Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1521/06.7TBALQ.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: USUCAPIÃO
RECONHECIMENTO DO DIREITO
PRESCRIÇÃO
RENÚNCIA
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. São aplicáveis à aquisição do direito de propriedade por usucapião os preceitos que regulam a renúncia e a interrupção da prescrição extintiva, nos termos dos arts. 302º e 325º, ex vi art. 1292º do CC.

2. Persistindo a situação de posse de imóvel há mais de 20 anos, de forma continuada e pacífica e sem oposição de ninguém, o facto de os possuidores, cerca de 6 meses antes da dedução do pedido de reconhecimento da aquisição do direito de propriedade por usucapião, terem procurado junto dos réus, em cujo nome o imóvel está registado, a formalização da compra e venda, não tem o significado nem de renúncia à usucapião, nem de reconhecimento do direito com efeito interruptivo do prazo de prescrição aquisitiva.

A.G.

Decisão Texto Integral:

__________________

I - AA e BB propuseram acção declarativa contra CC e DD, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio rústico, a condenação dos RR. na sua restituição e na demolição da vedação, do portão e da habitação e demais construções clandestinas que nele construíram, assim como no pagamento de uma indemnização pela ocupação ilícita mesmo, no valor de € 15.000,00 por ano, desde a data da propositura da acção, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal de 4%.

Alegam que adquiriram, por sucessão mortis causa e por compra, um prédio rústico que os RR. ocupam, tendo estes implantado nele uma construção onde passaram a habitar, e tendo edificado nele diversas construções e casotas de cão, procedendo à sua vedação e colocação de um portão, sem autorização dos AA. ou dos seus antecessores.

Os RR. contestaram e invocaram a aquisição do prédio por usucapião, na sequência de uma compra verbal que fizeram a EE e FF, em 16-9-85, data a partir da qual passaram a exercera posse sobre o mesmo, cultivando-o e habitando e usando as construções que nele existiam, tendo ainda efectuado a inscrição na matriz predial em 1989.

Impugnaram a factualidade alegada pelos AA. quanto ao rendimento propiciado pela exploração do prédio e alegaram que se dispuseram a pagar € 15.000,00 a um tio dos AA. e, depois, a estes, como contrapartida da obtenção da documentação necessária para a celebração de escritura de compra e venda.

Deduziram ainda reconvenção, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade e a condenação dos AA. a absterem-se da prática de actos ofensivos desse direito, bem como o cancelamento do registo predial que existe a favor dos AA.

Os AA. apresentaram réplica, na qual impugnaram a versão dos RR. respeitante à aquisição do prédio por usucapião, alegando que não decorreu o respectivo prazo e que o prédio esteve sucessivamente arrendado a GG e ao genro deste, o qual prometeu vender o prédio a EE e a FF quando o adquirisse, usando o prédio por mera tolerância dos proprietários.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e procedente a reconvenção, declarando que os RR. adquiriram por usucapião a propriedade do prédio e condenando os AA. a absterem-se da prática de actos ofensivos do direito de propriedade. Foi ainda ordenado o cancelamento dos registos de aquisição.

Os AA. apelaram e a Relação confirmou a sentença.

Recorreram os AA. suscitando as seguintes questões:

a) Consideram que os anteriores ocupantes do prédio não tinham a qualidade de possuidores, mas de meros detentores precários, de modo que a venda verbal que EE e FF fez aos RR. não era susceptível de lhes transmitir a posse do prédio;

b) Advogam que mesmo que se considere a sua qualidade de possuidores, o período durante o qual os RR. exerceram a posse não reúne as características para a invocação da usucapião;

c) Pretendem que se reconheça que a diligência efectuada pelos RR. junto dos AA. no sentido da outorga de uma escritura de compra e venda do prédio, mediante o pagamento de uma contrapartida, equivale à renúncia tácita ao direito de invocação da prescrição aquisitiva, nos termos do art. 302º, ou ao reconhecimento do direito pare efeitos de interrupção da prescrição, nos termos do art. 325º do CC;

d) Consideram que a mesma diligência revela a extinção do animus referente à sua qualidade de possuidores, passando a ser meros detentores;

e) Concluem que mesmo que assistisse aos RR. o direito de invocação da usucapião, o comportamento que adoptaram nos meses anteriores à dedução do pedido de reconhecimento do direito de propriedade por via da usucapião representa uma situação de abuso de direito.

Houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Factos provados:

1. Pelas apresentações n° 6, de 06/03/2006, e nº 1, de 28/08/2006, foi inscrita na CRP de Alenquer, a favor do A. AA e Carmo, a aquisição por partilha e por compra, do direito de propriedade respeitante ao prédio rústico denominado "Contrabandista", sito em Sítio do Contrabandista, aí descrito sob a ficha n°2.126 de Triana, Alenquer – A) e cert. de fls. 21 a 23;

2. Dessa descrição consta que esse prédio tem a área de 23.840 m2é composto de cultura arvense, pereiras, vinha, oliveiras, macieiras e dependência agrícola, e encontra-se inscrito na matriz predial rústica da respectiva freguesia sob o art. 6, Secção D – B) e cert. de fls. 21 a 23;

3. Após a morte de GG, HH, passou a cultivar o prédio – 33º;

4. HH e o seu cunhado II, venderam verbalmente o prédio a EE e FF, em 1-10-75 – 8º;

5. HH cultivou o prédio durante, pelo menos, 6 anos e, depois dele, EE e FF cultivaram-no durante, pelo menos, 10 anos – 14º e 15º;

6. Além disso, EE e FF construíram no prédio um barracão metálico que depois os RR. transformaram na sua casa de habitação, fazendo-o, um e outro, à vista de todos e sem nunca terem sido perturbados por quem quer que fosse - 16º, 17°, 18º e 37°;

7. Por sua vez, EE e FF, venderam verbalmente o prédio aos RR., no dia 16-9-85, pelo preço de PTE 2.500.000$00/12.469,95€, que foi pago – 9º;

8. Antes desta última venda, todos na terra consideravam que o prédio pertencia a EE e FF e, após essa venda aos RR., que o prédio pertencia a estes – 12º e 13º;

9. Os RR. residem na construção pré-existente no prédio, que transformaram em habitação, ininterruptamente, desde o dia 16-9-85, aí pernoitando, tomando diariamente as suas refeições, cuidando das suas roupas e utensílios domésticos, recebendo amigos e correspondência – 19º e 20º;

10. Os RR. procederam a obras nessa construção - efectuando-lhe divisões, remodelando-lhe o telhado e transformando o barracão numa casa de habitação de r/c com 2 assoalhadas, cozinha e casa de banho - que deram origem à habitação onde residem, com a área de 75 m2, a qual tem adjacente um logradouro com igual área, bem como edificaram aí diversas construções anexas - barracões e casotas para cães - destinadas, designadamente, à criação de animais e arrecadação de produtos e alfaias agrícolas – C) e 1º, 2º, 21°, 22°, 23° e 24°;

11. Essas edificações/obras realizadas pelos RR. no prédio tiveram início a partir de Setembro de 1985 e as realizadas na casa de habitação terminaram em data não concretamente apurada, situada entre 1990 e 1991 - 25°;

12. Essa habitação com logradouro encontra-se inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Triana, Alenquer, sob o art. 2114, desde 1989, em nome do R. - D);

13. Na parte rústica do prédio, os RR. abriram um poço, fizeram uma horta e plantaram uma vinha e diversas árvores de fruto – 26º e 27º;

14. Os RR. "puxaram" a electricidade para o prédio, para o que construíram nele uma cabine, a suas expensas, passando desde então a pagar a electricidade, que é facturada em nome do R. - 28° e 29°;

15. Os RR. arranjaram a estrada de acesso do prédio até ao IC-2, com uma retroescavadora e colocação de tout-venant, vedando-a totalmente com arame e paus – 30º;

16. Os RR. procederam à vedação do prédio com paus e arame e colocaram um portão na entrada do mesmo - 3° e 50º;

17. Todos estes actos dos RR. foram praticados à vista de toda a gente, sem que ninguém se tenha oposto à sua prática – 31º;

18. Em 26-12-05, foi apresentada por JJ, na Câmara Municipal de Alenquer, um requerimento solicitando a fiscalização de uma construção edificada no prédio pelo R.– 54º;

19. Os RR., nos últimos 6 meses, manifestaram sucessivamente a JJ e ao A. a sua pretensão de formalização da aquisição do prédio, mediante o pagamento de contrapartida monetária – 4º;

20. Os RR. mantêm a ocupação do prédio e não tencionam entregá-lo – 5º.

III – Decidindo:

1. A revista não tem a menor razão para proceder, devendo confirmar-se o acórdão recorrido.

Na verdade, a presunção da titularidade do direito de propriedade do prédio reivindicado que para os AA. advém do registo predial, desde 2006, cede perante a presunção que decorre do facto de os RR. serem possuidores do mesmo prédio desde data anterior (art. 1268º do CC).

Para além disso, mais do que a mera qualidade de possuidores, aos RR. deve ser reconhecida a qualidade de proprietários do prédio por via da usucapião, atento o período em que perdurou a sua posse.

Com efeito, pelo menos desde 1-10-75 que o exercício de poderes de facto inerentes ao direito de propriedade do prédio em discussão nestes autos tem sido feito por quem não era efectivamente proprietário, mas agia como tal.

Assim, após a morte de GG, durante, pelo menos, 6 anos HH cultivou o prédio dos autos. Este prédio, em 1-10-75, foi objecto de venda verbal por parte de HH e do seu cunhado II a EE e a FF que, a partir de então, exerceram a posse exteriorizada através do seu cultivo durante, pelo menos, 10 anos.

Em tese, estes actos poderiam também servir para qualificar uma situação de arrendamento. Mas para além de nada se ter provado a respeito deste direito pessoal de gozo, o certo é que os mesmos actos são também aptos a qualificar o poder de quem exercia sobre o imóvel o direito de propriedade que é invocado nesta acção.

Dúvidas não existem de que, a partir de 1-10-75, aquando da efectivação da venda verbal do prédio a EE e a FF, estes se assumiram, em termos objectivos, como verdadeiros proprietários do prédio que passaram a cultivar e no qual construíram um barracão metálico. A demonstrá-lo está o facto de serem generalizadamente considerados como donos do mesmo prédio.

Assim, nada se provando acerca de uma diversa qualidade que tenha rodeado a prática dos referidos actos materiais, somos levados a afirmar, por via de presunção legal, que lhes correspondia uma situação de verdadeira posse reportada ao direito de propriedade, nos termos do art. 1252º, nº 2, do CC, na interpretação dada pelo Assento deste STJ, de 14-5-96, no DR de 24-6-96 (agora com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência), segundo o qual “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for elidida, os que exercem os poderes de facto sobre uma coisa”.

Depois dos 6 anos anteriores em que o prédio fora cultivado por HH aquela situação de posse perdurou durante pelo menos 10 anos, até que no dia 16-9-95 por EE e FF foi efectuada uma venda verbal ao ora R. que lhes pagou a quantia de PTE 2.500.000$00.

Sendo esta a situação que verdadeiramente nos importa para efeitos de apreciação do pedido de reconhecimento do direito de propriedade, não restam dúvidas nem quanto ao facto de os RR. terem sucedido na posse que lhes foi transmitida pelos referidos “vendedores” (acessão da posse, nos termos do art. 1256º do CC), nem quanto à natureza possessória dos actos que praticaram no período subsequente.

Na verdade, de forma ainda mais acentuada do que sucedera com os antecessores na ocupação e cultivo do prédio, os RR. assumiram-se como verdadeiros proprietários, multiplicando e exteriorizando a prática de actos que inequivocamente são inerentes à qualidade de proprietários.

Consumada esta venda verbal, logo os RR. transformaram o barracão metálico que os antepossuidores tinham edificado no prédio na sua casa de habitação, na qual passaram a residir com carácter de permanência. Ao mesmo tempo que instalaram no local a sua residência permanente, os RR. abriram um poço, fizeram uma horta, plantaram uma vinha e diversas árvores de fruto e puxaram a electricidade para o prédio, para o que construíram nele uma cabine, a suas expensas, passando desde então a pagar a electricidade, que é facturada em seu nome. Arranjaram a estrada de acesso ao prédio e procederam à sua vedação com paus e arame, colocando um portão na entrada, tudo feito à vista de toda a gente, sem que ninguém se tenha oposto à sua prática. Mesmo em termos administrativos promoveram a inscrição da habitação em seu nome na matriz predial urbana.

Por tudo isto, tal como já acontecia com os “vendedores”, são generalizadamente considerados proprietários do prédio.

Ao invés do que advogam os recorrentes, os RR., tal como os seus antecessores, reúnem as condições para serem qualificados como verdadeiros possuidores do prédio, uma vez que, exercendo materialmente os poderes de facto inerentes ao direito de propriedade, incluindo actos de frutificação ou de administração ordinária e actos de administração extraordinária, não foi elidida a presunção de posse que daí advinha, só assim se compreendendo o envolvimento que resultou da prática de actos materiais que se caracterizaram por profundas modificações estruturais que efectuaram no prédio sem que os AA. alguma vez tivessem revelado por alguma forma idónea oposição à mesma.

Atalhando argumentos, verifica-se que tendo os ora RR. adquirido a posse do prédio em 1985, com a celebração da compra e venda verbal, quando foi deduzida a reconvenção já haviam transcorrido mais de 20 anos em que, como possuidores, exerceram de forma pública e pacífica os poderes inerentes à titularidade do correspondente direito de propriedade.

Assim, sem necessidade sequer de aproveitamento a seu favor do período em que a posse com semelhantes características foi exercida pelos antepossuidores, no decénio anterior a 1975, a posse que foi e vem sendo exercida pelos RR. permite, por si, a invocação da aquisição do direito de propriedade por usucapião.

Afinal, tratando-se de posse pública e pacífica (arts. 1261º e 1262º), de boa fé (art. 1260º, nº 1), e não titulada (art. 1259º do CC), a aquisição do direito de propriedade pode ser invocada logo que decorrido o período de 15 anos, nos termos do art. 1297º, todos do CC.

Por conseguinte, ainda que se considere apenas o período atinente à posse exercida pelos RR., não há qualquer dúvida quanto à legitimidade de invocação da prescrição aquisitiva do direito de propriedade que, importando na improcedência da acção, determina a procedência do pedido reconvencional. Conclusão que resulta ainda mais evidente quando se pondera o período durante o qual foi exercida a posse por parte dos antecessores.

2. Contra esta asserção invocam os AA. o facto de nos últimos 6 meses, reportados à data de apresentação da contestação-reconvenção, os RR. terem manifestado sucessivamente a JJ e ao A. a pretensão de formalização da aquisição do prédio, mediante o pagamento de uma contrapartida monetária.

Tal actuação não tem força suficiente para contradizer nem o facto de serem possuidores, nem a aquisição do direito de propriedade que nessa ocasião já havia sido adquirido por via da usucapião.

Atento o disposto no art. 1292º, à prescrição aquisitiva é aplicável o regime da interrupção da prescrição previsto no art. 325º do CC, preceito segundo o qual a interrupção decorre do reconhecimento do direito efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido. Reconhecimento que pode ser tácito, em resultado de factos que inequivocamente o exprimam.

Também é aplicável o disposto no art. 302º do CC sobre a renúncia à invocação da prescrição em casos de reconhecimento do direito, neste caso com efeitos que se projectam na inutilização de todo o prazo já decorrido (cfr. o Assento do STJ nº 11/94, nos termos do qual “a renúncia da prescrição permitida pelo art. 302º do CC só produz efeitos em relação ao prazo prescricional decorrido até ao acto de renúncia, não podendo impedir os efeitos de ulterior decurso de novo prazo”).

Sobre esta questão, apurou-se tão só que “os RR., nos últimos 6 meses, manifestaram sucessivamente a João Pedro Catalão de Oliveira e Carmo e ao A. a sua pretensão de formalização da aquisição do prédio, mediante o pagamento de contrapartida monetária”.

Tal factualidade não representa de modo algum uma forma de reconhecimento expresso do direito de propriedade nem para efeitos de interrupção nem de renúncia à prescrição. Tão pouco se pode qualificar como reconhecimento tácito. Em boa verdade, tratou-se de uma mera diligência dos RR. no sentido de conseguirem regularizar a situação jurídica do prédio que se arrasta há longo tempo, não produzindo o efeito interruptivo ou abdicativo do prazo prescricional em curso.

Situações como a vertente são, aliás, muito comuns no âmbito de contrato-promessa de compra e venda em que tenha sido paga a totalidade do preço, com entrega da fruição da coisa ao promitente-comprador.

Em princípio, o contrato-promessa, ainda que com tradição da coisa, não constitui meio próprio para conferir ou transmitir a posse, correspondendo aquela tradição, em regra, à mera concessão de um direito pessoal de gozo a favor do promitente-comprador, sem afectar nem a titularidade do bem, nem a sua posse que permanecem na pessoa do promitente-vendedor.

Mas as circunstâncias que rodeiam os contratos-promessa de compra e venda não se inscrevem necessariamente nesses estritos quadros lógico-formais, podendo deles emergir por vezes uma verdadeira situação de posse susceptível de determinar a aquisição do direito de propriedade por usucapião. Tal ocorre, designadamente nas situações em que o promitente-vendedor, depois de ter recebido a totalidade ou uma parte substancial do preço, se demite dos poderes inerentes ao seu formal direito de propriedade, transferindo-os para o promitente-comprador, ficando a faltar apenas a formalização da compra e venda que por vezes é dificultada por obstáculos legais.

Nestas ou noutras situações em que o promitente-comprador passa a assumir a qualidade de verdadeiro possuidor, e não de mero detentor titular de um direito de natureza pessoal, o facto de diligenciar junto do promitente-vendedor pela formalização da compra e venda não significa necessariamente uma atitude de recusa da qualidade de possuidor ou de proprietário. Em regra, tal diligência preparatória não colide com a qualidade de possuidor que efectivamente detém, devendo ser interpretada como mera tentativa de, por via extrajudicial, alcançar a formalização da transmissão do bem, estabelecendo a coincidência entre a titularidade da posse e a titularidade do direito de propriedade.

Tal como referem os RR., diligências de pendor semelhante são comummente utilizadas em situações em que por algum motivo não existe a possibilidade ou a conveniência de recurso à escritura de justificação notarial ou à acção de justificação judicial para alcançar um título de aquisição susceptível de permitir o registo predial do direito de propriedade em nome do possuidor, optando os interessados pela emissão consensual de um título que, sem contrariar a qualidade de possuidor, permite formalizar a transferência do direito de propriedade que materialmente já se constituíra em resultado de uma situação de posse duradoura.

O mesmo ocorre em situações como a vertente, em que, depois de um dilatado período em que a posse se manteve na esfera dos RR., estes procuraram junto dos titulares do direito de propriedade a formalização da transferência do direito de propriedade que, apesar daqueles antecedentes, continuava registado em nome dos AA.

Tratando-se de uma actuação isolada e que, além disso, ocorreu no final de um longo período em que os RR. efectivamente se assumiram como verdadeiros proprietários do prédio e em que já lhes era lícito invocar a aquisição do direito de propriedade por usucapião, a mesma não tem de modo algum o significado que os AA. lhe pretendem atribuir. Para além de não lhe corresponder nem a interrupção, nem a renúncia à prescrição, também não pode concluir-se, como pretendem os recorrentes, que tal conduta infirma a existência do elemento subjectivo da posse (animus).

Numa situação que perdurava há mais de 20 anos, os argumentos formais apresentados pelos AA. não fazem mossa nos pressupostos materiais da pretensão deduzida pelos RR., sendo manifesto que estes, com a sua actuação, apenas procuraram evitar as dificuldades inerentes ao reconhecimento do direito por via da usucapião.

Neste contexto, o facto de terem actuado em duas frentes (pela via consensual e pela via jurisdicional) não pode funcionar em seu prejuízo, nem é bastante para infirmar a sua qualidade de possuidores ou para inutilizar, por interrupção do prazo ou por renúncia, a posse anterior.

Em situações como a dos autos em que a assunção de poderes de facto pelos possuidores conviveu durante um largo período de tempo sem que da parte dos AA. tivesse havido qualquer reacção de oposição, não há dúvidas de que estão presentes todos os ingredientes que, além de justificarem a qualificação da situação como verdadeira posse, impedem que se atribua à tentativa de resolução empreendida pelos RR. os efeitos impeditivos da usucapião que os AA. pretendem.

3.Também não existe motivo algum para imputar aos RR. uma actuação que possa integrar a figura do abuso de direito, a exigir uma actuação flagrantemente violadora das regras da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito, nos termos do art. 334º do CC.

Num quadro em que a posse exercida pelos RR. se arrastava há mais de 20 anos e em que, além disso, também beneficiavam da posse com semelhantes características que fora exercida pelos antecessores durante, pelos menos, mais 10 anos, para além de ser inequívoca a conjugação de elementos propiciadores da invocação da qualidade de proprietários, a atitude conciliadora adoptada pelos RR. de modo algum encontra no citado dispositivo um efeito impeditivo ou abdicativo do reconhecimento do direito de propriedade.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo dos recorrentes.

Notifique.

Lisboa, 18-6-14

Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva