Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
580/14.3TVLSB.L2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: APLICAÇÃO FINANCEIRA
COOPERATIVA DE HABITAÇÃO
AMORTIZAÇÃO
REEMBOLSO
DIREITOS DOS COOPERADORES
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
RECURSO DE REVISTA
OBJECTO DO RECURSO
RECURSO DE APELAÇÃO
TRÂNSITO EM JULGADO
Data do Acordão: 06/05/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DELIMITAÇÃO SUBJECTIVA E OBJECTIVA DO RECURSO / ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE QUE IMPUGNE A DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
-Deolinda Aparício Meira e Maria Elisabete Ramos, Governação e Regime Económico das Cooperativas, Outubro de 2014, Vida Económica, págs. 122 a 127;
-José António Rodrigues, Código Cooperativo Anotado e Comentado, Quid Juris, 4.ª Edição, pág. 85.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 639º, N.º 1.
CÓDIGO COOPERATIVO (CCOOP): - ARTIGOS 26.º, N.º 2, ALÍNEA A) E N.º 3.
DL N.º 218/82, DE 02-06: - ARTIGOS 15.º E 19.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 19-09-2002, PROCESSO N.º 02B2029, IN WWW.DGSI.PT.



-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 14-07-2011, PROCESSO N.º 7613/10.0TBOER.L1-2, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Não tendo sido impugnada, no âmbito da apelação, determinada parte da sentença – por não ter sido inserida nas respectivas conclusões nem sequer ter sido alvo de ampliação do objecto do recurso ou de recurso subordinado – não poderá essa parte ser objecto do recurso de revista.

II - Tendo resultado provado que o autor, para além da subscrição do capital, procedeu ainda à entrega de diversas quantias de dinheiro à ré que foram consideradas ou destinaram-se à subscrição de títulos de investimento obrigatório, a sua equiparação aos títulos de investimento e respectivo regime de reembolso, previstos no art. 26.º, n.º 2, al. a) e n.º 3 do Ccoop não se mostra conforme à natureza destes títulos.

III - Desde logo, por em relação a grande parte das entregas em dinheiro feitas pelo autor não pode haver lugar à sua qualificação como títulos de investimento que confiram direito a uma remuneração anual nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 26.º do Ccoop, na medida em que tal classificação só entrou em vigor em 01-01-1997 e essas entregas foram maioritariamente anteriores.

IV - O que se prevê nesse normativo corresponde a um investimento financeiro constituído por títulos de investimento que “são efectivamente obrigações que, pela sua natureza de títulos de dívida, supondo uma remuneração e uma promessa de pagamento”, o que manifestamente não é o caso.

V - As entregas realizadas pelo autor correspondem, ao invés, a verdadeiras contribuições destinadas à construção de fogos, a que se referem os arts. 15.º e 19.º do DL n.º 218/82, de 02-06 e assumem a natureza de antecipações de pagamento do preço ou do direito, justificando a aplicação de um regime de reembolso afastado dos títulos de investimento enquanto investimentos financeiros ou de dívida e mais próximo do regime de reembolso da amortização de fogos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório

I AA instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Cooperativa de Habitação BB, CRL, alegando, em síntese, que:

Na qualidade de cooperador/fundador da Ré, realizou parte do capital social desta, através da subscrição de títulos nominais de capital, e, ainda no cumprimento dos seus deveres estatutários, fez sucessivas entregas de dinheiro, totalizando €62.493,89.

Foi, entretanto, excluído de cooperador, mas não obteve o reembolso das importâncias que lhe são devidas.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir a condenação da Ré a restituir-lhe o montante dos títulos de capital realizados segundo o seu valor nominal, a quota parte dos excedentes e reservas não obrigatórias repartíveis na proporção da sua participação e ainda os respectivos títulos de participação, em montante não inferior a € 62.493,89, acrescido de juros de mora desde 8/05/2002.

A Ré contestou, sustentando que não lhe cabe restituir qualquer importância ao Autor, desse modo, pugnando pela improcedência da acção e a consequente absolvição do pedido.

Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar a afirmar a regularidade da instância, seguido da identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, «condenou a Ré a restituir ao Autor a quantia que se vier a liquidar correspondente à redução do valor de €27.452,34 na proporção das perdas acusadas no balanço da Ré do exercício de 1998, quantia essa acrescida de juros à taxa legal desde 8 de Maio de 2002».

Discordando dessa decisão, apelaram ambas as partes, tendo a Relação de … determinado a ampliação da base factual (cfr. fls. 380 a 394), e, realizada nova sessão da audiência, foi proferida a sentença de fls. 525 a 531 que rematou com idêntico dispositivo condenatório, ou seja, «condenou a Ré a restituir ao Autor a quantia que se vier a liquidar correspondente à redução do valor de €27.452,34 na proporção das perdas acusadas no balanço da Ré do exercício de 1998, quantia essa acrescida de juros à taxa legal desde 8 de Maio de 2002».

Continuando inconformada, a Ré apelou, com parcial êxito, tendo a Relação de … revogado parcialmente a sentença e «condenado a Ré a restituir ao Autor a quantia que se vier a liquidar correspondente à redução do valor de €249,39 na proporção das perdas acusadas no balanço da Ré do exercício de 1998, quantia essa acrescida de juros moratórios, à taxa legal desde 6 de Maio de 2014».

Agora inconformado, interpôs o Autor recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as conclusões que se transcrevem:

A) O Acórdão Recorrido assenta numa premissa errada porquanto afirmar que, no caso em apreço, os títulos de investimento obrigatoriamente realizados pelo Recorrente são instrumentos diferentes dos títulos de participação previstos no art. 20º do DL n.º 502/99, porquanto, na realidade, tratam-se de uma e da mesma coisa, sucedendo apenas - há que admiti-lo! - que a terminologia utilizada nos Estatutos da Recorrida para designar o que materialmente constituem títulos de participação e de realização obrigatória - ao designá-los como "títulos de investimento" obrigatório - foi, porventura, infeliz. Nada mais. Na verdade,

B) Tal como sucede nos contratos, em que o nomen iuris ou a qualificação que as partes lhes emprestem não devem tolher o intérprete na indagação do figurino jurídico que se lhe apresente, antes relevando o conteúdo das relações contratuais acordadas entre as partes e o modo como, na prática, essas mesmas partes lhes deram corpo e execução, também neste caso não nos devemos deixar confundir pela semelhança de nomes ou qualificativos dos títulos em presença, ficando reféns de um critério puramente formal e literal, mas antes atender à sua natureza material.

C) Resulta do art. 20º do DL n.º 502/99 que a subscrição de títulos de participação consiste na entrega obrigatória de determinadas quantias por parte dos cooperadores com vista à amortização do valor total do custo do fogo, sendo essa, exatamente, a natureza e a finalidade das quantias aqui reclamadas, entregues pelo Recorrente à Cooperativa Recorrida sob a forma dos denominados títulos de investimento obrigatório (como decorre claramente quer do art. 10º dos Estatutos da Cooperativa Recorrida quer, igualmente, do "Escalonamento Previsional da Amortização do Terreno pelos Cooperadores", previsto no Anexo II ao documento n.º 14 junto com a Petição Inicial, onde se encontram descritas todas as quantias objeto de entregas obrigatórias pelo Recorrente e demais cooperadores com vista à amortização do valor global do respetivo terreno);

D) Decidiu corretamente o Tribunal de primeira instância ao considerar que "o montante do título de capital realizado pelo A., acrescido do valor dos títulos de participação por ele realizados, ascende a € 27.452,34" e, ainda, que "...os títulos de investimento realizados pelo A. são equiparáveis aos títulos de participação mencionados no art. 20º do DL n. 502/99, atento o art. 10º dos estatutos da Ré".

E) No caso concreto, os títulos de investimento previstos no art. 10º dos Estatutos da Recorrida - de realização obrigatória pelos cooperadores no valor global necessário à cobertura dos encargos para a aquisição do terreno destinado à construção das respetivas habitações - não se confundem, senão no nome, com os títulos de investimento previstos nos arts. 26º e segs. do Código Cooperativo, constituindo estes últimos verdadeiras obrigações, com natureza de títulos de dívida, supondo uma remuneração, integrando uma promessa de pagamento, não podendo exceder a importância do capital realizado e existente, de subscrição voluntária pelos cooperadores e podendo ser subscritos inclusive por terceiros não cooperadores.

F) De resto, ao decidir como decidiu, o Acórdão recorrido encontra-se em contradição com os Acórdãos do mesmo TRL de 14-07-2011, processo n.º 7613/10.0TBOER.L1-2, e de 30-10-2014, processo n.º 3588/12.0YXLSB.BL1-8, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

G) Os títulos de investimento obrigatório subscritos pelo Recorrente não se aproximam, sequer, dos títulos de investimento previstos no Código Cooperativo, sendo totalmente irrelevante que, como argumenta o Acórdão Recorrido, em lado algum se estabeleça no Código Cooperativo, para o reembolso dos títulos de investimento, um regime paralelo ao do artigo 24º do DL 502/99, porquanto não está em causa o reembolso de títulos de investimento nos termos do Código Cooperativo mas de títulos de "investimento obrigatório" ou de participação nos termos precisos do artigo 24º do DL 502/99, os quais, como bem decidira já o Tribunal de Primeira Instância, são equiparáveis sendo isso que a realidade dos factos impõe.

H) De resto, para além de recusar o aludido entendimento seguido pelo, aliás Douto, Acórdão Recorrido relativamente à natureza dos títulos de investimento obrigatório objeto dos autos - equiparáveis, como se referiu e repete, aos títulos de participação previstos no referido art.º 20º do DL n.º 502/99 - o Recorrente tão-pouco se pode conformar com o entendimento do Tribunal Recorrido segundo o qual o regime aplicável aos títulos de participação, e concretamente à obrigação da sua devolução em caso de destituição ou exclusão, apenas releva no caso das cooperativas sujeitas ao regime da propriedade coletiva dos fogos, tanto mais que tal entendimento, tendo sido já inequivocamente recusado por anterior jurisprudência do mesmo TRL, representa o segundo equívoco do Tribunal Recorrido. Com efeito,

I) Em situações de facto idênticas à dos autos - em que igualmente se discutia o eventual direito de um cooperador à devolução de quantias entregues a uma cooperativa que, tal como a Cooperativa aqui Recorrida, praticava o regime de propriedade individual - o TRL, no seu Acórdão datado de 30-10-2014, ao decidir como decidiu - designadamente ao decidir que "Da matéria assente resulta que a entrega inicial e subsequente se destinaram a ser consideradas no preço final, o que está de acordo com o previsto no art. 26º do DL 502/99 e como tal inscrevem-se no art. 20º do DL 502/99, o que vaie por dizer que se trata de 'participação' para efeitos do art. 24º, n.º 1 do mesmo diploma" - fez uma correta interpretação e aplicação do regime em apreço aplicando ao caso a disciplina dos artigos 20º e 24º do DL n.º 502/99, não obstante estar em causa, também aí, uma cooperativa que praticava o regime da propriedade individual e estas disposições se inserirem, na sistematização do diploma, na secção que regula a propriedade coletiva dos fogos.

J) Para o que releva, no que ao mencionado dever de restituição diz respeito, não há nada que deva distinguir as cooperativas que praticam o regime de propriedade individual daquelas que praticam o regime de propriedade coletiva.

K) Em rigor, se se atentar no disposto no art.º 26º/2 do DL n.s 502/99 (que é uma disposição privativa do regime das cooperativas que praticam o regime de propriedade individual) verifica-se que, mesmo nestas cooperativas, quando se façam entregas escalonadas, pré-determinadas e obrigatórias tendo em vista a amortização do valor do fogo como sucedeu no caso da Cooperativa Recorrida - em que os cooperadores foram fazendo entregas predeterminadas de montantes até perfazer um determinado valor do terreno/fogo sendo o remanescente a liquidar aquando da celebração da escritura de compra e venda com a Cooperativa - podem as cooperativas, tal como ali se refere, "...reservar para si a propriedade do fogo até ao integral pagamento do preço".

Ou seja, apesar da distinção e dicotomia de regimes "propriedade coletiva - propriedade individual dos fogos" prevista no DL n.º 502/99, é manifesto que só há verdadeira propriedade individual dos fogos quando os mesmos são transmitidos aos cooperadores mediante contrato de compra e venda sendo que, antes disso e até lá, durante a construção e antes de os referidos fogos se encontrarem em condições de ser alienados, o que existe é, na realidade, uma "propriedade coletiva" da Cooperativa - i.e. por um lado, o direito de propriedade da Cooperativa dos terrenos e das construções nele erigidas, e, por outro, o direito dos cooperadores, de todos e cada um, de, pelo facto de o serem e cumpridas que sejam as suas obrigações legais e estatutárias, lhes vir a ser transmitido o direito de propriedade individual sobre as frações a constituir - fazendo, assim, todo o sentido que se lhes aplique, designadamente aos seus cooperadores demitidos ou excluídos antes da escritura e, portanto numa altura em que ainda é a cooperativa a deter a titularidade do terreno/construção/fogo, o regime dos arts. 20º e 24º expressamente previsto para as cooperativas que praticam o regime de propriedade coletiva!

L) De resto, o regime jurídico expressamente previsto na referida secção III do DL n.º 502/99 para estas cooperativas - que, como a ora Recorrida, pratiquem o regime de propriedade individual dos fogos por si construídos - nada refere sobre os títulos passíveis de serem emitidos pelas mesmas cooperativas nem, tão-pouco, sobre o respetivo regime legal maxime no que se refere ao eventual direito à sua restituição em caso de morte, destituição ou exclusão, o que não significa (obviamente!) que as mesmas não possam emitir quaisquer títulos ou, caso o façam, que os mesmos não sejam passíveis de restituição nestes casos.

M) Enquanto a Recorrida, afoitamente, retira desta pretensa omissão, sem mais, a pura e simples exclusão do direito do ora Recorrente à restituição das quantias que reclama nestes autos - conclusão que, além de não se mostrar como uma solução juridicamente aceitável face ao regime legal em apreço, tão-pouco se revela como sendo uma solução minimamente sustentável face a toda a factualidade e prova adquirida nos autos - a verdade é que não se verifica uma verdadeira omissão, sendo a disciplina legal prevista, neste particular, para as cooperativas de habitação que praticam o regime de propriedade coletiva inteiramente aplicável à Cooperativa Recorrida (que, como se viu, pratica o regime de propriedade individual) atentas as evidentes semelhanças entre os títulos de participação previstos no seu art.º 20º e os denominados "títulos de investimento" previstos nos arts. 9º e 10º dos Estatutos da Recorrida. De facto,

N) Segundo o art.º 1º do DL n.º 502/99, de 19/11, as cooperativas de habitação e construção, como a aqui Recorrida, "regem-se pelas disposições do presente diploma e, nas suas omissões, pelo Código Cooperativo", determinando o art.º 9º deste último, sob a epígrafe "direito subsidiário" e no mesmo sentido, que "Para colmatar as lacunas do presente Código que não o possam ser pelo recurso à legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo, pode recorrer-se, na medida em que se não desrespeitem os princípios cooperativos, ao Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente aos preceitos aplicáveis às sociedades anónimas."

O) Daqui resulta que o regime legal aplicável à situação dos autos, designadamente os direitos referentes ao sócio que, como o aqui Recorrente, seja excluído de uma cooperativa, há-de encontrar-se. em primeiro lugar, na disciplina a esse propósito resultante do mencionado DL n.º 502/99 de 19/11 - idêntica aliás ao que já resultava anteriormente do DL n.º 218/82, de 2 de Junho - como, de resto, entendeu o TRL em anteriores Acórdãos supra mencionados.

P) Não havendo nada que impeça que o regime legal previsto para as denominadas cooperativas de habitação que praticam o regime de propriedade coletiva, nomeadamente no que diz respeito ao regime aplicável aos títulos de participação e ao direito à sua restituição, possa ser aplicado às cooperativas que pratiquem o regime de propriedade individual desde que, naturalmente e como é o caso, tal se justifique à luz das regras de interpretação e integração previstas nos arts. 9º e 10º do Código Civil.

Q) Apesar de a Cooperativa Recorrida ser uma cooperativa que "pratica o regime de propriedade individual como regime de propriedade dos fogos que constrói" (cfr. 49º dos Estatutos), os títulos de investimento previstos no art.º 10º dos respetivos Estatutos, dada a sua natureza, configuração e finalidade, maxime sendo obrigatoriamente realizados pelos cooperadores no valor necessário à cobertura dos encargos para a aquisição do terreno destinado à construção - nada tendo que ver com o valor do capital social da cooperativa - constituem, na verdade, uma realidade idêntica aos títulos de participação previstos no art.º 20º do DL n.º 502/99, de 19/11, para as cooperativas que pratiquem o regime de propriedade coletiva.

R) Em suma, mal andou o Acórdão Recorrido ao decidir como decidiu porquanto é manifesto que, por um lado, (i) para além dos títulos de capital, o Recorrente realizou títulos de investimento obrigatório os quais constituem verdadeiros e autênticos títulos de participação, na aceção do art.º 20º do DL n.º 502/99, não obstante não ser essa a terminologia adotada nos Estatutos da Cooperativa Recorrida e, por outro lado, (ii) porque também no caso das cooperativas de habitação sujeitas ao regime da propriedade individual dos fogos, ocorrendo destituição ou exclusão de um cooperador, há lugar à restituição das quantias entregues pelo mesmo através da subscrição desses títulos de participação.

S) Por fim, dado que, em face do disposto nos artºs. 24º/1 do DL n.º 502/99 e 36º/3 e 4 do Código Cooperativo, só a parte atinente à restituição dos títulos de capital é que é suscetível de redução na proporção das perdas, sempre deverá o presente recurso ser julgado procedente e, nesse sentido, deverá a Cooperativa Recorrida ser condenada a restituir ao Recorrente as quantias que por este lhe foram entregues, no total de € 27.452,34, das quais € 27.202,93 correspondentes ao valor dos títulos de participação ou títulos de investimento obrigatório e, apenas, € 249,39 ao valor dos títulos de capital realizados pelo Recorrente.

T) Deverá ser revogado o Acórdão Recorrido, sendo a Cooperativa Recorrida condenada a restituir ao A., ora Recorrente, a quantia total de € 27.452,34, a reduzir na parte correspondente ao título de capital realizado pelo A. no valor de Esc. 50.000$00 (conforme n.9 6 dos factos provados, correspondente, em Euros, a €249,40) na proporção das perdas acusadas no balanço da R. do exercício de 1998, quantia total essa acrescida de juros à taxa legal desde 8 de maio de 2002.

A Ré contra-alegou a pugnar pelo insucesso do recurso e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1 - O Autor foi cooperador da Ré desde a sua constituição, em Fevereiro de 1996.

2 - Por deliberação da Ré, de 18 de Dezembro de 1998, foi aprovada a exclusão do Autor como cooperador da Ré.

3 - Inconformado com esta deliberação, o Autor intentou procedimento cautelar de suspensão da deliberação e ação de declaração de nulidade da deliberação, procedimento e ação em que não obteve vencimento.

4 - Enquanto cooperador da Ré, o Autor entregou a esta as seguintes quantias:

-Esc. 1.721.500$00, através do cheque n.º 50…1, datado de 15 de março de 1996;

-Esc. 1.032.900$00, através do cheque n.º 38…5, datado de 25 de junho de 1996;

-Esc. 1.549.300$00, através do cheque n.º 31…8, datado de 6 de janeiro de 1997;

-Esc. 1.000.000$00, através do cheque n.º 40…2.

5 - Dos estatutos da Ré constam, entre outros, os seguintes artigos:

“Artigo 10º

Realização de títulos de investimento

Serão inteiramente realizados pelos cooperadores os títulos de investimento no valor global necessário à cobertura dos encargos para a aquisição do terreno destinado à construção das habitações por aqueles membros.

Artigo 11º

Reembolso dos títulos de capital

1 - Não podendo operar-se transmissão por morte os sucessíveis têm direito a receber o montante dos títulos de capital realizado pela forma de pagamento que tenha sido previamente estabelecida pela assembleia geral.

2 - De igual direito beneficiam os membros que se demitem ou sejam excluídos da Cooperativa, salvo o direito de retenção pela Cooperativa dos valores necessários a garantir a sua responsabilidade.

3 - Em caso de demissões ou exclusão os títulos de capital deverão ser restituídos em prazo não superior a um ano.”

Artigo 49.º

Regime de propriedade dos fogos

A Cooperativa pratica o regime de propriedade individual como regime de propriedade dos fogos que constrói.

6 - A 7 de julho de 1995, o Autor entregou a quantia de Esc. 200.000$00, a título de joia e inscrição no programa habitacional CC, tendo a Ré, a 31 de Dezembro de 1996, emitido a favor do Autor título de capital no valor de Esc. 50.000$00 e título de investimento obrigatório no valor de Esc. 150.000$00.

7 - O balanço da Ré relativo ao exercício de 1998 apresenta o resultado líquido negativo de Esc.93.473.225$30.

8 - O balanço da Ré relativo ao exercício de 1999 apresenta o resultado liquido negativo de Esc. 113.664.347$70.

9 - As entregas referidas no ponto 4 destinavam-se à realização de títulos de investimento obrigatório (alterado pela Relação)[1].

10 - Para a Ré poder levar por diante os programas de construção, os cooperadores à data tiveram de colmatar o desvio, efectuando entregas adicionais que não estavam previstas (alterado pela Relação)[2] .

11 - O valor do desvio foi rateado pelos cooperadores na proporção da respectiva permilagem.

12 - Enquanto o Autor foi cooperador, a habitação para que se encontrava inscrito era das de maior tipologia e valor proporcional no programa de construção CC.

13 - É o valor do desvio que a Ré procura reaver na acção que corre termos sob o n.º 12078/00.2TVLSB proposta contra entre outros, o ora Autor.


   III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão da presente revista passam, atentas as conclusões da alegação do autor (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), pela análise e resolução da única questão colocada a este tribunal e que se resume à determinação do reembolso que, na sequência da sua exclusão de cooperador, lhe é devido pela ré Cooperativa.

As instâncias divergiram frontalmente, nesse ponto, pois, enquanto a 1ª instância entendeu que os títulos de investimento realizados pelo autor são equiparados aos títulos de participação e que deveriam seguir, por força da lei e dos estatutos da ré, o mesmo regime previsto para a devolução do capital, já a Relação, ao invés, considerou que os aludidos títulos de investimento não devem ser objecto de reembolso e, nessa medida, decidiu por atribuir ao autor apenas o direito ao reembolso da quantia respeitante ao título de capital subscrito no montante de € 249,39 (correspondente a 50.000$00).

O autor pugna naturalmente para que fique a subsistir a 1ª decisão, em substituição da ditada pela Relação, sustentando que os títulos de investimento por si realizados de forma obrigatória têm a mesma finalidade e natureza dos títulos de participação previstos no artigo 20.º do DL n.º 502/99, de 19 de Novembro, com referência às quantias entregues para amortização do valor total do custo dos fogos, sendo tal regime igualmente aplicável às cooperativas de propriedade individual como é o caso.

Além disso, defende que o valor dos títulos de investimento por si subscritos não se encontra sujeito à redução relativa às perdas do exercício de 1998. Todavia, não tendo sido impugnada tal parte da sentença no âmbito da apelação, por não inserida nas respectivas conclusões, nem sequer ter sido alvo de ampliação ou de recurso subordinado do autor, não poderá, agora, ser apreciada nesta revista.

Esclarecido este ponto, vejamos, agora, a solução da problemática suscitada em torno do reembolso ao autor dos títulos de investimento obrigatório, adiantando, desde já, que se prefigura desadequado negar «tout court» essa pretensão ao autor, como fez a Relação.

Com efeito, tendo resultado provado que o autor, para além da subscrição de capital, procedeu ainda a diversas entregas de dinheiro à ré que foram consideradas ou destinaram-se à realização de títulos de investimento obrigatório, entende-se que a sua equiparação aos títulos de investimento e respectivo regime de reembolso previstos no artigo 26.º, n.º 2, al. a) e n.º 3 do Código Cooperativo, não se mostra conforme com a natureza destes títulos.

Desde logo, por em relação a grande parte das entregas em dinheiro feitas pelo autor não poder haver lugar à sua qualificação como títulos de investimento que confiram direito a uma remuneração anual nos termos da al. a) do n.º 2 do artigo 26.º do Código Cooperativo, na medida em que tal classificação só entrou em vigor em 01-01-1997 e essas entregas foram maioritariamente anteriores.

Por outro lado, não se pode igualmente seguir acriticamente o entendimento da 1ª instância de que aos títulos de investimento deve aplicar-se o regime dos títulos de participação previsto nos artigos 20.º e 24.º do DL n.º 502/99, de 19-11, dado que, à data da exclusão do autor de cooperador da ré, o diploma que regia as Cooperativas de construção e habitação era o DL n.º 218/82, de 02-06, o qual continha um regime idêntico ao diploma que lhe sucedeu, com a “vantagem” de usar a mesma terminologia do Código Cooperativo ao falar de “títulos de investimento” e não de “títulos de participação”.

Assinale-se, no entanto, que tal equiparação, ainda que ao abrigo do regime subsequente, foi adoptada no acórdão da Relação de Lisboa de 14-07-2011, proferido no âmbito do proc. n.º 7613/10.0TBOER.L1-2, acessível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/d2fdddcaa4eb996f80257913003d38cf?OpenDocument , que mereceu anotação favorável de Tiago Pimenta Fernandes, “Sobre o Reembolso no caso de demissão de cooperador de cooperativa de habitação”, in Jurisprudência Cooperativa Comentada, INCM, pág. 573, aí se considerando que as quantias entregues a título de “poupanças obrigatórias” deveriam ser equiparadas a títulos de participação e reembolsadas dessa forma.

Por sua vez, o STJ distinguiu, no acórdão de 19-09-2002, proferido no proc. 02B2029 acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/286bea0c65cf7a3d80256c520046fb7c?OpenDocument, entre títulos de investimento, emitidos ao abrigo do Código Cooperativo que têm a natureza de obrigação comercial e os títulos de investimento que são entradas para o pagamento do fogo a adquirir em propriedade individual, nos termos do DL n.º 218/82, de 02-06.

No caso em apreço, não se torna necessário apelar a qualquer equiparação a “títulos de participação”, havendo sim que decidir se os montantes entregues pelo autor à ré a título de investimento obrigatório se devem considerar abrangidos pelos artigos 15.º e 19.º do DL n.º 218/82, de 02-06 (idênticos aos artigos 20.º e 24.º do DL n.º 502/99, de 19-11) e beneficiar do regime de reembolso aí previsto.

A dilucidação do problema suscitado passa, pois, pela caracterização da natureza das entregas feitas pelo autor à ré, independentemente do nome com que foram etiquetadas. E, enfrentando-o, diremos que, embora a matéria de facto seja escassa no que concerne ao fornecimento de elementos que permitam caracterizar estas entregas em dinheiro, consideramos que a circunstância de ter ficado provado que as mesmas se destinavam a “títulos de investimento obrigatório”, aliada ao facto dos Estatutos da ré apontarem para a distinção entre dois tipos de títulos de investimento – os do artigo 9.º sujeitos aos fins e condições que a assembleia geral fixar e os do artigo 10.º realizados pelos cooperadores no valor global necessário à aquisição do terreno e construção das habitações – permitem concluir que tais entregas não assumiram a natureza de uma emissão de dívida, não sendo enquadráveis, nessa medida, no artigo 26.º do Código Cooperativo, entrado em vigor em 01-01-1997.

Com efeito, o que se prevê nesse normativo é um instrumento financeiro constituído por títulos de investimento que “são, efectivamente, obrigações, pela sua natureza de títulos de dívida, supondo uma remuneração e integrando uma promessa de pagamento“[3],o que manifestamente não é o caso. Pelo contrário, essas entregas correspondem a verdadeiras contribuições destinadas à construção de fogos e a que se referem os artigos 15.º e 19.º do DL n.º 218/82, de 02-06. Mais, assumem a natureza de antecipações de pagamento do preço ou do direito e justificam a aplicação de um regime de reembolso afastado dos títulos de investimento enquanto instrumentos financeiros ou de dívida e mais próximo do regime de reembolso da amortização dos fogos[4].

Nesta conformidade, procedem, em parte, as conclusões do recorrente, a quem assiste razão em insurgir-se contra o decidido pela Relação que, sem quebra do devido respeito, não equacionou devidamente a situação em apreço e não fez correcta leitura, interpretação e aplicação das citadas disposições legais e estatutárias, devendo operar-se a repristinação do sentenciado pela 1ª instância, ainda que com fundamentação não coincidente.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder parcial revista e revogar o acórdão recorrido, determinando que fique a subsistir, ainda que com fundamentação não totalmente coincidente, o sentenciado pela 1ª instância.

Custas pela Recorrida.


*


Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

*


Lisboa, 05 de Junho de 2018


António Joaquim Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

________

[1] Cfr. fls. 602.
[2] Cfr. fls. 603.
[3] Cfr, neste sentido, José António Rodrigues, in “Código Cooperativo Anotado e Comentado”, Quid Juris, 4.ª Edição, pág. 85.
[4] Cfr, sobre as diversas contribuições e outras formas de financiamento das cooperativas não integrantes do capital social, Deolinda Aparício Meira e Maria Elisabete Ramos, “Governação e Regime Económico das Cooperativas”, Outubro de 2014, Vida Económica, págs. 122 a 127.