Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
107/19.0T8CBA.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
INDEFERIMENTO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO NÃO APARENTE
SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Lida e interpretada a decisão recorrida, não se vislumbra qualquer vício na construção lógica da mesma, tendo o tribunal a quo afirmado, simplesmente, que, tendo por referência a matéria de facto dada como provada, existiam elementos bastantes para qualificar a servidão em causa nos autos como sendo aparente; saber se o tribunal decidiu bem ou mal é matéria que se coloca no nível do eventual erro de julgamento e não ao nível da invocada nulidade.

II. Como resulta do regime dos n.os 1 e 2 do art. 1548.º do CC, para que uma servidão seja aparente, e para que possa ser adquirida por usucapião, deve revelar-se através de sinais visíveis e permanentes.

III. No caso dos autos, o sinal visível e permanente, consubstanciador da aparência da servidão, é a existência de uma passagem com a largura de cerca de dois metros e extensão de oito metros a que, antes de bloqueada pelos réus, os autores acediam através de um portão (ou portal) de comunicação aramado, situado igualmente no terreno dos réus.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA e BB instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e CC, pedindo:

«a) o reconhecimento da propriedade dos Autores sobre o prédio urbano sito na antiga Rua ..., atual Rua ..., ..., em ... ..., inscrito na matriz urbana com o n.º 328, e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ... sob o artigo ...06;

b) o reconhecimento que o prédio acima descrito é servido, pelo menos há mais de 50 anos, por um caminho de acesso ao seu logradouro e destinado à passagem de pessoas, animais (porcos, galinhas), transporte de lenha e utensílios agrícolas com o auxílio de carro de mão, com uma largura de 2 metros e uma extensão de 8 metros, que se inicia no portão de acesso ao prédio dos Réus;

c) o reconhecimento que assiste ao prédio dos Autores, o direito à constituição de uma servidão de passagem, por usucapião, para passagem de pessoas, animais, transporte de lenha e utensílios agrícolas com o auxílio de carro de mão, com uma largura de 2 metros e uma extensão de 8 metros até atingir a extrema do prédio dos AA. sobre o prédio dos RR., prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o artigo ...28 da freguesia ..., concelho ... e descrito sob o n.º ...26;

d) a condenação dos Réus a demolir a parede que colocaram no seu prédio e que impede o acesso ao logradouro do prédio dos Autores; e

e) a condenação dos Réus a pagar a cada um dos Autores, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 1.000,00, acrescida de € 230,00 a título de IVA, num total de € 2.460,00, e a quantia de € 500,00 a cada um dos Autores a título de danos não patrimoniais.».

Para tanto, alegam os AA. que, desde 11 de Junho de 1966, usam o caminho descrito nos autos, de forma pública e pacífica, utilizando-o para o trânsito de pessoas e animais, bem como para o transporte de lenha e ferramentas agrícolas com o auxílio de carro de mão.

Mais alegam que, no final de Julho de 2018, os RR. impediram o acesso dos AA. ao referido caminho, devendo estes ser responsabilizados pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados aos AA..

Por fim, concluem que se encontram verificados os requisitos para a constituição da servidão de passagem, por usucapião.

Contestaram os RR. por excepção, invocando a ilegitimidade dos AA.; e por impugnação, alegando que não se encontram verificados quaisquer sinais permanentes e visíveis, reveladores da servidão e que nunca existiu posse por parte dos AA., mas sim uma mera tolerância por parte dos RR.. Além disso, alegam que existe acesso ao logradouro dos AA. pela via pública, uma vez que tanto o prédio dos RR. com o dos AA. confinam com a mesma.

Concluem pugnando pela improcedência do pedido.

Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade arguida pelos RR..

Por sentença de 11de Junho de 2021 foi proferida a seguinte decisão:

«Nestes termos, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se condenar os Réus CC ao reconhecimento da propriedade dos Autores AA e BB, sobre o prédio urbano sito na antiga Rua ..., actual Rua ..., ..., em ... ..., inscrito na matriz urbana com o n.º 328, e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ... sob o artigo ...06, absolvendo-se os Réus do demais peticionado.

Condena-se os Autores e Réus no pagamento das custas do processo, na proporção de 90% para os Autores e 10% para os Réus.».

Inconformados, os AA. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Évora, pedindo a modificação da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 16 de Dezembro de 2021 foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida na parte impugnada e:

- Reconhece-se que assiste ao prédio dos autores, o direito de servidão de passagem, constituída por usucapião, para passagem de pessoas, transporte de lenha e utensílios agrícolas com o auxílio de carro de mão, com uma largura de 2 metros e uma extensão de 8 metros, até atingir a extrema do mesmo, sobre o prédio dos réus, prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o artigo ...28 da freguesia ..., concelho ... e descrito sob o n.° ...26;

- Condena-se os réus a reconhecer tal direito e a demolir a parede que colocaram no seu prédio e que impede o acesso ao logradouro do prédio dos autores;

- Condena-se os réus a pagar a cada um dos autores, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 500,00.

Custas de parte por apelantes e apelados na proporção de 93% para estes e 7% para aqueles (cfr. disposições combinadas dos artigos 663° n.° 2, 607° n.° 6, 527° n.°s 1 e 2, 529° n.° 4 e 533° n.°s 1 e 2 do CPC).».


2. Vem o R. CC interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«A.- As conclusões delimitam o objecto do recurso, tendo presente, que se apreciam questões e não razões.

B.- No presente recurso a questão está em saber se os factos dados como provados são suficientes para reconhecer o direito de servidão de passagem sobre o prédio dos réus em benefício do prédio dos autores, adquirida por usucapião.

C.- Nesta questão particular, o Tribunal de primeira instância disse “não existe nenhum elemento que permita o Tribunal classificar a servidão como aparente…”

D.- Tendo julgado improcedente o pedido nos termos do art.1548.º n. 1 do Código Civil.

E.- Fundamentou o Tribunal de Primeira Instância a posição na jurisprudência produzida pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.º 30/15.8T8SAT.C1 de 04.04.2017

F.- Refere o indicado arresto que “…um portão que separa o prédio serviente da via pública ou de outro prédio que não o dominante, em nada revela a existência de uma qualquer passagem através do prédio serviente para o prédio dominante.”

G.- Inconformados os AA recorreram para o Tribunal da Relação de Évora, tendo este Tribunal julgado parcialmente procedente a apelação.

H.- Refere o douto acórdão revidendo que “o portão que veda o acesso, de quem circular na via pública, à aludida passagem com uma largura de cerca de 2 metros e extensão de 8 metros, situada no prédio dos réus, do qual os autores se vêm utilizando, é elucidativo até do interesse de salvaguardar a intromissão de transeuntes em qualquer das propriedades.”

I.- A fundamentação patente na decisão da primeira instância é a de que o portão retira o carácter aparente à servidão, enquanto que a posição do Tribunal da Relação é a de que o portão visa salvaguardar a intromissão de transeuntes.

J.- Aqui chegados, temos de perguntar se um portão fechado (como é o caso dos autos) que deita directamente sobre a via pública, retira ou não o carácter aparente a uma servidão de passagem.

L.- Não merece dúvida que, um observador médio que passe na rua não vê ali uma servidão de passagem.

M.- Tal portão, independentemente de ter sido cedido a título gratuito pelos AA retira o carácter visível à servidão, ou seja, a aparência.

N.- É inequívoco que para a servidão ser constituída por usucapião os sinais têm de ser aparentes.

O.- Também têm de ser permanentes, claros e inequívocos.

P.- Dos factos provados não consta qual a frequência com que os AA utilizavam a servidão – ficando por preencher o requisito da permanência.

Q.- Salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal da Relação de Évora quando no refere “os autores reiteradamente usavam aquela passagem como meio de acesso a logradouro do seu prédio.”, uma vez que, tal não resulta de nenhum dos pontos da matéria de facto dada como provada (v. ponto 1 a 13 dos factos provados).

R.- Resulta sim, que “ambos os prédios urbanos confinam com a via pública, sendo os respectivos logradouros acessíveis através da mesma” (v. ponto 5 dos factos provados)

S.- A interpretação do Tribunal da Relação de Évora é inadmissível, ilegal e incorrecta e consubstancia uma interpretação extensiva inconstitucional dos juízos de prognose, pois não existem argumentos que confirmem a existência de sinais visíveis, permanentes, claros e inequívocos da existência de uma servidão de passagem.

T.- O Tribunal da Relação de Évora, ao julgar, ao contrário do que consta da Douta Sentença dos autos, que há sinais visíveis e permanentes de servidão, viola Lei substantiva, por erro na sua interpretação e aplicação, bem como viola e aplica erradamente a lei do processo.

U.- Caso o Tribunal da Relação de Évora tivesse entendido, e não o fez, que a sentença proferida em primeira Instância não estava bem fundamentada, deveria como dispõe o artigo 662.º n.º 2 alínea d) determinar que não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

V.- Acontece que o Tribunal da Relação, sem mais, alterou o sentido da decisão.

X.- O juiz a quo fez uma análise muito ponderada da prova produzida que completou com uma inspecção judicial ao local, onde avaliou directamente o carácter não aparente da servidão em causa.

Z.- No douto Acórdão recorrido é referido que: “resulta, assim, a existência de sinais visíveis e permanentes elucidativos de que os autores utilizam o prédio para acesso ao logradouro do seu prédio, sendo tais sinais necessariamente constatáveis por estes, enquanto proprietários servientes”.

AA.- Ora, por estes, até podem ser constatáveis, mas não o são por um qualquer terceiro – o que teria de ser para efectivamente estar preenchido o requisito da aparência, previsto no art. 1548 do CC.

BB.- Sempre foi um acto de mera tolerância e boa vizinhança por parte dos RR deixarem os AA passar pelo seu quintal, tão comum no meio rural.

CC.- Sem prejuízo, repete-se, de não resultar dos factos provados se essa passagem era reiterada, frequente ou esporádica.

DD.- Dessa feita, o Tribunal da Relação de Évora não pode proferir um acórdão em completo desacordo, com a decisão da primeira instância e em manifesta contradição com matéria de facto dada como provada

EE.- Salvo o devido respeito, tal acórdão é nulo nos termos do art. 615 n.º 1 alínea c) do CPC.

FF.- Também não se pode dizer que a alteração da matéria de facto – o novo número 13 consubstancie uma realidade susceptível de alterar o sentido da decisão.

GG. - Tendo em consideração toda a prova produzida nos autos, o acórdão revidendo constitui uma verdadeira decisão-surpresa e traduz um volte face inesperado na presente acção, colocando em crise os princípios da confiança e segurança, constitucionalmente consagrados nos artigos 2.º da CRP.

HH. - Deveria, pois, o acórdão recorrido ter mantido na integra a decisão do Tribunal de Primeira Instância.».

Os Recorridos contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da decisão do acórdão recorrido.

Cumpre apreciar e decidir.


2. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):

1. Os Autores AA e BB são, respectivamente, marido e filho de DD, falecida em ... de Setembro de 2017.

2. Os Réus CC e CC são, respectivamente, mulher e filho de EE, falecido a ... de Junho de 2013.

3. Pela Ap. ... de 11.06.1966 foi inscrita a favor de AA, casado com DD no regime da comunhão geral de bens, a aquisição do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...06, da freguesia ..., correspondente ao artigo 328 da matriz predial urbana, daquela freguesia, sito na Rua ..., ..., ..., antiga Rua ....

4. Pela Ap. ... de 04.04.1969 foi inscrita a favor de EE, casado com CC no regime da comunhão geral de bens, a aquisição do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...05, da freguesia ..., correspondente ao artigo ...28 da matriz predial urbana, daquela freguesia, sito na Rua ..., ..., ..., antiga Rua ....

5. Ambos os prédios urbanos confinam com a via pública, sendo os respectivos logradouros acessíveis através da mesma.

6. Os Autores, desde a compra do imóvel identificado em 3, sempre tiveram também acesso ao logradouro do seu prédio através de uma passagem com uma largura de cerca de 2 metros e extensão de 8 metros, a qual se efectua através do portão sito na Travessa ..., pertencente ao prédio identificado no ponto 4.

7. A qual era utilizada para a passagem de pessoas e animais, transporte de lenha e utensílios agrícolas com o auxílio de carro de mão.

8. Passagem essa que sempre foi permitida aos Autores, pública, pacificamente e à vista de toda a gente.

9. O portão que se encontra colocado na Travessa ..., que delimita a entrada na passagem acima referida com a via pública foi cedido pelo Autor AA.

10. Actualmente, a passagem acima referida é usada para o transporte de lenha, a qual se encontra depositada no caminho de acesso ao logradouro usado pelos Autores.

11. Desde Julho de 2018 que os Réus não permitem aos Autores o acesso à passagem acima referida, primeiramente através do bloqueio da passagem com tábuas e telhas e, posteriormente, através da construção de uma parede de tijolo em alvenaria com cerca de 2,5 metros de largura e 2,5 metros de altura.

12. Com a situação acima descrita, os Autores sentiram preocupação, ansiedade e tristeza.

13. A passagem indicada em 6. dos factos provados, processava-se através de um portão de comunicação aramado, precisamente no local onde se mostra edificada pelos RR., desde Julho de 2018, uma parede de tijolo em alvenaria. [facto aditado pela Relação]


Factos dados como não provados:

A. A passagem referida no ponto 6 era utilizada pelos antigos proprietários do prédio urbano mencionado no ponto 3.

B. Actualmente, a passagem acima referida é usada para o trânsito de animais (porcos, galinhas).

C. Os Autores despenderam a quantia de € 2.460,00 para obtenção de aconselhamento profissional forense e instauração da presente acção.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Nulidade do acórdão recorrido por “manifesta contradição” da decisão em crise com a matéria de facto dada como provada, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC;

- Saber se é possível concluir pela natureza aparente da passagem descrita nos autos e, consequentemente, se se mostram reunidos os pressupostos de que depende a aquisição do direito de passagem por usucapião, tal como pretendido pelos AA..


5. Relativamente à questão da alegada nulidade do acórdão recorrido, afirma o Recorrente que «o Tribunal da Relação de Évora não pode proferir um acórdão em completo desacordo, com a decisão da primeira instância e em manifesta contradição com matéria de facto dada como provada, sob pena de tal acórdão ser considerado nulo nos termos do art. 615 n.º 1 alínea c) do CPC.».

Vejamos.

Dispõe o mencionado art. 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, aplicável ex vi art. 666.º, n.º 1, do mesmo Código que:

«É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».

A norma compreende duas causas de nulidade da sentença, a saber: a oposição entre os fundamentos e a decisão e a ocorrência de ambiguidade e obscuridade. Ora, lido e interpretado o recurso em análise, há que concluir que o Recorrente considera que a decisão em causa é nula por se verificar uma oposição entre os fundamentos de facto e de direito.

Entende a jurisprudência deste Supremo Tribunal que tal nulidade:

«[P]ressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la» (acórdão de 11-01-2018, proc. n.º 779/14.2TBEVR-A.E1.S1, não publicado).

Neste sentido, cfr., entre muitos outros, os acórdãos de 12-01-2021 (proc. n.º 1801/19.1T8CSC.L1-B-A.S1), de 21-01-2021 (proc. n.º 3384/16.5T8GMR.G1.S1) e de 04-02-2021 (proc. n.º 22/17.2T8CLB.C1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

Ora, como tem sido salientado repetidamente por este Supremo Tribunal, a nulidade em análise não se confunde com o erro de julgamento:

«[A] contradição entre os fundamentos e a decisão corresponde a um vício formal, na construção lógica da decisão e o erro de julgamento, a um vício substancial, concretizado, p. ex., na errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal.» (sumário do acórdão de 04-02-2021, proc. n.º 22/17.2T8CLB.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Neste mesmo sentido ver, entre outros os acórdãos de 08-09-2020 (proc. n.º 148/14.4TVLSB.L1.S1), de 07-10-2020 (proc. n.º 705/14.9TBABF.E1.S1), de 08-10-2020 (proc. n.º 361/14.4T8VLG.P1.S1), de 20-10-2020 (proc. n.º 6024/17.T8VNG.P1.S1) e de 17-11-2020 (proc. n.º 6471/17.9T8BRG.G1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.

No caso dos autos, lida e interpretada a decisão recorrida, não se vislumbra qualquer vício na construção lógica da mesma, tendo o Tribunal da Relação afirmado, simplesmente, que, tendo por referência a matéria de facto dada como provada, existiam elementos bastantes para qualificar a servidão em causa nos autos como sendo aparente. Saber se o Tribunal da Relação decidiu bem ou mal é matéria que se coloca no nível do eventual erro de julgamento e não ao nível da invocada nulidade.

Assim, o que se verifica no caso que nos ocupa é que o Recorrente discorda da decisão proferida pela Relação, naturalmente, por ser a mesma contrária à posição por si assumida ao longo do processo e por considerar que, atenta a factualidade dada como provada, se impunha uma decisão diversa.

Tais razões de discordância prendem-se, tão-só e apenas, com a subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal, o que, nos termos da jurisprudência supra citada, se deve reconduzir a erro de julgamento e não a nulidade.

É, pois, quanto basta para concluir que não se verifica, in casu, a nulidade imputada ao acórdão recorrido.

Por fim, cumpre ainda afirmar que a revogação da sentença da 1.ª instância, no exercício dos poderes atribuídos à Relação, corresponde ao normal funcionamento do sistema judicial, não ocorrendo, pois, diversamente do alegado pelo Recorrente, qualquer violação do princípio da confiança e da segurança jurídica. Na verdade, interposto um recurso, há que, razoavelmente, contar com a sua procedência, não configurando tal desfecho uma qualquer decisão surpresa.


6. Passemos, em seguida, a apreciar a questão de saber se é possível concluir pela natureza aparente da passagem descrita nos autos e, consequentemente, se se mostram reunidos os pressupostos de que depende a aquisição do direito de servidão de passagem por usucapião, tal como pretendido pelos AA..

Está em causa a aplicação do regime do art. 1548.º do Código Civil que prescreve:

«1. As servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião.

2. Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes.».

6.1. Aplicando este regime legal ao caso dos autos, a 1.ª instância considerou o seguinte:

«Olhando para a factualidade considerada como provada, não se encontram quaisquer sinais visíveis e permanentes da existência da servidão e que permitam a este tribunal classificar a mesma como aparente, uma vez que apenas se mostra alegado e provado, quanto a esta questão, que os Autores, desde a compra do imóvel identificado em 3, sempre tiveram também acesso ao logradouro do seu prédio através de uma passagem com uma largura de cerca de 2 metros e extensão de 8 metros, a qual se efectua através do portão sito na Travessa ..., pertencente ao prédio identificado no ponto 4, sendo que a mesma era utilizada para a passagem de pessoas e animais, transporte de lenha e utensílios agrícolas com o auxílio de carro de mão.

Provou-se ainda que a passagem sempre foi permitida aos Autores, pública, pacificamente e à vista de toda a gente e que o portão que se encontra colocado na Travessa ..., que delimita a entrada na passagem acima referida com a via pública foi cedido pelo Autor AA.

Por fim, demonstrou-se que, actualmente, passagem acima referida é usada para o transporte de lenha, a qual se encontra depositada no caminho de acesso ao logradouro usado pelos Autores.

Ora, da factualidade considerada como provada, como já acima se referiu, não existe nenhum elemento que permita ao Tribunal classificar a servidão como aparente, o que permitiria a sua constituição por usucapião, sendo que a inexistência de sinais visíveis e permanentes indiciadores de uma mera tolerância dos Réus à passagem dos Autores no seu prédio urbano.

Aliás, no que diz respeito ao portão cedido pelo Autor AA, encontra-se referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.º 30/15.8T8SAT.C1, em 04.04.2017, relator Sílvia Pires, disponível em www.dgsi.pt que “…tal portão ou entrada terão que se situar na linha divisória que separa o prédio serviente do dominante, destinando-se a assegurar uma comunicação entre os dois prédios.

Já um portão que separa o prédio serviente da via pública ou de outro prédio que não o dominante, ou uma qualquer obra de entrada no prédio serviente que não deite para o prédio dominante, em nada revela a existência de uma qualquer passagem através do prédio serviente para o prédio dominante, pois tais construções, atenta a sua localização, são apenas meios de vedação ou de acesso ao prédio serviente, sem evidenciarem qualquer forma de comunicação entre prédio dominante e serviente.”

Ora, no caso em apreço deparamo-nos precisamente com a situação acima descrita em que o portão separa o prédio serviente da via pública motivo pelo qual, seguindo a jurisprudência acima citada, entende-se que tal circunstância não é reveladora de um sinal permanente e visível, motivo pelo qual os pedidos referidos em b) e c) são julgados improcedentes, atendendo ao disposto no artigo 1548.º, n.º 1, do Código Civil, absolvendo os Réus dos mesmos.». [negritos nossos]


6.2. Interpuseram os AA. recurso de apelação, pedindo o aditamento de um facto e a reapreciação da decisão de direito.

A Relação apreciou o pedido de aditamento nos seguintes termos:

«Os recorrentes vêm pôr em causa o julgado de facto, defendendo que perante o que resultou da prova testemunhal e do que se evidencia do conteúdo da prova documental (fotografias do local em questão) se deve proceder ao aditamento aos factos provados de um novo facto, o qual evidencie como era efetuada a comunicação entre o prédio dos autores e o prédio dos réus em face da passagem descrita no ponto 6 dos factos provados.

O facto que se pretende ver aditado ao acervo factual dado como provado resulta à evidência da documentação fotográfica junta aos autos (doe. 8 e 11 juntos com a petição; fotos n.°s 4 e 5 do auto de inspeção ao local; fotos do "Relatório de Peritagem" junto aos autos em 19/11/2020) apreciada em conjugação com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas FF, GG e HH, sendo certo que, também, não é posto em causa pelos réus, pois foi esse "portal de comunicação" que foi bloqueado por estes, primeiramente com tábuas e telhas e posteriormente com a construção de uma parede em tijolo.

Nessa medida, é de deferir a pretensão dos autores no que se refere ao julgado de facto, pelo que se decide aditar aos factos provados o seguinte:

13. A passagem indicada em 6 dos factos provados, processava-se através de um portal de comunicação aramado, precisamente no local onde se mostra edificada pelos RR., desde Julho de 2018, uma parede de tijolo em alvenaria.». [negritos nossos]

Em seguida, o acórdão recorrido reapreciou a questão de direito, nos seguintes termos:

«[S]endo a servidão de passagem uma servidão aparente há que ter em conta que para a sua constituição por usucapião é requisito fundamental a existência de sinais visíveis, permanentes e inequívocos1, por forma a demonstrar a existência de uma relação de dependência material ou de afetação funcional entre dois prédios, isto para não serem confundidos com atos de mera tolerância do proprietário do prédio serviente, até pelo facto de poder ignorar, em face da inexistência de sinais, que alguém se sirva do seu prédio como passagem.

No caso, afirmam os réus que no seu prédio não existem sinais visíveis e permanentes que sejam reveladores da existência da servidão a favor do prédio dos autores, tendo sido essa a interpretação que o Julgador a quo assumiu como boa.

No entanto, para nós, em face do que resultou provado nos pontos 6 a 11 e 13 a interpretação não pode ser essa.

Estando demonstrado que os autores desde a compra do seu prédio (pelo menos desde junho de 1966) sempre tiveram acesso ao logradouro dele por um portal de comunicação aramado e de uma passagem com uma largura de cerca de 2 metros e extensão de 8 metros, pertencente ao prédio dos réus, que se efetua através do portão sito na Travessa ... (portão este que foi cedido pelo próprio autor), o que sempre lhes foi permitido pública, pacificamente e à vista de toda a gente, resulta da análise deste quadro factual a existência de sinais suficientes para revelarem aos olhos de qualquer observador médio, designadamente dos réus, que os autores reiteradamente usavam aquela passagem como meio de acesso ao logradouro do seu prédio.

O portal de comunicação situado na extrema entre o logradouro dos dois prédios é um sinal aparente e permanente revelador de que os autores se serviam do prédio dos réus para o acesso ao seu, e tanto assim é que os réus obstaculizaram tal comunicação com a construção de uma parede em tijolo. E para retirar qualquer possível dúvida, acresce o facto de ser o autor a ceder para colocação no prédio dos réus, naturalmente com a aquiescência do dono da propriedade,[2] o portão que veda o acesso, de quem circular na via pública, à aludida passagem com uma largura de cerca de 2 metros e extensão de 8 metros, situada no prédio dos réus, da qual os autores se vêm utilizando, o que é elucidativo até do interesse de salvaguardar a intromissão de transeuntes em qualquer das propriedades.

Não é assim verosímil que todos estes anos os autores tenham atuado sobre o prédio dos réus "clandestinamente" de modo que a atitude passiva destes, ao longo dos anos, seja devida à ignorância da prática de atos passíveis de constituir servidão.

Resulta, assim, a existência de sinais visíveis e permanentes elucidativos de que os autores utilizavam o prédio dos réus para acesso ao logradouro do seu prédio, sendo tais sinais necessariamente constatáveis por estes, enquanto proprietários servientes, pelo que é de concluir, ao contrário do entendimento do Julgador a quo, que estamos, no caso, perante uma servidão aparente.»

Consequentemente, a Relação julgou parcialmente procedente o recurso interposto pelos AA., reconhecendo que «assiste ao prédio dos autores, o direito de servidão de passagem, constituída por usucapião, para passagem de pessoas, transporte de lenha  utensílios agrícolas com o auxílio de carro de mão, com uma largura de 2 metros e uma extensão de 8 metros, até atingir a extrema do mesmo, sobre o prédio dos réus (…)» e condenando os RR. a demolir a parede que colocaram no seu prédio e que impede o acesso ao logradouro do prédio dos AA. e a pagar a cada um destes a quantia de € 500,00 a título de danos não patrimoniais.


6.4. Insurgem-se os Recorrentes contra esta decisão, invocando essencialmente o seguinte:

- A fundamentação da decisão da 1.ª instância é no sentido de que o portão retira o carácter aparente à servidão, enquanto a posição do Tribunal da Relação é a de que o portão visa salvaguardar a intromissão de transeuntes;

- Temos de perguntar se um portão fechado (como é o caso do dos autos), que “deita directamente” sobre a via pública, retira ou não o carácter aparente a uma servidão de passagem;

- Não há dúvidas de que um observador médio que passe na rua não vê ali uma servidão de passagem;

- Tal portão, independentemente de ter sido cedido a título gratuito pelos AA., retira o carácter visível à servidão, ou seja, a aparência;

- Assim, o facto aditado pela Relação não permitia alterar o sentido da decisão.


6.5. Como resulta do regime dos n.ºs 1 e 2 do art. 1548.º do CC, para que uma servidão seja aparente, e para que possa ser adquirida por usucapião, deve revelar-se através de sinais visíveis e permanentes. Nas palavras do sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 09-06-2021 (proc. n.º 426/18.3T8ORM.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt):

«A visibilidade e permanência do uso de determinado caminho têm de ser alegadas e demonstradas para que se justifique a limitação ao direito de propriedade do titular do prédio serviente, em nome do interesse daquele que invoca o direito à servidão de passagem. A existência de sinais visíveis e permanentes significa que a concreta configuração do caminho há-de revelar caraterísticas inerentes a um uso sedimentado ou efetivo desse caminho; caraterísticas que permitam a qualquer pessoa apreender que aquele é um local de passagem habitual.».

Ou ainda, conforme se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de 17-12-2019, (proc. n.º 797/17.9T8OLH.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

«[P]ara que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente.».

A este propósito, justifica-se fazer ainda uma referência à jurisprudência dos Tribunais da Relação, que se têm debruçado mais recorrentemente sobre o tema. A título de exemplo, citam-se os seguintes acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt:

- Acórdão Relação de Coimbra, de 10-07-2013 (proc. n.º 2482/08.3TBAGD.C1):

«[A] visibilidade dos sinais respeita à sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpretáveis como tais, pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles e a permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros.».

- Acórdão da Relação de Coimbra de 16-10-2012, (proc. n.º 2763/08.6TBPBL.C1):

«Por sinais entende-se tudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente indícios que revelem a existência de obras destinadas a facilitar e a tornar possível a servidão. Na servidão de passagem poderão ser, por exemplo, a existência de um trilho de terra batida ou empedrada, de sulcos de rodados de tracção animal deixados pelo decorrer dos tempos, em pedras existentes no caminho, tranqueiros, cancelas, pontes, etc. A servidão de passagem tornar-se-á aparente desde que se faça um caminho, uma ponte ou se abra uma porta. Esses sinais hão-de ser visíveis, permanentes e inequívocos, pois só deste modo poderão indicar a existência de servidão aparente. Não é indispensável que os sinais existem em ambos os prédios ou em ambas as fracções dele, dado que a lei refere terminantemente os sinais postos em um ou em ambos: quer os sinais existam no prédio dominante, no dominado ou ambos, basta que as obras ou sinais tornem a servidão patente. Além de visíveis ou aparentes, os sinais devem ser permanentes, revelando uma situação estável, que foram postos com intenção de assegurar a serventia de um prédio para o outro, com carácter de permanência».

- Acórdão da Relação de Coimbra, de 04-04-2017 (proc. n.º 30/15.8T8SAT.C1):

«Uma servidão de passagem pode ser revelada por sinais exteriores que não tem que ser necessariamente o traçado do caminho por onde se passa, podendo integrar esses sinais outros elementos, como a existência de um portão ou de uma “entrada” que sinalize, com evidência, uma passagem do prédio dominante para o prédio serviente. Para esse efeito, tal portão ou entrada terão que se situar na linha divisória que separa o prédio serviente do dominante, destinando-se a assegurar uma comunicação entre os dois prédios.

Já um portão que separa o prédio serviente da via pública ou de outro prédio que não o dominante, ou uma qualquer obra de entrada no prédio serviente que não deite para o prédio dominante, como sucede no presente caso, em nada revela a existência de uma qualquer passagem através do prédio serviente para o prédio dominante, pois, tais construções, atenta a sua localização, são apenas meios de vedação ou de acesso ao prédio serviente, sem evidenciarem qualquer forma de comunicação entre prédio dominante e serviente.».

Este último acórdão, que foi invocado na fundamentação da sentença (para sustentar a decisão de improcedência da acção), e que, por isso mesmo, foi retomado pelos RR., ora Recorrentes, em sede de alegações recursórias, justificará, como veremos infra, um esclarecimento complementar.

Também na doutrina encontramos as seguintes considerações relativamente à interpretação do regime do art. 1548.º do CC:

- «Para que seja aparente, não basta que a servidão se revele por obras ou sinais exteriores. É necessário que, além de visíveis (sendo a visibilidade destinada a garantir a não clandestinidade), os sinais reveladores da servidão sejam permanentes (…) do mesmo modo, para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião torna-se imprescindível a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício (como por exemplo, um caminho ou uma porta ou portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente. (…) indispensável (…) é a permanência de sinais, mas admite-se a sua substituição ou transformação” (Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 630);

 - «Sinais idóneos para revelar a posse conducente à usucapião são necessariamente as construções, como uma porta, uma janela, um aqueduto, etc., as plantações e quaisquer indícios que inequivocamente demonstrem a existência de obras destinadas ao exercício da servidão (…) mas tem-se entendido não ser indispensável a visibilidade completa de uma obra ou sinal. É suficiente que uma parte seja perfeitamente visível para revelar a existência do ónus. (…) a aparência das obras ou sinais deve ser susceptível de revelar-se a qualquer pessoa, evidenciando-se erga omnes. Constitui, assim, uma qualidade objectiva da servidão. E exigindo-se do proprietário do prédio serviente o seu conhecimento, este deverá precisamente advir-lhe dessa mesma objectividade. (…) a doutrina tem entendido que a visibilidade dos sinais deve ser completada pela inequivocidade dos mesmos. Significa este elemento que tais indícios não podem ter uma significação duvidosa.» (Mário Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1990, págs. 165-166);

- «O que é decisivo para a qualificação de uma servidão como aparente é a verificação de sinais relativos à existência dessa servidão, tendo esses sinais que ser visíveis e permanentes, podendo encontrar-se quer no prédio dominante, quer no prédio serviente. A visibilidade dos sinais significa que os mesmos devem manifestar a servidão erga omnes, podendo não apenas o dono do prédio serviente mas também qualquer outra pessoa observar esses sinais. (…) um exemplo de sinal visível e permanente será, na servidão de passagem, a existência de uma abertura ou carreiro, pelo qual a passagem se exerce” (Menezes Leitão, Direitos Reais, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 365-366).


6.6. Procurando transpor os ensinamentos supra apresentados para o caso sub judice, consideremos, antes de mais, os factos provados relevantes para o efeito:

5. Ambos os prédios urbanos confinam com a via pública, sendo os respectivos logradouros acessíveis através da mesma.

6. Os Autores, desde a compra do imóvel identificado em 3, sempre tiveram também acesso ao logradouro do seu prédio através de uma passagem com uma largura de cerca de 2 metros e extensão de 8 metros, a qual se efectua através do portão sito na Travessa ..., pertencente ao prédio identificado no ponto 4.

7. A qual era utilizada para a passagem de pessoas e animais, transporte de lenha e utensílios agrícolas com o auxílio de carro de mão.

8. Passagem essa que sempre foi permitida aos Autores, pública, pacificamente e à vista de toda a gente.

9. O portão que se encontra colocado na Travessa ..., que delimita a entrada na passagem acima referida com a via pública foi cedido pelo Autor AA.

10. Actualmente, a passagem acima referida é usada para o transporte de lenha, a qual se encontra depositada no caminho de acesso ao logradouro usado pelos Autores.

11. Desde Julho de 2018 que os Réus não permitem aos Autores o acesso à passagem acima referida, primeiramente através do bloqueio da passagem com tábuas e telhas e, posteriormente, através da construção de uma parede de tijolo em alvenaria com cerca de 2,5 metros de largura e 2,5 metros de altura.

12. Com a situação acima descrita, os Autores sentiram preocupação, ansiedade e tristeza.

13. A passagem indicada em 6. dos factos provados, processava-se através de um portão de comunicação aramado, precisamente no local onde se mostra edificada pelos RR., desde Julho de 2018, uma parede de tijolo em alvenaria. [facto aditado pela Relação]

Aqui chegados, impõe-se uma clarificação. Afigura-se que uma certa imprecisão na terminologia utilizada ao longo do processado (com o uso de termos ou expressões como “passagem”, “portão”, “passagem através de portão”, “portal”) gerou alguma confusão sobre qual o sinal visível e permanente a que se atribui relevância para efeitos de qualificar a servidão como aparente. Tal confusão reflecte-se, aliás, na seguinte conclusão constante da fundamentação da sentença de 1.ª instância:

«[N]o caso em apreço deparamo-nos precisamente com a situação acima descrita em que o portão separa o prédio serviente da via pública motivo pelo qual, seguindo a jurisprudência acima citada, entende-se que tal circunstância não é reveladora de um sinal permanente e visível.».

Ora, da conjugação do facto 6. com o facto 13., aditado pela Relação, resulta que o sinal visível e permanente não é o portão colocado no prédio dos RR. que dá acesso à via pública, mas sim «uma passagem com uma largura de cerca de 2 metros e extensão de 8 metros» (facto 6), passagem esta que «processava-se através de um portão de comunicação aramado, precisamente no local onde se mostra edificada pelos RR., desde Julho de 2018, uma parede de tijolo em alvenaria» (facto 13, aditado pela Relação).

Assim, e diversamente do alegado pelos RR., ora Recorrentes, a doutrina do supra referido acórdão da Relação de Coimbra de 04-04-2017, proferido no proc. n.º 30/15.8T8SAT.C1, não permite sustentar a posição dos mesmos RR.. Com efeito, afirmou-se nesse aresto que:

(i) O portão ou entrada relevante terá «que se situar na linha divisória que separa o prédio serviente do dominante, destinando-se a assegurar uma comunicação entre os dois prédios»;

(ii) Pelo contrário, «um portão que separa o prédio serviente da via pública ou de outro prédio que não o dominante, ou uma qualquer obra de entrada no prédio serviente que não deite para o prédio dominante [...] em nada revela a existência de uma qualquer passagem através do prédio serviente para o prédio dominante, pois, tais construções, atenta a sua localização, são apenas meios de vedação ou de acesso ao prédio serviente, sem evidenciarem qualquer forma de comunicação entre prédio dominante e serviente.».

Ora, no caso dos autos, o sinal visível e permanente, consubstanciador da “aparência” da servidão, não é o “portão” de acesso à vida pública colocado no prédio dos RR., o qual não permitiria qualificar a servidão como aparente. O sinal é sim a «passagem com uma largura de cerca de 2 metros e extensão de 8 metros» (facto provado 6), passagem esta que se processa «através de um portão de comunicação aramado, precisamente no local onde se mostra edificada pelos RR., desde Julho de 2018, uma parede de tijolo em alvenaria» (facto provado 13).

Deste modo, e tal como entendeu o acórdão recorrido, a existência dessa passagem «com uma largura de cerca de 2 metros e extensão de 8 metros» a que se acedia «através de um portão de comunicação aramado, situado dentro do terreno dos RR.»., portão (ou portal) aramado que os RR. substituíram por «uma parede de tijolo em alvenaria», é um sinal evidente, inequívoco e permanente de que naquele local existia uma passagem, que foi utilizada pelos AA. como forma de acesso ao seu logradouro, ao longo dos anos, até ser bloqueada pelos RR. (facto provado 11.).

Na verdade, uma pessoa média ali colocada e confrontada com a mencionada passagem de dois metros de largura e oito de extensão, a que se acedia por um portão/portal aramado situado no terreno dos RR. (que, repita-se, não se confunde com o portão de acesso à via pública existente no mesmo terreno) apenas poderia concluir pela existência de uma passagem através do prédio dos RR. que, no caso que nos ocupa, foi provado ser utilizada pelos AA. para aceder ao seu logradouro (facto provado 6.).  

A circunstância de o portão de acesso do prédio dos RR. à via pública ter sido cedido pelos AA., assim como a circunstância de a colocação desse portão não ter sido um obstáculo à utilização da passagem dos mesmos AA. pelo prédio dos RR., apenas demonstra, tal como considerado pelo acórdão recorrido, que o direito de passagem dos AA. nunca foi colocado em crise pelos RR. até Julho de 2018 (cfr. facto provado 11.).

É manifesto que, ao virem alegar que “não merece dúvida que um observador médio que passe na rua não vê ali uma servidão de passagem” e que “tal portão, independentemente de ter sido cedido a título gratuito pelos AA., retira o carácter visível à servidão, ou seja, a aparência”, os Recorrentes não interpretaram devidamente o acórdão recorrido; de facto, o que o Tribunal da Relação afirmou foi que a existência de uma passagem na propriedade dos RR., através da qual os AA. acederam, ao longo dos anos, ao seu logradouro é, de per si, suficiente para que se conclua pela natureza aparente da servidão. Assim, a pedra-de-toque da decisão recorrida corresponde à mencionada passagem a que se acedia por um portão (ou portal) aramado, passagem e portal existentes no prédio dos RR., e não ao portão de acesso deste prédio à via pública.

Deste modo, a existência desse sinal basta para afirmar a natureza aparente da servidão. De facto, citando novamente o acórdão deste Supremo Tribunal de 17-12-2019, supra indicado, «a própria lei não exige a verificação de todos os sinais correspondentes à servidão. Essencial é que haja um sinal que revele o exercício do direito de servidão.».

Não releva, pois, discutir se «um observador médio que passe na rua não vê ali uma servidão de passagem», mas sim se um observador médio que seja confrontado com a «passagem de 2 metros de largura e 8 de extensão», a que se acedia pelo portão/portal aramado que os RR. bloquearam, poderá, razoavelmente, concluir pela existência de uma passagem pela propriedade dos RR.. A nosso ver, a resposta não pode deixar de ser afirmativa. 

Há, pois, que concluir pela natureza aparente da servidão, sendo que a construção de uma parede em alvenaria para bloquear o acesso à dita passagem não tem a virtualidade de alterar tal conclusão, sob pena de se beneficiar quem impediu o exercício de um direito.


7. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 13 de Julho de 2022


Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira