Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
76/15.6T8ALJ.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
REMOÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
ADMINISTRAÇÃO
PATRIMÓNIO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Data do Acordão: 02/11/2021
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. No âmbito do processo de acompanhamento de maior e dos seus incidentes, designadamente do incidente de remoção e substituição do acompanhante, o tribunal deve decidir tendo como critério determinante a dignidade e o bem-estar do maior (cfr. art. 140.º, n.º 1, do CC).

II. Os aspectos relacionados com a administração dos bens do maior não devem, evidentemente, ser descurados, podendo o tribunal, quando se justifique, determinar que o acompanhante preste contas, nos termos do artigo 151.º, n.º 2, do CC.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. No processo de interdição por anomalia psíquica – entretanto convertido em processo de acompanhamento de maior – que o Ministério Público intentou e em que era requerida CC, vieram AA e BB, respectivamente, protutor e vogal da irmã, acompanhada, alegar o incumprimento dos deveres da acompanhante DD, requerendo a convocação do Conselho de Família.

Notificada a acompanhante, veio esta pronunciar-se, nos termos do requerimento junto a fls. 60 e 61.

Teve lugar Conselho de Família, no decurso do qual foi aprovado, com os votos dos vogais AA e BB, a remoção de DD do cargo de acompanhante de CC, tendo sido indicados para o cargo de acompanhante BB e de vogal EE (irmãs). O Ministério Público absteve-se por entender que não estavam reunidos todos os elementos necessários que permitam fundamentar uma decisão de remoção de DD do cargo de acompanhante, considerando que se deve aguardar o desfecho de dois inquéritos nos quais se investiga a prática de crimes de maus tratos e infidelidade por parte de DD contra bens pessoais e patrimoniais da acompanhada, uma vez que as denúncias apenas foram apresentadas na sequência do conflito entre os irmãos sobre a venda do imóvel.

Apesar da posição manifestada pelo Ministério Público, os vogais requereram, desde logo, a remoção da acompanhante.

Foram ouvidos a acompanhante e os vogais, a fim de ser apreciado o pedido de remoção da acompanhante.

O processo foi instruído com documentos, designadamente, o Relatório de visita domiciliária à residência da acompanhante, elaborado pela Segurança Social, extrato de conta bancária em nome da acompanhada, informação da Santa Casa da Misericórdia  … sobre a inscrição da acompanhada em Estrutura Residencial para Pessoas Idosas, informação da Divisão de Vitivinicultura da Direção Regional de Agricultura e Pescas …. sobre o direito de replantação da vinha em propriedade da acompanhada, Relatório Clínico da acompanhada, elaborado no Centro de Saúde e informação do Instituto de Segurança Social sobre as pensões de sobrevivência e sociais auferidas pela acompanhada.

O Ministério Público promoveu que seja removida da tutela DD e que, para exercer o cargo de acompanhante, seja nomeada BB (irmã da acompanhada), sendo nomeada para vogal FF, também irmã da acompanhada.

Notificadas, as partes pronunciaram-se sobre os documentos e a promoção do MP, tendo a indicada BB declarado aceitar o cargo de acompanhante.


2. Em 10.08.2020 foi proferida a sentença com o seguinte dispositivo:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide este Tribunal, julgar o presente incidente totalmente procedente e, consequentemente:

[1] - Remover DD do cargo de acompanhante de CC, nos termos do artigo 1948º, alínea a) do Código Civil.

[2] - Designar como acompanhante de CC, sua irmã BB, residente na Travessa …….

[3] - Nomear como vogais a integrar o Conselho de Família, o já nomeado AA, irmão da acompanhada, também para o cargo de protutor, residente na Rua ….., e FF, irmã da acompanhada, com residência na Quinta …., Rua …..

Valor do incidente: 30.000,01 € (trinta mil euros e um cêntimo).

Custas a cargo da requerida DD, nos termos do artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil”.


3. Irresignada, DD interpôs recurso de apelação desta sentença.


4. Em 12.11.2020, o Tribunal da Relação ….. proferiu Acórdão com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se improcedente o incidente de remoção de acompanhante.

Custas pelos apelados”.


4. Inconformados com este Acórdão e pugnando pela procedência do incidente, AA e BB vêm interpor recurso de revista. A terminar as suas alegações, concluem os recorrentes:

I – Por acórdão proferido em 12.11.2020, o Tribunal de Relação …., julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e julgando improcedente o incidente de remoção de acompanhante.

II – O protutor e Vogal – aqui recorrentes – não perfilhando deste entendimento e por dele discordarem, nomeadamente por entenderem que acórdão proferido faz uma incorreta interpretação do disposto nos artgs. 1948º e 1949º (aplicável por força do disposto no art. 152º) 1935ºe sgts e 1967 e sgts. (aplicável por força do disposto no art. 145º/4 e 5) todos do Código Civil, alegam os seguintes factos que, com o devido respeito, deverão levar a decisão diferente da proferida pelos Exmos. Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação …. e, em consequência, manter-se a decisão proferida pelo Exmo Senhor Juiz do Juízo de Competência Genérica …...

