Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4624/17.9T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
COMÉRCIO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
IMPUGNAÇÃO
DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA GERAL
ASSOCIAÇÃO PATRONAL
Data do Acordão: 05/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / TRIBUNAL / GARANTIAS DE COMPETÊNCIA / INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA / FIXAÇÃO DEFINITIVA DO TRIBUNAL COMPETENTE.
Doutrina:
- Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 11ª ed (2018), p.122 e ss.;
- Paula Costa e Silva, in https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2002/ano-62-vol-i-jan-2002/notas-e-observacoes-a-sentencas/paula-costa-e-silva-sobre-a-competencia-dos-tribunais-de-comercio/.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 101.º, N.º 1.
LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGO 128.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 08-03-2001, PROCESSO N.º 3275/00;
- DE 01-06-2017, RELATOR ABRANTES GERALDES, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-07-2018, RELATOR ABRANTES GERALDES, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I Não cabe na competência material dos Juízos de Comércio conhecer de uma providência cautelar destinada a impugnar deliberações de uma associação patronal sem fins lucrativos.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. AA, residente na Estrada … n…., em ..., requereu, no Juízo de Comércio do Funchal, contra “BB”, com sede no Conjunto ..., Rua ... n. …, no Funchal e BB, a ser citado na mesma morada, procedimento cautelar de suspensão de deliberação social, pedindo que fosse:

a) julgada indevida e ilegal a convocação da assembleia geral impugnada, e suspensa a execução das deliberações aí tomadas;

b) invertido o contencioso, nos termos do disposto no artigo 369º do Código Processo Civil;

c) aplicável uma sanção pecuniária compulsória aos Requeridos, por cada dia de atraso pela não realização de eleições;

d) os Requeridos condenados em custas e o mais que for legal;

e) dada publicidade da respetiva decisão no site da Requerida.

Para tanto alegou, em síntese:

A BB, também por BB, é uma Associação patronal de direito privado sem fins lucrativos e dotada de personalidade jurídica, tal como é definida na lei das associações patronais aprovada pelo DL 215-C/75 de 30 de Abril, representativa das empresas que legalmente exercem a atividade de transportes em … ou de qualquer outra atividade afim, na Região Autónoma da Madeira, conforme explicitado nos seus Estatutos (juntos como doc.1).

O Requerente é Presidente da Direção da BB, BB (cf. doc. 2). E detém a qualidade de associado n.1157, com a respetiva quotização em dia, (cf. docs. 3 e 4)

Em assembleia geral extraordinária, de 2 de junho de 2017, o Requerente foi destituído das suas funções na Requerida, tendo sido nomeada uma comissão para assegurar a gestão da Associação.

Esta assembleia geral extraordinária foi impugnada pelo Requerente, estando a correr providência cautelar de suspensão de deliberação.

Dispõe o n. 3 do art.381º do Código de Processo Civil que, enquanto não for julgado em 1ª instância o pedido de suspensão, não é lícito à associação ou sociedade executar a deliberação impugnada.

Mas no dia 20 de agosto de 2017, foi convocada, pela dita Comissão de Gestão e por BB, nova Assembleia Geral “Extraordinária”, a ter lugar no dia 30 de agosto de 2017, às 19h00, no Centro ..., situado no ..., …, freguesia de ..., no Funchal.

Constando da ordem de trabalhos, para além do mais:

“1 - Preenchimento dos cargos sociais que se encontram neste momento vagos, em consequência das suas anteriores demissões, por proposta da Mesa da Assembleia Geral, a ser submetida à votação da assembleia;

2 - Considerando que o voto por correspondência em nada beneficia o espirito associativo e a necessária interação entre todos os associados, em beneficio direto pelo desenvolvimento desta associação, propõe-se que esta forma de votar, prevista no n.2 do Art.11º do Regulamento, seja alterada, por forma que a regra seja a sua proibição, com a única exceção para o caso de doença do associado, explicada e justificada por atestado medico, que garanta a impossibilidade deste, apresentar-se pessoalmente, para exercitar o seu direito de voto;

3 - Análise e reflexão sobre os sucessivos e consecutivos mandatos do Ex.mo Sr. Presidente AA na BB, mormente quanto ao incumprimento de várias deliberações tomadas em Assembleia Geral que nunca foram cumpridas, em violação do art.14º alínea c) dos Estatutos, pelo que necessário se torna apurar da imputação e responsabilidade pelos seguintes factos (…)”.

Quer a convocatória desta Assembleia, quer as deliberações que nela tenham sido tomadas são contrárias à lei e aos estatutos da associação, sendo nulas e anuláveis.

Os Requeridos recusaram-se a entregar ao Requerente uma cópia da ata desta Assembleia.

2. O Requerido BB apresentou contestação, arguindo a existência de erro na forma do processo e defendendo, subsidiariamente, a improcedência do procedimento.

3. Foi proferida sentença que julgou verificada a incompetência material do Juízo de Comércio para preparar e julgar a ação, com a consequente absolvição dos Requeridos da instância.

4. Inconformado, o Requerente apelou daquela decisão, defendendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que declarasse a competência material do Tribunal de Comércio da Comarca da Madeira para tramitar os presentes autos.

Ou que, não procedendo o recurso, fosse declarado qual o tribunal competente e ordenada a remessa dos autos para o mesmo.

Não foram apresentadas contra-alegações

5. O Tribunal da Relação de Lisboa julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida.

6. Não se conformando com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto de Douto Acórdão do Tribunal da Relação, que confirma na integra a decisão da 1ª instância sobre a incompetência do Tribunal de Comércio da Madeira, para analisar a providência cautelar interposta.

2. O Douto Tribunal de 1ª instância declarou-se incompetente para aferir da questão; incompetência essa novamente declarada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

3. Sendo esta uma questão, que pela sua natureza, considerando o artigo 629.º n. 2 alínea a) do CPC, é sempre admissível recurso, e bem assim, por se entender, que as questões suscitadas não foram devidamente analisadas, requer-se melhor apreciação à matéria de Direito. 

4. Na verdade, entendemos que todo o argumentário e fundamentação de Acórdãos, que se aplicava ao abrigo da Lei anterior de Organização Funcionamento dos Tribunais Judiciais, (LOFTJ -  a Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro), não pode servir como fundamentação para decidir a incompetência de Douto Tribunal de Comércio nos presentes autos.

5. Neste aspeto, questionamos sim, que o entendimento da lei anterior se mantenha na presente Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

6. Com efeito, a Lei n. 62/2013, de 26 de Agosto, a nova Lei de Organização do Sistema judiciário (LOSJ), cuja entrada em vigor é de 1 de Setembro de 2014, aplicável in casu, pretendeu-se alterar todo o paradigma dos tribunais especializados, e criar tribunais vocacionados para determinadas problemáticas decorrentes da socialização moderna democrática.

7. Pelo que, é forçoso, continuar-se a admitir, que nada mudou, porque até tanto, os Tribunais de Comércio existente à data da LOFTJ eram só dois, e que serviriam Lisboa e Porto. 

8. Inexiste fundamento para os Tribunais de Comércio terem as mesmas competências que anteriormente tinham.

9. E as, do que in casu interessa, parafraseando o Douto Tribunal a quo, de somente competência para preparar e julgar as ações em que estão em causa ações de anulação de deliberação de deliberações socais de sociedades comerciais e ou entidades com fins lucrativos

10. e não tenham competência para preparar e julgar as ações em que estão em causa ações de anulação de deliberação de deliberações de entidades, diga-se, associações, sem fins lucrativos.

11. Tais factos, não sobressaem, nem da exposição de motivos da Nova Lei, nem da norma, do artigo 128.º n.º 1, alínea d), in casu, aplicável, inclusive, também por força dos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 12.º e 13.º, do Código Civil.

12. Acrescendo, que não se concorda, que pelo artigo supra manter a mesma, ou quase a mesma, formulação, da lei antiga, que toda a interpretação envolta na nova lei, é igual aquela outra antiga.

13. Pretendeu-se, na atual LOSJ, com a criação dos Tribunais de Comércio, em cada sede de Comarca, ampliar a competência em razão da matéria, quebrando-se o modelo antigo, e fazendo-os atuar em questões para se requer especial preparação técnica.

