Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1173/14.OT2AVR.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
EXCESSO DE VELOCIDADE
CINTO DE SEGURANÇA
DESPISTE
NEXO DE CAUSALIDADE
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CONDUTOR
PROPRIETÁRIO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
DANOS PATRIMONIAIS
EQUIDADE
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO SUBORDINADO
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA PARCIALMENTE A REVISTA DO A./ NEGADA PARCIALMENTE A REVISTA DO R. / CONCEDIDA A REVISTA DO FGA
Área Temática:
DIREITO ESTRADAL – TRANSITO DE VEÍCULOS E ANIMAIS / VELOCIDADE / LIMITES GERAIS DE VELOCIDADE.
Doutrina:
- AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, p. 54;
- ANA PINHEIRO LEITE, A equidade na indemnização dos danos não patrimoniais, p. 65 e ss., in https://run.unl.pt/bitstream/10362/16261/1/Leite_2015.pdf.
- ANA PRATA, Código Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2017, p. 668;
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, V. I, 4.ª Edição, p. 16, 589 e 675; 8ª Edição, p. 669; Volume I, 10.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2000, p. 753,
- CARLOS MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 2005, p. 107;
- CASTRO MENDES, Do conceito de prova em processo civil, p. 669 e ss.;
- DARIO MARTINS DE ALMEIDA, Manual dos acidentes de viação, 3.ª Edição, p. 317, 514 e 491;
- EVARISTO MENDES, FERNANDO SÁ, Comentário ao Código Civil, UC Editora, 2014, p. 532 a 547;
- LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum, p. 298;
- LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Volume I, Introdução. Da Constituição das Obrigações;
- MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Do Nexo de Causalidade ao Nexo de Imputação, Volume I, Princípia, Cascais, 2013, p. 1275;
- PIRES DE SOUSA, Prova por presunção no Direito Civil, 2012, p. 57 e ss.;
- RIBEIRO FARIA, Direito das Obrigações, Volume II, Almedina, Coimbra, 2001, Reimpressão, p. 168;
- RITA SOARES, O dano biológico quando da afectação funcional não resulte perda da capacidade de ganho, o princípio da igualdade, Julgar, n.º 33, 126 e ss.;
- RUI MANUEL OLIVEIRA, A importância dos pneus na segurança rodoviária,in www.ansr.pt.
- VAZ SERRA, O dever de indemnizar e o interesse de terceiros, BMJ n.º 86, p. 103 e ss.;
Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 118.º, p. 209.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA ESTRADA (CE): - ARTIGO 27.º.
Jurisprudência Nacional:

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 06-01-1987, BMJ N.º 363, P. 488;
- DE 27-10-1988, BMJ N.º 469, P. 257;
- DE 26-02-1992, PROCESSO N.º 081804, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-02-1998, IN CJSTJ, ANO VI, TOMO I, P. 66;
- DE 07-11-2000, CJSTJ, ANO VIII, TOMO III, P. 104;
- DE 06-11-2001, CJ, ASTJ, ANO X, TOMO III, P. 141;
- DE 25-06-2002, IN CJSTJ X, TOMO II, P. 128;
- DE 03-06-2003, PROCESSO N.º 03A1270, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-12-2003, PROCESSO N.º 03A3897, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-03-2005, PROCESSO N.º 4486/04;
- DE 29-10-2008, PROCESSO N.º 3380/05;
- DE 05-11-2009, PROCESSO N.º 381/2009.S1;
- DE 23-11-2009, PROCESSO N.º 397/03.0GEBNV.S1;
- DE 25-11-2009, PROCESSO Nº 397/03.0GEBNV.S1;
- DE 25-11-2009, PROCESSO N.º 397/03.0GEBNV.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-05-2010, PROCESSO N.º 103/2002.L1.S1;
- DE 07-10-2010, PROCESSO N.º 457.9TCGMR.G1.S1;
- DE 28-10-2010, PROCESSO N.º 272/06.7TBMTR.P1.S1;
- DE 02-03-2011, PROCESSO N.º 1639/03.8TBBNV.L1;
- DE 29-01-2014, PROCESSO N.º 249/04.7TBOBR.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-07-2014, PROCESSO N.º 686/05.0TBPNI.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-10-2014, PROCESSO N.º 2313/08.4TVLSB.L1.S1;
- DE 23-02-2016, PROCESSO N.º 74/12.1SRLSB.L1.S1;
- DE 10-03-2016, PROCESSO N.º 137/11.0TBALD.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-09-2016, PROCESSO N.º 286/10.2TBLSB.P1.S;
- DE 24-11-2016, PROCESSO N.º 96/14.8TBSPS.C1.S1; IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-04-2017, PROCESSO N.º 374/13.3TBSTS.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 25-05-2017, PROCESSO N.º 868/10.2TBALR.E1.S1;
- DE 08-06-2017, PROCESSO N.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S1;
- DE 29-06-2017, PROCESSO N.º 976/12.5TBBCL.G1.S1;
- DE 06-12-2017, PROCESSO N.º 1509/13.1TVLSB.L1.S1;
- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 1842/15.8T8STR.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- SOUSA DINIS, CJSTJ, ANO V, TOMO II, P. 15 E SS.
Sumário :

I - Em acção para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, a prova de que (1) “o acidente traduziu-se num despiste (…) que ocorreu após se ter verificado o rebentamento do pneumático do rodado esquerdo” (2) e que (por presunção judicial não colocada em crise na apelação) a velocidade de 200 Km/h a que circulava o veículo causou, isolada ou conjuntamente com o rebentamento do pneu, o despiste, determinam que o acidente foi provocado por duas causas: uma, naturalística, traduzida no rebentamento do pneu, ao qual se seguiu o despiste; outra, derivada da condução voluntária em velocidade excessiva.
II - O condutor que circulava voluntariamente à velocidade de 200 km/h, sem poder ignorar o limite máximo permitido na via, violou o disposto no art. 27.º do CE e agiu com culpa, incorrendo em responsabilidade por facto ilícito.
III - O facto de os pneus do veículo apresentarem sulcos com profundidade inferior a 1,6 mm, em contravenção ao disposto no art. 6.º, n.º 1, do Decreto-Regulamentar n.º 7/98, de 06-05, não demonstra a causalidade naturalística entre a referida violação legal e o acidente e afasta a responsabilidade por facto ilícito da empresa proprietária do veículo.
IV - Tendo o acidente sido provocado por duas causas – ao invés de uma causa única que devesse conduzir à consideração de que o facto ilícito e culposo absorve a responsabilidade pelo risco –, deve a empresa proprietária do veículo responder pelos riscos próprios da sua circulação, no que se inscreve o rebentamento do pneu.
V - As duas fontes de imputação de responsabilidade – por facto ilícito do condutor (subjectiva) e pelo risco da empresa proprietária/detentora (objectiva) – oferecem ao lesado dois meios de melhor satisfazer o seu crédito indemnizatório, sem duplicar a indemnização.
VI - A responsabilidade pelo acidente – objectiva e subjectivamente – é solidária e opera nas relações dos responsáveis civis perante o lesado, in casu a autora, ao tempo do acidente transportada no veículo.
VII - A prova de que a autora não utilizava cinto de segurança quando se fazia transportar no veículo e a não prova de que caso tivesse utilizado cinto as lesões não se teriam verificado, redunda na conclusão de que não se provou que a falta de cinto foi determinante para a dimensão dos danos.
VIII - Por se tratar de facto não provado, estava impedido o tribunal da Relação de extrair, por presunção judicial, a prova contrária de que a não utilização determinou o agravamento das lesões.
IX - O STJ não deve conhecer da determinação do valor da indemnização por danos não patrimoniais com recurso à equidade se não envolveu critérios normativos e se o recorrente não indica que tenha havido afastamento dos critérios habitualmente utilizados pela jurisprudência em casos similares.
X - A autora que, perante o valor indemnizatório fixado pela 1.ª instância a título de danos patrimoniais futuros, não interpõe recurso de apelação, a título principal ou subordinado, vê precludida a reapreciação em recurso de revista do valor inferior fixado pela Relação.


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO
 
1. AA instaurou acção declarativa com processo comum contra:

1ºs) - BB e CC, na qualidade de herdeiros de DD;

2ª) - EE, Ld.ª;

3º) - Fundo de Garantia Automóvel,

 pedindo que os réus sejam condenados a pagar-lhe:

 a) Quantia nunca inferior a 3.224.000,00 € (três milhões duzentos e vinte e quatro mil euros), a título de ressarcimento pelos danos patrimoniais decorrentes da incapacidade permanente de que a autora ficou a padecer (incapacidade para o exercício de qualquer profissão);

b) Pelo quantum doloris, a quantia de 500.000,00 € (quinhentos mil euros);

c) Pelo dano estético, a quantia de 500.000,00 € (quinhentos mil euros).

d) A título de danos não patrimoniais, quantia nunca inferior a 1.000.000,00 € (um milhão de euros);

e) A título de obras de adaptação da casa onde reside a autora, o valor de 24.787,30 € (vinte e quatro mil setecentos e oitenta e sete euros e trinta cêntimos);

f) A quantia de 66.833,26 € (sessenta e seis mil, oitocentos e trinta e três euros e vinte e seis cêntimos) a título de assistência de uma 3ª pessoa (salários deixados de auferir pelo progenitor da autora);

g) A importância de 400.000,00 € (quatrocentos mil euros) devida pela assistência de uma 3ª pessoa para toda a sua vida;

h) Montante, a liquidar em execução de sentença, referente a ajudas técnicas de que a autora carece;

i) Qualquer tratamento, intervenção cirúrgica, internamento ou medicamentos que a autora venha a necessitar por ordem médica, a liquidar posteriormente;

j) O montante de 334,12€, a título de despesas médico-medicamentosas;

l) Juros de mora sobre todas as quantias supra referidas, calculados à taxa legal, desde a citação, até efectivo e integral pagamento.

Para substanciar os pedidos formulados, alegou, em síntese, ter sido vítima de um acidente de viação quando se fazia transportar numa viatura conduzida pelo filho dos 1ºs réus, viatura essa que era propriedade da 2ª ré e relativamente à qual não tinha sido celebrado um contrato de seguro que garantisse a responsabilidade civil decorrente de eventos dessa natureza.

Mais, alegou que do acidente resultaram extensos danos não patrimoniais e patrimoniais, melhor descritos na petição inicial, que os réus devem ressarcir.

Os 1ºs réus deduziram contestação, arguindo a ineptidão da petição inicial e impugnado, de forma motivada, parte da factualidade alegada pela autora.

 A 2ª ré contestou, impugnando a factualidade alegada pela autora e sustentando carecer a mesma de legitimidade para peticionar as verbas a que se reportam as alíneas e) e f) do respectivo articulado.

O 3º réu deduziu, de igual forma, contestação, impugnando parte da matéria alegada no articulado inicial.

Em resposta, a autora pronunciou-se no sentido da improcedência das invocadas excepções.

Na sequência de despacho proferido a 4/2/2015, procedeu-se à apensação aos presentes autos de uma acção instaurada pelo Centro Hospitalar do ..., E.P.E, contra os ora réus, na qual o autor peticiona o pagamento (solidário) da importância de 43.422,02 € (quarenta e três mil quatrocentos e vinte e dois euros e dois cêntimos), acrescida de juros moratórios vincendos, à taxa legal, até integral pagamento, decorrente da assistência prestada à demandante AA, em resultado do acidente de viação a que o litígio se reporta.

Os réus contestaram o pedido formulado pelo Centro Hospitalar do ..., E.P.E, impugnando a factualidade alegada pelo mesmo e sustentando – os 1ºs réus – que a respectiva petição é inepta e que os contestantes carecem de legitimidade para serem demandados.

Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho a julgar improcedentes as arguidas excepções de ineptidão e de ilegitimidade passiva e procedente a excepção de ilegitimidade activa, no que se refere ao pedido formulado pela autora sob a alínea f).

Identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, os autos prosseguiram os seus ulteriores termos, com realização de exame pericial, após o que se efectuou audiência de julgamento, com observância do formalismo legal.

A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção em consequência do que se decidiu:

 a) Condenar os réus Fundo de Garantia Automóvel, BB e CC (estes dois últimos na qualidade de herdeiros de DD), a pagarem à autora AA a quantia de 1.451,650,00 € (um milhão quatrocentos e cinquenta e um mil seiscentos e cinquenta euros), a título de indemnização global pelos danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a citação até integral pagamento;

b) Condenar os réus Fundo de Garantia Automóvel, BB e CC (estes dois últimos na qualidade de herdeiros de DD), a pagarem à autora AA a quantia que se vier a liquidar referente a intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos e medicação que a mesma venha a necessitar, tudo por indicação médica, em resultado das lesões/sequelas decorrentes do acidente em discussão nos autos;

 c) Condenar os réus Fundo de Garantia Automóvel, BB e CC (estes dois últimos na qualidade de herdeiros de DD), a pagarem solidariamente ao Centro Hospitalar do ..., E.P.E, a quantia de 43.422,02€ (quarenta e três mil quatrocentos e vinte e dois euros e dois cêntimos), acrescida de juros moratórios que se tiverem vencido na pendência dos autos, assim como dos vincendos, à taxa legal, até integral pagamento;

 d) Absolver os réus Fundo de Garantia Automóvel, BB e CC do demais que é peticionado pela autora AA;

 e) Absolver a ré EE, Ldª, do pedido, sem prejuízo do reembolso a que se fez alusão.

                                                

2. Inconformados com tal decisão vieram dela interpor recurso, a Autora, os Réus BB e CC, na qualidade de herdeiros de DD, e o réu, Fundo de Garantia Automóvel.

O Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão em que decidiu:

“i) - julgar a apelação interposta pelos réus BB e FF (na qualidade de herdeiros de DD) parcialmente procedente e consequentemente revogando a decisão recorrida, absolvem-se os mesmos dos pedidos contra si aduzidos pela autora;

ii) - julgar parcialmente procedente a apelação interposta pelo réu Fundo de Garantia Automóvel, em consequência do que se altera a decisão recorrida, condenando-se, solidariamente, a ré EE, Ldª e o réu Fundo de Garantia Automóvel no pagamento na quantia de € 1.171.485,00 (um milhão cento e setenta e um mil quatrocentos e oitenta e cinco euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo autora, mantendo-a no mais;

iii)- julgar parcialmente procedente a apelação interposta pelo réu Fundo de Garantia Automóvel, em consequência do que se altera a decisão recorrida, condenando-se, solidariamente, a ré EE, Ldª e o réu Fundo de Garantia Automóvel no pagamento ao Centro Hospitalar do ..., E.P.E. da quantia de € 39.079,82 (trinta e nove mil e setenta e nove euros e oitenta e dois cêntimos), mantendo-a no mais;

iv)- julgar improcedente a apelação interposta pela autora;

v)- manter o restante decidido;

vi)- determinar o desentranhamento e a devolução aos apelantes BB e CC (na qualidade de herdeiros de DD) dos documentos que ofereceram com as suas alegações, condenando-os na multa de uma Uc pelo incidente a que deram causa.

Custas pelos recorrentes e recorridos, na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que a autora beneficia.”

3. Novamente inconformados interpuseram revista: a A., os Réus – Fundo de Garantia Automóvel e a EE, Lda.

4. Com o requerimento de interposição do recurso a Autora apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões (transcrição):                   
“O presente Recurso de Revista vem interposto dos concretos pontos decisivos, i, ii e iv- I – e V da decisão do douto Acórdão recorrido, supra identificados em que a aqui recorrente ficou vencida, bem como, da decisão proferida quanto ao agravamento dos danos por acto omissivo da aqui recorrente (alegado pelos aqui recorridos FF e
 BB - na qualidade de herdeiros de DD - e pelo Fundo de Garantia Automóvel).
 A não utilização de cinto de segurança pelo recorrente não é causa adequada a promover o agravamento das lesões sofridas pela mesma.
Caso a recorrente levasse o cinto de segurança colocado, não teria sido projectada para o exterior do veículo, e teria permanecido dentro do mesmo até à sua imobilização, que ocorreu após um percurso de uma distância superior a 300 metros – confrontar facto provado n.º 9 da douta sentença -, provocando-lhe com grande probabilidade a morte.
A recorrente seguia precisamente no lado esquerdo traseiro do veículo, ou seja, do mesmo lado do condutor falecido e do qual o veículo sofreu os maiores danos, como se constata pelos vários documentos juntos aos autos-fotografias e relatório do NICAVE.
Pela dinâmica do sinistro e vítimas mortais, constata-se que o cinto de segurança não impediu nenhuma delas de ter um desfecho trágico e lamentável, como bem refere a douta sentença proferida em primeira instância.
Ao constatar-se os danos mortais provocados ao condutor daquele veículo, que utilizava o cinto de segurança, e as regras de experiência comuns, a inutilização de cinto de segurança em nada influenciou a produção de danos e lesões na recorrente.
Não existe nexo causal entre a não utilização do cinto de segurança pela recorrente e a produção das lesões de que padece, não tendo sido produzida qualquer prova nos autos que permita essa constatação causal, bem pelo contrário, existindo provas testemunhais que esclareceram devidamente o
Tribunal a quo, os depoimentos das testemunhas GG e HH.
10º Os danos provocados pelo possível encarceramento da recorrente, e consequente esmagamento no interior do aludido veículo, em virtude do mecanismo de retenção do cinto de segurança, seriam superiores, nomeadamente com a morte da recorrente.
11º O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido à data de 21/02/2013, no âmbito do processo nº 2044/06.0TJVNF.P1.S1, relatado pela Juiz-Desembargadora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (consultável em www.dgsi.pt[1]), quanto à apreciação da culpa do lesado em acidente de viação, pela não colocação de cinto de segurança, decide expressamente que: “No sentido do artigo 563º do Código Civil, a falta de colocação do cinto de segurança não é causa adequada dos danos sofridos pelo passageiro de um veículo automóvel que foi embatido por outro;”.
12º À luz do Direito Comunitário, relevam-se as Directivas nº 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril (primeira), n.º 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda) e n.º 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990 (terceira), analisadas no Acórdão Candolin, proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, à data de 30/06/2005, no âmbito do processo C-537/03, segundo o qual: “(…) opõem-se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado, com fundamento na contribuição de um passageiro para a produção do dano que sofreu, a indemnização coberta pelo seguro automóvel obrigatório.”.
13º Mais, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, à data de 13/01/2011, no âmbito do processo n.º 250/09.4TCGMR.G1, relatado pelo Juiz-Desembargador António Ribeiro (consultável em www.dgsi.pt) refere que: “Na situação sub judice, tendo-se provado, embora, que a vítima transportada no veículo sinistrado não fazia uso do cinto de segurança, não ficou minimamente demonstrado que se utilizasse tal protecção os danos que sofreu poderiam não se verificar ou ter sido mitigados. Nada garante que, mesmo com o cinto de segurança, (…) não fosse ainda assim projectado para o exterior do veículo (…). Não exprimindo os factos provados uma relação de causalidade adequada entre a não utilização do cinto de segurança (…) e as lesões que sofreu (…), soçobra desde logo a tese de que, em aplicação do
14º regime do art.º 570.º do Código Civil, deva ser reduzida a indemnização a atribuir. Ainda que assim não fosse, sempre a citada jurisprudência do TJUE, como vimos, se oporia a tal redução, à luz dos enunciados das Primeira, Segunda e Terceira Directivas em matéria de seguro obrigatório automóvel.”
15º A recorrente na sua petição inicial peticiona a título de montante indemnizatório para obras na habitação, a quantia de € 24.787,30 (vinte e quatro mil, setecentos e oitenta e sete euros e trinta cêntimos), que foi suportada a priori, pelo seu pai, dado que não exercia qualquer profissão à data do acidente de viação (mesmo estando em vias de vir a exercer), nem possuía quaisquer bens móveis ou imóveis, nem tão pouco património pecuniário, inexistindo sustentabilidade financeira da recorrente.
16º  O Relatório do Instituto de Medicina Legal, datado de 30/05/2016, na sua página 12, bem como, o Relatório do Centro de Reabilitação Profissional de ... referem, claramente, que a recorrente necessita de readaptação da sua habitação e, inclusivamente, indica quais as adaptações necessárias e recomendáveis.
17º A necessidade urgente de obras na residência da recorrente, quer pelo seu conforto e reabilitação física, quer para permitir que as pessoas que tratam da       
18º recorrente o possam fazer sem limitações, ficou provada no ponto 35 dos factos provados da douta sentença proferida em primeira instância.
19º Nos termos do art.º 483.º do CC o lesado tem direito a ser indemnizado por todos os danos causados, sendo que, o art.º 562.º do CC, estabelece a obrigação de reconstituir a situação que existiria, se não tivesse acontecido o evento que gerou o dano.
20º Se não tivesse ocorrido o acidente de viação, a recorrente não estaria em divida para com o seu pai, na quantia de € 24.787,30, pelas obras que este realizou na sua habitação!
21º O dano referido deverá ser indemnizado pelos recorridos/réus, pois o mesmo não existiria, caso não tivesse ocorrido o acidente de viação – confrontar art.º 563.º do CC, sobre o nexo de causalidade adequada –, atendendo a que, o acidente de viação ocorrido é condição sine qua non para o dano patrimonial resultante da adaptação da habitação da recorrente.
22º O direito à habitação é um direito fundamental e constitucional, pelo que, o Acórdão recorrido, ao julgar improcedente o pedido da recorrente, está a violar gravemente a Constituição da República Portuguesa e o direito fundamental a uma habitação condigna e adequada ao estado físico da recorrente, constantes dos art.º 65.º, n.º 1 e 70.º, n.º1, alínea c) da CRP.
23º O Tribunal ad quem julgou erradamente esta matéria, e deveria ter revogado a douta sentença, neste concreto ponto, e fixar uma indemnização à recorrente, na quantia de € 24.787,30, pelas obras de adaptação da sua residência.
24º A recorrente apelou recurso pela condenação dos recorridos na prestação de ajudas técnicas, médicas e medicamentosas necessárias devido à sua condição físico-psíquica, resultante das lesões causadas pelo acidente de viação.
25º O douto Acórdão recorrido julgou improcedente a apelação da recorrente, fundamentando que a mesma “não lançou mão do incidente de liquidação tendente a quantificar os referidos danos que, em consonância com o substrato factual apurado, assumem natureza de danos futuros previsíveis mas ainda não determináveis” – pág. 115 do douto Acórdão.
26º O art.º 358.º, n.º 2 do CPC refere que o incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do art.º 609.º, n.º 2 do CPC, portanto, em nada obsta a que seja proferida decisão sobre o pedido de condenação genérico formulado pela recorrente.                         
27º A recorrente tem o direito a deduzir o incidente de liquidação a posteriori, quando se encontrem reunidos os elementos necessários e precisos para quantificar o pedido formulado.
28º O Tribunal ad quem deveria ter revogado a douta sentença recorrida, neste concreto ponto decisivo, e proferir decisão condenatória dos recorridos na prestação deste pedido genérico, a liquidar posteriormente.
29º O douto Acórdão recorrido ao decidir não condenar os recorridos naquele pedido genérico com a fundamentação apresentada, violou o disposto nos art.º 358.º, 556.º e 609.º do CPC.
30º  Os recorridos alegaram que é manifestamente desproporcional e desajustado o valor fixado a titulo de indemnização por danos não patrimoniais,
31º Os recorridos alegaram que a Sentença sobrevalorizou a indemnização fixada a título de dano patrimonial emergente da perda da capacidade de ganho, que foi fixada na quantia de € 551.650,00 (quinhentos e cinquenta e um mil seiscentos e cinquenta euros).
32º Indemnização essa que, o que o Tribunal da Relação veio a alterar.
33º A recorrente padece de um deficit funcional permanente de incapacidade físico-psíquica de 91 pontos, estando impedida do exercício da actividade profissional de modelo, bem como de qualquer outra enquadrada na sua preparação técnico-profissional – confrontar facto provado n.º 36 da douta sentença.
34º A recorrente à data do acidente, estudava, fazia dois cursos de línguas, pretendia ingressar num curso de hotelaria e preparava-se para exercer a profissão de modelo – confrontar factos provados n.º 42 e 47 da douta sentença.
35º Todavia, com as lesões sofridas e sequelas resultantes, a recorrente não poderá exercer aquela profissão e teve de abandonar os seus estudos – confrontar factos provados n.º 43, 46, 47 e 48 da douta sentença.
36º  A recorrente não tem capacidade cognitiva suficiente para prosseguir os estudos, com o programa de ensino aplicado pelos estabelecimentos de ensino comuns, sofre de défice de atenção e concentração – confrontar factos provados n.º 44 e 45 da douta sentença.
37º  Nesse sentido, a Sentença do Tribunal da Comarca de Aveiro, decidiu, e fixou uma indemnização por danos patrimoniais emergentes, pela perda de ganho, atendendo a um valor estimado de € 850,00 (oitocentos e cinquenta euros), em razão do salário médio nacional, que ascende à quantia de € 900,00 (novecentos euros), e a uma dedução pelo recebimento da quantia indemnizatória na integra de uma vez.
38º Fundou-se aquela sentença, no critério do salário médio nacional, como sendo o valor base a considerar para os cálculos da indemnização devida, considerando ser o mais justo e o adequado ao caso, tendo posteriormente aplicada a dedução respectiva.
39º Os recorridos, a este respeito, invocaram um entendimento jurisprudencial no cálculo indemnizatório, sobre o “capital do produto do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida.”
40º  Concluindo que, a aludida indemnização deveria calcular-se com base no salário mínimo nacional actual, na quantia de € 557,00 (quinhentos e cinquenta e sete euros), e não num valor estimado pelo valor do salário médio nacional.
41º Alegaram os recorridos que, a dita indemnização deveria alcançar o valor total de € 425.770,80 (quatrocentos e vinte e cinco mil setecentos e setenta euros e oitenta cêntimos).
42º O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido à data de 06/06/2013, no âmbito do processo nº 303/09.9TBVPA.P1.S1, supra identificado, refere que: “As circunstâncias concretas do caso aconselham a que se não proceda a uma redução do montante da indemnização por danos patrimoniais futuros, decorrentes da acentuada perda de capacidade de ganho, como compensação pelo seu recebimento antecipado e de uma só vez”.
43º Atendendo a que, aquela Sentença fixou como dedução pelo recebimento integral, a quantia de € 850,00 por salário médio mensal, entendeu que não se deveria deduzir ao quantum indemnizatório final, uma outra percentagem a este título.
44º  O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo nº 397/03.0GEBNV.S1, à data de 23/11/2009, supra identificado, esclarece que: “Partindo necessariamente da idade do lesado, tendo em conta a sua idade à data do acidente, ou à data da fixação da incapacidade, bem como a idade em que previsivelmente entrará(ia) no mercado de trabalho, há que projectar a previsível duração de vida, o tempo provável de vida, não só enquanto “trabalhador”, portador de força de trabalho, fonte produtiva de património, geradora de rendimentos, mas também enquanto “pessoa” e “cidadão”, que vive para lá do tempo da vida activa, além do tempo da reforma. A esperança de vida a considerar é a esperança média de vida e não o tempo provável de vida activa – a vida activa é mais longa que a laboral, prolongando-se em alguns casos para além dos 70 anos.”
45º Significa que, em primeiro lugar importa calcular qual o período de duração de vida da recorrida, atendendo a que a recorrida sofreu o sinistro de viação com 17 anos de idade e ao tempo de vida activo, que teria após a entrada no mercado de trabalho.
46º Supondo que, tal entrada ocorreria quando a recorrida perfizesse os 20 anos de idade, a recorrida teria como tempo de vida activo profissionalmente, 46 anos e 3 meses.
47º Mais acrescenta aquele aresto jurisprudencial que,Na determinação do rendimento auferido (ou como no caso, a auferir) há que ter em conta o salário auferido pelo lesado e sua evolução, o que supõe que está a trabalhar; quando não há ainda uma profissão, em algumas decisões é invocado como parâmetro de avaliação do prejuízo o valor do salário mínimo nacional, mas noutros casos opta-se por soluções diversas, ponderando o chamado “salário médio previsível” ou “salário médio acessível”.
48º Neste ponto, revela-se fulcral salientar que, o uso de fórmulas e indicadores matemáticos para a fixação da aludida indemnização, por danos futuros, devem ter-se como meras referências, não prejudicando uma valoração ético-jurídica pelo julgador, de acordo com as circunstâncias particulares do caso.
49º Atendendo a que, o salário médio mensal é o montante líquido correspondente ao somatório da remuneração mensal base, dividido pelos meses do ano, é o indicador mais abrangente, pois, caso se utilizasse o salário mínimo nacional, estaria a descartar-se a hipótese de que a recorrida poderia auferir mais do que esse valor.
50º Paralelamente, o recurso a este indicador salarial permite afastar a subjectividade subjacente à fixação da indemnização e as disparidades que poderiam existir com casos análogos.
51º A indemnização fixada por aquela Sentença correspondeu a um montante arbitrado, segundo os cálculos utilizados e aceites unanimemente na jurisprudência, no entanto, tal veio a ser alterado pelo Tribunal da Relação.
52º Sendo certo, que o Tribunal a quo, decidiu da necessidade, de o valor da indemnização garantir as prestações de rendimento, correspondentes ao rendimento que a mesma deixou de auferir, durante o período provável de vida activa da recorrida – 46 anos e 3 meses.
53º  E sem prejuízo da dinâmica própria da vida e da situação concreta física e psíquica da recorrida, e que, segundo as regras de experiência comum, se não fossem as graves lesões que a recorrida sofreu, a sua vida tenderia a melhorar.
54º O Tribunal da Relação, decidiu no que respeita a este quantum indemnizatório alterar o mesmo, como supra se alegou, não se conformando a recorrente com tais alterações.
55º Os recorridos (FF e BB - na qualidade de herdeiros de DD - e o Fundo de Garantia Automóvel), recorreram pela injusteza do montante de € 500.000,00 (quinhentos mil euros) atribuído à recorrente pelos danos não patrimoniais sofridos em virtude do acidente de viação.
56º Entre os danos não patrimoniais mais evidentes se ressalvam os danos da dor física, dor psíquica, perturbação da vítima lesada, sofrimento moral, prejuízo na sua vida intima e pessoal.
57º A recorrente sofreu lesões físicas irreparáveis, sequelas permanentes e irreversíveis, tratamentos dolorosos, perturbações psíquicas incontestáveis, não tendo preço, nem medida o seu sofrimento, nem poderá ser comparado com os outros casos julgados, nem com a jurisprudência, nem com teorias doutrinais.
58º A recorrente sente-se angustiada, depressiva, revoltada, amargurada, sem razão de continuar a viver, sem projectos ou planos para o futuro, desejava construir família, ser modelo profissional, estudar, sair e passear, fazer a sua higiene sozinha, mas não consegue!!!
59º A recorrente sente-se exposta, envergonhada, humilhada, vê-se agora a precisar de ajuda para comer, para tomar banho, para se vestir, para se deitar, para tudo!!!
60º O Relatório do Instituto de Medicina Legal atribui á recorrente um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 91%, um quantum doloris de 6º grau, numa escala de sete graus, um dano estético de 6º grau, numa escala de sete graus, uma repercussão sexual permanente na actividade sexual de 7º grau, numa escala de sete graus, uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de 7º grau, numa escala de sete graus e um défice de atenção e concentração, impeditivo de plena capacidade cognitiva.
61º A recorrente sofre de isolamento social (afastaram-se todos os amigos), pessoal (não frequenta locais públicos) e individual (depressão), sujeita-se a tratamentos medicamentosos e fisiátricos de reabilitação permanentes, perdeu autonomia e independência humana e tem distúrbios de auto-imagem e auto-estima.
62º O montante fixado e atribuído à recorrente, em primeira instância, corresponde ao valor adequado, proporcional e equitativo de uma situação sensivelmente mais grave, respeitando o princípio da igualdade e não merecendo qualquer censura, a douta sentença proferida em primeira instância.
63º O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido à data de 31/01/2012, no âmbito do processo nº 875/05.7TBILH.C1.S1, relatado pelo Juiz-Conselheiro Nuno Cameira (consultável em www.dgsi.pt), já invocado nos autos, que refere que: “(…) não ficaram provados factos que possibilitem reduzir os montantes indemnizatórios considerados equitativos, nos termos previstos no artigo 494.º do Código Civil (preceito para o qual remete expressamente o n.º 3 do artigo 496.º, já citado); e que a equidade tem de ser justificada nos factos provados (n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil).”.
64º Não ficaram provados, na douta sentença de primeira instância, factos que viabilizem a diminuição do valor indemnizatório, fixado equitativamente, nos termos do art.º 494.º do CC, pois a mesma, fundamenta a sua decisão nas circunstâncias particulares do sinistro que vitimou a recorrente.                    
65º O Tribunal ad quem ao julgar e decidir como fez no douto Acórdão recorrido violou todo o sentido, inerente à compensação pelos danos não patrimoniais, esvaziando de qualquer fundamento lógico ou moral, constante dos art.º 496.º e 566.º do CC, pelo que, deveria ter mantido o valor atribuído em primeira instância, respeitando o pensamento e juízo jurídico-valorativo do Tribunal a quo.
66º O douto Acórdão de que se recorre procedeu a uma errada apreciação da matéria factual provada e não provada, e de direito, constituindo uma profunda e clamorosa injustiça, violadora dos mais elementares princípios de boa-fé e de justiça.
67º Salvo melhor opinião entende-se que, o douto Acórdão recorrido violou o disposto nos art.º 483.º, 494.º, 495.º, 496.º, 562.º, 563.º, 564.º, 566.º e 570.º, todos do CC; nos art.º 13.º, 65.º, 68.º, n.º1 e 70.º, n.º 1, alínea c) da CRP; nos art.º 358.º, 556.º e 609.º do CPC e nas Directivas Comunitárias n.º 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril (primeira), n.º 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda) e n.º 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990 (terceira), aplicáveis ao presente caso, que nos termos do art.º 8.º, n.º4 da CRP, vigora automaticamente na ordem jurídica interna.
68º Salvo melhor opinião, o Tribunal ad quem decidiu em sentido manifestamente confrontante com a letra da lei e, com o devido respeito, contrariamente ao entendimento da jurisprudência e doutrina.

Nestes termos, e no mais de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser concedido, provimento ao presente Recurso de Revista, revogando o douto Acórdão recorrido, nos termos supra referidos, decidindo-se em conformidade, com todas as consequências legais, fazendo-se assim, como sempre, inteira JUSTIÇA!”

 

5. O réu Fundo de Garantia Automóvel formulou as seguintes conclusões (transcrição):
I. O aqui Recorrente não se pode conformar com a absolvição da ré, herança aberta por óbito de DD, na qualidade de representante legal do malogrado condutor do veículo de matrícula ..., único interveniente no acidente de viação em apreço nos presentes autos;
II. Na expressão - responsável civil - incluem-se todos aqueles que
nos termos gerais da responsabilidade civil, por factos ilícitos ou pelo risco, podem responder perante o lesado. Em regra, está em causa a
responsabilidade do condutor e do proprietário do veículo;

III. No entanto, o disposto no artigo 54.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de
21 de Agosto, veio alargar esse âmbito a todos aqueles que contribuíram
para o facto de o veículo interveniente no sinistro circular sem beneficiar
de contrato de seguro válido e eficaz, consagrando a figura do
“responsável incumpridor da obrigação de segurar”;

IV. Bastará o facto de a Ré representar legalmente o condutor do
veículo sem seguro, para que se considere, que impendia igualmente
sobre esse condutor a obrigação legal de celebrar um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel - vide n.º 1 do artigo 4.º do Dec. Lei
n.º 291/2007, de 21 de Agosto -, o que, por si só, determina a necessidade da sua condenação;

V. Essa conclusão é a única que promana da interpretação
conjugada dos diversos números que compõem o artigo 54.º do Dec. Lei
n.º 291/2007, de 21 de Agosto;

VI. Esse normativo habilita o FGA a demandar a pessoa obrigada à
celebração do seguro, com base, única e simplesmente, no facto de
aquela não ter celebrado o respectivo contrato de seguro de
responsabilidade civil automóvel, ou seja, a lei prevê que se prescinda,
relativamente a estas pessoas, da verificação, face a elas, dos
pressupostos da responsabilidade civil, por factos ilícitos, ou pelo risco;

VII. O que está aqui em causa é um fundamento de responsabilidade novo e autónomo face à responsabilidade civil decorrente dos artigos 483.º e 503.º do Código Civil: a lei impõe aos obrigados ao seguro a obrigação de ressarcir o Fundo de Garantia das quantias que este despendeu em função do facto de não haverem
celebrado contrato de seguro válido e eficaz;

VIII. Da matéria de facto considerada assente conclui-se que o
veículo sem seguro era conduzido pelo malogrado DD
, o qual, sem que o tenha justificado nos autos, omitiu a
obrigação de celebrar contrato de seguro válido e eficaz, impondo-se
assim a sua condenação tal como está delimitada pelo âmbito do n.º 1 do
artigo 54.º do Dec. Lei n.º 291/2007, para o qual remetem o nºs 3 e 4 da
mesma norma.

IX. Ao não decidir assim, o Tribunal recorrido violou, entre outras
disposições legais, o disposto no artigo 54.º, n.ºs 1, 3 e 4 do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provado e
procedente, nos termos acima peticionados.”

6. A Ré, EE, Lda, apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
1) “O presente recurso tem por objecto o acórdão da Relação do Porto que decidiu condenar a recorrente, solidariamente com o Fundo de Garantia Automóvel, e ao abrigo do art.º 503.º, n.º 1 do CC, por considerar, quanto à recorrente, e em suma, que o condutor do veículo sinistrado nestes autos não teve culpa no acidente, antes responsabilizando o evento no facto de ter rebentado um pneumático.
2) “O conceito de “acidente de viação” tem de ser bosquejado, perspectivado, a partir da vítima, ou seja da pessoa que sofre danos (patrimoniais ou morais) com nexo causal entre esses e o evento.”- STJ, em acórdão proferido no processo 8/07.5TBSTB.S1.
3) Na perspectiva da vítima, o acidente ocorre, parece-nos claro, quando se dá o capotamento no talude, e ocorre a projecção do seu corpo a 10 metros – facto 10º.
4) A projecção do corpo da vítima não se dá quando o pneu rebenta. A projecção dá-se (como decorre do facto de a Autora se encontrar a escassos 10 metros de distancia do veículo acidentado, após percurso superior a 300 metros) quando o veículo capotou, após embate no talude.
5) Assim, parece claro que o momento no qual se deve apreciar a culpa do condutor (no caso, o terceiro a que alude o art.º 505.º) não é o momento do rebentamento do pneu, mas sim o momento do capotamento.
6) O embate no talude e subsequente capotamento, são, ao contrário do alegado pela Relação, eventos que resultam não do rebentamento do pneumático, mas sim da velocidade “louca” – 200km/h - que o condutor imprimia ao veículo.
7) O facto de o condutor circular a 200kmh, fez, neste caso concreto, com que 300 metros de estrada fossem insuficientes para imobilizar a viatura, o que provocou a deslocação da viatura para o talude, onde veio a capotar (com grande violência), e onde a Autora foi projectada a 10 metros.
8) É facto público e notório que, circulasse este (ou qualquer outro veículo) a 120kmh, 200 metros seriam mais do que suficientes para imobilizar a viatura.
9) Ao circular a 200kmh, o condutor não estava apenas a violar o limite de velocidade. O condutor estava a colocar em perigo a sua vida, a dos passageiros, e a de terceiros que circulassem naquela estrada.
10) O culpado do acidente e dos danos sofridos pela Autora é, em exclusivo, a condução louca levada a cabo pelo malogrado condutor, que o fazia não só em violação dos limites regulamentares, mas também, e sobretudo, do dever previsto no art.º 11.º, n.º2 do Código da Estrada: Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.
11) As três leis do movimento de Newton ensinam, em acidentes de viação, que a velocidade do impacto faz toda a diferença no que sucede aos ocupantes do veículo.
12) A energia cinética do veículo e do seu interior aumentam com o quadrado da sua velocidade. Ou seja, a energia de um carro que circule a 100 km/h é quatro vezes maior do que a energia do mesmo veículo se for a 50 km/h.
13) A energia de um carro que circule a 100 km/h é quatro vezes maior do que a energia do mesmo veículo se for a 50 km/h. Quanto maior for a velocidade, maior será a probabilidade de sofrer danos graves. A energia de um carro que circule a 200kmh é 4 vezes superior à de um carro que circule a 100kmh, ou seja, há um aumento de 400% nas forças envolvidas em qualquer impacto.
14) Segundo as leis da física, a conclusão que se impõe é que o acidente (ou seja, a projecção do corpo da lesada a 10 metros do veículo, após capotamento) é consequência da velocidade instantânea que o veículo registava.
15) O rebentamento de um pneu não é causa adequada a provocar um despiste superior a 300 metros, seguido de capotamento e projecção da lesada. Como já se disse, se o veículo estivesse imobilizado, nenhum acidente teria ocorrido. Para ter estas consequências catastróficas, o rebentamento do pneu teve que estar associado à velocidade “louca” em que o veículo seguia.
16) Sabendo que estava a conduzir um veículo que, como todos os outros, pode sofrer de falha mecânica, o condutor deveria ter-se abstido de praticar uma condução que faria com que qualquer falha mecânica ou obstáculo na estrada tivesse consequências letais.
17) Ao praticar uma condução no limite, sem margem para falhas mecânicas ou obstáculos na estrada, o condutor violou todas as regras de segurança rodoviária, fazendo recair em si, sem margem para duvidas, a totalidade da culpa pelas consequências que qualquer evento fortuito acarretasse na segurança dos passageiros.
18) O acidente retratado nestes autos é um verdadeiro acto doloso, ainda que a título de dolo eventual, pois que o condutor sabia que um rebentamento de um pneu, uma falha de travões ou um obstáculo na estrada poderiam causar acidentes dos quais resultassem lesões graves ou a morte dos ocupantes, tendo-se, todavia, conformado com essa possibilidade.
19) Afirmar que a culpa de toda esta tragédia é do rebentamento de um pneu configura, salvo melhor opinião, um erro grosseiro. Um inaceitável branqueamento de um comportamento que, mais que culposo, tem que ser considerado doloso por parte do condutor.
20) Num cenário em que os danos ocorrem porque a vítima foi projectada, e estando assente que a vítima foi projectada porque não levava cinto de segurança, concluir-se que a culpa do lesado é de 10%, com base em formulações abstractas, é, uma vez mais, desadequado ao caso concreto.
21) Numa situação em que os danos resultam de projecção do corpo da vítima, derivada da ausência de colocação do cinto, a culpa do lesado torna-se por demais evidente, e é absolutamente inadmissível a fixação do seu “quantum” em valores simbólicos, como 10%.
22) Assim, em termos de culpa do lesado para a produção dos danos constantes dos autos, seria muito mais adequada a redução da indemnização a pagar num valor de 80%, ao invés dos simbólicos 10% aplicados pela Relação.
23) A decisão recorrida viola o art.º 505.º do Código Civil, uma vez que o acidente é exclusivamente imputável ao condutor, que conduzia a viatura a velocidades absurdas, conhecendo e conformando-se com as consequências catastrófica que tais velocidades poderiam acarretar para os seus passageiros em caso de evento fortuito – dolo eventual.
24) A decisão recorrida viola o art.º 570.º do Código Civil, atendendo ao elevado grau de culpa que a autora teve no facto de ver o seu corpo ser projectado numa distância de 10 metros em relação ao sítio onde se imobilizou a viatura acidentada, devendo a indemnização ser reduzida em 80%.
25) A indemnização pelo dano não patrimonial sofrido pela Autora deverá ser fixada em valor não superior a € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros);
26) A indemnização pelo dano patrimonial emergente da perda de capacidade de ganho deverá ser fixada em valor não superior a € 300.000,00 (trezentos mil euros);
27) A indemnização pelo dano patrimonial sofrido com a contratação de uma terceira pessoa, deverá ser relegada para momento ulterior, nos termos do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Civil, já que se trata de um dano certo e previsível mas que ainda não pode ser liquidado, já que essa ajuda tem vindo a ser prestada pelo pai da Autora sem qualquer custo.”

