré a: a) reconhecer que nunca celebrou o contrato referido em 12º e 13º da petição inicial por sua culpa exclusiva; b) pagar a quantia de 3.356.084$00, referente ao saldo de conta corrente a favor do autor; c) indemnizar o autor pelo facto de não ter entregue a contabilidade ao mesmo quando devia e depois de lhe ter sido paga, indemnização essa a calcular em sede de execução de sentença; d) indemnizar o autor pelos danos morais que lhe foram causados com a situação criada pela ré, nomeadamente pelo arresto, em valor a calcular em execução de sentença; pagar juros à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento.
Alega para tanto que, sendo despachante oficial e atravessando dificuldades financeiras, acordou com a ré que esta faria a cobrança dos seus clientes e que entraria com dinheiro, nomeadamente a quantia inicial de 6.000.000$00, para fundo de maneio, não tendo a ré cumprido tal acordo, o que o obrigou a denunciá-lo.
A ré exigiu-lhe judicialmente a quantia que lhe entregara para fundo de maneio quando tinha em seu poder montantes que lhe pertenciam, devendo-lhe a importância de 3.356.084$00.
Acrescenta que a conduta da ré, ao não cumprir o acordado e ao não lhe devolver os documentos da sua contabilidade, lhe causou danos patrimoniais e não patrimoniais.
Contestou a ré, alegando que não celebrou com o autor o contrato por ele referido, apenas lhe tendo emprestado dinheiro para este fazer face às suas dificuldades financeiras, o qual veio a exigir quando cessou o contrato de prestação de serviços de contabilidade e gestão do escritório do autor, nada devendo a este.
Acrescenta que lhe devolveu os documentos da contabilidade.
O autor replicou.
Saneado e condensado, o processo seguiu seus termos normais, realizando-se a audiência de julgamento.
Foi proferida sentença onde, julgando-se a acção parcialmente procedente, se condenou a ré a pagar ao autor uma indemnização, de montante a liquidar em execução de sentença, decorrente dos prejuízos de não lhe ter entregue, a partir de 8/7/96 e até à data em que efectivamente os entregou, os documentos relativos à sua contabilidade, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
E absolveu-se a ré dos restantes pedidos formulados pelo autor.
Autor e ré apelaram, tendo a Relação do Porto, por acórdão de 10 de Outubro de 2002, julgado improcedentes ambas as apelações, confirmando a sentença recorrida.
O autor interpôs recurso de revista para este Tribunal, concluindo assim, a sua alegação do recurso:
1- Conforme a sentença da 1ª instância já fazia, continuou o acórdão a não retirar dos documentos juntos aos autos com a petição inicial, docs. 22 a 258, as consequências dos mesmos.
2- De facto tais documentos provam até à exaustão de que há um saldo a favor do autor de 6.273.307$00, hoje 31.291,12 Euros.
3- O autor considera no entanto que só lhe são devidos 3.356.084$00, hoje 16.740,08 Euros.
4- Pelo que não podendo ser condenado em mais do que aquilo que é peticionado, apenas a isso poderia a ré ser condenada.
5- Ao não considerar o saldo obtido do somatório das notas de crédito e notas de débito, referentes aos Docs. 22 a 258 juntos com a petição inicial e que estão especificados, tanto a sentença da 1ª instância com o acórdão recorrido, não fazem justiça.
6- Ignorando provas documentais juntas aos autos.
7- Ao especificar documentos é especificado o conteúdo dos mesmos, logo terá de se retirar do que lá está escrito as devidas consequências.
8- O acórdão, como já tinha feito a sentença da 1ª instância, não o fez.
9- De facto nas duas situações se refere que teria de haver mais prova.
10- Ora os documentos fazem prova plena do que lá dizem e neste caso concreto nem sequer a ré os impugnou de falsos.
11- Assim são parte integrante das provas dos autos e deverão ser tidos em conta.
12- Assim o acórdão violou o disposto nos arts. 668º, nº 1, als. B) e C) do C.P.C., e ainda o disposto nos arts. 380º e segs. do Cód. Civil e 44º do Cód. Comercial.
13- Tendo em conta estes últimos que terão de ser adaptados à situação concreta dos autos e dos documentos dos mesmos.
14- De facto trata-se de registos que não foram postos em causa pela ré, e como tal, nos termos do art. 380º do Cód. Civil, fazem prova contra ela.
15- Desta forma, revogando o acórdão que confirma a sentença da 1ª instância e condenando a ré a pagar ao autor a quantia por si peticionada, ou pelo menos o saldo por si reclamado da conta corrente, por não poder ser violado o art. 661º, nº 1 do C.P.C., e tendo em conta o teor dos Docs. 22 a 259, assim se fará Justiça.
Contra alegou a recorrida, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Estão provados os seguintes factos:
1- O autor é despachante oficial e a ré é uma empresa de contabilidade.
2- Por acordo celebrado em 29 de Fevereiro de 1996 o autor comprometeu-se a pagar à ré a quantia mensal de 600.000$00 mais IVA, pelos serviços de gestão financeira do seu escritório que passaria a prestar a partir da celebração do respectivo contrato.
3- Em cumprimento desse acordo o autor facturava à ré e esta facturava aos clientes do autor, recebendo o autor da ré quando esta recebesse dos clientes.
4- Visto que o autor estava de momento a atravessar dificuldades económicas, a ré fez-lhe os seguintes adiantamentos: em Março de 1996, a quantia de 942.000$00; em Abril de 1996, a quantia de 1.335.000$00; em Maio de 1996 e até ao dia 13, a quantia de 650.000$00; e em Maio de 1996, a quantia de 1.500.000$00, no total de 4.427.000$00.
5- O autor enviou uma circular aos seus clientes, informando-os de que a partir de 1 de Abril de 1996 a cobrança passaria a ser feita pela ré.
6- A quantia de 6.000.000$00/7.000.000$00 que, na tese do autor, a ré deveria ter-lhe entregue para fundo de maneio, nunca deu entrada no escritório do autor.
7- Em 1/6/96 o autor enviou uma circular aos seus clientes, informando-os que, a partir daquela data, a cobrança dos seus serviços passaria novamente a ser feita por si e não pela ré, esclarecendo que a facturação por esta emitida entre 1 de Abril e 31 de Maio de 1996, ainda não liquidada, deveria ser paga directamente à ré.
8- O teor dos documentos nºs 5 a 260, juntos com a petição inicial, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
9- Na sequência de um arresto requerido pela ré contra o autor, em 28/2/97, este pagou-lhe a quantia de 4.497.207$00.
10- Em 8/7/96 o autor informou a ré que em 1/6/96 havia enviado aos seus clientes a circular supra referida em 7.
11- O autor, em 24/11/97, requereu a notificação judicial da ré para esta lhe entregar os documentos contabilísticos que tinha em seu poder e necessários para apresentar as declarações modelo 22, tudo conforme documento junto a fls. 86 e 87, que aqui se dão por reproduzidas.
12- Dadas as dificuldades financeiras do autor, a ré comprometeu-se a fazer entradas em dinheiro no escritório daquele, para fundo de maneio.
13- No circunstancialismo supra referido em 9, o autor aceitou o acordo que lhe foi proposto, ou seja, o pagamento em prestações tituladas por cheques pré-datados, evitando, assim, a remoção dos móveis do seu escritório.
14- Em 3/12/96 o autor enviou à ré o telefax junto por fotocópia a fls. 31, que aqui se dá por reproduzido, no qual afirmava ser credor dela pelo valor de 2.652.797$00.
15- A ré reteve os documentos contabilísticos do autor referentes ao ano de 1995, o que o impediu de regularizar a sua contabilidade e de pedir empréstimos à banca, mesmo depois de ter arranjado um novo contabilista, com os inerentes prejuízos.
16- A ré só enviou ao autor os documentos contabilísticos, quando notificada judicialmente, nos termos supra referidos em 10.
17- A impossibilidade de recurso ao crédito bancário ocasionou a perda de serviços ao autor.
18- Em virtude das dificuldades financeiras e dos problemas surgidos com a ré, o autor sofreu problemas que o desgastaram completamente, tendo alterado a sua vida social, e passado a conviver menos com os seus clientes por ter menos disposição para estar em sítios públicos.
19- O autor sentiu profunda tristeza e vergonha por ter sido perguntado aos seus funcionários se o escritório ia fechar.
20- O autor teve dificuldade em ultrapassar a situação, tendo sido sujeito a tratamento médico e medicamentoso.
É pelas conclusões da alegação do recurso que se delimita o seu âmbito - cfr. arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C.
A questão suscitada neste recurso respeita à força probatória dos docs. 22 a 258 juntos com a petição inicial, nomeadamente se poderão ser atendidos para provar, sem mais, o saldo credor que o ora recorrente pretende ter em relação à ora recorrida.
Tais documentos respeitam a notas de crédito e débito enviadas pelo ora recorrente à ora recorrida, os quais não fazem prova plena da sua coincidência à realidade.
Com efeito, a prova resultante de tais notas de crédito e débito (que não estão assinadas) é de livre apreciação pelos tribunais.
É que a escrita comercial, mesmo que regularmente arrumada, não tem força probatória plena, pois, tendo presente o princípio contido no art. 380º do Cód. Civil, à outra parte e ao próprio comerciante a quem pertence é lícito invocar outros meios de prova em contrário - cfr. Prof. Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2ª ed., pág. 366.
No mesmo sentido, o acórdão do S.T.J. de 26/7/69, B.M.J. 189º- 317 onde se refere que a prova resultante da escrituração comercial regularmente arrumada é de livre apreciação dos tribunais de instância.
Ora a recorrida impugnou na contestação os factos alegados pelo recorrente de que era seu credor, afirmando em conclusão, que nada lhe deve.
Por isso foram quesitados os arts. 6º a 9º na base instrutória, relativos ao alegado crédito do recorrente sobre a recorrida que aquele não logrou provar.
Dado tratar-se de factos constitutivos do seu direito, competia-lhe o ónus da prova - cfr. art. 342º, nº 1 do Cód. Civil, que não fez.
A circunstância de ter sido especificado o conteúdo dos referidos documentos, apenas prova que tais documentos têm determinado conteúdo, já não a correspondência à realidade desse conteúdo.
A recorrida impugnou o crédito alegado pelo recorrente e, sendo matéria controvertida, foi quesitada na base instrutória e o recorrente, como já se referiu, não conseguiu prová-lo.
Os registos e outros escritos a que se refere o art. 380º do Cód. Civil cuja aplicação o recorrente pretende, também não fazem prova plena de que a nota corresponde à realidade.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso.
Pelo exposto, negando-se a revista, confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 22 de Maio de 2003
Luís Fonseca
Eduardo Batista
Lucas Coelho