Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1764/22.6YRLSB.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO DE FACTO
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
PRINCÍPIOS DA ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADE
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - Traduzindo-se a nulidade da sentença/acórdão na violação do dever de o tribunal não ir além do conhecimento das questões suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso), não configura esse vício quando a nulidade invocada se circunscreve ou tem a ver com um (alegado) erro de julgamento (de direito).

II - O sistema de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras consagrado pelo nosso ordenamento jurídico é o de revisão meramente formal, que envolve tão só, por via de regra, a verificação da sua regularidade formal ou extrínseca, e não também a apreciação dos fundamentos de facto e/ou de direito das mesmas (excluindo-se, assim, a revisão de mérito).

III - A única exceção a essa regra de controle meramente formal, é aquela que decorre da situação prevista no n.º 2 do art. 983.º do CPC e que pressupõe que haja uma prévia oposição à requerida revisão/confirmação da sentença revidenda assente nesse específico fundamento aí referido.

IV - Desse modo, verificados os requisitos elencados no art. 980.º do CPC, e não ocorrendo a situação de exceção contemplada naquele citado n.º 2 do art. 983.º, impõe-se ao tribunal nacional competente que proceda à confirmação da sentença cuja revisão se requer.

V - Não constitui fundamento para a improcedência da respetiva ação especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, proferida por um tribunal brasileiro, que reconheceu a “união estável” entre os requerentes (cidadãos brasileiros), o facto de estes terem declarado que, entres outros objetivos, a finalidade última da mesma seria lograrem depois a obtenção da aquisição da nacionalidade portuguesa por um deles (gozando outro já também dessa nacionalidade).

VI - A incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional, deve ser aferida no confronto com resultado a que conduza a aplicação da sentença estrangeira a rever na ordem jurídica interna ou o direito dela emergente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório

1. AA e BB, ambos naturais e residentes no ..., vieram requerer a confirmação de sentença proferida a 31 de março de 2022 pela ... Vara de Família e Sucessões do Foro de ... da Comarca ..., ..., que reconheceu e declarou que os Requerentes vivem em “união estável” desde 17 de janeiro de 2001.

2. O exmo. sr. juiz desembargador a quem os autos foram distribuídos, por despacho de 22/06/2022, considerando não vislumbrar da petição inicial qualquer elemento de conexão com o ordenamento jurídico nacional, convidou os requerentes a justificarem/esclarecerem qual o seu interesse em agir.

3. Na sequência desse convite, os requerentes (por requerimento 01/07/2022) vieram dizer/esclarecer, por um lado, que muito embora sejam naturais e residentes no ..., o requerente tem também nacionalidade portuguesa, e por isso têm todo o interesse que a decisão/sentença revidenda seja eficaz em Portugal, e, por outro, desejam o reconhecimento em Portugal da situação definida nessa sentença pois que a requerente pretende requerer/obter a nacionalidade portuguesa, nos termos do artº. 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81 de 3/10).


4. Sendo os interessados os identificados como requerentes, não houve lugar ao cumprimento de contraditório.


5. Instruídos os autos, e cumprido o disposto no artº. 982º nº. 1 do CPC, quer os requerentes, quer a exma. sra. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação alegaram no sentido da procedência da ação, por entenderem estarem reunidos todos os requisitos legais para ser concedida a requerida revisão e confirmação da aludida sentença estrangeira.


6. Por entender que a matéria/questão objeto da ação se mostra controversa ao nível da jurisprudência dos tribunais, exmo. sr. juiz desembargador decidiu submetê-la, desde logo, à apreciação do coletivo de juízes.


7. Na sequência dessa apreciação, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu, em 27/09//2022, acórdão com o seguinte dispositivo final:

Pelo exposto, acorda-se em julgar a presente ação totalmente improcedente, indeferindo o pedido de revisão e confirmação de sentença.

- Custas pelos Requerentes (Art. 527.º do C.P.C. e Artigo 14º-A, alínea b), do RCP).

- Notifique”.