Colhidos os visto, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação
7. Vêm provados os seguintes factos (o Tribunal da Relação não alterou a matéria, não obstante ter dela conhecido):
1 – No dia 25 de Junho 2011, cerca 3h15m, ocorreu um acidente de viação na A1, sentido Norte/Sul, próximo do km 258,909, Avanca, Estarreja, em que foi interveniente o veículo da marca BMW, modelo 635 D, com a matrícula ....
2 – Tal veículo era conduzido por DD, o qual faleceu em consequência do acidente, tendo-lhe sucedido, como herdeiros, os seus pais, BB e CC.
3 – A autora, na altura com 17 anos de idade, seguia dentro do veículo supra identificado como passageira da retaguarda, lado esquerdo.

4 – À data, o piso encontrava-se em boas condições de circulação.

5 – O acidente traduziu-se um despiste com capotamento transversal do referido veículo, despiste que ocorreu após se ter verificado o rebentamento do pneumático do rodado esquerdo traseiro.

6 – A viatura circulava a velocidade não concretamente apurada, mas não inferior a 200Km/hora.

7 – Na sequência do rebentamento do referido pneumático, o condutor da viatura travou, tendo a mesma entrado em derrapagem, com derivação para a direita, após o que rodopiou, indo embater com os rodados do lado esquerdo na caleira de drenagem de águas pluviais existente do lado direito, atento o sentido de marcha em que o veículo seguia.

8 – Nesse seguimento, a dita viatura entrou no talude existente do lado direito, considerando o já referido sentido marcha, tendo aí capotado, após o que acabou por se imobilizar na berma direita, igualmente no sentido norte/sul, em posição oblíqua em relação à via e com a parte frontal orientada para a faixa de rodagem.

9 – O veículo, durante o acidente (derrapagem e subsequente capotamento e imobilização) percorreu uma trajectória superior a 300 metros.

10 – A autora não utilizava o cinto de segurança quando se fazia transportar no referido veículo, motivo que conduziu a que a mesma fosse projectada para o exterior do veículo na sequência do sinistro, ficando a cerca de 10 metros da viatura.

 11 – Os pneus instalados no eixo traseiro do veículo tinham as dimensões 275/40R19 107Y, correspondente a 275 mm de largura radiais, montados em jantes de 19 polegadas, com índice de carga 102 (850 kg), e projectado para uma velocidade máxima de 300 km/h, apresentando sulcos na banda de rodagem, de altura inferior a 1,6 mm.

12 – Os pneumáticos respeitavam os conjuntos jante/pneu, dianteiros e traseiros, diferença proporcional, idêntica à dos que equipam veículos novos da mesma marca e modelo.

13 – O supra identificado acidente, foi objecto de inquérito que correu termos no DIAP de Aveiro, 3ª secção (processo 135/11.4GTSJM), tendo o mesmo sido arquivado.

14 – À data do acidente, o veiculo ligeiro de marca BMW modelo 635 D, com a matrícula ..., encontrava-se registado em nome de II, Lda., com sede na Rua ..., agora denominada EE, Lda., aqui Ré.

15 – A essa mesma data, o dito veículo circulava sem seguro válido e eficaz de responsabilidade civil automóvel.

16 – A autora foi assistida no local do acidente pela VMER, que relatou Glasgow 4.

17 – Após o acidente, a autora foi conduzida de ambulância para o Hospital de ... (Centro Hospitalar do ..., E.P.E.), com lesões visíveis em várias partes do corpo, tendo sido motivo de admissão politraumatismo grave.

18 – A autora sofreu as seguintes lesões e realizou os seguintes tratamentos/exames, na referida unidade hospitalar, para além de ter sofrido as seguintes intercorrências durante o internamento:

  À entrada na emergência hospitalar apresentava anisocoria ligeira D>E. com pupilas não reactivas, TC crânio-encefálica revelou traumatismo crânio-encefálico, com contusão hemorrágica frontal esquerda, focos hemorrágicos na cápsula externa/lenticular, sangue intraventricular e hematoma epicraneano. Tratamento conservador com sedação e ventilação, monitorização da pressão intra-craniana e pressão de perfusão cerebral. Reavaliação por Neurocirurgia sugere provável lesão axonal difusa e contusões cerebrais em contexto traumático grave. Melhoria clínica lenta e progressiva. Trauma da face com fractura cominutiva das paredes do seio maxilar direito e hemossinus associado. Trauma cervical com sangue intracanalar extramedular, sem fracturas. Contusão pulmonar direita com diminuta quantidade de derrame pleural bilateralmente. Fractura da bacia. (ramos ísquío-púbico e íleo-­púbico bilateralmente) estável com hematoma pélvico associado. Fractura da omoplata direita. Desvio da apófise estilóide cubital direita com imobilização do punho. Choque hipovolémico com suporte aminérgico até 03-07-2011. Rabdomiólise. Como intercorrências no internamento teve traqueobronquite aguda, pneumonia associada ao ventilador, vulvovaginíte por gérmen não identificado e trombocitose reativa. Alta em 13-07-2011 com transferência para a Unidade de Traumatismo crânio-encefálico (TCE).

19 – Transferida para a unidade de TCE do Hospital ... (unidade onde foi admitida a 14/7/2011) apresentou o seguinte estado clínico:

Nota de Alta (Transferência) da Unidade de TCE do HSA referindo admissão a 14­07-2011 e alta em 14-09-2011. Durante este internamento teve intercorrências infecciosas: por Staphylococcus áureos meticilino susceptível e Acinetobacter radioresistens, tratados com tazobactam; Infecção do trato urinário tratada com Ciprofloxacina; a 04/08 nova infecção respiratória com Acinetobaeter baumanii e MRSA isolado nas secreções brônquicas e Sataphyloeoccus epidermidía nas hemoculturas, tratados com Colistina inalatória e bacterim endovenoso. Por espasticidade marcada e períodos de "storming'' disauronómico simpático intenso com períodos de taquicardia, sudorese e mal-estar fez em doses progressivamente crescentes tizanidina, baclofeno, clonidina, labetalol e diazepam, dos quais não tolerou doses máximas. Pelo mesmo motivo manteve obstipação aliviada com enemas e laxantes. De 05/08 a 04/09 esteve sob alimentação parentérica. Por espasticidade marcada foi realizada infiltração com toxina botulínica no bicípete direito, braquial direito e gémeos e em ambos os masséteres, com eficácia limitada. Removida cânula de traqueostomia em 29/08. TAC cerebral cm 14/09 sem intercorrências. Transferência para o Serviço de Fisiatria para reabilitação motora e cognitiva.

20 – Transferida para o serviço de fisiatria do Centro Hospitalar do ... (Hospital de ...), onde esteve internada entre 15/9/2011 e 17/10/2011, para reabilitação motora e cognitiva, apresentou a seguinte evolução clínica:

Nota de Alta do Serviço de Fisiatria do Centro Hospitalar do ... referindo internamento entre 15-09-2011 e 17-10-2011 tendo iniciado programa de reabilitação com Cl-l ombros e cotovelo direito, US ombro, mobilização poli segmentar, massagem miorrelaxante, verticalização progressiva no plano inclinado, colocação de ortóteses de posicionamento para correcção de pé equino bilateral e ortóteses dinâmicas para ganho progressivo de amplitudes a nível do cotovelo, punho, mão e dedos à direita. Discreta evolução do quadro neurológico ao longo do internamento sem reflexo em termos funcionais. Realizou terapia da fala e da deglutição. Em 09-11·2011 apresentou crise tónico-clónica generalizada que reverteu com administração de Diazepam rectal. Em 13-10-2011 repetiu crise convulsiva. Realizou EEG que revelou atividade paroxística. frente-temporal esquerda. Repetiu TAC-CE que não revelou lesões de novo. Iniciou toma de Levetiracetam. Teve alta para o Centro de Medicina e Reabilitação da Região Centro no dia 17-10-2011.

