Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
030118
Nº Convencional: JSTJ00004323
Relator: CARLOS DE MIRANDA
Descritores: REINCIDÊNCIA
HOMICÍDIO INVOLUNTÁRIO
OFENSAS CORPORAIS INVOLUNTÁRIAS
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ196007150301183
Data do Acordão: 07/15/1960
Votação: MAIORIA COM 4 VOT VENC
Referência de Publicação: DG IªS DE 09-08-1960 ; BMJ 99 , 570
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 5/1960
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP886 ARTIGO 35 PAR2 ARTIGO 36 ARTIGO 84 ARTIGO 100 ARTIGO 101 ARTIGO 368 ARTIGO 369 ARTIGO 482.
CE54 ARTIGO 5 N2 N5 ARTIGO 6 N2 N8 ARTIGO 7 N1 N3 N7 ARTIGO 58 N4 ARTIGO 59 ARTIGO 61 N2 D.
DL 40275 DE 1955/08/08.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1957/03/20 IN BMJ N65 PAG351.
ACÓRDÃO STJ DE 1958/07/09 IN BMJ N79 PAG361.
ACÓRDÃO STJ DE 1958/07/30 IN BMJ N79 PAG391
ASSENTO STJ DE 1949/07/12 IN BMJ N14 PAG81.
ASSENTO STJ DE 1959/12/09 IN BMJ N92 PAG306.
Sumário :
Os crimes culposos de homicídio e de ofensas corporais não são da mesma natureza, para efeitos de reincidência.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A Relação do Porto decidindo o recurso interposto pelo Ministério Público da sentença do juíz da comarca de Esposende, que condenou o réu A, por ter praticado o crime previsto e punido nas disposições combinadas dos artigos 368 do Código Penal, 58, n. 4, 59 (in fine) com referência aos ns. 2 e 6 do artigo 5, aos ns. 2 e 8 do artigo 6, ao artigo 7, designadamente aos ns. 1, 3 e 7 e n. 1 do artigo 61 (manobras perigosas) todos do Código da Estrada, porquanto ao conduzir o seu veículo ligeiro M-P atropelou mortalmente o menor B, atenta a circunstância de ter havido no caso concorrência de culpas, substituiu por multa a 30 escudos diários a pena de 10 meses de prisão aplicada ao réu, aumentou a indemnização, confirmando no mais a sentença, salvo quanto a inibição de conduzir, que elevou para um ano.
Subindo a este Supremo Tribunal o recurso dessa decisão interposto pelo Ministério Público, foi proferido a folhas 202 e seguintes acórdão, que em face do certificado de folhas 85, que mostra ter sido o réu condenado anteriormente, por sentença de 12 de Janeiro de 1955 como autor do crime do artigo 369 do Código Penal, - deu como verificada no caso a agravante de reincidência, por serem da mesma natureza o crime anterior e o presente, como revela o confronto entre os textos dos citados artigos 368 e 369.
E assim, atento o disposto nos preceitos atrás referidos e no artigo 84 do daquele Código, condenou o réu pelo crime de homicídio involuntário, agravado nos termos do artigo 58, n. 4 e do artigo 59, in fine, ambos do Código da Estrada, em 8 meses de prisão e outros tantos de multa a 30 escudos diários e fixou a indemnização em 50 mil escudos, confirmando as penas correspondentes às contravenções.
Quanto a medida de segurança, fixou em 2 anos o período de inibição do direito de conduzir, nos termos da alínea d) do n. 2 do artigo 61 do citado Código da Estrada.
Desse acordão interpôs o réu A recurso para o Tribunal Pleno, por estar em manifesta oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma matéria de direito, com os seguintes acordãos do mesmo Alto Tribunal, transitados em julgado: a) No que respeita à reincidência, com o acórdão de 20 de Março de 1957, publicado no Boletim, n. 65, página 351; b) No que respeita ao agravamento do n. 4 do artigo 58 do Código da Estrada com o acórdão de 9 de Julho de 1958, publicado no Boletim, n. 79, página 361; c) No que respeita à medida de segurança, com o acórdão de 30 de Julho de 1958, publicado no Boletim, n. 79, página 391.
Admitido o recurso, apresentou o recorrente a sua alegação mostrando a oposição, que consistiu: a) Quanto a reincidência:
O acórdão recorrido decidiu que os crimes culposos dos artigos 368 e 369 (homicídio e ofensas corporais) são da mesma natureza. Em contrário, decidiu o acórdão de 20 de Março de 1957 declarando que os ditos crimes não são da mesma natureza, não havendo lugar a reincidência; b) Quanto ao agravamento da pena:
O acórdão recorrido entendeu que o crime do artigo 59, in fine, do Código da Estrada é passível de agravamento em face do disposto no n. 4 do do artigo 58 do mesmo diploma.