III) Sem prejuízo dos factos dados como provados em 1ª instância e acima transcritos, permitem-se destacar os pontos 4, 5, 6, 11, 12 e 16

4 - Por decisão proferida no apenso B (autos de autorização/confirmação judicial) em 08/05/2019, a acompanhante DD foi autorizada a vender o prédio urbano sito em …, inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho ….. sob o n.º ….., omisso no registo predial, propriedade da acompanhada CC, pelo preço mínimo de 40.000,00

5 - Para aquisição do prédio referido em 4), a acompanhante DD recebeu as seguintes propostas:

5.1 - Em 12/04/2020, na reunião do Conselho de Família, BB, irmã da acompanhada, comunicou que oferecia o valor de 40.000,00 €;

5.2 - Em 02/07/2019, GG, irmã da acompanhada, por carta registada comprova de recepção, comunicou a DD que oferecia a quantia de 45.000,00 €;

5.3 - Em 10/07/2019, por carta registada, AA, irmão da acompanhada, comunicou a DD que pretendia adquirir o imóvel pela quantia de 50.000,00€ e o recheio existente na referida moradia pelo valor de 2.000,00 €.

6 - No dia 23 de Julho de 2019, por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada no Cartório Notarial …. a cargo da Licenciada HH, a acompanhante DD, na qualidade de acompanhante de CC, vendeu a II, sua filha, o prédio identificado em 4), pelo preço de 40.000,00 €.

11 - Por documento datado a 10/10/2018, denominado “declaração de cedência”, JJ cedeu a título gratuito, a favor da acompanhada CC, representada por DD, a exploração do prédio rústico “C......”, inscrito na freguesia …., concelho …., sob o artigo …., com a área de 0,595 m2, durante o período de dez anos.

12 - Os direitos de autorização de exploração referido em 10) foram transferidos para o prédio identificado em 11), da propriedade de JJ, marido da acompanhante DD, e desta.

16 - Durante o período compreendido entre 23/07/2019 e 04/11/2019, foram feitos, entre outros, os seguintes movimentos bancários na conta referida em 15):

- Em 24/07/2019, depósito do valor de 40.000,00 €;

- Em 31/07/2019 foi transferido para a conta de JJ, marido da acompanhante, a quantia de 10.000,00 €;

- Em 12.09.2019, foi levantada a quantia de €5.000,00;

- Em 12/09/2019, foi efetuada uma transferência no valor de 4,000,00 €;

- Em 15/09/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 17/09/2019, foi levantada a quantia de 10.000,00 €;

- Em 24/09/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 26/09/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 03/10/2019, foi levantada a quantia de 9.000,00 €;

- Em 14/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 15/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 21/10/2019, foi levantada a quantia de 2.000,00 €;

- Em 23/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 23/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 25/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 25/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 27/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 27/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 29/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 29/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 30/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 30/10/2019, foi levantada a quantia de 90,00 €;

17- No dia 30/10/2019, a conta bancária da acompanhada CC identificada em 14), apresentava o saldo final de 4,61 €.

IV) Atento o que ficou provado, nomeadamente a matéria constante dos pontos 4, 5, 6, 11, 12, 16 e 17 acima transcritos, conjugados entre si, no período de tempo em que ocorreram, designadamente entre 10/10/2018 (data de declaração de cedência – ponto 11 dos factos provados) e 30/10/ 2019 (data em que a conta bancária da acompanhada apresentava um saldo de 4,61€), ou seja, todos os actos praticados pela acompanhante durante este período de tempo (1 ano e alguns dias), são reveladores de que a acompanhante faltou ao cumprimentos dos deveres próprios do cargo ou da ineptidão para o seu exercício e , consequentemente, estão reunidos todos os pressupostos para remoção do cargo, pois que:

V) A acompanhante vendeu o prédio da acompanhada por preço inferior às propostas apresentadas por carta registada em 2 e 7 de Julho de 2019, designadamente a de 07/07/2019, superior em 10.000€ ao preço constante da escritura de 23 de Julho de 2019.

VI) A acompanhante podia e tinha o dever de aceitar a proposta mais vantajosa para a acompanhada, uma vez que:

a) Tendo a escritura sido outorgada em 23/07/2010 e sendo interessada na aquisição a filha da acompanhante (a mesma que juntamente com o marido da acompanhante prestou depoimento para fazer prova da necessidade da venda do imóvel) impendia sobre ela o dever de preterir a proposta daquela sua filha e optar pela proposta mais alta – a que foi apresentada pelo irmão AA.

b) Não foi celebrado qualquer contrato promessa de compra e venda com a filha da acompanhante como resulta da escritura de compra e venda junta ao apenso B em 30/07/2019 (referência …..) onde ficou consignado que o preço do imóvel - 40.000 - foi pago através do cheque nº …. do Novo Banco recebido no dia daquela escritura.