21 – Transferida para o Centro de Medicina e Reabilitação da Região ..., esteve aí internada entre 17/10/2011 e 4/8/2012, apresentando o seguinte estado clínico e cumprindo o seguinte programa de tratamento:

Relatório de Alta do Serviço de Reabilitação Geral de Adultos do CMRRC - ..., de internamento de 17-10-2011 a 04-08-2012 durante o qual cumpriu programa de reabilitação integral englobando Fisioterapia, Reabilitação cognitiva farmacológica, Terapia Ocupacional, Terapia da Fala, Enfermagem de Reabilitação e avaliação/seguimento por Neuropsicologia e Psicologia. Boa evolução do ponto de vista funcional, adquirindo progressivamente um melhor controlo de tronco e cervical, permitindo períodos na posição sentada progressivamente mais longos. Foi-se tornando progressivamente mais participativa e colaborante. Iniciou produção vocal (frases curtas) com hipofonia. Na fase final do internamento iniciou treino de marcha com facilitação. Realizados durante o internamento radiografia da bacia que revelou fracturas consolidadas de forma 'viciosa, desalinhadas, com desalinhamento da sínfise púbica e esclerose dos tectos acetabulares; radiografia do ombro esquerdo com discreta esclerose do troquiter; radiografia do antebraço direito com ligeiro componente esclerótico radio-cárpico. Como intercorrências teve Infeções do Trato Urinário em 24-11-2011, 14-02-2012, 21-03-2012, 03-05-2012 e 18-05-2012 e infeção respiratória em 30-07-2012. Apresentava à data de alta um quadro neuro-motor de tetraplegia espástica, à esquerda com movimentos globais e movimentos pouco selectivos, à direita sem movimentos activos. Alta para o domicílio com reinternamento programado para 05-09-2012.

 22 – No período compreendido entre 5/9/2012 e 22/12/2012, voltou a estar internada no Centro de Medicina e Reabilitação da Região ..., apresentando o seguinte estado clínico e cumprindo o seguinte programa de tratamento:

Relatório de Alta do Serviço de Reabilitação Geral de Adultos do CMRRC - ..., de internamento de 05-09-2012 a 22-12-2012 para continuação de programa de reabilitação com objectivo de marcha domiciliária modificada, estimulação perceptiva-cognitiva, melhoria da participação nas actividades de vida diária, melhoria da linguagem e tratamento da espasticidade. Cumpriu programa de reabilitação integral englobando Fisioterapia, Reabilitação cognitiva, Terapia Ocupacional, Terapia da Fala, Enfermagem de Reabilitação e seguimento por Psicologia. Realizou tratamento para a espasticidade com toxina botulínica a nível do membro inferior direito. Aplicação de fenol 6% no nervo obturador, nervo músculo-cutâneo e nervo do grande peitoral. Em 03-12-12 avaliada por Ortopedia para cirurgia de alongamento do tendão de Aquiles. Boa evolução do ponto de vista cognitivo, motor c funcional continuando a apresentar quadro de tetraplegia espástica de predomínio direito, incontinência urinária e trânsito intestinal regular com medicação. Como intercorrências teve ITU a 26-09 e episódio convulsivo em 17-12 que reverteu com administração de Diazepam rectal. Alta para o domicilio .....

23 – Novamente internada no Centro de Medicina e Reabilitação da Região ..., no período compreendido entre 24/6/2013 e 26/4/2014, apresentou o seguinte estado clínico e cumpriu o seguinte programa de tratamento:

Relatório de Alta do Serviço de Reabilitação Geral de Adultos do CMRRC - ..., de internamento de 24-06-2013 a 26-04-2014 com o objectivo de melhorar da espasticidade, ganho de amplitudes articulares, prescrição de produtos de apoio para melhoria do padrão de marcha, estimulação perceptivo-cognitiva e melhoria da participação nas actividades devida diária. Cumpriu programa de reabilitação integral englobando Fisioterapia, Reabilitação cognitiva, Terapia Ocupacional, Terapia da Fala, Enfermagem de Reabilitação e seguimento por Psicologia. A 28-08­-2013, por marcada espasticidade nos membros direitos iniciou tiazídina 6 mg comprimido de libertação prolongada e aumentou a dose de baclofeno de 25 mg 2 id para 3id. A 15-11-2013 e 07-04-2014 realizou aplicação de toxina botulínica nos membros direitos. Assim como infiltração com fenol 6% no nervo musculo-cutâneo, no nervo obturador e nervo grande peitoral à direita. Como intercorrências teve ITU em 28-02-2014 e episódio único convulsivo, de curta duração e resolução espontânea durante o internamento. Durante o internamento verificou-se boa evolução a nível cognitivo, motor e funcional. Bom equilíbrio de tronco estático e dinâmico sentada. Ortostatismo com ajuda de 3ª pessoa e alguns passos com tripé. Melhoria do padrão de marcha com uso de dyna ankle no pé direito. Apôs tratamento com toxina botulínica ocorreu melhoria da espasticidade, nomeadamente facilitação da flexão anterior da anca. Na fase de balanço consegue elevação da hernibacia direita e fazer o avanço do membro. Requer ajuda moderada nas actividades da vida diária, nomeadamente higiene pessoal, vestuário e banho. Apresenta controlo de esfíncteres durante o período diurno, durante a noite usa fralda como prevenção. Regime intestinal: regular com recurso a medicação.

 24 – A autora esteve ainda internada no Centro Hospitalar e Universitário de ..., entre 2/5/2013 e 7/5/2013, tendo sido sujeita a tratamento cirúrgico em 3/5/2013, com alongamento do tendão de Aquiles, flexor curto dos dedos, flexor curto do hálux e transferência do hemi-tibial anterior para o bordo externo e tenodese curto peroneal.

25 – À data de 14/01/2013 a autora inicia fisioterapia na Clínica ..., Lda, com sede na Av. ..., onde efectuou 32 sessões de fisioterapia, tendo terminado as mesmas a 25/02/2013.

26 – Em consequência do acidente, a autora apresenta as seguintes sequelas:

-Tórax: cicatriz linear, com 2 cm, localizada no terço superior da metade esquerda da região dorsal; complexo cicatricial, de forma irregular, com 4 por 3 cm, localizado no terço médio da metade esquerda da região dorsal; complexo cicatricial, de forma irregular, com 11,5 por 6 cm, localizado no terço inferior da metade esquerda da região dorsal; complexo cicatricial, de forma irregular, com 13 por 8 cm, localizada também no terço inferior da metade esquerda da região dorsal.

-Abdómen: cicatriz, de forma Irregular, com 6 por 3 cm, localizada no flanco         esquerdo.

-Membro superior direito: cicatriz de forma irregular, com 24 por 10 cm localizada desde a face postero-lateral inferior do braço até ao terço superior da face postero-­lateral do antebraço; cicatriz de forma irregular com 5 por 1 cm localizada no terço distal da face posterior do antebraço; cicatriz de forma irregular com 2 por 1 cm localizada na face posterior do ombro. Não efectua movimentos activos do membro. Ombro: passivamente efectua flexão 0-50º e abdução 0-30° com dor a partir dos maiores graus. Cotovelo: défice de 70º de extensão, aumento do tónus muscular dos flexores do cotovelo. Punho: tónus muscular aumentado dos flexores do carpo. Dedos: tónus muscular aumentado dos flexores dos dedos com manutenção dos dedos em garra com difícil abertura forçada da mão. Reflexos osteotendinosos aumentados.

-Membro superior esquerdo: cicatriz de forma irregular com 8 por 2,5 cm localizada na face dorsal da mão na região do 2° metacarpiano; cicatriz de forma irregular com 13 por 8 cm localizada na metade superior da face posterior do antebraço; complexo cicatricial de forma irregular com 7,5 por 2 cm localizado na face supero-lateral do ombro; força muscular global do membro superior grau. 5 em 5 nos principais segmentos; sem limitação das amplitudes articulares mas realizando movimentos lentos, sem precisão. Reflexos osteotendínosos aumentados.

-Membro inferior direito: cicatriz de forma irregular com 12 por 10 cm localizada no terço superior da face lateral da coxa; cicatriz de forma irregular, com 4 por 4 cm localizada na face antero-lateral da perna; cicatriz de forma irregular com 5 por 2 cm localizada no terço médio da face anterior da perna; cicatriz linear, do tipo cirúrgico, com 3 cm, localizada no terço inferior da face anterior da perna; cicatriz linear, do tipo cirúrgico, com 10 cm, localizada na face postero-interna da perna; cicatriz linear, do tipo cirúrgico, com 4 cm, localizada na face lateral do pé; complexo cicatricial, de forma irregular, com 6 por 5 cm localizado no quadrante infero-medial da nádega; Não efectua movimentos activos do membro; Anca e joelho: tónus muscular aumentado dos extensores do joelho; Tibiotársica: dorsiflexão de 0º com joelho em extensão e 5° com joelho em flexão. Reflexos osteotendinosos aumentados.

-Membro inferior esquerdo: cicatriz de forma irregular, com 9 por 4 cm, localizada na face interna do joelho; Anca e joelho: força muscular global grau 5 em 5 dos flexores da anca e extensores do joelho; Sem limitação das amplitudes articulares mas realizando movimentos lentos, sem precisão; Tibiotársica: dorsiflexão de 0º com joelho em extensão e de 10º com joelho em flexão. Reflexos osteotendinosos aumentados.

27 – E, também em consequência do acidente, efectua todos os gestos com a esquerda e deambula em cadeira de rodas, conseguindo colocar-se na posição ortostática com a ajuda de 3ª pessoa, com pouco equilíbrio, dando alguns passos completamente apoiada em 3ª pessoa e com “arrastamento” do membro inferior direito.

28 – Apresenta, ainda, tetraparésia espástica com predomínio/paralisia direita e envolvimento orofacial aparente.

29 – Encontra-se, de forma permanente, totalmente dependente da ajuda de uma 3ª pessoa para realizar os actos da vida diária (higiene – banho –, vestuário, etc.), conseguindo apenas, autonomamente, levar a comida com o garfo à boca (estando esta já partida no prato à sua frente), lavar a cara e escovar os dentes (depois de tudo preparado).

30 – Ficou a padecer, em consequência das lesões/sequelas que a afectam, de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 91 (noventa e um) pontos.

31 – Teve um período de défice funcional temporário total de 1037 dias, com total impedimento, durante o mesmo período, do exercício de qualquer actividade profissional (actividade profissional total).

32 – Encontra-se, a título permanente, dependente de ajudas medicamentosas, neste caso medicação habitual e futuramente prescrita por Ortopedia, Neurologia/Neurocirurgia, Psiquiatria e Medicina Física e Reabilitação.

33 – Tem necessidade de tratamentos médicos regulares para evitar o retrocesso ou agravamento das sequelas, neste caso consultas médicas em Ortopedia, Neurologia/Neurocirurgia, Psiquiatria e Medicina Física e Reabilitação, bem como tratamentos de fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional e reabilitação neuro-psicológica.

34 – Necessita, permanentemente, de recurso a ajudas técnicas para prevenir, compensar ou neutralizar o dano pessoal (do ponto de vista anatómico, funcional e situacional), com vista à obtenção a maior autonomia e independência possível nas actividades da vida diária, neste caso almofada anti-escaras, colchão anti-escaras, cadeira de rodas eléctrica com comando de acompanhante, talas de posicionamento dos membros inferior e superior direito, banco para duche, poltrona e estrado articulado na sua cama actual.