14. Além do que, a norma, não distingue entidade com fins lucrativos e ou entidade sem fins lucrativos,

 15. Sendo que, por outro, os juízos cíveis, só tem competência para aferir questões, não atribuídas a outros juízos de competência especializada. (vide artigos 117.º e 130.º da LOSJ)

16.  Na verdade, nunca se poderia entender, a luz do novo paradigma, e mudança de leis, que havendo um tribunal de comércio com competência para julgar as ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais (em entidades com fins lucrativos), o mesmo não o fosse, porque a entidade não tem fito lucrativo,

17. e fosse, o Tribunal Cível, competente para aferir essas mesmas, quando esse, não está especializado nessa parte decisória.

18. É nosso entendimento que, do confronto das duas disposições, que o Tribunal a quo faz para fundamentar a sua incompetência, mais propriamente, entre a lei antiga, (a alínea d), do n.º 1 do artigo 89º da LOFTJ), e a lei nova, (a alínea d), do n.º 1 do art.º 128º da LOSJ), verifica-se que a competência dos Tribunais de Comércio atuais sofreu um alargamento e alteração.

19. Por outro, o Tribunal da Relação de Lisboa, quanto a este aspeto, e analisando, o Acórdão supra transcrito, reconhece, inclusive, que houve um ampliação para acoberta-se as Caixas de Crédito Mutualista.

20. Ampliação essa, que não era admitida pelas interpretações feitas ao abrigo da Lei Antiga. 

21. Por outro, decisão contrária, além de violar o artigo 128.º alínea d) da LOSJ, iria violar e retirar-se qualquer substância ao 380.º do Código Processo Civil

22. É certo, que, como bem refere, o Douto Acórdão da Relação, nem todas as providencias cautelares de suspensão são da competência do Tribunal de comércio.

23. Mas assim sucede também, porque em muitas comarcas, não foram criados Tribunais de Comércio.

24. Sendo que, no confronto do artigo 380.º do CPC e 128.º alínea d) da LOSJ, havendo tribunais especializados cuja competência tenha por fito "ações de suspensão e anulação de deliberação sociais" é competente com essa atribuição, in casu, o Tribunal de Comércio, para aferir da questão, salvo se na comarca não o existir. (Cf. 117.º da LOSJ)  

 25. Noutra linha de segmento de raciocínio, é certo que, a Recorrente BB - BB, é uma associação Patronal de direito privado sem fins lucrativos e dotada de personalidade jurídica, (tal como é definida na lei das associações patronais aprovada pelo Decreto-Lei n. 215-C/75, de 30 de Abril), representativa das empresas que legalmente exerçam a actividade de transportes em … ou de qualquer outra actividade afim na Região Autónoma da Madeira (cfr. artigo 1.°, n. 1, do Estatuto da BB, publicado no Jornal Oficial da REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA datado de 03 de Fevereiro de 2014 - fl. 12).

26. Mas pese embora ser uma associação sem fins lucrativos e ao abrigo dos artigos 13.º e 14.º do Código Comercial, ser-lhe vedada a profissão de comerciante,

27. prática atos de comércio (vide artigos 1.º, 2.º, 4.º, Código Comercial).

28. Ora, salvo melhor entendimento, entende o Recorrente, que praticando atos de comerciais, em sentido objetivo, por acrescento de raciocínio, os Tribunais de Comércio, são competentes para aferir da questão. 

29. Além do que, o Recorrente já intentou outra providência cautelar, com vista a uma outra impugnação de assembleia geral extraordinária que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo de Comércio do Funchal - Juiz 1, Processo n.º 3329/17.5T8FNC., em que obteve ganho de causa, conforme decisão junto ao presente processo e que consta em fls.., e tanto a 1ª Instância, como a Relação, não arguiram essa exceção, de conhecimento oficioso.

30. Entende, o Recorrente, que o Tribunal, andou mal na sua motivação para decidir a sua incompetência nos presentes autos.

31. Termos em que, requer-se que se anule a douta decisão e se substitua por outra que declare a competência do Tribunal de Comércio para aferir a questão,

32. e no caso de improcedência de douto Recurso, requer-se que se declare o Tribunal Competente e se proceda a remessa dos autos para o mesmo, cumprindo-se o artigo 101.º n.1 do CPC.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V/ Exas. doutamente suprirão, requer-se a procedência do presente recurso, revogando-se Acórdão recorridos, substituindo-a, por outro, que para tanto, declare competente para o efeito, o Tribunal de Comércio da Comarca da Madeira, para tramitar os presentes autos, e no caso de não proceder o presente, declarar-se a remessa dos autos ao Tribunal competente, cumprindo-se os termos do artigo 101.º n.º 1 do CPC

            7. O segundo recorrido apresentou contra-alegações, nas quais, em síntese, defendeu a manutenção da decisão recorrida.

            8.  Nos termos do art.101º, n.1 do CPC, o Ministério Público emitiu parecer, a fls.221-223 dos autos, no sentido de serem confirmadas as decisões recorridas, atribuindo-se ao Juízo Central Cível do Funchal a competência material para apreciação e decisão do presente procedimento cautelar. Fundou-se este parecer no facto de a providência cautelar em causa não encontrar previsão em nenhuma das alíneas do art.128º da Lei n.62/2013; e de se fixar no art.130º desse diploma competência residual dos juízos locais cíveis. Convocou ainda, no sentido proposto, o decidido em três acórdãos dos tribunais de segunda instância.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. A questão prévia da admissibilidade do recurso:

O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentos diferentes, a decisão da primeira instância, o que constituiria uma situação de dupla conforme. Todavia, estando em discussão um problema de competência do tribunal, o recurso é sempre admissível, com base no art. 629º n, 2 alínea a) do CPC.

2. O objeto do recurso

    O objeto do presente recurso confina-se à questão de saber se o tribunal competente para conhecer do procedimento cautelar de suspensão da deliberação social da assembleia de uma Associação patronal de direito privado, sem fins lucrativos, com sede no Funchal, é o Juízo de Comércio do Funchal ou o Juízo Cível do Funchal. 

3. Factualidade provada:

   A factualidade relevante para a decisão da presente questão é a que já resulta do relatório supra.

4. O direito aplicável:

            4.1. Como supra referido, a decisão a proferir respeita, centralmente, à questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito quando considerou incompetente para conhecer da presente ação o Juízo de Comércio do Funchal.

A Lei n. 62/2013 (Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ) estabelece, no seu art.128º, a competência dos juízos de comércio:

1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;

d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;

e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.

2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.

3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

            4.2. Entende a recorrente que o facto de a alínea d) do n.1 do art.128º não dizer expressamente que respeita apenas a deliberações de sociedades comerciais (referindo-se antes a “deliberações sociais”), permitirá concluir que o juízo de comércio também será competente para conhecer de ações respeitantes a deliberações de associações sem fins lucrativos.

             Por outro lado, acrescenta, ainda que assim não se entendesse, sempre o facto de a associação requerida (apesar de lhe estar vedada a profissão de comerciante) praticar atos objetivos de comércio justificaria que pudesse recorrer ao juízo de comércio.

            4.3. O acórdão em revista, subscrevendo e reproduzindo, em grande parte, a fundamentação da decisão da primeira instância, concluiu que os argumentos explanados pela recorrente na apelação (que coincidem, na essência, com os argumentos apresentados na revista) não permitem reconhecer-lhe razão.

            Entendeu-se, em síntese, que da evolução legislativa em matéria de competência dos tribunais de comércio (desde o anterior art.89º da Lei n.3/1999 até ao presente art.128º da Lei n.62/2013) não se pode concluir, nem pelo elemento literal (que se manteve inalterado), nem pelos propósitos legislativos (onde se inclui o aumento do número de juízos de comércio em todo o país) que tivesse existido uma intenção de estender a competência material dos juízos de comércio a matérias de natureza não comercial, o que vale tanto para ações destinadas à suspensão ou anulação de deliberações sociais como para providências cautelares de suspensão de deliberações sociais (como é o caso dos presentes autos).

            Por outro lado, no que respeita ao argumento de que podendo a requerida praticar atos objetivos de comércio, tal lhe abriria a porta dos juízos de comércio, conclui a decisão em revista que a deliberação, cuja suspensão foi pedida nos presentes autos, não é qualificável como ato de comércio.

4.4. O decidido no acórdão em revista não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito pertinente.

            O supra referido art.128º estabelece um elenco taxativo de hipóteses que cabem na competência material dos juízos de comércio, as quais apresentam como nota distintiva a natureza objetivamente comercial das matérias de onde emergem os conflitos a solucionar ou uma específica indicação temática assumida pelo legislador (independentemente de nem todos os conflitos aí comportáveis poderem ter natureza objetiva comercial, como por exemplo, em alguns casos de insolvência ou de registo comercial)[1]. Por outro lado, mesmo no âmbito dos conflitos entre sócios e sociedades comerciais, nem sempre a competência para conhecer do litígio cabe aos tribunais de comércio. Assim será quando o conflito não respeite a uma matéria de natureza comercial, como se entendeu no acórdão do STJ, de 05.07.2018 (relator Abrantes Geraldes)[2].

            Constituindo um elenco taxativo, as hipóteses de convocação da competência dos juízos de comércio não podem ser aplicadas analogicamente a situações que o legislador aí não incluiu.

A competência especializada de um tribunal, na medida em que conduz a uma maior harmonização de soluções e, consequentemente, a maior celeridade decisória, mercê da repetição das tipologias de conflitos, pressupõe, necessariamente, uma delimitação objetiva da correspondente área de incidência. Se esta área pudesse ser ampliada por via de aplicação analógica, passando a englobar o conhecimento de matérias de natureza não comercial, facilmente se compreende que as vantagens da especialização tenderiam a ser esbatidas, aproximando-se estes tribunais dos tribunais de competência genérica.

4.5. O facto de, na alínea d), se falar apenas de “deliberações sociais” sem dizer literalmente que se trata de deliberações de sociedades comerciais não pode ser alvo de uma interpretação descontextualizada que conduza à conclusão de que aí podem ser incluídas deliberações de associações sem fins lucrativos (como pretende a recorrente).

Qual a identidade valorativa existente entre as deliberações sociais de uma sociedade comercial e as deliberações sociais de uma associação sem fins lucrativos que pudesse justificar um tratamento processualmente idêntico dos dois tipos de atos? Se a natureza comercial da deliberação impugnada deixasse de constituir o critério delimitador da competência do tribunal, passando tal critério a ser apenas a configuração estrutural do ato impugnado, então parece que a analogia poderia levar a admitir que as deliberações de uma assembleia de condóminos (sobretudo se se pensar na assembleia de condóminos de um edifício de escritórios) poderiam passar a ser impugnadas no juízo de comércio.

Estas considerações permitem reafirmar a ideia de que no âmbito da alínea d) não devem ser incluídas hipóteses de impugnação de deliberações que não tenham natureza comercial, ou seja, não provenham de órgãos de sociedades comerciais. 

No caso concreto, aquela alínea não fornece, assim, suporte jurídico para que o juízo de comércio do Funchal pudesse conhecer da providência cautelar de suspensão de deliberação de uma associação patronal sem fins lucrativos.

4.6. A recorrente alegou ainda que a competência do juízo de comércio sempre se justificaria porque a requerida, enquanto associação de entidades patronais (apesar de lhe estar vedado o exercício do comércio como atividade), pratica atos objetivos de comércio. Ora, trata-se de uma alegação destituída de qualquer consistência argumentativa. No que ao presente caso interessa, está em causa apenas a prática de um ato: a deliberação impugnada (sendo irrelevante a prática de outros atos que, eventualmente, tenham natureza comercial). E, sem prejuízo da discussão da natureza de ato de comércio da deliberação social de órgão, mesmo quando este pertença a pessoa coletiva que tenha a qualidade de comerciante, a competência especializada não deve atender ao critério da comercialidade do ato identificado no tipo de ação (suspensão ou anulação de deliberações sociais). O que deve relevar para esse efeito é o tipo de pessoa coletiva cujas deliberações orgânicas são impugnadas: apenas se for qualificada como comerciante, de acordo com os critérios do art.13º do Código Comercial[3]. Neste sentido, como afirma Paula Costa e Silva: «A suspensão e a anulação de deliberações sociais de quaisquer outras pessoas coletivas que não sejam comerciantes não deve correr pelos tribunais de comércio, mas sim pelos tribunais cíveis»[4].


4.7. Num caso próximo do que se analisa nos presentes autos, no qual também se tratava de apreciar deliberações de uma associação (embora na vigência da LOFTJ), entendeu-se no acórdão do STJ, de 08.03.2001, no Proc. n.3275/00 (relator Silva Salazar), o seguinte: «Uma providência cautelar tem de ser proposta no tribunal que seja competente em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquela é dependência.  - Não sendo a acção principal uma acção de declaração de inexistência, nulidade ou anulação dum contrato de sociedade, mas de anulação ou declaração de nulidade de deliberação social (…) está-se fora da previsão do art.º 89 da LOFTJ, mormente das suas als. b) e d), o que afasta a competência do tribunal de comércio e determina a competência dos juízos cíveis».

4.8. Dado que o art.101º, n.1 do CPC atribui ao Supremo Tribunal de Justiça o poder para decidir sobre a fixação definitiva do tribunal competente, e tendo-se já concluído que esse tribunal não é o juízo de Comércio do Funchal, o tribunal competente será o tribunal cível.

         Cabe ainda apurar se esse deverá ser o juízo central cível do Funchal ou o juízo local cível do Funchal. Face à repartição de competências estabelecida pelos artigos 117º[5] e 130º[6] LOSJ, e tendo em conta que o valor da causa é de €30.000,01, a competência pertencerá ao juízo local cível do Funchal.

 

III. DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando a decisão recorrida, e declarando competente o Juízo Local Cível do Funchal, para onde os autos devem ser remetidos.

Custas pelo recorrente.

 

Lisboa, 23 de maio de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] Afirma-se no Acórdão do STJ, de 01.06.2017 (relator Abrantes Geraldes): “São diversificados os critérios que foram utilizados para efeitos de delimitar a competência das Secções de Comércio nos termos que constam do art. 128º da LOSJ. Ora se aponta para certas formas de processo especial (v.g. processo especial de insolvência, processo especial de revitalização, acções de liquidação judicial de sociedades, impugnação de despachos dos conservadores do registo comercial), ora para a natureza das questões que são objecto de cada acção (v.g. acções para o exercício de direitos sociais, acções de anulação de deliberações sociais, acções a que se refere o Cód. de Registo Comercial) ora, ainda, para um critério misto (v.g. acções de dissolução de sociedade anónima europeia ou acções de liquidação de instituições de crédito e sociedades financeiras)”. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/213dfd297a5729a380258133002fa8b1?OpenDocument&Highlight=0,compet%C3%AAncia,material,com%C3%A9rcio
[2] Esse acórdão foi sumariado nos seguintes termos:
«- Compete aos juízos do comércio, além do mais, a apreciação das ações relativas ao “exercício de direito sociais”, isto é, ao exercício de direitos que emergem especificamente do regime jurídico das sociedades comerciais.
- Não se inscreve nessa esfera de competência especializada a ação interposta pelo sócio de uma sociedade comercial contra essa sociedade e uma outra, na qual é formulado o pedido de declaração de nulidade de acordos que celebraram alegadamente inseridos numa atuação concertada de ambas com o objetivo de descapitalizarem a primeira sociedade.
- Para além de em tal ação também ser parte uma sociedade comercial na qual o A. não detém qualquer participação, o facto de estar em causa o vício de nulidade decorrente de simulação contratual afasta qualquer especificidade da matéria, objetivo que presidiu à delimitação da competência especializada dos juízos do comércio, inscrevendo-se a referida ação na competência residual dos juízos cíveis.»
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/82812b97ea8059ee802582c2003d5d66?OpenDocument&Highlight=0,compet%C3%AAncia,material,com%C3%A9rcio
[3] Para esta qualificação, veja-se, a título de exemplo, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 11ª ed (2018), pág.122 e seguintes.
[4] Vd. https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2002/ano-62-vol-i-jan-2002/notas-e-observacoes-a-sentencas/paula-costa-e-silva-sobre-a-competencia-dos-tribunais-de-comercio/
[5] Estabelece o art.117º da LOSJ:
«1 - Compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;
b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;

c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.