VII) Embora se admita que tenham sido encetadas as normais diligências de recurso ao crédito pela compradora, junto do Banco, para suportar o preço da aquisição e com isso tenha suportado algumas despesas (designadamente de avaliação de imóvel - o que, aliás, nem foi alegado ou se encontra provado), competia, mesmo assim, à acompanhante e sempre na defesa dos interesses da acompanhada, preferir a proposta mais alta na venda do imóvel e ressarcir a filha das eventuais despesas com o recurso ao crédito, as quais, como é do conhecimento geral, não ascenderão a mais de 600€.

VIII) É, assim, especulativa e infundada a conclusão vertida no douto acórdão recorrido, de que diligências necessárias à concretização da compra e venda (recurso ao crédito por parte da filha da acompanhante e obtenção da autorização para a venda por parte da acompanhante) não são compatíveis com as propostas apresentadas 15 dias antes da celebração da escritura.

IX) Optando por vender o prédio a uma sua filha, a acompanhante, fez “tábua rasa” das propostas de valor superior, que lhe foram apresentadas tempestivamente – e que até poderiam ter sido apresentadas muito antes daquelas datasse tivesse revelado aos membros do Conselho de Família e/ou aos restantes irmãos a quem escondeu o interesse da sua filha no imóvel pelo preço de 40.000€ ou até se tivesse publicitado a venda a terceiros - prejudicou a acompanhada em, pelo menos, 10.000€, incumprindo os deveres inerentes ao cargo para que foi nomeada.

X) Mas mesmo em momento anterior a esta venda, a acompanhante demonstrou a sua ineptidão e revelou incumprimento dos deveres próprios do cargo, quando conjuntamente com o marido assinou uma “declaração de cedência” de prédio rústico e transferiu dos direitos de plantio do prédio da acompanhante para um seu prédio (dela acompanhante e marido).

Na verdade

XI) A acompanhante “em representação“ da acompanhada, e sem que para tanto estivesse autorizada assinou uma declaração de cedência, através da qual o seu marido JJ i) cede gratuitamente, pelo prazo de 10 anos, à acompanhada o prédio C… para que ela o explore directamente ii) Autoriza a acompanhada a “realizar/executar investimentos, benfeitorias e melhorias das infraestruturas fundiárias necessárias à instalação da vinha, que achar necessárias, nomeadamente construções agrícolas e utilização de direitos de plantação, emitidos e/ou que entretanto venham a ser emitidos pelo IVV, para aumentar a rentabilidade do referido prédio”

XII) Munida desta “declaração de cedência”, a acompanhada adquiriu a qualidade (formal)de “exploradora” do prédio de que são proprietários a acompanhante e marido, o qual foi usado única e exclusivamente para que os direitos de plantio de que era titular e estavam associados ao seu prédio fossem transferidos para o prédio daqueles.

XIII) A transferência dos direitos de plantio também se deu de forma gratuita e sem que a acompanhante também estivesse autorizada para esse efeito.

XIV) Munida da aludida “declaração de cedência” a acompanhante e marido conseguiram junto dos organismos competentes que os direitos de plantio do prédio da interdita (a O.....) transitassem para o seu prédio e de seu marido (o C….) onde foi plantada vinha, invocando ser a acompanhada CC, exploradora deste último prédio com base naquele documento. O que acaba de referir-se resulta dos ofícios e documentos juntos a fls 112 a fls 122, onde se pode ler/extrair:

a) A autorização de plantação com o nº …. (do prédio O.....) em nome da CC foi aplicada com base numa declaração de exploração na parcela C…. na qualidade de exploradora – ofício de fls. 117;

b) Segundo informação que consta do Sistema de Identificação Parcelar do IFAP, a titular de autorização (leia-se CC) é também exploradora do prédio C...... – ofício de fls.112.

XV) Acresce que, a caderneta predial de fls. 114 (documento junto aos autos pela Direcção Regional de Agricultura e Pescas …) foi adulterada, uma vez o prédio rústico denominado C….. – artigo ….. – é e sempre foi propriedade da acompanhante e marido, como resulta da certidão junta a fls 122 e da caderneta predial obtida hoje via internet – doc. 1.

XVI) Nas cadernetas prediais apenas constam como titulares os proprietários e nunca os “exploradores”/comodatários, sendo que a remissão feita para este documento no douto acórdão recorrido é infundada.

XVII) As benfeitorias que foram realizadas no prédio da acompanhante e marido, cuja exploração apenas formalmente pertence à acompanhada, revertem para quem quando findar a exploração?

XVIII) Quando a cedência da exploração findar – ao fim dos 10 anos – a acompanhante e marido terão, necessariamente aumentado o valor do seu prédio: o que era mato passou a vinha.