35 – As limitações de que padece, supra-referidas, implicaram a necessidade de realizar obras de adaptação da casa onde a mesma reside (acessos à habitação, piso adaptado a cadeira de rodas, alteração da largura das portas, etc.), o que implicou que dispêndio da importância total de 24.787,30 € (vinte e quatro mil setecentos e oitenta e sete euros e trinta cêntimos), quantia essa que foi suportada pelo seu progenitor.

 36 – As sequelas que a autora apresenta são impeditivas do exercício da actividade profissional de modelo, assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

37 – Encontra-se, a título permanente, impedida de praticar qualquer desporto, atentas as sequelas que apresenta, de dançar e de fazer caminhada, sendo que a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, aquando da perícia a que se procedeu nos autos, foi fixada no grau 7, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

38 – A repercussão das sequelas ao nível estético, aquando da perícia a que se procedeu nos autos, foi fixada no grau 6, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

39 – A autora teve e tem dores em consequência das lesões/sequelas que a afectam, tendo o quantum doloris, aquando da perícia a que se procedeu nos autos, sido fixado no grau 6, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

40 – As sequelas que sofreu têm uma repercussão permanente na actividade sexual (correspondendo à limitação do nível de desempenho/gratificação de natureza sexual) de grau 7, numa escala de sete graus de gravidade crescente (avaliação que também ocorreu aquando da perícia a que se procedeu nos autos).

41 – Desde a altura do acidente, passou a ter, de forma permanente, a ajuda de seu pai, JJ.

42 – A autora, à data do acidente, frequentava um curso de inglês e um curso de língua portuguesa, em Lisboa.

43 – Como consequência do acidente, nunca mais voltou a estudar.

44 – A autora não tem capacidade cognitiva suficiente para frequentar uma escola com o programa normal de qualquer estudante, atentas as lesões/sequelas que apresenta.

45 – Sofre de défice a nível de atenção/concentração e memória a curto prazo.

46 – Desde a data do acidente que não trabalha e não estuda.

47 – A autora pretendida fazer um curso na área de hotelaria e seguir a carreira de modelo.

48 – O facto de não poder seguir essa carreira, causa-lhe um grande desgosto.

49 – Manifestava o propósito de casar e ter filhos.

50 – Sofreu o afastamento de amigos, atentas as lesões/sequelas que apresenta.

51 – Era uma pessoa sem qualquer limitação de ordem física.

52 – Era uma pessoa bem-disposta e com auto estima elevada.

53 – Gostava de viajar, de sair, de se divertir e de conviver com familiares e amigos.

 54 – Deixou de poder efectuar caminhadas, actividade que gostava muito de realizar.

55 – Deixou de frequentar a praia.

56 – A autora reclamou ao réu Fundo de Garantia Automóvel o pagamento de despesas medico-medicamentosas, no valor total de 1.001,48 €, tendo o réu liquidado a importância de 667,36 €.

57 – O custo da assistência prestada à autora pelo Centro Hospitalar do ..., E.P.E., em consequência das lesões, resultantes do acidente, que determinaram o seu internamento nessa instituição, importou em 39.899,37€.

8. Não foram provados dos seguintes factos:

- Quando se deu o acidente a visibilidade era reduzida.

- O DD conduzia a uma velocidade situada entre os 206,81Km/h e 237,30 Km/h.

- O mesmo utilizava durante a condução chinelos havaianos.

- O veículo circulava a cerca de 180Km/hora;

- A ré, EE, Ldª (anteriormente designada LL, Ldª), vendeu ao referido DD, em 21/6/2011, o veículo da marca BMW, modelo 635 D, com a matrícula ...JB....

- A autora levava o respectivo cinto de segurança.

 - A autora não poderá ter filhos.

- A autora tinha como sonho ter pelo menos 3 filhos.

- A autora necessita que a cadeira de rodas e a cama articulada sejam substituídas de 3 em 3 anos.

- A autora, a seguir a carreira de manequim/modelo/estilismo/design/gestão hoteleira teria uma remuneração mensal não inferior a três mil euros.

- Nos últimos 4 anos (desde os 14 anos), até à data do acidente, efectuou várias sessões fotográficas, castings e actividades de modelo, manequim e estilismo.

- A autora tem que ter no mínimo 3 pessoas disponíveis para lhe prestar assistência.

 - A autora praticava desporto com frequência.

- A autora sofre de perturbação de stress pós traumático crónico, que se traduz em sintomas persistentes, como resultado directo e necessário do acidente, que se traduz em dificuldade em adormecer e manter o sono, irritabilidade, híper-vigilância e resposta de sobressalto exagerada, com o reviver persistente do evento traumático e fuga persistente a estímulos associados com trauma.

- As lesões que a autora sofreu não teriam ocorrido caso a mesma viajasse com o cinto de segurança colocado.

- O DD firmou um acordo com o gerente da ré EE, nos termos do qual este disponibilizava viaturas de alta gama e cilindrada do referido stand mediante a contrapartida da publicidade que o DD fazia ao dito stand.

9. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1ª parte e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.

Porque assim é, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos recorrentes, são as seguintes as questões a tratar:


A) Do Recurso da Autora
i) Saber em que medida o comportamento da lesada, que não usava cinto de segurança, pode diminuir a responsabilidade dos demandados pelo dano sofrido;
ii)  Saber se a decisão que absolveu os RR. em relação ao pedido relativo às obras de adaptação da casa está correcto;
i) Saber se a decisão relativa aos danos relativos a ajudas técnicas, médicas e medicamentosas está correcto;
ii) Saber em que medida o valor da indemnização arbitrada pelo dano não patrimonial (dano biológico) está correcto;
iii) Saber em que medida o valor da indemnização arbitrada pelo dano patrimonial (perda de possibilidade de ganho) está correcto.
B) Do recurso do FGA
iv) Saber se deve haver condenação dos RR., herdeiros do condutor (questão imediata) e, indirectamente, qual a causa do acidente – rebentamento de pneu ou excesso de velocidade – com a consequente identificação dos sujeitos do dever de indemnizar o lesado pelos danos sofridos.
C) Do recurso da EE, Lda
v) Saber qual a causa do acidente – rebentamento de pneu ou excesso de velocidade – e consequente identificação dos sujeitos do dever de indemnizar a lesada pelos danos sofridos;
vi) Saber se, havendo um responsável por facto ilícito, se ainda pode a Ré EE, Lda. ser responsabilizada – e a que título (responsabilidade objectiva vs. subjectiva);
vii) Saber em que medida o comportamento da lesada, que não usava cinto de segurança, pode diminuir a responsabilidade dos RR. pelos danos causados;
viii) Saber em que medida o valor da indemnização arbitrada pelo dano não patrimonial foi correctamente arbitrado;
ix) Saber em que medida o valor da indemnização arbitrada pelo dano patrimonial está correcto;
x) Saber se o tribunal decidiu bem ao atribuir já uma indemnização em favor da autora para fazer face a despesas em que esta incorrerá ao contratar 3ª pessoa para a ajudar.

10. Do enunciado das questões a abordar considerou-se que, por uma razão de ordem lógica, cabe apreciar em primeiro lugar o recurso das RR., EE, Lda e do FGA, não obstante se entender que a melhor forma de responder a todas as questões suscitadas pelos recorrentes é, em simultâneo, proceder a uma abordagem combinada – recorrentes versus questões suscitadas.

 

Recurso das RR., EE, Lda. e do FGA e a questão de quem é responsável pelos danos sofridos pela A.

11. Antes de avançar na análise dos recursos da EE, Lda. e do FGA, na parte respeitante à questão de saber quem é responsável pelos danos sofridos pela A. consideramos ser de relembrar que, na apelação, os RR, pais e herdeiros do falecido condutor do veículo, impugnaram a decisão da 1ª instância, invocando que a mesma padecia do vício cominado na al. c) do n.º 1 do art.º 615.º (oposição entre decisão e fundamentos), posto que, na sua opinião, os factos provados não permitiriam concluir que o condutor da viatura teria adoptado um conduta culposa que tenha estado na origem do acidente. Ao apreciar esta questão o Tribunal da Relação entendeu (citação) “inexistir qualquer contradição intrínseca entre os fundamentos e o dispositivo da sentença recorrida, sendo certo que, como tem sido salientado[2], a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão-pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se antes como erro de julgamento.”

11.1. Na sequência da resposta dada, veio ainda o Tribunal da Relação a pronunciar-se sobre uma questão conexa com aquela, e que é a questão que releva aqui: a de saber em que medida o condutor da viatura teria tido responsabilidade – nem que fosse a título de negligência – pela ocorrência do mesmo.

Disse sobre o assunto:
“Na sentença recorrida considerou-se que a culpa na produção do ajuizado acidente de trânsito se ficou a dever ao comportamento do condutor do veículo com a matrícula ..., porquanto imprimia ao mesmo uma velocidade superior ao limite legalmente permitido.
Os apelantes BB e CC (na qualidade de herdeiros de DD, condutor do mencionado veículo) rebelam-se contra o referido sentido decisório, argumentando, fundamentalmente, que na génese do acidente não esteve qualquer comportamento do condutor do veículo mas antes um facto externo, imprevisível e a ele não imputável.
Com relevo para a apreciação da enunciada questão, resultou provado que:
- O acidente traduziu-se num despiste com capotamento transversal do referido veículo, despiste que ocorreu após se ter verificado o rebentamento do pneumático do rodado esquerdo traseiro (ponto nº 5);
- A viatura circulava a velocidade não concretamente apurada, mas não inferior a 200Km/hora (ponto nº 6);
- Na sequência do rebentamento do referido pneumático, o condutor da viatura travou, tendo a mesma entrado em derrapagem, com derivação para a direita, após o que rodopiou, indo embater com os rodados do lado esquerdo na caleira de drenagem de águas pluviais existente do lado direito, atento o sentido de marcha em que o veículo seguia (ponto nº 7);
- Nesse seguimento, a dita viatura entrou no talude existente do lado direito, considerando o já referido sentido de marcha, tendo aí capotado, após o que acabou por se imobilizar na berma direita, igualmente no sentido norte/sul, em posição oblíqua em relação à via e com a parte frontal orientada para a faixa de rodagem (ponto nº 8);
- O veículo, durante o acidente (derrapagem e subsequente capotamento e imobilização) percorreu uma trajectória superior a 300 metros (ponto nº 9);
- Os pneus instalados no eixo traseiro do veículo tinham as dimensões 275/40R19 107Y, correspondente a 275 mm de largura radiais, montados em jantes de 19 polegadas, com índice de carga 102 (850 kg), e projectado para uma velocidade máxima de 300 km/h, apresentando sulcos na banda de rodagem, de altura inferior a 1,6 mm (ponto nº 11);
- Os pneumáticos respeitavam os conjuntos jante/pneu, dianteiros e traseiros, diferença proporcional, idêntica à dos que equipam veículos novos da mesma marca e modelo (ponto nº 12).
Do descrito quadro factual emerge que a causa do despiste do JB se ficou a dever ao rebentamento do pneumático do rodado esquerdo traseiro (negrito nosso).
Ora, sendo esta a causa do despiste do veículo, primo conspectu, não se antolha como se pode afirmar que o condutor do JB teve culpa na produção do acidente porque circulava a uma velocidade superior à legalmente permitida.”