Em contrário, decidiu o acórdão de 9 de Julho de 1958 julgando que não havia lugar ao indicado agravamento, por se não ter provado qualquer agravante e assim, o minimo da pena aplicável em prisão era de 6 meses. c) Quanto à medida de segurança:
No acórdão recorrido julgou-se que na hipótese dos autos (homicídio culposo) era de aplicar o n. 2, alínea d), do artigo 61 do Código da Estrada.
No acórdão indicado, de 30 de Julho de 1958, entendeu-se o contrário - ou seja, que aquela disposição só é de aplicar quando o condutor, no exercício da condução, pratica qualquer crime doloso.
O Ministério Público, parte contrária, respondeu admitindo a primeira oposição, mas não a segunda por não haver oposição expressa entre os acórdãos invocados sobre a questão da aplicabilidade do n. 4 do artigo 58 no caso do artigo 59, ambos do Código da Estrada.
Quanto à terceira oposição, disse que essa questão pende de igual recurso ao tribunal pleno versando a mesma matéria em discussão.
A folhas 226 foi proferido acórdão decidindo dar por findo o recurso quanto ao segundo problema, e mandando prosseguir relativamente aos dois restantes.
Na sua alegação mantem o recorrente o que disse em justificação das duas oposições em causa, e concluiu por pedir que se decidisse: a) Que os crimes culposos dos artigos 368 e 369 do Código Penal não são da mesma natureza; b) Que não é de aplicar a medida de interdição de conduzir atrás referida, porque essa disposição só é de aplicar quando o condutor, no exercício da condução, pratique qualquer crime doloso ou quando utilize o veículo ou a licença de condução para o preparar ou executar; c) Que a pena aplicada ao recorrente seja alterada, nos termos expostos nessa alínea.
A folhas 240 emitiu o excelentissimo representante do Ministério Público junto deste tribunal o seu douto parecer concordando com o que foi decidido por este Supremo no acórdão recorrido, quanto ao primeiro problema. Quanto ao segundo, entende que a medida de segurança em discussão é aplicável quer ao caso do crime doloso, quer ao crime culposo cometido no exercício da condução.
Corridos os vistos de todos os juízes deste tribunal cumpre decidir.
Tudo visto:
Na pendência do presente recurso foi decidida a questão ventilada na segunda oposição - ou seja quanto a medida de segurança, proferindo-se o assento de 9 de Dezembro de 1959, publicado no Diário do Governo,
I Série, de 7 de Janeiro último, e no Boletim, n. 92, página 306, nestes termos:
"O disposto na alínea d) do n. 2 do artigo 61 do Código da Estrada abrange o crime doloso e o crime culposo".
Assim, julga-se prejudicado o recurso respeitante a essa matéria.
No caso sub judice está, pois, apenas em discussão saber o que são crimes da mesma natureza, nos termos e para os efeitos do corpo do artigo 35 do Código Penal e, particularmente, se os crimes culposos de homicídio e de ofensas corporais são ou não da mesma natureza para efeitos de reincidência.
Pronunciou-se pela afirmativa o acórdão recorrido.
Defende o contrário o recorrente, invocando em defesa da sua tese o acórdão deste Supremo Tribunal, de 20 de Março de 1957 (ver Boletim, n. 65, página 351).
Vejamos.
O único argumento em que se apoia o acórdão recorrido apenas considera uma face do problema: o aspecto subjectivo.
Assim, dada a violação culposa dos mesmos preceitos e atenta a afinidade dos mesmos deveres violados, - aquela decisão conclui que são da mesma natureza os crimes dos artigos 368 e 369 do Código Penal.
A aceitar-se essa doutrina, logicamente seriam da mesma natureza, por violarem os mesmos preceitos, os crimes culposos de incêndio e de dano, previstos no artigo
482 do mesmo Código, quando é manifesta a diversidade de natureza de tais crimes.
No aspecto subjectivo, a lei apenas exige que os crimes sejam ambos dolosos ou ambos culposos (parágrafo 2 do artigo 35). A mesma forma de culpabilidade (dolo ou culpa) possibilita, mas não determina, necessariamente a mesma natureza, para efeitos de reincidência.
Aqueles crimes em discussão, sendo ambos culposos, são subjectivamente semelhantes.
Porém, esta semelhança não basta para determinar a mesma natureza, que há-de resultar ainda da semelhança objectiva; que não se verifica naqueles crimes, dada a diversidade, a heterogeneidade de eventos: vida humana e integridade física.
Aqueles crimes são, pois, subjectivamente semelhantes, mas objectivamente diferentes, como bem se disse no citado acórdão de 20 de Março de 1957, - e é certo que a mesma natureza resulta da existência comum dos elementos subjectivo e objectivo.
Acresce que o assento deste Supremo de 12 de Julho de 1949 (no Boletim, n. 14, página 81) firmou, para os crimes dolosos de homicídio e de ofensas corporais, o dogma de que não são da mesma natureza, porque não têm a mesma natureza objectiva, visto que, uma tem por objecto a vida humana e outra, simplesmente, a integridade física, diferindo assim os interesses penalmente protegidos.
Paralelamente, impõe-se a aplicação da mesma doutrina para os crimes culposos.
Basta ler o disposto na alinea 4) do artigo 58 do Código da Estrada (redacção do Decreto-Lei n. 40275, de 8 de Agosto de 1955) para se concluir que a orientação do acórdão recorrido peca por excessivamente ampla, abarcando os eventos mais heterogéneos causados por violação dos mesmos preceitos de viação. E toda esta amplidão resultou de sòmente se encarar o aspecto subjectivo com eclipse total do aspecto objectivo de cada infracção a observar para a determinação da mesma natureza.
Da tese ampla resultariam ainda aspectos punitivos aberrantes que melhor se evidenciam com o confronto das penas mínimas que resultariam aplicáveis em casos de reincidência (artigo 100) e de sucessão (artigo 101) quanto a infracções com culpa grave, média e simples (artigo 59, primeira e última alíneas e 58, n. 4, do Código da Estrada e artigos 368 e 369 do Código Penal).
Assim, o homicídio com culpa grave (artigo 59), em reincidência com simples crime culposo de ofensas corporais, teria a pena aplicável de 30 meses a 4, 1/2 anos de prisão e multa correspondente.
A repelir a ilógica doutrina do acórdão recorrido, basta referir que entre um crime culposo de homicídio e um crime doloso de ofensas corporais não haveria reincidência (parágrafo 2 do artigo 35 do Código Penal).
Mas, segundo tal doutrina, se o crime de ofensas corporais fosse culposo, em vez de doloso, já haveria reincidência! Tal posição conduziria ao ilogismo de punir mais gravemente casos mais leves.
Pelo exposto, em conclusão: dá-se provimento ao recurso e formula-se o seguinte assento:
"Os crimes culposos de homicídio e de ofensas corporais não são da mesma natureza para efeitos de reincidência".

Em consequência do que foi decidido, deve o processo baixar à Secção Criminal para aplicação da doutrina que fica firmada.


Lisboa, 15 de Julho de 1960.


Carlos de Miranda (Relator) - A. Vaz Pereira - Agostinho Fontes - Campos de Carvalho - Dá Mesquita - Barbosa Viana
- Anselmo Taborda - Lopes Cardoso - Morais Cabral - Pinto de Vasconcelos - S. Figueirinhas - Mário Cardoso (Vencido.
Entendo que os crimes de homicídio involuntário e de ofensas corporais involuntárias são da mesma natureza para os efeitos dos artigos 34, ns. 33 e 35, do Código Penal.
Não exige, em primeiro lugar, esse Código para que haja reincidência que os crimes sejam os mesmos nem que tenham os mesmos elementos essenciais, isto é, a reincidência especialíssima.
A "mesma natureza", a que se refere o artigo 35, reporta-se não só aos elementos específicos como à identidade de interesses que os factos puníveis violam ou põem em perigo.
Nos artigos 368 e 369 do Código Penal tutela-se o direito primitivo, pessoalissimo, à existência, o interesse à conservação da vida e da integridade pessoal, e a violação deste interesse tem, em ambos, os mesmos motivos: a imperícia, a inconsideração, a negligência ou a falta de observância de algum regulamento, a sua contravenção que pode dar-se em reincidência nos termos do artigo 36 do mesmo Código.
Quer-se a conduta mas não se querem os seus resultados.
Estes - a morte ou as ofensas corporais - são atípicos na definição do facto, meras condições extrínsecas de punibilidade ou de maior punibilidade.
Nos casos de acidente de viação, hoje o mais vulgar motivo de incriminação nos citados artigos, por exemplo, os resultados com frequência transcendem as causas.
Do mesmo grau de negligência do condutor do veículo resultam, umas vezes, as mais graves consequências, outras, só pequenas contusões.
É a acção que se revela, em si mesma, contrária aos fins jurídicos.
São fundamentais para deduzir a identidade, ainda, aqueles elementos que possam denunciar a mesma índole ou a mesma especial propensão criminosa, um hábito orientado psicologicamente na mesma direcção - Professor Cavaleiro de Ferreira - Lições - e resulta ela, no caso dos referidos artigos, do cometimento de novo crime pelos mesmos motivos e nas mesmas circunstâncias, de inconsideração, imperícia, irreflexão, etc.
Não há a pretendida analogia com os crimes de homicídio voluntário e ofensas corporais voluntárias nos quais é essencial o elemento moral, subjectivo, intencional diferente para cada um deles.
No caso em apreciação é a voluntariedade do comportamento, dos motivos e das circunstâncias que constituem o objecto da repressão penal, os resultados não são queridos e, nem sequer, previstos.
Trata-se, finalmente, de infracção dos mesmos deveres morais, da mesma tendência anti-social).
Eduardo Coimbra (Vencido nos mesmos termos do douto voto que antecede) - Sousa Monteiro (Vencido pelas razões constantes dos dois votos antecedentes). - F. Toscano Pessoa (Vencido pelos motivos constantes dos três votos que antecedem).