XVIX) Actuando nos moldes descritos, a acompanhante DD volta a prejudicar a acompanhada CC, uma vez que todos os trabalhos para plantação de vinha foram realizados à custa do património, porque é ela a exploradora do mesmo!

XX) Se a acompanhante zelasse pelos interesses e património da acompanhada, impunha-se que replantasse o prédio desta (a O.....), o que era o que bom pai de família faria.

XXI) Quanto às movimentações da conta da acompanhada, é óbvio que poderiam o Protutor e Vogal exigir a prestação de contas, se estivéssemos perante um acto isolado da acompanhante. O que, conforme se vem de relatar, não é verdade.

XXII) Os movimentos levados a efeito na conta da acompanhada num curto período de 3 meses (de um saldo de 40.027,54€ em 24/07/2019 passou em 30/10/2019 para um saldo 4,61€) foram o culminar dos actos levados a efeito pela acompanhante em momento anterior.

XXIII) Recorda-se que o incidente de remoção teve início por causa da venda do imóvel por preço inferior às propostas apresentadas, sendo que no decurso do processo se vieram a conhecer outras actuações da acompanhante, designadamente a transferência dos direitos de plantio e a cedência de exploração com os contornos acima expostos.

XXIV) Só por último, tomaram os aqui Recorrentes e o Tribunal conhecimento de todas as transferências e levantamentos que foram feitos na conta da acompanhada e que reforçam sem dúvida a convicção que a acompanhante tem de ser removida do cargo para que foi nomeada, por falta de cumprimento adequado dos seus deveres.

Conforme referido na sentença proferida em 1ª instância “é incompreensível e injustificável a conduta da acompanhante em retirar todo o dinheiro da acompanhada da conta bancária desta, quando as necessidades mensais com despesas a nível de vestuário, calçado, higiene e alimentação e medicação ronda o valor aproximado de 900€ e esta recebe a titulo de pensão de sobrevivência de seus pais e de prestação social para a inclusão o montante global mensal de 796,83€, sendo que no ano de 2019 recebeu o valor anual de 10.511,04 e , correspondente ao valor mensal de 750,78€ (10.511,04€:14)”.

XXV) Salvo o devido respeito – que é muito – e contrariamente ao que vem referido no douto acórdão recorrido o que resulta do incidente de remoção requerido pela actual acompanhante (apenso A) contra o actual protutor (à data tutor) é que por transacção homologada por sentença de 01.06.2016, o Recorrente AA aceitou ser destituído do cargo, passando o mesmo a ser exercido pela Recorrida, mas continuado aquele a integrar o Conselho de Família, como protutor.

XXVI) Não ficou demonstrado eventual desinteresse manifestado pelo Ora Proputor relativamente à acompanhada CC, facto que, aliás, nunca aceitou e impugnou em sede da contestação então apresentada; não foi esse, por isso, o motivo pelo qual a Acompanhante foi designada para o cargo em 2016.

XXVII) Acresce que contrariamente ao referido no douto acórdão recorrido, os aqui Recorrentes (protutor e vogal) não apresentaram queixa-crime contra a acompanhante por maus-tratos. A única queixa-crime apresentada contra a acompanhante é por infidelidade, na sequência da venda do imóvel por preço inferior às propostas apresentadas, o qual corre termos na Procuradoria do Juízo de Competência Genérica …..

XXVIII) Desde que a acompanhada se encontra aos cuidados da acompanhante DD só muito excepcionalmente os outros irmãos a podem visitar, ou seja, não pode a CC beneficiar do carinho, afecto e proximidade dos irmãos porque a acompanhante “dificulta“ as visitas. O que lhes causa imensa tristeza até porque alguns deles não residindo em …, gostariam de a visitar quando aqui se deslocassem.

XXIX) Atendendo a que i) a CC - que se encontra acamada e não fala – nem sempre se encontra acompanhada (o que resulta do relatório de fls 93) ii) os dois irmãos que residem no concelho de … trabalham e, por isso, estão impossibilitados de estar em permanência com a interdita, entendem (tal como os restantes irmãos) que o melhor para a CC seria ficar na ERPI da Santa Casa da Misericórdia ….., instituição que presta aos utentes serviços e cuidados de qualidade e na qual teria sempre por perto os colaboradores (enfermeiras, auxiliares, médico….) e os familiares que a podiam visitar o que seria benéfico para a acompanhada que, desse modo, teria o calor, a proximidade e afectividade dos irmãos e demais familiares.

XXX) Não basta – estão Protutor e Vogal convictos – que a acompanhada CC se apresente cuidada, higienizada, medicada, sem alterações cutâneas ou sinais de desnutrição (o que também se alcança com os serviços prestados pela ERPI da Santa Casa da Misericórdia ….) para se dizer que a acompanhante exerce a tutela com a diligência de um bom pai de família.

XXXI) Era também necessário que a acompanhante tivesse demonstrado que tinha administrado com zelo e diligência o património da irmã. O que, todo, não aconteceu!

XXXII) Se é certo que ao acompanhante compete privilegiar o bem-estar e a recuperação do acompanhado, certo é também que aquele deve também actuar com o zelo e diligência de um bom pai de família quando o acompanhamento englobar a representação jurídica e a administração dos bens do acompanhado, caso em que seguirá o regime da tutela e o disposto nos artgs. 1967.º e seguintes, respectivamente, com as adaptações necessárias.

XXXIII) Resulta do exposto que a acompanhante DD não cumpriu de forma adequada e legal os deveres inerentes ao cargo na prossecução dos interesses da acompanhada CC, revelando ineptidão para o seu exercício, designadamente a gestão do património da acompanhada

XXXIV) O acórdão recorrido, ao revogar a sentença recorrida e ao julgar improcedente o incidente de remoção de acompanhante violou, por omissão e/ou incorrecta interpretação, do disposto nos artgs. 1948º e 1949º (aplicável por força do disposto no art. 152º) 1935º e sgts e 1967 e sgts. (aplicável por força do disposto no art. 145º / 4 e 5) e outras normas legalmente aplicáveis ao caso em apreço, mormente o art. 774 /1 a) b) e c) e 615 nº1 a), b) e d) do CPC que o torna nuloe de nenhum efeito ou quando assim não se entenda em erro de julgamento”.


5. O Ministério Público respondeu às alegações dos recorrentes, afirmando, com relevância directa para o objecto do recurso:

“(…) entendemos que não deve ser provido.

Na verdade, e sem desmerecer a posição dos recorrentes, afigura-se-nos que o aresto sob censura ponderou judiciosamente e com evidente acerto, do nosso ponto de vista, a factualidade já consolidada e que, assinale-se, de modo algum foi posta em causa.

Efectivamente, ressalta do presente acórdão a preocupação de avaliar o trato humano e prático dado pela acompanhante DD à beneficiária CC, à luz das regras substantivas que dos artigos 140 e 146, do C. Civil, dimanam.

E tão pouco algumas deficiências formais da actuação da acompanhante – ali examinadas aliás - autorizam, cremos bem, um juízo suspicaz sobre o balanço global do seu labor em tão lídima função.

De resto, e como também oportunamente se sublinha, permite a lei, com amplitude, a fiscalização dos actos do acompanhante e a sua eventual remoção – cfr. artigos 151, n.º 2, e 152, do aludido código.

Nestas condições, o recurso vertente deve soçobrar”.


6. Em 6.01.2021 proferiu a Exma. Desembargadora Relatora despacho com o seguinte teor:

Admito o recurso interposto, que é de revista, sobe nos próprios autos, com efeito suspensivo – artigos 671.º, n.º 1, 675.º, n.º 1 e 676.º, n.º 1 do CPC

Notifique e remeta ao STJ”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, é a de saber se, ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido fez errada interpretação da lei.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - A acompanhada CC nasceu em …… de 1970.

2 - Por sentença datada de 31/10/1991, proferida nos presentes autos (antigo processo de interdição n.º 34/91…), foi declarada interdita, tendo-se fixado a data do começo da incapacidade na data de nascimento.

3 - Por decisão proferida em 01/06/2016, foi nomeada como tutora DD, como protutor AA e, como vogal BB.

4 - Por decisão proferida no apenso B (autos de autorização/confirmação judicial) em 08/05/2019, a acompanhante DD foi autorizada a vender o prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho …. sob o n.º …, omisso no registo predial, propriedade da acompanhada CC, pelo preço mínimo de 40.000,00 €.

5 - Para aquisição do prédio referido em 4), a acompanhante DD recebeu as seguintes propostas:

5.1 - Em 12/04/2020, na reunião do Conselho de Família, BB, irmã da acompanhada, comunicou que oferecia o valor de 40.000,00 €;

5.2 - Em 02/07/2019, GG, irmã da acompanhada, por carta registada com prova de receção, comunicou a DD que oferecia a quantia de 45.000,00 €;

5.3- Em 10/07/2019, por carta registada, AA, irmão da acompanhada, comunicou a DD que pretendia adquirir o imóvel pela quantia de 50.000,00 € e o recheio existente na referida moradia pelo valor de 2.000,00 €.

6 - No dia 23 de julho de 2019, por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada no Cartório Notarial …. a cargo da Licenciada HH, a acompanhante DD, na qualidade de acompanhante de CC, vendeu a II, sua filha, o prédio identificado em 4), pelo preço de 40.000,00 €.

7 - Na reunião do Conselho de Família ocorrida no dia 31/10/2019, os vogais AA e BB votaram a favor da remoção de DD do cargo de acompanhante de CC.

8 - No dia 25 de julho de 2019, na visita domiciliária efetuada por parte dos serviços da Segurança Social à residência onde reside a acompanhada CC, verificou-se que esta encontrava-se bem cuidada e higienizada.