8. Inconformados com tal acórdão decisório, os requerentes dele interpuseram recurso de revista, tendo concluído as respetivas alegações do mesmo nos seguintes termos (respeitando-se a ortografia nelas adotada):

« I. Conforme melhor se compreende da leitura do acórdão sub judice, os Exmos. Senhores Desembargadores a quo decidiram apreciar a procedência - ou a falta dela - de um processo de nacionalidade, pelo que têm os aqui recorrentes como certo, salvaguardado o respeito devido, que a aquela decisão não poderá manter-se, na medida em que não se limita, como lhe competia, à verificação dos necessários requisitos para a confirmação da sentença revidenda, fazendo antes uma errada subsunção do direito, sendo igualmente certo que semelhante decisão enferma de nulidade por excesso de pronúncia;

II. É pacífico, quer na nossa doutrina, quer na nossa jurisprudência, que a revisão de sentença estrangeira com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional é de natureza formal, envolvendo tão só a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença revidenda (requisitos constantes do art. 980.º do CPCiv.), não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma;

III. Ora, a decisão recorrida não coloca em causa a verificação de nenhum dos requisitos catalogados no referido art. 980.º, sendo absolutamente certo que não há a menor dúvida quanto à respetiva verificação;

IV. Com efeito, não há a menor dúvida sobre a autenticidade dos documentos juntos aos presentes autos, nem sobre a inteligibilidade da decisão, resultando, para além disso, inequívoco que tal sentença já transitou em julgado à luz da lei brasileira (neste sentido, importa referir que os nossos Tribunais têm feito apelo à presunção de trânsito em julgado da decisão revidenda, dispensando os requerentes de fazer a prova positiva e direta deste requisito, cfr., entre outros, Ac. TRP de 12.07.1983, in CJ – Ano 1983, T. IV, p. 221, Ac. TRE de 11.11.1990, in BMJ – 393º, p. 684 e Acs. STJ de 11.02.1966, 24.10.1969 e 19.02.1981, in BMJ – 154º, 190º e 304º, pp. 278, 275 e 368, respetivamente), sendo que nenhuma dúvida existe também de que a ... Vara de Família e Sucessões do Foro de ... da Comarca ..., ..., era o foro competente para apreciar a causa, desde logo por ter jurisdição sobre o território onde as partes residiam e a sentença não versar sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses;

V. Por outro lado, não é invocável qualquer uma das exceções previstas na alínea d) do art. 980º do CPCiv., e resulta evidente dos documentos juntos, que foi assegurado o exercício dos princípios do contraditório e da igualdade entre as partes;

VI. Acresce que a decisão proferida em nada contraria ou ofende as disposições de direito privado português – antes pelo contrário, posto que a factualidade apurada no âmbito do processo aqui em apreço conduziria, face à nossa legislação, à mesma solução –, pelo que o seu reconhecimento não é (manifestamente) incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português;

VII. Por outro lado, os requerentes são partes legítimas na presente ação, não pretendendo fazer valer a sua pretensão contra quem quer que seja em concreto, razão pela qual não há requeridos (a este propósito, veja-se o acórdão do TRL, de 04-10-2011, referente ao processo 529/11...., onde se decidiu que “Na acção de revisão de sentença estrangeira não é imprescindível a existência de demandados”.

VIII. Em suma: estão reunidos todos os requisitos para rever e confirmar a sentença revidenda de forma a que a mesma produza efeitos no nosso ordenamento jurídico;

IX. Por conseguinte, ao decidir como decidiu – que a sentença revidenda não permite que a primeira requerente adquira nacionalidade portuguesa –, o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 978.º e ss., do CPCiv.;

X. De facto, o Tribunal a quo acrescentou um outro requisito àqueles que se encontram elencados no art. 980.º do CPCiv.: que a ação de reconhecimento e confirmação da sentença estrangeira seja idónea à prossecução da finalidade que determinou a sua propositura, requisito este que não se encontra legalmente previsto e que, por isso, não pode ser exigido.

XI. Refira-se, ainda, que com a decisão recorrida, o Tribunal a quo está claramente a decidir sobre matérias sobre as quais não tem competência, pois cabe em primeira instância à Conservatória dos Registos Centrais a apreciação dos processos de aquisição de nacionalidade, cabendo recurso dessas decisões para os Tribunais Administrativos;

XII. Ou seja: cabe àquelas entidades decidir sobre a validade dos documentos que instruem esses processos, designadamente se uma sentença estrangeira comprovativa da união de facto estável e duradoura, revista e confirmada pelos Tribunais Portugueses, é o bastante para satisfazer os requisitos legais para a obtenção de nacionalidade;

XIII. Sem prescindir de tudo quanto acima se disse, resta ainda dizer que o Tribunal a quo não tem qualquer razão na análise que faz sobre a validade, ou falta dela, de uma sentença estrangeira no processo de aquisição de nacionalidade;

XIV. Assim fica demonstrado, ao que se crê sem margem para dúvidas, que a decisão constante do acórdão recorrido merece censura, devendo ser revogada e substituída por uma outra que conceda a requerida revisão, confirmando a sentença revidenda. »


9. Não foram apresentadas contra-alegações ao recurso.


10. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação



1. Do objeto do recurso.

Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, ex vi 679º do CPC).

Como vem, também, sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” a que se reporta o citado artº. 608º, e de que o tribunal deve conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes.

1.1 Ora, calcorreando as conclusões das alegações do sobredito recurso dos Requerentes. verifica-se que as questões que se nos impõe aqui apreciar e decidir são as seguintes:

a) Da nulidade do acórdão recorrido (por excesso de pronúncia);

b) Se estão, ou não, reunidos os pressupostos/requisitos/condições legais para que a presente ação possa proceder no sentido de ser revista e confirmada a sentença revidenda.


***


2. Os Factos Provados (descritos no acórdão recorrido)

1- Consta do assento de nascimento n.º ..08 do ano de 2011 do Consulado Geral de Portugal em ..., ..., que BB nasceu no dia .../.../1972, em ..., Estado de ..., República ..., e é filho de CC e DD (cfr. doc. de fls. 42 a 43).

2- Por sentença de 31 de março de 2022, proferida no processo n.º ...24 de procedimento comum cível - família, pela ... Vara da Família e Sucessões do Foro de ..., Comarca ..., Tribunal ..., ..., foi decidido homologar o acordo requerido por BB e AA para reconhecer a existência de união estável entre as partes a partir de 17 de janeiro de 2001 (cfr. doc. de fls. 15 a 18).


***


3. Quanto à 1ª. questão.

- Da nulidade do acórdão (por excesso de pronúncia).

Invocam os recorrentes a nulidade do acórdão por enfermar de excesso de pronúncia.

Nulidade essa que, na sua essência, os recorrentes sustentam alegando que a decisão foi além do que lhe era permitido conhecer (que era verificar tão somente se estão ou não verificados os requisitos, previstos no artº. 980º do CPC, de que dependa a revisão e confirmação da sentença revidenda), ao considerar ação inidónea para a prossecução do fim que com ela se visa alcançar: obtenção pela requerente da nacionalidade portuguesa. Ao fazê-lo, e ao assim considerar/decidir, conheceu/apreciou matéria que lhe estava vedada, tendo, desse modo, acrescentado um novo requisito, que não se encontra legalmente previsto, como exigência da procedência da ação.

Apreciando.

Como é sabido, as nulidades da sentença (leia-se aqui acórdão, pois que tal dispositivo legal é também aplicável às decisões da 2ª. instância, ou seja, da Relação – cfr. artº. 666º, nº. 1, do CPC - e também deste mais alto tribunal – cfr. artº. 679º) encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.

Dispõe-se no artigo artº. 615º, nº. 1 al. e) – que aqui importa convocar que “É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que deve apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.” (sublinhado nosso)

Decorre de tal norma que o vício que afeta a decisão advém de uma omissão (1º. segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma, aqui em causa, face à invocação dos recorrentes).

Preceito legal esse que deve ser articulado com o nº. 2 no artº. 608º do CPC, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” (sublinhado nosso).

Impõe-se ali um duplo ónus ao julgador, o primeiro traduzido no dever de resolver todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação pelas partes (salvo aquelas cuja decisão vier a ficar prejudicada pela solução dada antes a outras), e o segundo (que, como vimos, é aqui colocado em causa pelos recorrentes) traduzido no dever de não ir além do conhecimento dessas questões suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso).

Constitui communis opinio que o conceito de “questões”, a que ali se refere o legislador, deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos, como já deixámos acima expresso, os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º., 3ª. Ed., Almedina, págs. 713/714 e 737; Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil, 6ª. ed. Atualizada, Almedina, pág. 136.” e Ac. do STJ de 14/07/2020, processo n.º 2359/18.4T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Por outro lado, importa ainda ter presente que na apreciação dessas questões o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação de regras jurídicas (cfr. artº. 5º, nº. 3 do CPC).

Tendo presentes tais conceitos/considerações, reportemo-nos ao caso em apreço.

Compulsando o acórdão recorrido, dele se extrai que o tribunal a quo, depois de balizar o tema decidendum às questões de saber não só se estavam ou não verificados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da sentença estrangeira mas também ainda se os requerentes - face ao esclarecimento que prestaram na sequência do sobredito convite que lhes foi formulado para o efeito pelo sr. juiz desembargador relator - tinham ou não interesse em agir e da adequação da ação à sua pretensão/fim com ela visada alcançar, passou a delas conhecer.

E na decorrência da abordagem teórica que fez sobre tais questões, veio o referido tribunal a concluir que “considerando que os requerentes declaram expressamente que a propositura da presente ação se destina a instaurar processo de aquisição da nacionalidade, verifica-se que a presente ação é absolutamente inidónea à prossecução da finalidade que determinou a sua propositura.”

E nessa medida julgou a ação improcedente.

Como resulta do que se deixou referido, se é verdade que o tribunal não pode conhecer de questões que não lhe sejam submetidas a apreciação, não é também menos verdade que essa restrição/limitação não se estende àquelas questões que são do conhecimento oficioso, e nem à indagação, interpretação e aplicação de regras jurídicas que sobre elas aquele venha a fazer, que foi o que sucedeu no caso em apreço.

É patente, a nosso ver, que a questão suscitada pelos recorrentes, e abordada pelo tribunal a quo, se enquadra no âmbito do julgamento (de direito) da causa a que se reporta a ação, e do eventual erro desse julgamento - que adiante apreciaremos aquando da análise da questão seguinte -, mas que nada tem a ver com o vício de nulidade (por excesso de pronúncia) que é apontado ao acórdão recorrido, pois que o tribunal moveu-se dentro da órbitra do conhecimento/apreciação de questões que lhe é permitido.

Em conclusão, não padece o acórdão recorrido do vício de nulidade que lhe é apontado pelos recorrentes, pelo que, nessa parte, o recurso improcede.


***


4. Quanto à 2ª. questão.

O que está em causa é saber se estão ou não reunidos os pressupostos/requisitos/condições legais para que a presente ação possa proceder no sentido de ser revista e confirmada a sentença revidenda (proferida, em 31 de março de 2022, pela ... Vara da Família e Sucessões do Foro de ..., Comarca ..., ..., no processo n.º ...24 de procedimento comum cível - família, que decidiu homologar o acordo dos requerentes/recorrentes reconhecendo a existência de união estável entre eles (a partir de 17 de janeiro de 2001), e assim  ter eficácia em no nosso país.

Os requerentes/ora recorrentes defendem que sim (com base na fundamentação exarada na alegações de recurso, e que se mostra refletida nas respetivas conclusões que acima se deixaram transcritas).

Entendimento contrário teve o tribunal a quo, tendo para o efeito, esgrimido a fundamentação que, em termos de relevância e essencialidade, igualmente se deixa transcrita:

« (…) Esclareça-se que a ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efetuada por um sistema jurídico estrangeiro.

(…)

No caso vertente está em causa o reconhecimento da situação de união de facto entre os Requerentes, situação essa reconhecida através de sentença proferida em processo a pedido dos Requerentes perante o tribunal brasileiro, que assim declarou a “união estável” existente entre eles desde dezembro de 1996, nos termos previstos no Direito ....

(…)

Já se tem argumentado que numa ação que tem por objeto a revisão e confirmação de escritura declarativa de união estável não cabe à Relação apreciar se a sentença que proferir pode ou não constituir instrumento bastante para obtenção da nacionalidade portuguesa. No entanto, não concordamos com este posicionamento, por considerarmos que nas ações de simples apreciação a finalidade visada com a propositura da ação desempenha um papel preponderante.

(…)

Ou seja: Qualquer ação de simples apreciação pressupõe uma situação de dúvida ou incerteza. No caso das ações de revisão de sentença estrangeira, tal pressuposto tem uma natureza particular, na medida em que o que as motiva não é propriamente a dúvida ou incerteza jurídicas, mas antes a necessidade de revisão ou confirmação da sentença emitida por tribunal estrangeiro, para que a mesma possa produzir efeitos no nosso país.

Mas tal pressupõe a definição e ponderação dos efeitos jurídicos que o requerente pretende obter na ordem jurídica nacional.

(…)

No caso dos presentes autos, porque foram convidados para tanto, os Requerentes reconhecem expressamente que a presente ação foi intentada com a finalidade de habilitar a requerente AA a requerer a atribuição da nacionalidade portuguesa, o que só pode ter o seu enquadramento legal nos termos do disposto nos Art.s 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81 de 3/10, alterada pela Lei n.º 25/94, de 19-08; pelo DL n.º 322-A/2001, de 14-12; pela Lei Orgânica n.º 1/2004, de 15-01; pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04; pela Lei n.º 43/2013, de 03-07; pela Lei Orgânica n.º 1/2013, de 29-07; pela Lei Orgânica n.º 8/2015, de 22-06; pela Lei Orgânica n.º 9/2015, de 29-07; e pela Lei Orgânica n.º 2/2018, de 05-07) e 14.º n.º 2 do Regulamento da Nacionalidade.

Estas disposições legais estabelecem expressamente que o estrangeiro que coabite com cidadão nacional em condições análogas às dos cônjuges pode requerer a atribuição da nacionalidade portuguesa, desde que obtenha previamente o reconhecimento judicial da situação de união de facto.

Esse reconhecimento judicial da situação de união de facto para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa só pode fazer-se através de ação judicial a interpor no tribunal cível (de primeira instância) contra o Estado Português.

Uma tal ação judicial pressupõe a demonstração judicial dos factos em que se estriba o pedido, com amplo contraditório, razão pela qual a presente ação de revisão de sentença estrangeira não constitui o meio próprio para atingir tal desiderato (…).

A esta luz, e considerando que os requerentes declaram expressamente, no requerimento inicial, que a propositura da presente ação se destina a instaurar processo de aquisição da nacionalidade, verifica-se que a presente ação é absolutamente inidónea à prossecução da finalidade que determinou a sua propositura.

Termos em que se conclui pela improcedência da presente ação”.

Apreciando.

Como é sabido, - salvo se o contrário resultar de tratado, convenções, regulamentos da União Europeia e ou leis especiais, o que não ocorre, desde já adiantamos no que concerne à matéria em questão - uma sentença proferida, sobre direitos privados, por um tribunal estrangeiro só poderá ter eficácia/produzir efeitos em Portugal se for revista e confirmada por um tribunal do nosso país (artº. 978º CPC, diploma esse a que nos referiremos sempre que doravante mencionarmos o normativo sem a indicação da sua fonte).

Revisão e confirmação essas que devem sem feitas através da ação de processo especial prevista e disciplinada nos artºs. 978º a 985º, ou seja, da através da ação especialmente aí prevista para o efeito.

Naquilo que para aqui mais releva, importa ter presente os seguintes normativos:

O artº. 980º, que, sob a epígrafe “Requisitos necessários para confirmação”, dispõe que “para a sentença seja confirmada é necessário:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e) Que o réu tenha sido regularmente citado para ação nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;

f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português. (sublinhado nosso)

O artº. 983º que, sob a epígrafe “Fundamentos da impugnação do pedido”, preceitua que:

“1- O pedido pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696.º.

2- Se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.” ( sublinhado nosso)

Por último, o artº. 984º, que, sob a epígrafe “Atividade oficiosa do tribunal”, estatui que O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”. (sublinhado nosso)

Do confronto e conjugação tais normativos, extrai-se que o sistema de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras consagrado pelo nosso ordenamento jurídico é, em regra, o de revisão meramente formal.

Sistema esse fundado no princípio da estabilidade das relações jurídicas internacionais, residindo o reconhecimento dessas sentenças na aceitação da competência do tribunal de origem, o que conduz a que, por via de regra, fique excluída a revisão de mérito, ou seja, a apreciação do mérito da causa sobre o qual incidiu a decisão revidenda proferida por esse tribunal estrangeiro.

A única exceção a esse controle meramente formal, é aquela que decorre da situação prevista no citado nº. 2 do artº. 983º e que pressupõe que haja uma prévia oposição à requerida revisão/confirmação da sentença revidenda assente nesse específico fundamento aí referido.

Revisão essa a fazer, assim, por via da referida ação especial, através da qual o tribunal do foro nacional se limita a verificar, através de um controle de ordem formal, se a decisão/sentença estrangeira está em condições de produzir efeitos em Portugal, só devendo negar essa revisão se nesse controle, e depois de concluir que sentença revidenda incide sobre direitos privados, vier a verificar/concluir que não se mostra preenchido algum dos requisitos formais previstos no citado artº. 980º.

Na verdade, e como decorre o exposto, a revisão do conteúdo da sentença estrangeira, com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional, envolve tão só, por via de regra, a verificação da sua regularidade formal ou extrínseca, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e/ou de direito da mesma.

Desse modo, verificados tais requisitos elencados no artº. 980º, e não ocorrendo a situação de exceção contemplada no nº. 2 do artº 983º, impõe-se ao tribunal nacional competente que proceda à confirmação da sentença cuja revisão se requer.

Sucede assim no atual CPC, já igualmente sucedia no derrogado CPC61.

No sentido da posição expendida – e naquilo que vem sendo o entendimento prevalecente nesse Supremo Tribunal, e particularmente nesta Secção, - vide, por todos, Acs. do STJ de 07/06/2022, proc. nº. 641/22.5YRLSB.S1 (no qual o ora relator interveio como 2º. Adjunto, e que apreciou um caso com estrita identidade ao destes autos), de 29/01/2019, proc. nº. 896/18.0YRLSB.S1, de 20/01/2022, proc. nº. 179/20.5YRGMR.S1, de 22/04/2021, proc. nº. 78/19.3YRLSB.S1, de 19/06/2019, proc. nº. 22/18.4YRLSB.S1, de 13/10/2020, proc. nº. 47/20.0YRGMR.S1, de 27/04/2017, proc. nº. 93/16.9YRCBR.S1, de 15/01/2015, proc. nº. 317/11.9YRLSB.S1, de 11/11/2008, proc. nº. 08A3252, e de 19/02/2008, proc. nº. 07A4790, todos disponíveis, em www.dgsi.pt.

Tendo presente as considerações de cariz teórico-técnico que se deixaram expostas, vejamos o caso concreto que nos foi submetido a apreciação.

O que se pediu na presente ação especial de revisão foi que seja confirmada uma sentença proferida por um tribunal brasileiro (cuja competência para o efeito não se suscita) que reconheceu/declarou, homologando acordo, que os requerentes vivem em união estável (desde 17/01/2001).

Instituto esse da união estável consagrado no ordenamento jurídico brasileiro e que, na sua essência, corresponde ao instituto da união de facto plasmado também na nossa ordem jurídica interna.

Relativamente a essa sentença revidenda, verifica-se que concorrem as condições indicadas sob as alíneas a) e f) do citado artigo, uma vez que não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do documento onde a mesma consta nem sobre a sua inteligência e, ainda, porque o seu conteúdo (união de facto de duas pessoas), em si, não é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, antes pelo contrário, pois que, como deixámos expresso, existe coincidência/correspondência (nas duas ordens jurídicas) entre os institutos que constituem o núcleo essencial donde emanam os efeitos da decisão a rever/confirmar.

Embora apresenta-se sob a veste de um conceito indeterminado, vem, porém, constituindo entendimento dominante que esses princípios serão aqueles que decorrem de um complexo de normas, inspiradas em razões sociais, morais, políticas ou económicas, que são aceites/comungados por um significativo número de nações como expressão de uma civilização e culturas idênticas e que se encontram, por isso, plasmadas na ordem jurídica de um determinado número de Estados com os quais Portugal tem afinidades jurídico-culturais, encontrando-se, desse modo, naturalmente, também em consonância com a nossa própria Constituição, enquanto lei fundamental (cfr., por todos, o acima citado Ac. do STJ de 15/01/2015).

Princípios esses (de ordem pública internacional), que, assim, devem manifestar-se e aferir-se perante o resultado a que conduza a aplicação do direito ou da sentença estrangeira a rever.

E quando esse resultado não contunda com os valores do nosso ordenamento jurídico (sendo certo que a ordem publica internacional não se confunde com uma ordem jurídica interna), nada haverá, em princípio a dizer, como sucede no caso.

Por outro lado, também se não apura, através dos meios previstos no artº. 984º, a falta de observância de qualquer um dos requisitos elencados sob as demais alíneas do citado artº. 980º, sendo certo ainda, todavia, e de qualquer modo, que os mesmos devem presumir-se, dado que não foram objeto de impugnação (cfr. Ac. do STJ de 22/04/2021, acima citado).

Por fim diga-se que, e como se deixou escrito no também cima citado Ac. do STJ de 07/06/2022 (desta Secção, em que, enfatiza-se, se apreciou um caso rigorosamente similar ao destes autos), “mesmo não desconsiderando a probabilidade de a finalidade última dos requerentes ser a aquisição da nacionalidade portuguesa por um deles, sendo, pois, previdente o argumentado pela Relação, por ora, apenas vem pedida a revisão e confirmação da sentença e o certo é que só a apreciação dos termos em que, porventura, possa vir a ser materializada uma tal hipotética pretensão permitiria aferir se, em concreto, a mesma violaria qualquer princípio ou norma legal.”

Sendo, assim, também é irrelevante cuidar de saber nesta sede se a sentença revidenda é ou não suficiente para atribuir a nacionalidade portuguesa à requerente, enquanto cidadã ... (cfr. o também acima o Ac. do STJ de 19/01/2019, e ainda o Ac. do STJ de 13/10/2020, proc. nº. 1884/19.4YRLSB.S1, ambos igualmente desta Secção).

Como ali se referiu, “a tónica é colocada na eficácia (em abstrato) em território português, mas não eficácia para uma situação ou finalidade concreta.”

Diga-se ainda, e como se referiu naquele 1º. acórdão, que, em bom rigor, a união estável é um facto e não um ato jurídico, estando somente em causa o reconhecimento jurídico de determinada situação de facto duradoura que constitui um modelo de família e nada mais.

Refira-se, por fim, em jeito de conclusão, e tal como ressalta daquilo que supra se deixou expendido, que o único critério a atender para a revisão e confirmação de decisões estrangeiras, é aquele que se encontra estabelecido no quadro legal fixado nos acima citados artºs 978º, 980º e 983º, sendo que nenhum outro, para além do que se extrai dessas disposições legais, será legítimo avocar no momento de decidir.

Termos, pois, em que perante o que se deixou exposto, entendemos estarem verificados os pressupostos legais de que depende a confirmação da sentença revidenda, pelo que procederá o recurso (de revista), revogando-se o acórdão recorrido.


***

III- Decisão



Assim, em face do que se deixou exposto, acorda-se, na procedência do recurso e na revogação do acórdão, em declarar revista e confirmada a sentença (revidenda), proferida pelo tribunal brasileiro, acima identificada.

Sem custas quanto ao recurso de revista, sendo, porém, as custas da ação da responsabilidade dos requerentes (artºs. 527º, nº. 1, e 535º, nºs. 1 e 2 al. a), do CPC e 14-A, al. b), do RCP).

Valor da ação: € 30.000,01.

DN.


***


Sumário

I- Traduzindo-se a nulidade da sentença/acórdão na violação do dever de o tribunal não ir além do conhecimento das questões suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso), não configura esse vício quando a nulidade invocada se circunscreve ou tem a ver com um (alegado) erro de julgamento (de direito).

II- O sistema de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras consagrado pelo nosso ordenamento jurídico é o de revisão meramente formal, que envolve tão só, por via de regra, a verificação da sua regularidade formal ou extrínseca, e não também a apreciação dos fundamentos de facto e/ou de direito das mesmas (excluindo-se, assim, a revisão de mérito).

III- A única exceção a essa regra de controle meramente formal, é aquela que decorre da situação prevista no nº. 2 do artº. 983º do CPC e que pressupõe que haja uma prévia oposição à requerida revisão/confirmação da sentença revidenda assente nesse específico fundamento aí referido.

IV- Desse modo, verificados os requisitos elencados no artº. 980º do CPC, e não ocorrendo a situação de exceção contemplada naquele citado nº. 2 do artº 983º, impõe-se ao tribunal nacional competente que proceda à confirmação da sentença cuja revisão se requer.

V- Não constitui fundamento para a improcedência da respetiva ação especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, proferida por um tribunal brasileiro, que reconheceu a “união estável” entre os requerentes (cidadãos brasileiros), o facto de estes terem declarado que, entres outros objetivos, a finalidade última da mesma seria lograrem depois a obtenção da aquisição da nacionalidade portuguesa por um deles (gozando o outro já também dessa nacionalidade).

VI- A incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional, deve ser aferida no confronto com resultado a que conduza a aplicação da sentença estrangeira a rever na ordem jurídica interna ou o direito dela emergente.


***


Lisboa, 2023/03/14


Relator: cons. Isaías Pádua

Adjuntos:

Cons. Manuel Aguiar Pereira

Cons. Jorge Leal