Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | AÇÃO EXECUTIVA EMBARGOS DE EXECUTADO LIVRANÇA EM BRANCO PACTO DE PREENCHIMENTO PREENCHIMENTO ABUSIVO ABUSO DO DIREITO ÓNUS DA PROVA INCUMPRIMENTO DEFINITIVO VENCIMENTO | ||
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Data do Acordão: | 06/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVISTA PROCEDENTE. | ||
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Sumário : |
I- No quadro da jurisprudência sedimentada no STJ, não é o simples decurso do tempo de inação do credor, portador de uma livrança assinada em branco, que permite concluir automaticamente pela existência de um comportamento abusivo no preenchimento e vencimento dessa livrança. II- Para se concluir que existe preenchimento abusivo pelo decurso do tempo, terão de ser demonstradas circunstâncias que permitam sustentar a convicção do devedor no sentido de que, para além de determinado tempo de inação, o credor já não exercerá o direito. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n. 9036/19.7T8ALM-B.L1.S1 Recorrente: NOVO BANCO, S.A. Recorrido: AA
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO 1. AA, executada nos autos principais de execução para pagamento de quantia certa que contra ela moveu o exequente Novo Banco, S.A., com base em livrança em que a executada figura como avalista, deduziu oposição à execução mediante embargos de executado, pedindo a extinção da execução. Invocou, além do mais, a existência de violação do pacto de preenchimento, porque o contrato de crédito teria sido resolvido em 2008, por incumprimento, e a livrança foi subscrita e avalizada em branco, tendo a exequente demorou 11 anos a preenche-la, alegando ainda que a avalista não tinha admitido o preenchimento em casos de mora do credor. Invocou também a prescrição, a qual devia ser contada desde o incumprimento, em 2008, sendo referente a prestação de capital e juros remuneratórios, ao abrigo do artigo 310º al. e) do Código Civil.
2. O exequente contestou os embargos, alegando, além do mais, que o contrato que serve de base à livrança em execução apenas foi denunciado em 2019, data em que foram expedidas cartas aos devedores e entre eles à embargante, tendo a livrança sido preenchida 15 dias depois. 3. Foi proferida sentença que julgou a oposição à execução improcedente. Inconformada, a embargante interpôs recurso de apelação, tendo o TRL considerado o recurso procedente, decidindo: conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, substituindo-a pelo presente acórdão que julga os embargos parcialmente procedentes por provados e em consequência absolve a embargante da instância executiva, julgando esta extinta contra aquela.
4. Inconformado, o Banco apelado interpôs recurso de revista. Nas suas alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões: « A) Sustenta o douto acórdão recorrido que “o pacto de preenchimento celebrado tem de ser interpretado, nos seus termos literais e em conjugação com as regras de boa fé negocial e da justificação económica dos direitos contra prestados, como não conferindo ao credor a possibilidade de demorar 10 anos a declarar ao devedor e aos seus garantes, querendo prevalecer-se das obrigações por estes assumidas, um incumprimento que já considerou (em definitivo) verificar-se.” B) No entanto, como resulta provado nos autos, não se verifica existência de mora do credor, ora Recorrente e, consequentemente, inexiste preenchimento abusivo da livrança assinada pela Recorrida, enquanto garante de um contrato de mútuo. C) Entendeu o douto Tribunal a quo na decisão recorrida, aditar aos factos dados como provados que “O incumprimento do contrato de abertura de crédito em conta corrente, n.º ...06, celebrado em 01/07/2005, foi comunicado à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal pela instituição bancária nele outorgante, nessa comunicação tendo sido mencionada a data de 2009/10/01 como de entrada em incumprimento e pelo montante total em divida de € 24.544,85, nessa mesma data.” D) Com este aditamento, pretende-se sustentar a mora do credor no preenchimento da livrança e com isso a alegada violação do pacto de preenchimento da mesma. E) Contudo, da matéria dada como provada nos autos, concluiu e, bem, a sentença do Tribunal de primeira instância que a livrança dada à execução vale de per si, como título executivo válido, e que a mesma foi apresentada a pagamento por parte do Exequente às Executadas, sendo suficiente para basear uma execução para pagamento de quantia certa. F) Mais sustenta que, o preenchimento foi feito de acordo com o pacto de preenchimento e pelo valor em divida à data. G) Com efeito, salvo devido respeito, o facto de se aditar à matéria provada a menção da comunicação da divida à Central de Responsabilidades ao Banco de Portugal, tem como escopo unicamente a tentativa de justificar um alegado preenchimento abusivo da livrança dada à execução, por mora do Credor, ora Recorrente. H) Contudo, a verdade é que, tal facto por si só não é fundamento para justificar esse mesmo preenchimento abusivo, pois como resultou provado, a aqui Recorrida bem sabia que o Recorrente o poderia fazer nos termos do contrato que serve de base à livrança, o qual assinou e cuja assinatura não impugnou. I) Desta forma, a menção pelo douto acórdão recorrido ao Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, instituído pelo DL 446/85 de 25 de Outubro, e a alegação e especulação de que a devedora e as avalistas não foram autoras materiais do contrato celebrado, não tendo tido poder negocial na modificação das cláusulas nele incluídas, não tem por base qualquer prova produzida nesse sentido, pelo contrário, não resultou nem dos factos provados ou por provar qualquer menção à alegada violação do regime jurídico invocado ou à falta de poder negocial da Embargante/Recorrida. J) Assim, a invocação do aludido regime para justificar uma alegada violação do princípio da boa fé do Recorrente, na negociação do contrato e concretamente na inclusão da cláusula 7.ª do contrato que serve de base à livrança, carece de qualquer suporte fáctico e, por conseguinte, as conclusões de direito que daí se pretendem extrair também. K) Resultou provado nos autos que a Recorrida, leu e assinou o contrato, tendo aceite o seu conteúdo, do qual consta a cláusula 7.ª que autoriza o Banco a preencher a livrança na data do seu vencimento e pelo valor em divida à data. L) Mais consta da aludida cláusula que o Garante, a aqui Recorrida, aceitou o acordo de preenchimento estabelecido e avaliza a livrança nos precisos termos. M) Assim, não tendo a Recorrida dado cumprimento ao ónus de impugnação constante do artigo 640.º do CPC, e não tendo assim impugnado a matéria de facto dada como provada, não pode a mesma pretender ver agora reconhecida a violação do princípio da boa fé pelo teor da cláusula 7.ª do contrato que considera, sem qualquer suporte probatório, violar o disposto no regime das cláusulas contratuais gerais. N) A verdade é que o que resultou provado foi que a Recorrida leu e assinou o contrato, tendo com ele se conformado e aceite as suas disposições. O) Por outro lado, dispõe o artigo 813.º do Código Civil que “O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.” P) Contudo, uma correcta interpretação e análise da norma supra citada e da jurisprudência que ao caso se aplica, não nos permite identificar qualquer acto ou omissão do Recorrente que tenha impedido a devedora, de cumprir a sua obrigação. Q) Tanto quanto resulta dos autos, nunca o Recorrente/Credor impediu a Recorrida de proceder ao pagamento da quantia referente à liquidação das prestações devidas e, que como resultou provado nos autos, esta bem sabia serem devidas. R) Ora, a norma constante do artigo 813.º do CC estabelece dois requisitos para a mora do credor: a recusa da prestação ou não realização da colaboração necessária para que o devedor possa cumprir e a ausência de motivo justificado para essa recusa ou falta de colaboração. S) A este propósito é vasta a jurisprudência que se refere à situação de mora do credor, sendo que em suma aponta no sentido de que para haver mora do credor não basta qualquer recusa de colaboração deste, quando exigível, para que o devedor execute proficientemente a sua prestação, sendo antes de exigir que essa recusa se relacione com actos de cooperação essenciais, omitidos ou recusados pelo credor que impeçam a realização da prestação pelo devedor. T) Deixando ainda expresso que compete aos Embargantes fazer prova da omissão ou recusa pelo Banco de um acto essencial de cooperação, sem motivo justificado, que tivesse a virtualidade de impedir a realização da prestação pelo devedor. U) Com efeito, no caso concreto, não resultou provado, que o Recorrente não tenha praticado os actos necessários ao cumprimento da obrigação. V) Da matéria de facto dada como provada, a qual não foi impugnada, não resulta qualquer acto material ou jurídico positivo ou negativo, da responsabilidade do credor que, à luz de qualquer cláusula contratual ou da lei, tenha impossibilitado ou dificultado, sem motivo justificado o não cumprimento da obrigação por parte da Recorrida e que se possa incluir na zona de actuação da mora do credor. W) De acordo com a jurisprudência que se sufraga é requisito da mora que os actos praticados pelo credor, ou voluntariamente omitidos sejam actos de cooperação essenciais, as exigências da boa-fé são recíprocas: os direitos subjectivos, por definição, são direitos a prestações e implicitam relações intersubjectivas de cooperação. X) Não é qualquer atitude negocial que poderá ser enquadrada como uma situação de abuso de direito e a construção do raciocínio silogístico terá de ser realizada a partir do acervo factual apurado, o qual se mostra perfeitamente consolidado, por não ter existido impugnação da matéria de facto apurada. Y) Nos presentes autos, nada foi alegado ou provado não existindo qualquer mora do credor, ora Recorrente, pois este no exercício do seu direito sempre procedeu em respeito pelos seus deveres de cooperação e de boa-fé – artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil. Z) Ora, é justo assumir até porque resulta provado que a Recorrida sabia que não estavam a ser pagas as prestações acordadas e que seria do seu interesse acordar numa forma de pagamento das mesmas, o que contudo optou por não fazer, nem quando interpelada para o efeito, nem mesmo após a denúncia do contrato. AA) Mais se diga que, tal como é jurisprudência unânime, o ónus da prova da eventual mora do credor compete aos embargantes – por força do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do CC. BB) Não obstante, o Tribunal recorrido, decidiu que a Recorrida não tem acesso ao Banco nem ao Departamento de Recuperação de Crédito, nem ao Departamento de Contencioso, para conseguir perceber qual foi a razão da demora de 10 anos em que o Banco incorreu, justificando assim a exclusão do ónus de provar o preenchimento abusivo da livrança. CC) Acontece que, este é um pressuposto basilar deste instituto, confirmado pelo próprio Tribunal, e é afastado de forma simples e célere, ferindo de forma grosseira o disposto no artigo 342.º do Código Civil e, consequentemente, o direito do Recorrente, pois conforme tem sido uniformemente decidido pela jurisprudência, o preenchimento abusivo, i. e., a inobservância do acordo de preenchimento tem de haver-se como facto impeditivo do direito invocado pelo exequente. DD) Prova essa que, in casu, não se mostra efectuada. EE) Sem a prova, que competia à Recorrida apresentar, forçoso é concluir que a demonstração dos factos, alegados pela mesma, não ocorreu. FF) Resulta, assim, à saciedade que não se verificou qualquer mora do Recorrente, o que também não ficou provado nos autos. GG) No entanto, ainda que assim não fosse, o que não se admite mas se aventa por mera cautela de patrocínio, sempre se diria que a mora do credor, ao contrário dos casos de impossibilidade da prestação por causa imputável ao credor, não desonera o devedor da sua obrigação, dela resultando tão só uma atenuação da sua responsabilidade, nos termos do disposto no artigo 814.º do Código Civil. HH) Fundamenta o acórdão recorrido que, os termos de invocação do abuso de preenchimento da livrança remetem para o próprio conteúdo da cláusula 7.ª do contrato que serve de base à livrança. II) No entanto, percebemos pelo acordado que, a livrança pode ser preenchida aquando do vencimento de uma ou mais prestações. JJ) Não tendo sido essa a interpretação do acórdão recorrido, sendo que o mesmo chega a conclusões fundadas não pelas regras legais ou contratuais e fundamentais da ordem jurídica, mas antes por subsunções de factos que não foram alegados, não existem, nem estão presentes no contrato assinado. KK) Como se disse, o Tribunal de primeira instância com mérito, decidiu que da leitura da cláusula 7.ª, resulta que a Embargada aceitou o preenchimento da livrança nos termos descritos. LL) Fruto da matéria de facto dada como provada e de todo o contexto deste processo, é esta a conclusão correcta na análise da aceitação dos termos do contrato de mútuo, i. e., a Recorrida tinha plena consciência do contrato que assinou e das condições nele presentes. MM) Sendo que, com o devido respeito, apesar da Recorrida vir agora afirmar, por conveniente que lhe seja, que na altura não era isso que queria dizer – alegando que a intenção com que assinou o contrato era que mal se registasse mora no cumprimento das prestações a livrança fosse preenchida – a verdade é que aceitou o preenchimento da mesma nos termos da cláusula 7.ª do contrato. NN) E, do teor da aludida cláusula não resulta o pretendido pela Recorrida. Resulta, sim, que não há qualquer limitação temporal ao preenchimento da livrança, remetendo para a situação do Recorrente se encontrar autorizado a preenchê-la após vencimento. OO) Acresce que, a lei não fixa prazo para o preenchimento da livrança. Isto não significa que a livrança não possa ser emitida em branco, ou não possa ser endossada, mas a obrigação cambiária que ela incorpora só poderá vir a tornar-se efetiva se no momento do seu vencimento for realmente preenchida. Portanto, na sua essência, a livrança em branco é um título de crédito que apenas contém a assinatura do seu subscritor e que apesar de ser válida, por revelar a intenção de contrair uma obrigação cambiária, não é ainda eficaz. Todavia, reitera-se, que o título deve ser entregue pelo subscritor ao credor, dando-lhe autorização para a preencher de acordo com o que foi estabelecido entre as partes, como sucedeu. PP) A legitimidade para completar a livrança em branco é diretamente conferida pelo subscritor a qualquer portador sucessivo, sob pena de não ter qualquer valor patrimonial. QQ) Assim, antes de tal preenchimento o emitente não subscreve uma obrigação cambiária, apenas se encontra sujeito ao exercício de um direito potestativo do portador que se traduz no preenchimento da letra. O que implica que a eficácia da obrigação cambiária depende de o portador apresentar a livrança preenchida - no momento da sua apresentação a pagamento – de harmonia com o pacto acordado. Desta forma, o portador deve cingir-se ao conteúdo do pacto de preenchimento. RR) Por outro lado e, no que concerne ao sentido dado pelo douto Tribunal a quo à cláusula sub judice, mormente de que pelo simples decurso do tempo o Recorrente já havia considerado incumprido em definitivo o contrato, sem que nada haja sido alegado ou provado nesse sentido, também não configura qualquer preenchimento abusivo, como se concluiu. SS) A esse propósito, veja-se o sumário do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no processo n.º 4410/16.3T8VNF-B.G1, datado de 16 Janeiro 2020. TT) No douto acórdão mencionado é feita ainda referência à resenha jurisprudencial colhida no acórdão do STJ de 24/10/2019, processo n.º 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2, in www.dgsi.pt, que nos dá conta que este tem sido o entendimento que tem vindo a ser sufragado na vasta jurisprudência do STJ, concretamente nos acórdãos de 01-07-2003 - Revista n.º 1894/03 - 6.ª Secção – Relator Fernandes Magalhães; 08-11-2005 - Revista n.º 2699/05 - 6.ª Secção - Relator Sousa Leite; de 19-01-2012 - Revista n.º 35671/06.5YYLSB-B.L1.S1 - 7.ª Secção – Relator Granja da Fonseca; 09-02-2012 - Revista n.º 27951/06.6YYLSB-A.L1.S1 - 1.ª Secção Relator Martins de Sousa; 12-06-2017 - Revista n.º 1468/11.5TBALQ-A.L1.S1 - 1.ª Secção – Relator Hélder Roque; de 19-10-2017 - Revista n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1 - 2.ª Secção – Relatora Rosa Tching; de 04-07-2019 – Revista nº 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1 Relatora Maria da Graça Trigo, os quais se sufragam e que em suma perfilham que o decurso do prazo entre o incumprimento e vencimento da livrança não configura por si só qualquer situação de abuso de direito, sendo que no caso dos autos, nenhuma prova foi feita nesse sentido, tendo tão só sido feitas considerações abstractas e genéricas, insuficientes, salvo devido respeito, para legitimar a revogação da douta sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância. UU) É, assim, uniforme na jurisprudência do STJ, como supra se deixou dito, que o preenchimento da livrança deve ser realizado pelo exequente, de acordo com o pacto de preenchimento e, em caso de preenchimento abusivo, deve o executado fazer prova dos factos que o justifiquem. VV) Nenhuma prova tendo sido produzida em contrário, a Recorrida e o acórdão de que ora se recorre, limitam-se a remeter para o facto do incumprimento ser datado pelo menos de 2009, data em que foi efectuado o reporte ao Banco de Portugal. WW) Acontece que, não se pode confundir tal situação com uma situação de incumprimento definitivo. XX) Foi contratualizado que o preenchimento da livrança pode ser realizado “posterior ao vencimento de qualquer obrigação ou obrigações que resultem para o Cliente da celebração do presente contrato”. YY) De facto, apesar do Tribunal a quo pretender dar algum sentido à pretensão da Recorrida, não se encontra contratualizado que “mal incumprido o contrato, logo fosse preenchida a livrança”. ZZ) Para além do supra referido, um pormenor que nos parece gritante é a aparente confusão entre a mora do devedor e o incumprimento definitivo. AAA) Nos termos do n.º 2 do art.º 804º do CC, o devedor encontra-se em mora quando “por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido”. BBB) E, podemos falar em incumprimento definitivo quando “o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação” – art.º 808º, n.º 1 do CC. CCC) Esta última possibilidade está, de resto, consagrada no contrato assinado pelas partes, nomeadamente na aliena a) do n.º 1 da clausula 10ª. DDD) Refere o Tribunal a quo que já podia o Recorrente ter declarado o incumprimento definitivo da executada. EEE) No entanto, cumpre deixar expresso que, o reporte da mora do devedor à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal é uma obrigação das Instituições de Crédito, a qual o ora Recorrente não é excepção. FFF) Esta informação prestada pela Instituição de Crédito não se assume, portanto, como a confirmação de que o contrato se encontra em incumprimento definitivo ou de que o mesmo haja sido resolvido consubstanciando, apenas, um dever desta instituição para com o Banco de Portugal, aquando da mora de um devedor. GGG) De resto, foi assumido e constantemente referido pelo Tribunal a quo que a Recorrente sabia que o devedor não ia pagar qualquer outra prestação, quando dos autos nenhuma prova foi produzida nesse sentido. HHH) Outrossim, ficou provado que a denúncia do contrato foi rececionada pela Recorrida a 15/11/2019 e, fruto do não pagamento da divida vencida e aposta na livrança, a Recorrida bem sabia que seria feita a cobrança coerciva da mesma. III) Em virtude de todo o supra exposto forçoso é concluir que o Recorrente nunca impediu a Recorrida de fazer o pagamento das prestações acordadas ou da divida, nem nunca omitiu informação que a impedisse de o fazer, não incorrendo em qualquer mora. JJJ) Tendo, aliás, interpelado a Recorrida, para o derradeiro pagamento, o que refuta a alegação de que o Recorrente “sabia” que a devedora não ia cumprir e que estendeu o hiato temporal de preenchimento da letra para benefício próprio. KKK) Pelo que forçoso é concluir que, face aos factos provados constantes dos autos o Tribunal a quo procedeu a uma errónea aplicação e interpretação do direito ao caso em concreto. Nestes termos e nos demais de Direito, com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso de revista e consequentemente deverá ser revogado o douto acórdão agora recorrido, substituindo-se por outro que julgue os embargos de executado apresentados improcedentes para todos os efeitos legais como é de Direito e Justiça.»
5. A executada-embargante não apresentou contra-alegações.
Cabe apreciar.
II. FUNDAMENTOS 1. Admissibilidade e objeto do recurso O acórdão recorrido foi proferido nos autos de oposição deduzida contra a execução, pelo que a hipótese de revista cabe nas exceções previstas no art.854º do CPC. Tendo esse acórdão revogado a sentença em sentido desfavorável ao agora recorrente, a revista é admissível nos termos do art.671º, n.1 do CPC. Sendo o objeto da revista delimitado pelas conclusões das alegações de recurso (nos termos do art.635º, n.4 do CPC), o objeto da presente revista é o de saber se a livrança que serviu de título executivo à execução foi preenchida contra o pacto de preenchimento, conduzindo a um preenchimento abusivo, com a consequente extinção da execução.
2. A factualidade assente A primeira instância deu como provada a seguinte factualidade, nos termos que integralmente se transcrevem: «1. Os créditos do Banco Espírito Santo (BES), mormente os créditos como os dos presentes autos, foram transferidos para o Novo Banco. 2. O aqui Embargado foi constituído por deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal tomada em reunião extraordinária de 3 de Agosto de 2014, nos termos do nº 5 do artigo 145º-G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo D.L. n.º 298/92, de 31 de Dezembro, como uma nova sociedade, habilitada a desenvolver a actividade bancária, completamente autónoma e independente do Banco Espírito Santo, S.A. (doravante BES). 3. Assim, ao abrigo do disposto no n.º 9 do artigo 145º-H do RGICSF, o NOVO BANCO, S.A. deve ser considerado, para todos os efeitos legais e contratuais, como sucessor nos direitos e obrigações transferidos do Banco Espírito Santo, S.A., sendo, aliás, o seu objecto social consistente na “Administração dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos do Banco Espírito Santo, SA, para o Novo Banco, SA, e o desenvolvimento das actividades transferidas, tendo em vista as finalidades enunciadas no artigo 145º-A do RGICSF, e com o objectivo de permitir uma posterior alienação dos referidos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão para outra ou outras instituições de crédito”, tal como consta da certidão permanente com o código de acesso n.º ...74. 4. Por outro lado, nos termos da deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal os créditos peticionados nos presentes autos, incluem-se entre os activos que foram transferidos para o NOVO BANCO, S.A. que foi, por isso, investido na posição de credor dos créditos anteriormente detidos pelo Banco Espírito Santo, S.A., por força do disposto no Regime Legal das Instituições de Créditos e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto- Lei 298/92, de 31 de Dezembro, estando assim perante uma transferência de direitos (no caso dos autos de direitos creditícios), da instituição de crédito originária (o Banco Espírito Santo, S.A.) para o banco de transição (o NOVO BANCO, S.A.), transferência essa que opera “ex lege”. 5. Por outro lado, como decorre das referidas Deliberações, não foram transferidos para o Novo Banco, S.A. toda a actividade, activos, passivos, responsabilidades e contingências do BES. 6. Na verdade, o que foi transferido do BES para o Novo Banco, S.A., foi um conjunto de activos, passivos e elementos extrapatrimoniais tão-somente. 7. O âmbito dessa transferência foi, nos termos do Regime Legal das Instituições de Créditos e Sociedades Financeiras, definido pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal, através das respectivas deliberações de 3 de Agosto e de 11 de Agosto de 2014, conforme o doc. ... e o doc. ... que se juntam. 8. Nos termos destas Deliberações, os passivos e os activos do BES foram transferidos para o Novo Banco, S.A., com excepção daqueles que são elencados no Anexo 2 à deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014, de acordo com as alterações no mesmo introduzidas e do texto consolidado que foi dado àquele anexo pela deliberação do mesmo Conselho de 11 de Agosto de 2014. 9. A mencionada transferência em causa teve como objecto activos e passivos, devidamente constituídos e consolidados, até porque nos termos daquelas deliberações, os mesmos foram transferidos pelo respectivo valor contabilístico (vide n.º 5 do texto consolidado do Anexo 2 à deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014, na redacção que lhe foi dada pela deliberação e 11 de Agosto de 2014 do mesmo Conselho de Administração), sendo que só têm valor contabilístico os passivos e activos devidamente constituídos e consolidados. 10. Pelo que, os que não constam da contabilidade, por não disporem do referido valor contabilístico, não foram objecto de transferência. 11. As deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal exceptuaram de forma clara do âmbito da transferência do BES para o Novo Banco, S.A., “quaisquer responsabilidades ou contingências do BES, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais” (vide subalínea (v) da alínea (b) do Anexo 2 à deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014, na redacção que lhe foi dada pela deliberação do mesmo Conselho de 11 de Agosto de 2014). 12. Ora, atendendo aos textos daquelas duas deliberações, o Banco de Portugal determinou, no uso dos poderes que o Regime Legal das Instituições de Créditos e Sociedades Financeiras lhe confere, que as responsabilidades do BES (que não constituam passivos consolidados) e quaisquer contingências do BES (que não constituam passivos consolidados) não foram transferidas para o Novo Banco, S.A., ora Embargado. 13. Conclui-se, portanto, que o crédito peticionado nos autos se transmitiu para o Novo Banco, nos termos das deliberações e, ainda, por não terem sido excluído pela Deliberação (“Perímetro”) do Banco de Portugal, de 29 de dezembro de 2015 relativa à “Clarificação e retransmissão de responsabilidades e contingências definidas como passivos excluídos da responsabilidade do Novo Banco, S.A, que também se junta como doc. .... 14. No exercício da sua atividade, e na sequência do contrato de abertura de crédito em conta corrente, n.º ...06, celebrado em 01/07/2005, cfr. doc. ..., que ora se junta, o Exequente é dono e legítimo portador de uma livrança subscrita pela sociedade P..., Lda., que se encontra dissolvida e liquidada, e avalizada por BB e AA, estas duas últimas ora Executadas, no valor de € 57.005,29 (cinquenta e sete mil, cinco euros e vinte e nove cêntimos), emitida em 01/07/2005 e com vencimento em 06/12/2019, cfr. livrança que se junta como doc. ..., que constitui título executivo e que se dá por integralmente reproduzida, para todos os efeitos legais. 15. O Exequente é dono e legítimo portador de uma livrança subscrita pela sociedade P..., Lda., que se encontra dissolvida e liquidada, e avalizada por BB e AA, estas duas últimas ora Executadas, no valor de € 57.005,29 (cinquenta e sete mil, cinco euros e vinte e nove cêntimos), emitida em 01/07/2005 e com vencimento em 06/12/2019, cfr. livrança que se junta como doc. ..., que constitui título executivo e que se dá por integralmente reproduzida, para todos os efeitos legais. 16. Apresentada a pagamento, a referida livrança não foi paga na data do vencimento (06/12/2019), nem posteriormente, pelas Executadas, apesar de instadas a fazê-lo, cfr. doc. ..., que ora se junta. 17. Assim, à quantia de € 57.005,29 (cinquenta e sete mil, cinco euros e vinte e nove cêntimos), acrescem os juros de mora calculados à taxa de 4% desde a data do vencimento (06/12/2019), e que na presente data (19/12/2019) perfazem o montante de € 81,21 (oitenta e um euros e vinte e um cêntimos). 18. Face ao exposto, o débito global das Executadas perante o Exequente ascende à presente data (19/12/2019) ao valor de € 57.086,50 (cinquenta e sete mil, oitenta e seis euros e cinquenta cêntimos), sobre o qual acrescem os juros de mora, calculados à taxa de juro de 4%, sobre a quantia de € 57.005,29, até efectivo e integral pagamento. 19. Acresce que, como garantia adicional do contrato n.º ...06, foi constituída a favor da Exequente uma garantia real pignoratícia sobre 544 Unidades de Participação do fundo de investimento CAPITALIZAÇÃO, com valorização, há data, de € 4.983,26, associado à conta de depósitos à ordem n.º ...04, da titularidade das Executadas, cfr. doc. .... 20. A Embargante leu e assinou o contrato, tendo aceite o seu conteúdo, do qual consta, na cláusula 7.ª: “Para garantia do bom pagamento de todas as responsabilidades que advêm para o Cliente do não cumprimento pontual e integral de qualquer obrigação para ele resultante do presente contrato, nomeadamente, e entre outras, o reembolso de capital, o pagamento de juros remuneratórios e moratórios, despesas judiciais ou extrajudiciais, honorários de advogado e custas, bem como saldos devedores de quaisquer contas bancárias de que o Cliente seja titular ou contitular que tenham como origem obrigações resultantes para este do presente contrato, o Cliente entregou ao BES uma livrança devidamente subscrita e avalizada pelos seus Garante(s) BB e AA, podendo o BES acioná-la ou descontá-la caso se verifique o incumprimento das obrigações assumidas. - O BES fica autorizado a preencher a referida livrança nos seguintes termos: a) data de vencimento – posterior ao vencimento de qualquer obrigação ou obrigações que resultem para o Cliente da celebração do presente contrato; b) valor – qualquer quantia devida pelo Cliente ao abrigo do presente contrato. O Garante aceita o acordo de preenchimento acima estabelecido e avaliza a livrança nos seus precisos termos.” 21. Ora, da leitura da cláusula acima transcrita, resulta que a Embargada aceitou o preenchimento da livrança nos termos descritos. 22. O contrato que serve de base à livrança em execução apenas foi denunciado em 15.11.2019, data em que foram expedidas as missivas aos Devedores, entre as quais à aqui Embargante e por esta aceites. 23. E, a livrança foi preenchida a 06.12.2019, isto é, 15 dias depois da resolução do contrato. 24. A Embargante tinha conhecimento de que o contrato que subjaz a livrança se encontrava em incumprimento, que o mesmo foi denunciado e que a livrança seria preenchida pelo valor que efectivamente foi, uma vez que recepcionou todas as missivas enviadas pelo Embargante, mormente a missiva datada de 15.11.2019. 25. Assim, apenas atendendo a que o incumprimento persistiu, é que o Embargado denunciou o contrato, em 15 de novembro de 2019, tendo nessa sequência comunicado que a livrança seria preenchida, o valor que seria aposto na mesma e a forma e local para a Embargante efectuar o pagamento.»
A segunda instância deu ainda como provada a seguinte factualidade: «O incumprimento do contrato de abertura de crédito em conta corrente, nº ...06, celebrado em 01/07/2005, foi comunicado à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal pela instituição bancária nele outorgante, nessa comunicação tendo sido mencionada a data de 2009-10-01 como de entrada em incumprimento e o montante total em dívida de €24.544.85, nessa mesma data.»
* 3. O direito aplicável 3.1. Está em causa a questão de saber se o preenchimento da livrança pelo Banco exequente foi, ou não, um preenchimento abusivo. Consequentemente, trata-se de concluir se o acórdão recorrido decidiu corretamente quando considerou que a livrança, apresentada como título executivo, tinha sido abusivamente preenchida, tendo concluído que a execução devia ser extinta. O acórdão recorrido, ao revogar a decisão da primeira instância, entendeu que a livrança que foi apresentada como título executivo foi preenchida contra o pacto de preenchimento, conduzindo a um preenchimento abusivo, dado que o credor apenas preencheu a livrança cerca de 10 anos depois de a devedora ter cessado os pagamentos respeitantes ao contrato subjacente à relação cambiária.
3.2. Como consta da factualidade assente, na sequência do contrato de abertura de crédito em conta corrente, celebrado em 01.07.2005, o Banco exequente tornou-se portador de uma livrança avalizada pela executada, podendo, de acordo com a cláusula 7º do acordo celebrado entre as partes, “acioná-la ou descontá-la caso se verifique o incumprimento das obrigações assumidas”. Nos termos dessa cláusula, foi convencionado que: “O BES fica autorizado a preencher a referida livrança nos seguintes termos: a) data de vencimento – posterior ao vencimento de qualquer obrigação ou obrigações que resultem para o Cliente da celebração do presente contrato; b) valor – qualquer quantia devida pelo Cliente ao abrigo do presente contrato. O Garante aceita o acordo de preenchimento acima estabelecido e avaliza a livrança nos seus precisos termos.” O credor exequente invocou a resolução do contrato subjacente à livrança em 15.11.2019, através de cartas que enviou aos devedores, e preencheu a livrança em 06.12.2019, ou seja, 15 dias depois da resolução do contrato. Como decorre da factualidade aditada pela segunda instância, o Banco credor havia comunicado à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal que o contrato garantido por aquela livrança se encontrava em incumprimento em 01.10.2009, sendo, nessa data, o montante total em dívida de €24.544.85. Constata-se, assim, que a executada avalizou uma livrança em branco, ou seja, da qual não constava a data do vencimento nem a quantia exata pela qual poderia vir a ser responsável. No pacto de preenchimento, assinado pelas partes, foi conferido ao credor o poder de inscrever como data de vencimento dessa livrança uma qualquer data, desde que “posterior ao vencimento de qualquer obrigação ou obrigações que resultem para o Cliente da celebração do presente contrato”. Concluiu-se, portanto, que não foi convencionado um específico modo de incumprimento das obrigações, ou seja, não se convencionou se o incumprimento devia ser definitivo ou se bastaria que a devedora incorresse em mora para que o credor pudesse preencher a livrança. E as partes também não convencionaram um prazo máximo, a partir da entrada em incumprimento, para que o credor procedesse a esse preenchimento, marcando a data do vencimento das obrigações. A ausência de uma configuração objetivamente definida daquele pacto de preenchimento confere-lhe um significativo grau de indefinição, gerador de dúvidas interpretativas, à semelhança do que se constata, com alguma frequência, noutros casos que têm sido decididos pelos tribunais. Neste tipo de hipóteses, o devedor cambiário fica exposto a um certo nível de insegurança relativamente ao momento em que o pagamento lhe será exigido e ao montante que lhe poderá ser exigido[1]. Consequências estas que serão tanto mais surpreendentes para o devedor quanto mais se arrastar a injustificada ausência de ação do credor, ou seja, quando as partes não iniciam negociações para procurarem um acordo de pagamento e evitar uma ação executiva. Para atenuar tais consequências, terá o devedor o ónus de alegar e demonstrar que aquele tipo de convenção de preenchimento não exprime, em rigor, a sua vontade, por não ter tido o poder de negociar o conteúdo do contrato, como acontece, por exemplo, quando o credor predisponente se socorre de cláusulas contratuais gerais. Por outro lado, poderá ainda o devedor demonstrar a verificação de circunstâncias que habilitem o julgador a concluir pela existência de um preenchimento abusivo[2]. 3.3. O artigo 70º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças [LULL], aplicável às livranças por força do artigo 77º, determina que as ações contra o aceitante da letra prescrevem em três anos a contar do seu vencimento. Todavia, a lei não estabelece um prazo máximo entre o momento em que o devedor entra em incumprimento e o momento em que se deve verificar o vencimento da letra ou da livrança quando tais títulos tenham sido entregues em branco. Tal prazo deverá ser estabelecido pelo pacto de preenchimento, podendo definir-se que o vencimento se verifica apenas com o incumprimento definitivo e resolução do contrato subjacente à obrigação cambiária ou, pelo contrário, que a simples entrada em mora no cumprimento da obrigação garantida habilita o credor a preencher o título e a acionar os inerentes mecanismos de tutela. No caso dos presentes autos, como supra referido, o pacto de preenchimento não estabeleceu, de modo objetivamente inequívoco, qual das modalidades de incumprimento devia legitimar o credor a preencher a livrança e a exigir o seu pagamento. E a devedora executada também não demonstrou que o vencimento da livrança se deveria verificar imediatamente com a entrada em mora. Caso tal circunstância tivesse sido demonstrada, ter-se-ia concluído que o vencimento da livrança se teria verificado em 2009 (e não em 2019, quando o credor resolveu o contrato), o que conduziria à prescrição da ação (nos termos do art.70º da LULL) Deste modo, será de concluir que o credor pode imputar o vencimento da livrança à invocação do incumprimento definitivo, que só comunicou à devedora executada em 2019. O facto de o credor ter comunicado à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal, em 2009, que a totalidade da dívida se encontrava em incumprimento (como consta da factualidade aditada pela segunda instância) não poderá ser visto, no plano da relação fundamental, como uma declaração na qual assente a conversão da mora em incumprimento definitivo, pois essa comunicação tem de ser dirigida à contraparte (como decorre da regra inscrita no art.808º do CC). Se tal tipo de comunicação tivesse sido também dirigida à agora executada em 2009, e a livrança só tivesse sido preenchida em 2019, o caso concreto teria, provavelmente, outros contornos normativos[3]. Neste quadro, não está, portanto, em causa uma questão de prescrição. Aliás isso mesmo é afirmado no acórdão recorrido, quando na sua fundamentação se diz: «A questão da prescrição foi deixada cair no recurso, de resto bem, porque, estando provado que a carta de denúncia do contrato base é de 2019, nenhum prazo prescricional teria transcorrido.»
3.4. Concluindo-se que o credor não era obrigado a preencher a livrança, invocando o inerente vencimento, antes da verificação do incumprimento definitivo das obrigações garantidas, emerge a questão de saber se esse momento se podia ter verificado em 2019 (quando o credor comunicou à devedora a resolução do contrato subjacente à relação cambiária) ou se devia ter acontecido em momento anterior, nomeadamente em 2009, quando o credor comunicou à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal a existência do incumprimento. Entendeu-se no acórdão recorrido que o credor, ao ter esperado mais de 10 anos entre o momento em que constatou que o incumprimento era definitivo e o momento em que fez valer o vencimento da letra, tendo duplicado o valor em débito, procedeu a um preenchimento abusivo, violando o princípio da boa-fé. Colhe-se no acórdão recorrido a seguinte fundamentação: «Este princípio de boa-fé tem de aplicar-se – porque desde logo em sede de negociação – aos termos de interpretação da cláusula 7ª do contrato de abertura de crédito, concretamente, aos termos do pacto de preenchimento celebrado entre as partes. Ora, nela se estabeleceu que “2 O BES fica autorizado a preencher a referida livrança nos seguintes termos: a) data de vencimento – posterior ao vencimento de qualquer obrigação ou obrigações que resultem para o Cliente da celebração do presente contrato”. Repare-se bem, para efeitos de interpretação da cláusula 7ª desde logo a partir do seu elemento literal, que “data de vencimento - posterior ao vencimento de qualquer obrigação” não é o mesmo que “data de vencimento posterior à denúncia do contrato, à resolução do contrato ou simplesmente ao incumprimento definitivo do contrato”. Quando nos perguntamos se “posterior ao vencimento de qualquer obrigação ou obrigações que resultem para o Cliente da celebração do presente contrato” se confunde, temporalmente, com a data em que, não paga uma prestação se vencem as demais, ou ainda mais restritamente com a data em que o credor, perante a mora, perde interesse na prestação e declara o incumprimento definitivo do contrato ao devedor, após concessão de prazo razoável, na realidade, quando nos perguntamos qual é o significado de posterior ao vencimento de qualquer obrigação, temos não só de recorrer ao disposto no artigo 236º do Código Civil e ao artigo 805º nº 2 al. a) do Código Civil com referência ao prazo certo de pagamento de cada prestação, bem como à disciplina do artigo 781º do mesmo Código segundo o qual a falta de realização de uma prestação implica o vencimento de todas. Percebe-se, segundo uma lógica comercial, bancária, de financiamento e garantia de retorno da operação lucrativa de financiamento, que não é qualquer incumprimento (a mora é uma das formas que o incumprimento assume, visto o artigo 762º nº 1 do Código Civil) – por exemplo, o atraso de um mês numa determinada prestação, o atraso de seis meses no pagamento das prestações – que deve levar o Banco a atalhar com o remédio que o contrato lhe deu, dando-o por findo, por definitivamente incumprido e autorizando-se ao preenchimento e execução da livrança associada. Esse dar por findo tem como pressuposto fáctico o incumprimento, duma tal monta, sobre a qual a instituição bancária ou financeira pode, legitimamente, tirar a conclusão de que o devedor não vai continuar a pagar, não vai continuar a cumprir, ainda que com reformulação dos termos do pagamento, que o reembolso do crédito, de modo voluntário, pelo próprio devedor, está perdido e que é preciso acionar a execução forçada dele. Porém, este juízo e a oportunidade da sua formulação, não podem quedar-se no arbítrio temporal, isto é, eles estão sujeitos à possibilidade duma verificação objectiva da sua bondade, isto é, do cumprimento da boa-fé nesse exercício. E não só, estão ainda sujeitos a uma verificação da utilidade económica ou da desconformidade do exercício ao fim social e económico do direito. Podemos encontrar apoio para esta nossa argumentação no artigo 813º do Código Civil: “O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, (…) não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação”. Estes actos são aqueles que antecedem a própria possibilidade do devedor cumprir, e que estejam a cargo do credor, mas os actos de que depende em última análise o cumprimento por via coactiva podem ser-lhes equiparados. […] Está isto também ligado, ou é uma outra forma de dizer, que nas relações comerciais, as posições jurídicas assumidas não representam poderes absolutos, mas relativos. O que é ainda outra forma de explicar que nenhum dos direitos pode deixar de ter uma justificação económica, a qual se encontra – e é sempre balizada – por um determinado, e aceite pela ordem jurídica, equilíbrio entre direitos e deveres recíprocos. É aqui, no respeito mínimo pelo sacrifício alheio que é o contrapeso do nosso direito ou do nosso benefício, que encontramos o dever do credor agir para, na constatação da impossibilidade de obter o pagamento voluntário do devedor, na constatação dum incumprimento definitivo, obter a realização coactiva da prestação. Ora, obtida objectivamente essa constatação de incumprimento definitivo, a mesma justificação económica do direito vem a exigir ao credor que, em termos latos, declare o incumprimento definitivo ao devedor. Baixando ao caso dos autos, as “missivas de denúncia” foram expedidas em 15.11.2019, e a entrada em incumprimento, não pelo valor de meia dúzia de prestações mas já pelo valor total não pago (€24.544,85 – e recorde-se que o contrato é de 2005) foi comunicada ao Banco de Portugal, pelo BES, responsável pela informação prestada, em 1.10.2009, ou seja, pelo menos está comprovado que o credor demorou 10 anos, um mês e cinco dias, a comunicar ao devedor o incumprimento que já conhecia, já havia assumido ou já tinha a possibilidade de objectivamente assumir como incumprimento e como incumprimento definitivo, atento o montante, e como tal já o havia comunicado à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal. Este hiato, cuja razão pode ser pura inércia, pura incompetência, acumulação de serviço, ou outra, que pode incluir deliberado aproveitamento da inércia para obter os benefícios económicos que seriam obtidos com o cumprimento regular do contrato de base, a saber os juros remuneratórios, quando se sabe que o contrato não está a ser cumprido e não mais será cumprido, não tem qualquer justificação económica, objectivamente, até por isto mesmo que acabamos de dizer, o que é patente na mais que duplicação do valor do incumprimento – €24.544.85 para €57.086,50. A pergunta é mesmo esta: - qual foi a contribuição económica que o credor, desde que percebeu que o devedor não ia conseguir cumprir, realizou para com este, que deva ser remunerada por mais do dobro do incumprimento? Porque é que não são suficientes os juros moratórios sobre o valor do incumprimento em dívida? Devemos outrossim exigir ao executado embargante que alegue e prove mais factos que permitam descobrir a total falta de justificação do hiato temporal, ou basta-nos a alegação e prova do hiato? É claro que a invocação do preenchimento abusivo é uma excepção ao direito titulado pela livrança e consequentemente a prova de que o preenchimento foi abusivo pertence ao embargante que o invoca – artigo 342º nº 1 do Código Civil. Simplesmente, pedir mais do que a alegação e prova do lapso de tempo decorrido entre o momento em que o credor soube e considerou que o incumprimento era definitivo e o momento em que o declarou ao devedor, pondo fim ao contrato de base, é pedir ao embargante uma alegação e prova que de todo em todo lhe é impossível, pois que o mesmo não tem acesso ao Banco, nem ao Departamento de Recuperação de Crédito, nem ao Departamento de Contencioso, para conseguir perceber qual foi a razão da demora de 10 anos em que o Banco incorreu. Por todas as razões expostas entendemos que o pacto de preenchimento concretamente celebrado tem de ser interpretado, nos seus termos literais e em conjugação com as regras da boa-fé negocial e da justificação económica dos direitos contra prestados, como não conferindo ao credor a possibilidade de demorar 10 anos a declarar ao devedor e aos seus garantes, querendo prevalecer-se das obrigações por estes assumidas, um incumprimento que já considerou (em definitivo) verificar-se. Dito de outro modo: posterior ao vencimento de qualquer obrigação indica uma sequência temporal razoável entre a data de vencimento de qualquer obrigação do contrato que revele que o contrato não vai ser mais cumprido e o preenchimento da livrança, aliás intermediada pela manifestação jurídica do credor, correspondente a essa constatação do contrato não ir mais ser cumprido, ao devedor, manifestação que vem a funcionar como último aviso de cumprimento voluntário, o qual, não tomado em conta, autoriza o preenchimento da livrança. Porque assim interpretado, e em vista dos factos provados, a livrança foi preenchida contra o pacto de preenchimento, verificando-se preenchimento abusivo, e em consequência devendo julgar-se procedente o recurso, e parcialmente (em função da improcedência quanto às questões da ilegitimidade e da prescrição) procedentes os embargos, absolvendo-se a embargante e julgando-se extinta a execução contra ela.» «A LULL não fixa o prazo dentro do qual deve ser preenchida a livrança entregue em branco, tão pouco o fazendo qualquer outro dispositivo legal. Será normalmente o acordo de preenchimento subjacente à emissão da livrança em branco que define os termos do preenchimento. Nada tendo sido estabelecido diversamente em sede de acordo de preenchimento, é direito potestativo do portador preencher a livrança com uma qualquer data de vencimento ulterior ao momento do alegado incumprimento da subscritora. Ainda que em ambas as situações releve o decurso do tempo, não há que confundir entre prescrição da obrigação cartular e exercício abusivo, na modalidade da chamada supressio, do direito ao preenchimento da livrança em branco.» «No caso dos autos, não tendo sido acordado entre as partes uma data-limite para o preenchimento da livrança e não resultando a fixação de tal data do princípio da boa-fé, não se revela como abusivo o preenchimento da livrança nas circunstâncias descritas nos autos, seja na vertente de violação do pacto de preenchimento, seja na vertente de abuso do direito ao livre preenchimento da livrança.» «Não abusa do direito a credora que instaura uma execução com base em livranças, assinadas pela subscritora e pelo avalista, que lhe foram entregues aquando da celebração de contratos de garantia bancária e que preencheu de acordo com esses contratos, apondo-lhes data de vencimento cerca de 8 anos após poder exigir o cumprimento da obrigação subjacente aos devedores.» «Tendo sido concedido à exequente, no pacto de preenchimento, liberdade para fixar a data de vencimento das livranças subscritas em branco, ao invés de a fixar por referência à data relevante do incumprimento ou da resolução dos contratos garantidos por tais títulos, como pretende a embargante, carece de fundamento o invocado preenchimento abusivo das livranças dadas à execução.»
- Acórdão do STJ, de 18.09.2018 (relatora Rosa Tching), no processo n. 3316/11.7TBSTB-A.E1.S1: «Quem subscreve uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em conformidade com o que tiver sido ajustado no âmbito da sua emissão, pelo que, mantendo-se válida a relação fundamental que determinou tal subscrição e completado, de acordo com ela, o preenchimento da livrança, do simples facto do respetivo portador ter desencadeado os meios legais para obter a cobrança do crédito titulado na livrança não se pode inferir, sem mais, que ele atuou com abuso de direito, nomeadamente por violação da tutela da confiança – venire contra factum proprium – ou por qualquer outro fundamento susceptível de integrar a figura do abuso de direito prevista no art. 334.º do CC.» - Acórdão do STJ, de 19.10.2017 (relatora Rosa Tching)[7], no processo n. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1: «O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende. O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da ação executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no art. 334.º do CC, na modalidade de "venire contra factum proprium". «Não abusa do direito a locadora que instaura uma execução com base numa livrança, assinada pela subscritora e pelo avalista, que lhe foi entregue aquando da celebração de um contrato de locação financeira e que preencheu de acordo com esse contrato, depois de ter interpelado, cerca de 4 anos e 6 meses antes, a locatária para exercer a opção de compra, pagando o valor residual e legais acréscimos, ou proceder à entrega do bem locado. Não obstante a responsabilidade ser autónoma, nas relações imediatas, o avalista que tenha tido intervenção na celebração do pacto de preenchimento de uma livrança incompleta pode opor ao beneficiário a excepção material do preenchimento abusivo, cabendo-lhe o ónus da alegação e prova dos factos constitutivos dessa excepção.» - Acórdão do STJ, de 09.07.2015 (relator Pires da Rosa), no processo n. 1306/12.1TBGMR-A.C1.S1: «O preenchimento abusivo reveste a natureza de facto impeditivo ou extintivo do direito do portador do título de crédito; o ónus probatório da pertinente facticidade impende sobre os oponentes, de acordo com o disposto no art. 342.º do CC. Aos avalistas/oponentes, competiria demonstrar desde logo a existência de um pacto – colocando-se dentro do enquadramento das relações imediatas (podendo, assim, esgrimi-lo contra o exequente); depois, o abuso no seu preenchimento. Qualificar a fixação da data de vencimento da livrança em 23-01-2012 como abusiva, porquanto a subscritora foi declarada insolvente em 17-06-2008, não prescindiria de factos que sustentassem que essa dilação temporal excedia manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Nada vindo dito sobre as razões de tal diferimento no tempo – não se sabendo nem como nem porquê o credor/exequente diferiu no tempo, por este tempo, o seu direito a ver cumpridas as obrigações cambiárias com as quais o devedor fundamental garantiu, autónoma e literalmente, o cumprimento das obrigações fundamentais que assumia – não é possível considerar abusivo o direito invocado.» «O preenchimento abusivo da livrança invocado, como fundamento de embargos à execução, pelos avalistas que tomaram parte no pacto de preenchimento improcede, se não alegam e não provam factos concretos que a substanciem, não devendo o tribunal substituir-se aos embargantes na demonstração dessa excepção.»
* Decisão: Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido. Custas: pela recorrida, sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar.
Lisboa, 28.06.2023
Maria Olinda Garcia (Relatora) Ricardo Costa António Barateiro Martins
Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC.
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[2] Como exemplo de um preenchimento abusivo veja-se a hipótese sumariada no acórdão do STJ, de 05.06.2018 (relator Henrique Araújo), no processo n. 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1: «O Banco exequente, ao deduzir processo executivo contra o avalista duma livrança em branco, treze anos depois desse mesmo avalista ter abandonado a sociedade subscritora da livrança (entretanto declarada insolvente), e reportando-se as responsabilidades reclamadas (só conhecidas do embargante quando foi citado para a execução), a dívidas contraídas por essa sociedade já após o seu abandono como sócio, age com manifesto abuso do direito, na modalidade da supressio.» |