9 - CC encontra-se medicada, sem alterações cutâneas ou sinais de desnutrição.

10 - A acompanhada CC é titular de autorização de plantação com o código de ….., com período de duração de 09/12/2019 a 31/07/2022, emitida pelo Instituto da Vinha e do Vinho.

11 - Por documento datado a 10/10/2018, denominado “declaração de cedência”, JJ cedeu a título gratuito, a favor da acompanhada CC, representada por DD, a exploração do prédio rústico “C......”, inscrito na freguesia …., concelho …, sob o artigo ….., com a área de 0,595 m2, durante o período de dez anos.

12 - Os direitos de autorização de exploração referido em 10) foram transferidos para o prédio identificado em 11), da propriedade de JJ, marido da acompanhante DD, e desta.

13 - A acompanhada CC, beneficiária da Segurança Social, recebeu os seguintes montantes:

13.1 - No ano de 2016, o valor anual - 3.482,64, correspondente aos montantes de 2.123,00 € e 1.359,64 € a título de pensão de sobrevivência de seus pais, NN e OO respetivamente, e a título de subsídio mensal vitalício a quantia mensal de 176,76 €;

13.2 - No ano de 2017, o valor anual de 4.427,89, correspondente aos montantes de 3.061,45 € e 1.366,44 €, a título de pensão de sobrevivência de seus pais, acrescido do valor mensal de 177,64 € a título de subsídio mensal vitalício e do valor total de 792,96 € a título de Prestação Social para a Inclusão (pago durante o período de três meses);

13.3 - No ano de 2018, o valor anual de 4.783,02, correspondente aos montantes de 3.391,98 € e 1.391,04 € a título de pensão de sobrevivência de seus pais, acrescido do valor anual de 3.228,96 € a título de Prestação Social para a Inclusão;

13.4 - No ano de 2019, o valor anual de 4.900,14, correspondente aos montantes de 3.486,98 € e 1.413,16 € a título de pensão de sobrevivência de seus pais, acrescido do valor anual de 5.610,90 € a título de Prestação Social para a Inclusão;

13.5 - No ano de 2020, encontra-se a auferir o valor mensal de 356,01 €, correspondente aos montantes de 254,36 € e 101,65 € a título de pensão de sobrevivência de seus pais, acrescido do valor mensal de 440,82 € a título de Prestação Social para a Inclusão (componente base e complemento), perfazendo o montante global mensal de 796,83 €.

14 - Na decisão referida em 4), apurou-se que a acompanhada CC encontra-se acamada e totalmente dependente de terceiros para as mais elementares tarefas do dia-a-dia e para sua vigilância permanente, tendo necessidade de efetuar despesas a nível de vestuário, calçado, higiene, alimentação e medicação, as quais totalizam gastos mensais no valor aproximado de 900,00 €.

15 - A acompanhada CC é titular da conta bancária n.º …  da Instituição CCAM ….., CRL.

16 - Durante o período compreendido entre 23/07/2019 e 04/11/2019, foram feitos, entre outros, os seguintes movimentos bancários na conta referida em 15):

- Em 24/07/2019, depósito do valor de 40.000,00 €;

- Em 31/07/2019 foi transferido para a conta de JJ, marido da acompanhante, a quantia de 10.000,00 €;

- Em 12.09.2019, foi levantada a quantia de €5.000,00;

- Em 12/09/2019, foi efetuada uma transferência no valor de 4,000,00 €;

- Em 15/09/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 17/09/2019, foi levantada a quantia de 10.000,00 €;

- Em 24/09/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 26/09/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 03/10/2019, foi levantada a quantia de 9.000,00 €;

- Em 14/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 15/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 21/10/2019, foi levantada a quantia de 2.000,00 €;

- Em 23/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 23/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 25/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 25/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 27/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 27/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 29/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 29/10/2019, foi levantada a quantia de 200,00 €;

- Em 30/10/2019, foi levantada a quantia de 500,00 €;

- Em 30/10/2019, foi levantada a quantia de 90,00 €.

17 - No dia 30/10/2019, a conta bancária da acompanhada CC identificada em 14), apresentava o saldo final de 4,61 €.


O DIREITO


Perscrutando as conclusões da revista – que, diga-se de passagem, são menos sintéticas do que seria desejável e até exigível (cfr. artigo 639.º, n.º 1, do CPC) –, verifica-se que os recorrentes alegam que o Tribunal recorrido fez uma errada interpretação dos artigos 1948.º e 1949.º do CC (aplicáveis por força do artigo 152.º do CC) e dos artigos 1935.º e seguintes e 1967.º e seguintes do CC (aplicáveis por força do artigo 145.º, n.ºs 4 e 5, do CC) (cfr. conclusões II e XXXIV[1]).

Antes de mais, note-se que, além de pretender abranger normas indiscriminadas ou inominadas (usando a expressão “e seguintes”), os recorrentes nem sequer precisam o sentido com que as normas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas.

Em rigor, isso consubstancia exercício imperfeito ou incompleto do ónus de formular conclusões [cfr. artigo 639.º, n.º 2, al. b), do CPC]. E mesmo que não se valorize este facto, a verdade é que, por força dele, a alegação se torna, na prática, (ainda) mais incompreensível.

Aquilo que domina as conclusões – e perpassa das conclusões – é a expressão de um claro desacordo com a decisão recorrida: os recorrentes não se conformam com o decidido, podendo supor-se que entendem que as normas/os regimes invocados conduziriam a resultado diferente desde que tivessem sido bem aplicados.

Recorde-se, então, o teor das normas/dos regimes chamados à colação pelos recorrentes e veja-se se e como foram ponderados pelo Tribunal recorrido.

O artigo 1948.º do CC tem o seguinte teor:

Pode ser removido da tutela:

a) O tutor que falte ao cumprimento dos deveres próprios do cargo ou revele inaptidão para o seu exercício;

b) O tutor que por facto superveniente à investidura no cargo se constitua nalguma das situações que impediriam a sua nomeação”.

E o artigo 1949.º do CC tem o seguinte teor:

A remoção do tutor é decretada pelo tribunal de menores, ouvido o conselho de família, a requerimento do Ministério Público, de qualquer parente do menor, ou de pessoa a cuja guarda este esteja confiado de facto ou de direito”.

Quanto aos artigos 1935.º e s. e 1967.º e s. do CC, é de presumir que, através deles, os recorrentes quiseram convocar, respectivamente, os regimes da representação legal e da administração de bens dos maiores acompanhados.

Ora, lendo o Acórdão recorrido, verifica-se que a norma do artigo 1948.º do CC não só foi considerada como foi interpretada e aplicada de uma forma irrepreensível.

Entre outras passagens relevantes, pode ler-se, logo de início, a título de enquadramento, na fundamentação:

Nos termos do disposto no artigo 146.º, n.º 1 do Código Civil (redação dada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, que criou o regime jurídico do maior acompanhado) “No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada”, acrescentando o artigo 140.º, n.º 1 do mesmo Código que “o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres”.

Já no anterior regime da interdição, o artigo 145.º do CC estipulava que o tutor deve cuidar especialmente da saúde do interdito (podendo para esse efeito alienar os bens deste, obtida a necessária autorização judicial), o que conduzia ao comentário de Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, pág. 154, de que à cabeça dos deveres do tutor deve estar o de cuidar da saúde do interdito, sendo esse o fim principal da tutela.

Hoje, relativamente ao âmbito e conteúdo do acompanhamento, está previsto que a representação legal segue o regime da tutela, com as necessárias adaptações - artigo 145.º, n.º 4 do CC - prevendo-se que, para além do cuidado com a pessoa do acompanhado (defesa da vida, preservação da saúde, manutenção do sustento), a tutela engloba, ainda, a representação jurídica e a administração dos bens do acompanhado”.

E, mais adiante, afirma ainda o Tribunal a quo:

Revertendo à questão que aqui nos é colocada e considerando que, nos termos do disposto no artigo 1948.º do Código Civil (aplicável por força do disposto no artigo 152.º do mesmo Código), pode ser removido da tutela:

a) O tutor que falte ao cumprimento dos deveres próprios do cargo ou revele inaptidão para o seu exercício;

b) O tutor que, por facto superveniente à investidura no cargo se constitua nalguma das situações que impediriam a sua nomeação.

há que averiguar se estão reunidos os pressupostos para a remoção da acompanhante do cargo que vem desempenhando.

Ora, considerando tudo o que vimos dizendo, onde releva, o tipo de incapacidade de que sofre a acompanhada, a sua relação com a acompanhante, em casa de quem vive, e que tudo fez para lhe garantir condições de vida dignas e assegurar o seu bem-estar, por oposição ao irmão, anterior tutor, que se desinteressou dela e que agora faz parte do conjunto de irmãos que tudo tem feito para desacreditar a acompanhante (incluindo queixas-crime) e, considerando, ainda que a (nova) acompanhante nomeada na sentença recorrida, inscreveu já a acompanhada (que tem, atualmente, 50 anos de idade) numa estrutura residencial para idosos, por não ter condições para tomar conta dela (retirando-a, de forma abrupta, de casa da irmã, onde tem vivido nos últimos anos, em condições de bem-estar físico, psíquico e emocional), entendemos que deve proceder a apelação, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se improcedente o incidente de remoção de DD do cargo de acompanhante de CC.

Chamamos a atenção para o facto de que a componente de administração dos bens da acompanhada, levada a cabo pela acompanhante, pode e deve ser seguida pelo tribunal através da prestação de contas judicialmente determinada, nos termos do artigo 151.º, n.º 2 do CC, quando e se se revelar oportuno e necessário, não esquecendo que o acompanhante pode usar o património da acompanhada para se ressarcir de despesas (tal como já ficou decidido na sentença de autorização de venda do imóvel)”.

O que o Tribunal recorrido fez foi, em suma, analisar a decisão sobre a matéria de facto e concluir que não havia razão, à luz do artigo 1948.º do CC, para uma imediata ou automática remoção da acompanhante da maior.

A leitura da fundamentação da decisão permite destacar dois aspectos.

Em primeiro lugar, destaca-se a preocupação dominante do Tribunal recorrido de assegurar, tanto quanto possível, a dignidade e o bem-estar da maior. Repare-se, entre outras coisas, que, se outra fosse a decisão, existia o sério risco de a maior ser encaminhada para um lar de idosos.

Quer isto dizer, numa palavra, que o critério decisivo ou determinante para manter a acompanhante foi o interesse da maior, o que corresponde, indiscutivelmente, ao desígnio principal da lei (cfr. artigo 140.º, n.º 1, do CC)[2].

Em confirmação, veja-se o que diz Carlos Ferreira de Almeida:

A seleção e a graduação das medidas de acompanhamento são flexíveis e devem ter em conta, em cada decisão judicial pessoalmente adequada, os objetivos e os princípios do instituto: autonomia, bem-estar (artigo 140º, nº 1, 1ª parte) e dignidade do acompanhado, com os consequentes princípios de supletividade (artigo 140º, nº 233) ou subsidiariedade, necessidade (artigo 145º, nº 1) e proporcionalidade [3].

E veja-se ainda António Pinto Monteiro:

Eectivamente, este é o objectivo do acompanhamento do maior, destinado a assegurar o bem-estar deste, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (…).

Essa preocupação pelo bem-estar e recuperação do acompanhado está também presente nos deveres de cuidado e diligência que, na “concreta situação”, o acompanhante deve respeitar (art.º 146.º). Atente-se na referência permanente à situação concreta de cada deficiente, adequando as medidas a adoptar a cada caso concreto, bem longe da incapacidade geral do regime dos interditos. Mas em que consiste ou se traduz o acompanhamento? É fundamental, a este respeito, atender ao disposto no art.º 145.º, norma que evidencia bem as vantagens deste novo regime, em confronto com o regime anterior: o regime do acompanhamento goza de maior flexibilidade – rejeita o tudo ou nada da interdição –, respeita, sempre que possível, a vontade do beneficiário e a sua autodeterminação, limita-se ao necessário e permite ao tribunal escolher e adequar, em cada situação concreta, as medidas que melhor possam contribuir para alcançar o seu objectivo, que é, repete-se, o de assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno exercício da sua capacidade de agir [4].

Em segundo lugar, há que salientar o cuidado com a vertente da administração dos bens da maior: reconhecendo existirem suspeitas atinentes à movimentação da conta, lembrou o Tribunal recorrido que havia apenas que aplicar o instrumento da prestação de contas, previsto no artigo 151.º, n.º 2, do CC.

Pode concluir-se, assim, que nenhum dos aspectos relevantes do regime do maior acompanhado foi negligenciado pelo Tribunal recorrido.

Quanto ao artigo 1949.º do CC e aos restantes regimes, não se vê como poderiam ter sido objecto de interpretação indevida e, mesmo que assim fosse, como poderia tal interpretação ser determinante para a decisão adoptada a final.

Em síntese, analisado todo o processo decisório do Tribunal recorrido, nada se encontra que se lhe possa ou deva censurar. Foram aplicadas ao caso as normas aplicáveis ao caso e foi feita destas normas a interpretação correcta.


*


III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


*


Custas pelos recorrentes.

*


Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano


Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.



_______

[1] Nesta última conclusão fazem uma referência ainda mais genérica à violação de outras normas aplicáveis ao caso “mormente o art. 774 /1 a) b)e c)e 615 nº1 a) ,b) e d) do CPC”.

[2] Para um estudo desenvolvido do regime do maior acompanhado cfr. António Menezes Cordeiro, “Da situação jurídica do maior acompanhado. Estudo de política legislativa relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maiores”, in: Revista de direito civil, 2018, pp. 473 e s.

[3] Cfr. Carlos Ferreira de Almeida, “Capacidade e incapacidades contratuais dos maiores acompanhados”, in: Revista de direito comercial. Edição especial — Liber amicorum Professor Doutor Pedro Pais de Vasconcelos, 2020, pp. 1051 e s. (pp. 1065-1066).

[4] Cfr. António Pinto Monteiro, “Das incapacidades ao maior acompanhado – Breve apresentação da Lei n.º 49/2018”, in: AA.VV., O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Centro de Estudos Judiciários – Coleção Formação Contínua – Jurisdição Civil e Processual Civil, Fevereiro de 2019, pp. 23 e s. (p. 35) (disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf).