Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3425/03.6TBGDM.P2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
ASSENTO
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
PROPRIEDADE PRIVADA
ATRAVESSADOURO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 05/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
Doutrina:
- Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 8.ª edição, 1969, p. 854.
- Oliveira Ascensão, "Caminho Público, Atravessadouro e Servidão de Passagem", O Direito, Ano 123.º, 1991, IV, pp. 535-551.
- Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2.ª edição, 2007, p. 102; in Cadernos de Direito Privado, N.º 13, Jan/Mar de 2006, pp. 3/8.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 562.º, 564.º, 1383.º, 1384.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 27-4-2006, REVISTA N.º 915/06.
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ASSENTO DE 1989, IN DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, DE 2-6-1989 E B.M.J. 386-121.
Sumário :
I - A interpretação restritiva do assento de 19-04-1989, de acordo com a qual os caminhos devem considerar-se públicos quando, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato público e afetados a interesses coletivos de certo grau ou relevância, pressupõe que tais caminhos atravessam propriedades privadas.

II - Por isso, não se verificando a previsão constante do aludido assento interpretado restritivamente, tais caminhos são atravessadouros e, consequentemente, devem considerar-se abolidos face ao disposto no art. 1383.º do CC, ressalvados os casos contemplados no art. 1384.º do CC.

III - No caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para se considerar tal caminho como caminho público, não se impondo nenhuma interpretação restritiva do assento.

IV - Incorre em responsabilidade civil pelos danos causados às pessoas que ficaram impedidas de circular nessa via o proprietário de imóvel que fechou o acesso a esse caminho, construindo no topo sul um muro com portão, impondo-se-lhe também repor o acesso à referida passagem no estado em que se encontrava, ou seja, destruindo o muro e portão (arts. 562.º e 564.º do CC).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA, BB e CC intentaram ação declarativa com processo ordinário contra DD pedindo que seja a ré condenada a proceder ao fecho da abertura que construiu no muro de divisão do prédio urbano , descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º … com aquele descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz  sob o artigo 598 ambos do lugar ..., concelho de ....

2. A ré contestou deduzindo reconvenção pedindo a condenação dos AA

a) a reconhecer que entre o seu prédio e os da ré existe um caminho livre de acesso público, ligando a rua ... e a rua ... e a abster-se, por isso, de impedir ou limitar a livre passagem da ré através desse caminho;

b) a levantar o portão e a destruir o muro com que taparam tal caminho, no prazo máximo de 10 dias após o trânsito em julgado, sob pena de, em caso de mora, ter de suportar uma sanção pecuniária de 75€ por cada dia.

c) Se, por razão que não se descortina, não forem atendidos os pedidos, devem, então

- ser condenados a reconhecer o direito de servidão de livre acesso ao prédio rústico da reconvinte pelo mesmo sítio desse ancestral caminho, sendo igualmente condenados no pedido da alínea b).

3. A ação foi julgada improcedente e a ré DD absolvida do pedido; o pedido reconvencional foi julgado parcialmente procedente e os autores condenados a reconhecer que entre o seu prédio e os da ré existe um caminho de livre acesso público, ligando a rua ... à rua ..., sendo absolvidos do demais pedido.

4. Os AA interpuseram recurso de apelação e, subordinadamente, o mesmo fez a ré.

5. O Tribunal da Relação do Porto (acórdão de fls. 813/851) julgou parcialmente procedente o recurso de apelação da autora, mantendo a decisão recorrida na parte em que absolve a ré do pedido, mas revogando a decisão na parte em que julga parcialmente procedente o pedido reconvencional, considerando-o agora totalmente improcedente e julgou improcedente o recurso subordinado.

6. O Supremo Tribunal de Justiça, interposto recurso pela ré DD, anulou a decisão recorrida por contradição da matéria de facto ( ver acórdão de fls. 960/987).

7. Resultou tal contradição, no tocante à passagem em causa nos autos cujo acesso foi cortado com a construção pelos AA de um muro de blocos de cimento e com a colocação de um portão de ferro na mencionada passagem, exatamente no topo sul dessa parcela de terreno onde a mesma entronca com a rua ..., de, por um lado,  se reconhecer que afinal a dita parcela integrava o prédio dos AA a partir do momento em que se provou que eles consentiram na sua utilização para passagem e que esta integrava o prédio dos AA ( ver resposta ao quesito 5.º) e, por outro lado, haver-se também considerado  que o prédio dos AA confina e sempre confinou com a parcela (ver resposta aos quesitos 2.º e 40.º), o que evidencia não ser a dita parcela propriedade dos AA.

8. O Tribunal de 1.ª instância, para onde os autos foram remetidos anulada a decisão em conformidade com o decidido pelo Supremo Tribunal ( acórdão de fls. 1011/1041), posto perante esta contradição, depois de salientar que " em face de toda a prova produzida e que se encontra explanada na decisão de fls. 621, ficámos convencidos de que a parcela de terreno descrita em J) efetivamente não fazia, nem nunca fez parte, do terreno descrito em A) da matéria assente", alterou as respostas, referindo o seguinte:

analisados os quesitos que, nos termos do acórdão do S.T.J. de fls. 960 se encontravam em contradição, nesta nova decisão optámos por suprimir , na resposta dada ao quesito 5.º, a expressão " que integrava o prédio referido em A)" ( com referência à parcela de terreno referida em J), dando-a como não provada, pois essa expressão contrariava o nosso entendimento em face da prova produzida e a resposta dada aos demais quesitos.

Com a expressão "consentir" que havíamos dado como provada nas respostas aos quesitos 5.º e 6.º não pretendíamos atribuir qualquer direito de propriedade aos AA sobre a parcela de terreno, mas significar apenas que as pessoas aí indicadas não se opuseram ao livre uso do caminho por todos, aliás no mesmo sentido que resultou provado na resposta ao quesito 55.º. De forma a melhor traduzir este nosso entendimento, resultante da prova produzida e em baixo melhor fundamentada, fizemos a respetiva correção, substituindo a expressão " consentir" por " não oposição".

9. Foi proferida nova sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a ré DD do pedido contra si formulado pelos AA AA, BB e CC e julgou totalmente improcedente a reconvenção deduzida, absolvendo os reconvindos AA, BB e CC da totalidade dos pedidos reconvencionais formulados pela reconvinte DD.

10. Interposto recurso pela ré, o Tribunal da Relação do Porto , revogando a sentença proferida, condenou os AA a reconhecer que entre o seu prédio e os prédios da ré existe um caminho de livre acesso público, ligando a rua ... e a rua ..., a levantar o portão e a destruir o muro com que taparam a entrada do topo sul do referido caminho no prazo máximo de 30 dias; condenou-os ainda no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 75€  por cada dia de atraso em levantar o portão  e ou destruir o muro com que taparam a entrada do caminho, confirmando no mais a decisão recorrida.

11. Recorrem os AA que findam a minuta de revista com as seguintes conclusões:

A - O presente recurso vem interposto do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 19 de dezembro de 2012, nos termos do qual foi julgado procedente o recurso interposto  e, em consequência, foram os AA condenados a reconhecer que entre o seu prédio  e os prédios da ré existe um caminho de livre acesso público, ligando a rua ... e a rua ..., a levantar o portão e a destruir o muro com que taparam a entrada do topo sul do referido caminho no prazo máximo de 30 dias, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 75€  por cada dia de atraso em levantar o portão  e ou destruir o muro com que taparam a entrada do caminho.

B- A parcela em causa nos autos não consubstancia qualquer caminho público na medida em que não se encontram preenchidos os requisitos de que depende tal caracterização.

C- A parcela do terreno em questão não está na disponibilidade direta e imediata do público em geral, mas tão somente dos habitantes de uma determinada localidade.

D- Ademais não resultou provado que a respetiva utilização se destinava à satisfação de interesses coletivos  de certo grau ou relevância.

E- O facto de a parcela em causa ser utilizada livremente por toda a população da localidade  há mais de cem anos não determina tout court o caráter público do terreno.

F- No âmbito da ação popular que correu termos no Tribunal Judicial de Gondomar sob o n.º 2164/03.2TBGDM foi proferido acórdão em 21-5-2007 pelo Tribunal da Relação do Porto que se pronunciou no sentido de que a parcela em causa nos autos não consubstancia um caminho público porquanto não se encontram verificados os pressupostos de que depende tal qualificação, conforme acima demonstrado

G- Não estão verificados os pressupostos de que depende a qualificação como caminho público de acordo com o assento proferido em 19-4-1989 e com a interpretação restritiva posteriormente atribuída ao mesmo pelo acórdão  do S.T.J. de 10-11-1993, razão pela qual não poderia a parcela em causa ter sido qualificada como caminho público pelo Tribunal a quo e, consequentemente, terem sido os ora recorrentes condenados a reconhecerem que entre o seu prédio e os prédios da ré existe um caminho de livre acesso público, ligando a rua ... e a rua ... e a levantarem o portão e a destruir o muro com que taparam a entrada do topo sul do referido caminho pelo que a ter decidido nesse sentido incorre o Tribunal em erro de julgamento.

12. Factos provados:

1- Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob a inscrição .., ap. …, a aquisição por doação de BB e CC, a favor da autora AA, casada na comunhão de adquiridos com EE, do prédio denominado “P...”, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ... como prédio rústico de terreno a bravio, com 520 m2, e inscrito na matriz rústica sob o artigo 598º, sito no lugar …, concelho de ..., e, pelo Av., 3, ap. …, como urbano, por construção de casa de cave, rés do chão, andar e logradouro, com a área coberta de 64 m2, e descoberta de 456 m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo 877º [ponto A) dos factos assentes].

2- Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de ..., sob a inscrição …, ap. ..., a aquisição do usufruto simultâneo e sucessivo, que se extinguirá no todo à morte do último que sobreviver, por reserva na doação referida em 1-, a favor dos autores BB e CC, sobre o prédio denominado “P...”, referido em 1 - [ponto B) dos factos assentes].

3- O prédio referido em 1- foi adquirido pelos autores BB e CC no dia 12 de dezembro de 1972, a FF e GG, conforme escritura de compra e venda lavrada a fls. … do Livro … do 4º Cartório Notarial do Porto [ponto C) dos factos assentes].

4- A 20 de abril de 1998, a autora AA adquiriu, por doação dos autores BB e CC, o prédio referido em 1-, e estes mantiveram o usufruto simultâneo e vitalício até à morte do último que sobreviver, conforme escritura pública lavrada a fls. … e ss do Livro … E do 3º Cartório Notarial do Porto [ponto D) dos factos assentes].

5- Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de ..., sob a inscrição G-1, ap. 59/280197, a aquisição a favor da ré do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº …, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo 87º, sito no lugar …, concelho de ..., por doação de HH e II [ponto E) dos factos assentes].

6- O prédio urbano referido em 5- confronta:

a. a norte, com o prédio rústico referido em 7; 

b. a nascente, com JJ;

c. a sul com um caminho público, denominado rua ... [ponto F) dos factos assentes, retificado nos termos determinados a fls. 375].

7- A ré é ainda proprietária de um prédio rústico, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 599º da freguesia …, composto de terreno de pastagem e frutos, conforme documento nº 6 junto a fls. 32, que aqui se dá por reproduzido [ponto G) dos factos assentes].

8- O prédio rústico referido em 7- confronta:

a. a sul, com o prédio urbano referido em 5-;

b. a nascente com KK;

c. a norte com LL [ponto H) dos factos assentes, retificado nos termos determinados a fls. 375].

9- O autor BB foi, desde 1954 até 12 de dezembro de 1972, arrendatário do prédio denominado “P...”, referido em 1- [ponto I) dos factos assentes].

10- Os habitantes da rua ..., no lugar …, utilizavam uma parcela de terreno para fazerem a ligação à rua ..., encurtando o percurso de acesso a um fontanário que se situava na rua da …, a cerca de 500 metros do prédio dos autores, sem necessitarem de percorrer a rua ..  e parte da rua ..., parcela essa que era contígua, a nascente, aos prédios da ré referidos em 5- e 7- [ponto J) dos factos assentes].

11- A passagem referida em 10- era efetuada também através de uma parcela de terreno no prédio contíguo ao prédio referido em 1-, situada a norte deste e que confrontava com a rua ..., prédio esse que pertencia a LL, sendo hoje dos respetivos herdeiros [ponto L) dos factos assentes].

12- Foram construídos dois novos fontanários no lugar ..., ambos na rua ..., um no seu início, o outro no seu termo [ponto M) dos factos assentes].

13- Para além daqueles 3 fontanários, referidos em 10- e 12-, existem dois outros no lugar ..., a saber:

a. na rua ..., que abastecia os habitantes do largo de …, de parte da rua de … e da rua ...;

b. na rua ..., que abastecia os habitantes de parte da rua de ..., da rua da ...e da rua .... [ponto N) dos factos assentes].

14- A água de qualquer daqueles 5 fontanários referidos em 10-, 12- e 13-, incluindo o da rua ..., foi declarada imprópria para consumo, de acordo com um aviso que, há cerca de 3 anos, neles foi colocado [ponto O) dos factos assentes].

15- Existe há pelo menos 15 anos rede pública de abastecimento de água na freguesia ..., designadamente no lugar ... [ponto P) dos factos assentes].

16- A ré efetuou, nos meses de janeiro e de fevereiro de 2003, obras de beneficiação de um muro de vedação [ponto Q) dos factos assentes].

17- Nesse muro, e na realização das obras acima referidas, foi deixada uma abertura, na qual a ré instalou um portão [ponto R) dos factos assentes].

18- Os autores não autorizaram a realização daquela abertura no muro de vedação [ponto S) dos factos assentes].

19- A Câmara Municipal de ..., no âmbito do processo nº 13967/02, requerimento nº 13967/02, por despacho de 18 de fevereiro de 2003, do Exmº. Sr. Vereador do Urbanismo, embargou a «obra que está a ser executada» na rua ..., lugar ..., …, «pela Sr.ª. Dª. DD», do que foi a autora AA notificada, conforme documento nº 7 junto a fls. 34 dos autos [ponto T) dos factos assentes].

20- Encontra-se averbado na certidão da Conservatória do Registo Predial referida em 5-, na descrição do prédio aí referido, que a 13 de março de 2003 foi embargada a obra, por despacho datado de 18 de fevereiro de 2003 [ponto T-1) dos factos assentes].

21- A ré prosseguiu as referidas obras de construção, não se mostrando disposta a fechar tal abertura, apesar de contactada pelos autores para tanto [ponto U) dos factos assentes].

22- A ré tem acesso ao prédio referido em 5- pela rua ... [ponto V) dos factos assentes].

23- Os autores, agindo todos de comum acordo, mandaram construir um muro de blocos de cimento e colocaram um portão de ferro na passagem referida em 10-, exatamente no topo sul dessa parcela de terreno, onde a mesma entronca com a rua ... [ponto X) dos factos assentes, retificado nos termos determinados a fls. 374].

24- Esse muro e portão ocupam toda a entrada para esse caminho e impedem o livre acesso através dele [ponto Z) dos factos assentes].

25- Do «Roteiro Toponímico ...», elaborado no ano de 1997 pela própria Junta de Freguesia ..., e da «Planta Turística ..., M… e M…», elaborada pela Câmara Municipal de ..., não consta a existência de qualquer caminho, atravessadouro ou servidão entre a rua das ... e a rua ... (conforme documentos juntos a fls. 81 e 82 dos autos, que aqui se dão por reproduzidos) [ponto AA) dos factos assentes].

26- O prédio referido em 1- é hoje composto por uma habitação unifamiliar e por um logradouro [resposta ao ponto 1º da base instrutória – decisão de fls. 621 e ss].

27- Aquele mesmo prédio tem hoje as seguintes confrontações:

a norte com LL; a poente com MM; a nascente com a parcela de terreno referida em 10-; a sul com a rua ... [resposta ao ponto 2º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, reproduzida a fls. 1059, com a retificação de fls. 1083].

28- Os prédios urbanos referidos em 5- e 7- confrontam a poente com a parcela de terreno referida em 10- [resposta aos pontos 3º e 4º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

29- Os autores BB e CC, primeiro enquanto arrendatários, depois como proprietários, nunca se opuseram, até há cerca de 30 anos a esta parte (até cerca de 1974) à utilização para passagem da parcela de terreno referida em 10-, pelas pessoas aí referidas  [resposta ao ponto 5º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, com a alteração de fls. 1059].

30- A mesma não oposição foi adotada pelos Srs. FF e GG, referidos em 3-, e seus antecessores [resposta ao ponto 6º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, com a alteração de fls. 1059].

31- O acesso ao Fontanário referido em 10- era (é) efetuado através de caminhos públicos que então existiam (como ainda hoje) no lugar ... – a rua …, a rua ... e a rua …  [resposta ao ponto 7º da base instrutória – decisão de fls. 621 e ss].

32- O acesso aos novos fontanários referidos em 12- não é, não precisa de ser, nem nunca foi efetuado pelo terreno do prédio referido em 1- [resposta ao ponto 10º da base instrutória – decisão de fls. 621 e ss].

33- O fontanário referido em 10-, desde a inauguração dos dois novos fontanários referidos em 12-, deixou de ser utilizado pelos habitantes da rua ... [resposta ao ponto 11º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

34- Só os habitantes da rua ... e da rua ... continuam a utilizar o fontanário referido em 10- [resposta ao ponto 12º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

35- Os habitantes referidos em 34- e os do lugar ... não precisavam de passar pela parcela de terreno em causa para terem acesso ao fontanário da rua ... ou a qualquer dos fontanários referidos em 13- [resposta aos pontos 13º e 14º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

36- Os fontanários referidos em 10-, 12- e 13-, pelos factos referidos em 14- e 15-, raramente são utilizados nos dias de hoje [resposta ao ponto 15º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

37- O muro de vedação referido em 16- é contíguo à parcela de terreno em causa nos autos [resposta ao ponto 30º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, reproduzida a fls. 1059].

38- A abertura referida em 17- não existia na parede originária que fazia a separação entre os prédios referidos em 5- e 7- e o terreno confinante , antes da realização das obras de beneficiação referidas em 16- [resposta ao ponto 31º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, retificada a fls. 1059].

39- Tal abertura deita diretamente para a parcela de terreno em causa nestes autos, não existindo entre esta e aquela o intervalo de metro e meio [resposta ao ponto 32º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

40- No prédio referido em 1-, que era rústico, os autores há anos construíram um palheiro que posteriormente licenciaram como palheiro [resposta ao ponto 35º da base instrutória - decisão de fls. 621.e ss].

41- … Tendo recentemente andado a proceder a obras de ampliação desse palheiro sem licenciamento municipal [resposta ao ponto 36º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

42- As construções referidas em 40- e 41- são as únicas aí existentes, para além do muro e portão referidos em 23- e 24 - [resposta ao ponto 37º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss,].

43- A realização pelos autores das obras referidas em 23 e 24  deram origem a movimentações populares de protesto, que motivaram até um «abaixo assinado» e um plenário de cidadãos da iniciativa da Junta de Freguesia [resposta ao ponto 38º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

44- … Que culminou na condenação do comportamento dos autores e na firme reivindicação da abertura do caminho de passagem em causa [resposta ao ponto 39º da base instrutória – decisão de fls. 621 e ss].

45- O prédio referido em 1- confronta e sempre confrontou pelo lado nascente com a passagem referida em 10- [resposta ao ponto 40º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, reproduzida a fls. 1059].

46- Os prédios referidos em 5- e 7- confrontam do lado poente com a passagem referida em 10- [resposta ao ponto 41º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

47- Na freguesia ..., designadamente no lugar ..., apesar do facto referido em 15-, ainda há casas sem abastecimento municipal de água, e há quem continue a ir aos fontanários e lavadouros públicos [resposta ao ponto 42º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

48- Existe uma parcela de terreno que, desde tempos imemoriais, fazendo a ligação entre a rua … e a rua ..., serviu livremente à circulação dos habitantes da freguesia ... [resposta ao ponto 43º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

49- Esse caminho corresponde à passagem referida em 10- [resposta ao ponto 43º-Aº da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

50- Esse caminho e essa livre utilização do mesmo por todos verificaram-se desde há mais de 100 anos, de forma ininterrupta até ao ano de 2003 [resposta ao ponto 44º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

51- Esse caminho foi usado por toda a população da localidade, para além da finalidade referida em 10-, para:

a. circular por ali nas idas e vindas para a praia do Rio Douro;

b. circular por ali entre as habitações e propriedades rústicas circunvizinhas;

c. a passagem anual do compasso, pela Páscoa;

d. ir e vir do trabalho;

e. deslocar aos serviços religiosos da igreja paroquial;

f. se servir de um lavadouro público, que fica no fontanário referido em 10- [resposta ao ponto 45º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

52- Esse uso e fruição do caminho por toda a população foram exercidos livremente, sem oposição de quem quer que fosse, no convencimento de cada um de que se servia de um caminho com destino público, exatamente como as referidas ruas ... e ..., a que aquele serve de ligação ou travessa [resposta ao ponto 46º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, reproduzida a fls. 1059].

53- Por algumas vezes foram executadas obras de limpeza nesse caminho pelos serviços da autarquia local [resposta ao ponto 47º da base instrutória - decisão desta Relação a fls. 836].

54- Esse caminho, em sentido descendente a partir da rua ..., desenha-se numa faixa de terreno que se interpõe entre o prédio referido em 1- e os prédios referidos em 5- e 7- e entre outros prédios que ficam mais abaixo [resposta ao ponto 48º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, reproduzida a fls. 1059].

55- No caso do prédio referido em 1-, havia mesmo 3 marcos constituídos por esteios em lousa, ligados por arames, a ladear esse caminho, estabelecendo inequivocamente a divisão entre o prédio referido em 1- e esse caminho [resposta ao ponto 50º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, reproduzida a fls. 1059].

56- Dos esteios em lousa acima referidos resta apenas um, que consta da fotografia junta a fls. 47 como documento nº 1 [resposta ao ponto 51º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

57- Os autores e os seus antecessores, desde tempos imemoriais, os mais distantes que são lembrados pela memória das pessoas mais idosas da localidade, nunca cultivaram fosse o que fosse nessa área usada como caminho de passagem pública [resposta ao ponto 53º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, reproduzida a fls. 1059] …

58- … Nunca tendo levantado o mínimo obstáculo ao livre uso do caminho por todos, deixando essa parcela de terreno abandonada [resposta ao ponto 55º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss, reproduzida a fls. 1059].

59- O muro referido em 16-, antes das obras de beneficiação aí referidas, permitia facilmente o acesso livre para o outro lado em grande parte da sua extensão [resposta ao ponto 59º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

60- A ré, por si e pelos seus antecessores, desde há mais de 20, 40, 50 anos sempre se serviu do caminho de passagem referido em 48- a 58-:

a. passando livremente por esse caminho;

b. e fazendo também acesso através dele para o seu prédio referido em 7- e para as traseiras da sua habitação, entrando (naquele seu prédio) por uma abertura existente, desde que há memória, no velho murete de vedação em ... de xisto, que ali ladeava o caminho;

c. por aí circulando, sempre que quis e necessitou, a pé e fazendo transportar materiais, e, inclusive, conduzindo por lá, em tempos, as suas ovelhas [resposta ao ponto 60º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

61- A ré praticou tais atos à vista de toda a gente [resposta ao ponto 61º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss]

62- … Sem qualquer oposição fosse de quem fosse, até à intervenção dos autores [resposta ao ponto 62º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

63- … Convencida de exercer um direito próprio, sem depender de autorização ou tolerância de quem quer que fosse [resposta ao ponto 63º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

64- Existiu, desde tempos imemoriais até ao presente, uma livre passagem entre a habitação do prédio da ré e o palheiro referido em 40-, e separando os seus prédios, livre passagem sempre usada, nas condições acima referidas, também para aceder ao prédio da ré referido em 7- [resposta ao ponto 64º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

65- Entre o prédio da ré, referido em 7-, e a rua ... (a via pública mais próxima) interpõe-se o prédio urbano referido em 5-, onde está implantada a habitação da ré, não havendo qualquer área descoberta a confrontar com a via pública que permita aceder ao prédio referido em 7- [resposta ao ponto 66º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

66- O presidente da Junta de Freguesia ... declarou que a passagem não constituía um caminho público, não lhe sendo permitido fazer qualquer obra de conservação ou de beneficiação [resposta ao ponto 67º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

67- A Junta de Freguesia ..., designadamente através dos seus sucessivos presidentes, nunca procedeu à sua reparação ou beneficiação [resposta ao ponto 68º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

68- A ré tem acesso ao prédio referido em 7- através do seu prédio referido em 5-, com o qual confronta [resposta ao ponto 72º da base instrutória - decisão de fls. 621 e ss].

69- A ré efetuou obras de ampliação e remodelação dos seu prédio referido em 5-, o qual confronta, a sul, com a rua ..., que, originariamente, correspondia à área descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 680 [resposta ao ponto 74º da base instrutória - decisão desta Relação a fls. 839].

70- O prédio urbano referido em 5- tinha originariamente as seguintes áreas: 80 m2 de área coberta e 40 m2 de área descoberta [resposta ao ponto 75º da base instrutória - decisão desta Relação a fls. 839].

71- A ré requereu ao Conservador do Registo Predial de ... a retificação das áreas que constam do registo do prédio urbano referido em 5-, inscrito na matriz sob o artigo 87º, da freguesia ..., fazendo constar a área coberta de 85 m2 e a área descoberta de 417 m2 [resposta ao ponto 76º da base instrutória - decisão desta Relação a fls. 836].

Apreciando

13. Os AA invocaram ser proprietários de imóvel que integrava parte parcela de terreno que liga a rua ... à rua ... e sobre o qual a ré abriu um portão.

14. No entanto, não provaram os AA que eram proprietários dessa faixa de terreno e, por isso, improcedeu a sua pretensão.

15. A ré, em reconvenção, deduziu o pedido principal - que agora está em causa - pedindo a condenação dos AA/reconvindos a reconhecer que entre o seu prédio e os prédios da ré existe um caminho de livre acesso público, que liga as mencionadas ruas ... e ... e a abster-se, por isso, de impedir ou limitar a livre passagem da ré através desse caminho e a levantar o portão e a destruir o muro com que taparam tal caminho.

16. Afigura-se que a pretensão da ré não pode deixar de proceder a partir do momento em que se provou que a ré utiliza um determinado caminho que não é nem nunca poderia ser considerado atravessadouro visto que não integra a propriedade dos AA. O  atravessadouro ou atalho traduz-se num direito de atravessar prédio alheio, o que não sucede quando a ré utiliza a referida passagem.

17. Por isso, ainda que não se pudesse considerar que a aludida parcela de terreno  constitui um caminho público por estar, desde tempos imemoriais, no uso direto e imediato do público, a prova da sua utilização pública seria suficiente para a procedência do pedido visto que a atuação dos AA, construindo muro e portão em terreno que não lhes pertence, traduz um ato ilícito violador do direito que assiste à ré de utilizar aquele caminho.

18. O acórdão recorrido da Relação do Porto - 3425/03.6TBGDM.P2 in www.dgsi.pt (rel. Francisco Matos) - entendeu, e a nosso ver com inteira razão, que as razões que levaram a uma interpretação restritiva do assento de 19 de abril de 1989 não relevam no caso concreto precisamente porque não estamos face à dicotomia atravessadouro/caminho público, pois a mencionada parcela de terreno não integra a propriedade dos AA., não existindo aqui a necessidade de "encontrar o justo equilíbrio entre os direitos dos particulares e o interesse das populações".

19. Ora -  prossegue o acórdão -

"a defesa deste equilíbrio é totalmente desnecessária no caso dos autos e isto pela simples razão que a parcela de terreno que constitui o caminho, cuja natureza pública a ré reclama, não integra o prédio dos autores, é-lhe contíguo a nascente.

Inexiste, assim, qualquer razão para se avançar com uma interpretação restritiva do Assento por não implicar o reconhecimento da natureza pública do caminho a compressão de qualquer direito ou interesse particular que se imponha equacionar; nestas circunstâncias, justifica-se a conceção de dominialidade pública dos caminhos decorrente da inicial aceção do Assento e na consideração desta, nenhuma dificuldade suscita a qualificação da parcela de terreno que se interpõe entre o prédio dos autores e os prédios da ré, fazendo a ligação entre a Rua da … e a Rua ..., na localidade ..., como um caminho público e isto porque se demonstra que toda a população da localidade, desde há mais de 100 anos, de forma ininterrupta e até ao ano de 2003 por ela circulava livremente para ir e vir do trabalho e para se servir de um lavadouro público, que fica no fontanário que se situava na Rua ..., entre outras razões , ou seja, é um caminho que, desde tempos imemoriais, está no uso direto e imediato do público e, como tal, um caminho público".

20. Este entendimento prejudica toda a argumentação dos recorrentes que se funda na interpretação restritiva do aludido assento segundo a qual " um caminho, no uso direto e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular será público se estiver afetado à utilidade pública ( ou seja, visar a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância); de contrário (na falta desse requisito)  e, em especial, quando se destinem apenas a fazer a ligação por caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo das distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros" (Ac. do S.T.J. de 15-6-2000, rel. Miranda Gusmão, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 134.º Ano, 2001/2002, pág. 366-370, anotado por Henrique Mesquita, pág. 370/371 e 135.º Ano, pág. 62/64; no mesmo sentido deste acórdão, veja-se o Ac. do S.T.J. de 10-11-1993 ( rel. Martins da Costa), B.M.J. 431-300).

21. Sucede que essa interpretação restritiva pressupõe o atravessamento de propriedade alheia, o que, no caso, não se verifica.

22. Não ponderando este aspeto, a nosso ver essencial, quer as instâncias que nesta causa decidiram diversamente, quer  o Ac. da Relação do Porto de 16-7-2007 proferido em ação popular - que não vincula a ré que dela se excluiu ( ver fls. 386;  cf. artigo 15.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto) julgaram improcedente o reconhecimento daquele caminho como caminho público por terem considerado que não eram interesses coletivos relevantes os interesses mencionados em 10 e 51 supra.

23. Quer isto dizer que o critério consagrado no mencionado assento de 1989 ( in Diário da República, I Série, de 2-6-1989 e B.M.J. 386-121)  -  assento que diz: " são públicos  os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público" -  é o quantum satis para se reconhecer a natureza pública ao caminho que não atravessa propriedade privada independentemente de não se encontrar na administração do Estado ou de outra pessoa coletiva de direito público ou sob a sua jurisdição. Como se refere no Ac. do S.T.J. de 27-4-2006, rel. Custódio Montes, revista n.º 915/06 a interpretação restritiva do assento de 19-4-1989 apenas se torna necessária e justificativa para distinguir "caminhos públicos" de "atravessadouros".

24. Foi aquela, aliás, a questão que esteve na origem do mencionado assento, pois importava esclarecer, para que um caminho fosse reconhecido como caminho público, se era apenas suficiente o uso direto e imemorial pelo público ou, pelo contrário, se era ainda necessário demonstrar que  as coisas usadas por todos direta e imediatamente haviam sido produzidas ou apropriadas por uma pessoa coletiva de direito público.

25. Marcello Caetano acompanhava a jurisprudência do Supremo que defendia este entendimento, que o assento de 1989 não acompanhou, referindo que " estamos, assim, de acordo com a jurisprudência que se firmou no Supremo Tribunal de Justiça e segundo a qual é indispensável, para  o reconhecimento da dominialidade pública dum caminho, provar-se que foi produzido ou legitimamente apropriado por pessoa coletiva de direito público e que por ela é administrado, constituindo o uso público direto e imediato, quando imemorial, mera presunção dessa dominialidade, ilidível por prova em contrário" (Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 8.ª edição, 1969, pág. 854).

26. À luz do assento, diversamente, o uso público imemorial impõe o reconhecimento de que um caminho é público, devendo, ao invés, qualificar-se de atravessadouros os caminhos que atravessem propriedade privada, ainda que usados por público, quando não é imemorial a sua posse. Tais atravessadouros devem considerar-se extintos face ao disposto no artigo 1383.º do Código Civil.

27. Se a posse for imemorial - ainda à luz do assento não interpretado restritivamente - a distinção entre caminho público e atravessadouro, segundo Oliveira Ascensão, faz-se presumindo ser atravessadouro o caminho que se dirige a imóvel determinado e público o caminho ou a passagem que liga caminhos. Para este autor " o fundamento da lei é preservar a malha dos caminhos públicos, por um lado, e por outro assegurar que os acessos a imóveis determinados sejam estabelecidos com o mínimo de sacrifício para as propriedades vinculadas por estes" ("Caminho Público, Atravessadouro e Servidão de Passagem", O Direito, Ano 123.º ,1991, IV pág. 535-551).

28. Estaria, assim sendo, abolido o atravessadouro que se dirige a imóvel determinado ( salvo aqueles que a lei ressalva no artigo 1384.º do Código Civil, ou seja, "os atravessadouros que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas à utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os admitidos em legislação especial") mas também aqueles em que o uso pelo público não é geral quando o acesso está aberto apenas " a pessoas determinadas  ou a um círculo determinado de pessoas" (loc. cit. pág. 546).

29. Queremos com isto dizer que, num caso como o presente em que, como se disse, não se põe a alternativa de se reconhecer a passagem ou como caminho público ou como mero atravessadouro visto que a mencionada passagem não atravessa nenhuma propriedade privada, a utilização do critério do assento de 1989 pode levar a que a natureza pública do caminho ainda assim não seja reconhecida por não se provar posse imemorial ou posse pública.

30. Ou seja, o critério do assento pode revelar-se aqui um critério enganador pois, apesar de não se introduzir o elemento restritivo que é o da publicidade do caminho exigir " a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância", ainda assim pode não se verificar a sua previsão - posse imemorial e posse pública - deparando-se-nos a situação de não se considerar caminho público um caminho que é utilizado pelo público e que liga vias públicas de um lugar ou localidade. E isto com a consequência de todos aqueles que dele beneficiam não poderem, por não ser considerada essa passagem um caminho público, fazer valer os seus interesses no caso de serem privados ilicitamente da sua utilização por lhes ser impedido o acesso e circulação plena, como aqui sucedeu com a construção do muro e portão.

31. Este entendimento não nos parece de perfilhar. O facto de se considerar que a posse pública imemorial do caminho basta para que ele se considere caminho público não implica a contrario sensu que, não se provando que ele seja um caminho público, não possa ser considerado uma coisa comum cuja utilização, no caso de violação ilícita, fará incorrer em responsabilidade civil o agente do facto ilícito pelos prejuízos causados com a obrigação de reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigos 562.º e 564.º do Código Civil). 

32. Na verdade, tal como refere Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais, 2.ª edição, 2007, Principia, pág. 102 e também Cadernos de Direito Privado, N.º 13, Jan/Mar de 2006, pág. 3/8), " julgamos que não é necessário alargar o conceito de domínio público para sustentar que há caminhos que são públicos  apesar de não pertencerem a nenhuma pessoa coletiva de direito público. Na verdade, a não pertença de um bem a uma entidade pública não tem como consequência necessária que esse bem seja privado".

33. Os caminhos públicos e os baldios - prossegue o referido autor - evidenciam analogias, pois  " são bens que nem pertencem ao Estado ( ou a outra pessoa coletiva de direito público), nem pertencem a privados, sendo apropriados coletivamente mas sem a mediação de qualquer pessoa coletiva de direito público. São coisas comuns, no sentido tradicional, recolhido do Código de Seabra que atrás se lembrou. É verdade que os caminhos públicos estão ao dispor de quaisquer cidadãos - e não apenas das 'comunidades locais'. Não é, porém, menos verdade que os seus utilizadores primaciais e quase únicos são os membros dessas comunidades. A figura dos baldios é, em grande medida, um lugar paralelo da figura dos caminhos públicos".

34. Com efeito, distinguia o Código de Seabra (artigo 379.º) as coisas em públicas, comuns e particulares definindo, no artigo 381.º, como coisas comuns " as coisas naturais ou artificiais, não individualmente apropriadas, das quais só é permitido tirar proveito, guardados  os regulamentos administrativos, aos indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa, ou que fazem parte de certa corporação pública) integrando esta categoria os terrenos baldios, municipais e paroquiais, o que justifica a mencionada analogia.

35. O reconhecimento dessa natureza de coisa comum de um caminho ou passagem que liga vias públicas e que não atravessa propriedade privada, in casu a rua ... e a rua ..., não estando, portanto, em causa a alternativa caminho público/atravessadouro, decorreria da prova do seu uso pela população do lugar, não se afigurando, assim, necessário provar nem o seu uso imemorial, nem a sua utilização pela população em geral nem a sua apropriação e administração por pessoa coletiva de direito público.

36. Certo é que, no caso vertente, tal como decidiu a Relação, atentos os factos provados, está provada a afetação por uso imemorial desse caminho por toda a população da localidade (10 e 51 supra) sem que obviamente essa utilização estivesse adstrita apenas a essa população e, por conseguinte, o caminho deve ser considerado público à luz do próprio assento de 1989.

Concluindo

I- A interpretação restritiva do assento de 19-4-1989, de acordo com a qual  os caminhos devem considerar-se públicos  quando, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato público e afetados a interesses coletivos de certo grau ou relevância, pressupõe que tais caminhos atravessam propriedades privadas.

II- Por isso, não se verificando a previsão constante do aludido assento interpretado restritivamente, tais caminhos são atravessadouros e, consequentemente , devem considerar-se abolidos face ao disposto no artigo 1383.º do Código Civil, ressalvados os casos contemplados no artigo 1384.º do Código Civil.

III- No caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para se considerar tal caminho como caminho público, não se impondo nenhuma interpretação restritiva do assento.

IV- Incorre em responsabilidade civil pelos danos causados às pessoas que ficaram impedidas de circular nessa via o proprietário de imóvel que fechou o acesso a esse caminho, construindo no topo sul um muro com portão, impondo-se-lhe também repor o acesso à referida passagem no estado em que se encontrava, ou seja, destruindo o muro e portão ( artigos 562.º e 564.º do Código Civil)

Decisão: nega-se a revista

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 28 de maio de 2013

Salazar Casanova (Relator)

Azevedo Ramos

Marques Pereira