11.2. Na 1ª instância havia sido decidido - e fundamentada a responsabilidade do condutor - nos seguintes termos (fls. 1017 e ss):
“Do que resulta provado – e é a essa a factualidade que devemos ater-nos – dúvidas não podem restar que a causa naturalística do acidente reside no rebentamento de um pneumático que equipava o eixo traseiro da viatura, sendo certo que, no entanto, que se ignora se esse rebentamento se deveu ao estado de conservação do mesmo ou devido a uma causa externa à viatura, como seria um objecto no pavimento que tivesse provocado o corte da respectiva tela.
Tudo o que possa dizer-se ou afirmar-se a este propósito, salvo melhor entendimento, é pura especulação, uma vez que não existem elementos de ordem científica (pericial) que nos ajudem a esclarecer por que razão ou motivo o referido pneumático se degradou até ao ponto de ocorrer o rebentamento.
Esclarecido este ponto, importa atentar noutra circunstância, essa sim relevante, também sem prejuízo de melhor opinião, para o acidente que veio a ocorrer e para as causas – dramáticas – que do mesmo vieram a resultar.
Trata-se da velocidade a que a viatura sinistrada circulava, a qual nos parece, neste caso concreto, ser o motivo determinante do acidente, com os contornos que o mesmo apresenta. (negrito nosso).
De facto, embora se ignore a exacta velocidade instantânea a que o veículo seguia, sabe-se que a mesma não era inferior a 200 km/, valor manifestamente excessivo para o local, dadas, não só as limitações legais que existem a propósito desta matéria, mas também considerando as regras de bom senso que devem imperar na condução de veículos automóveis.
Sabe-se que o excesso de velocidade – e este caso não foge à regra – é uma das principais causas de acidentes graves, não só em Portugal, como no resto do mundo, mas continua-se, se nos é permitido o desabafo, a fazer de conta que assim não é, como se os sistemas com que os veículos estão actualmente equipados (sistemas de retenção – airbags, cintos com pré-tensores- arcos de segurança, zonas de deformação programada, etc.) permitissem superar as leis da física e impedir que, ultrapassados determinados limites e circunstâncias, os ocupantes dos mesmos não sofressem lesões graves ou até a morte, como infelizmente, no caso vertente, ocorreu.
Ora, a este propósito, o art.º 24.º, n.º1 do CE – norma que estabelece um princípio geral em matéria de velocidade – dispõe que “O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”
Paralelamente, o art.º 27.º, n.º1 do mesmo Código estabelece como limite máximo para o local em questão (auto-estrada) a velocidade instantânea de 120 Km/.
Atentando na velocidade, clara e manifestamente excessiva, que era imprimida ao veículo (..) e considerando o facto de não ter sido possível deter atempadamente a marcha da viatura, que só se imobilizou centenas de metros após a derrapagem/travagem que vem referida nos autos, temos como certo que o condutor da viatura adoptou uma conduta culposa que esteve na origem de um acidente com consequências nefastas.” (negrito nosso)
(…)

E a fls. 1025 – p. 35 da sentença:

De qualquer forma, a admitir-se que a 2ª Ré era responsável, em termos abstractos, em virtude do rebentamento do pneumático - caso que está incluído nos riscos próprios do veículo -, tal responsabilidade seria de excluir, uma vez que existe um facto (excesso de velocidade) imputável a um terceiro (neste caso, o condutor) que está na origem do sinistro em questão, como já se referiu e analisou (art.º 505.º do CC).”

11.3. A recorrente, EE, Lda., discorda da conclusão do Tribunal da Relação, relativamente às causas do acidente.
Diz a este propósito o seguinte:
11- “O conceito de “acidente de viação” tem de ser bosquejado, perspectivado, a partir da vítima, ou seja da pessoa que sofre danos (patrimoniais ou morais) com nexo causal entre esses e o evento.” – STJ, em acórdão proferido no processo 8/07.5TBSTB.S1.
12- Na perspectiva da vítima, o acidente ocorre, parece-nos claro, quando se dá o capotamento no talude, e ocorre a projecção do seu corpo a 10 metros – facto 10º.
13- A projecção do corpo da vítima não se dá quando o pneu rebenta. A projecção dá-se (como decorre do facto de a Autora se encontrar a escassos 10 metros de distancia do veículo acidentado, após percurso superior a 300 metros) quando o veículo capotou, após embate no talude.
14- Assim, parece claro que o momento no qual se deve apreciar a culpa do condutor (no caso, o terceiro a que alude o art.º 505.º) não é o momento do rebentamento do pneu, mas sim o momento do capotamento.
15- O embate no talude e subsequente capotamento, são, ao contrário do alegado pela Relação, eventos que resultam não do rebentamento do pneumático, mas sim da velocidade “louca” – 200km/h - que o condutor imprimia ao veículo.
16- O facto de o condutor circular a 200kmh, fez, neste caso concreto, com que 300 metros de estrada fossem insuficientes para imobilizar a viatura, o que provocou a deslocação da viatura para o talude, onde veio a capotar (com grande violência), e onde a Autora foi projectada a 10 metros.
17- É facto público e notório que, circulasse este (ou qualquer outro veículo) a 120kmh, 200 metros seriam mais do que suficientes para imobilizar a viatura.
18- Ao circular a 200kmh, o condutor não estava apenas a violar o limite de velocidade. O condutor estava a colocar em perigo a sua vida, a dos passageiros, e a de terceiros que circulassem naquela estrada.
19- O culpado do acidente e dos danos sofridos pela Autora é, em exclusivo, a condução louca levada a cabo pelo malogrado condutor, que o fazia não só em violação dos limites regulamentares, mas também, e sobretudo, do dever previsto no art.º 11.º, n.º2 do Código da Estrada: Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.”

11.4. Do acima relatado e, em especial, do confronto entre a posição adoptada pelo Tribunal da Relação – que partindo de certos factos dados como provados, concluiu não haver responsabilidade do condutor  –  com os elementos constantes dos autos, e que servem de base material à decisão judicial, resulta, em nossa opinião, que o Tribunal da Relação não tem inteira razão na posição que veio a assumir.

Explicitemos.
Quando se observa o raciocínio adoptado pelo tribunal recorrido, verifica-se que o mesmo obedeceu à seguinte lógica: começando por transcrever os factos provados tidos por relevantes e constantes do enunciado da sentença, o tribunal considerou que Do descrito quadro factual emerge que a causa do despiste do JB se ficou a dever ao rebentamento do pneumático do rodado esquerdo traseiro (sublinhado nosso).
E porque a causa do despiste teria sido o rebentamento do pneu, nada mais natural que daí concluir:Ora, sendo esta a causa do despiste do veículo, primo conspectu, não se antolha como se pode afirmar que o condutor do JB teve culpa na produção do acidente porque circulava a uma velocidade superior à legalmente permitida.
Ou seja, na posição do tribunal, o quadro factual traria consigo a indicação da causa do despiste e do acidente, apenas tendo que se aplicar o Direito a esse quadro factual.

11.5. A nosso ver esta posição não está correcta.
Em primeiro lugar, da leitura atenta dos factos provados não se deduz que o rebentamento do pneu tenha sido a causa do acidente. O que o facto provado n.º 5 diz é apenas que: a) “O acidente traduziu-se num despiste com capotamento transversal do referido veículo”; b) “(o) despiste (que) ocorreu após se ter verificado o rebentamento do pneumático do rodado esquerdo traseiro”.

Com esta afirmação o facto provado apenas indica que o despiste aconteceu, temporalmente, depois do rebentamento, não se encontrando aí afirmando, nem demonstrado que foi o rebentamento do pneu que determinou causalmente (ou foi a única causa) o despiste.

Em segundo lugar, cremos igualmente que os demais factos utilizados pelo Tribunal da Relação também não permitem que se conclua, inequivocamente, que a (única) causa do acidente foi o rebentamento do pneu.

Importa ainda dizer que a posição defendida no acórdão recorrido está em contradição com um facto assente, tal como o mesmo veio afirmado pela 1ª instância. Trata-se de um facto que foi considerado como provado a partir de uma presunção judicial, retirada por aquela primeira instância a partir de outros factos provados[3] no sentido de a velocidade ter causado – ou ter sido causa concomitante/concorrente – do acidente.

Esta presunção judicial encontra-se expressa na fundamentação da sentença quando esta diz: “…Trata-se da velocidade a que a viatura sinistrada circulava, a qual nos parece, neste caso concreto, ser o motivo determinante do acidente, com os contornos que o mesmo apresenta…” e “atentando na velocidade, clara e manifestamente excessiva, que era imprimida ao veículo (..) e considerando o facto de não ter sido possível deter atempadamente a marcha da viatura, que só se imobilizou centenas de metros após a derrapagem/travagem que vem referida nos autos, temos como certo que o condutor da viatura adoptou uma conduta culposa que esteve na origem de um acidente com consequências nefastas”.

Com esta fundamentação a 1ª instância tratou simultaneamente de dois problemas: o primeiro, relativo à matéria de facto; o segundo, relativo à aplicação do Direito. Assim, por um lado afirmou que a velocidade excessiva foi causa do acidente, e por outro, imputou a responsabilidade pelo excesso de velocidade ao condutor, indicando que este estava em violação das regras do Código da Estrada, o que voluntariamente infringiu.

Tem-se por correcta e admissível a interpretação efectuada na sentença, à semelhança do que este STJ tem já decidido noutros casos[4]. Ao assim raciocinar e decidir, a 1ª instância tratou da matéria de causalidade adequada nas suas duas vertentes: na sua feição naturalística, respeitante ao nexo entre o facto-condição e o resultado por ele provocado; na sua feição normativa, tendente a saber se esse facto, em abstracto, é causa adequada daquele resultado.

Não cabendo nos poderes deste STJ questionar a feição naturalística, não está vedado o conhecimento da feição normativa da causalidade, pelo que se entende que, perante os factos apurados, quer a velocidade excessiva, quer o rebentamento do pneu foram causa adequada do acidente em termos normativos, tendo ambos os factores contribuído para o acidente.

11.6. O entendimento exposto – em matéria de causalidade naturalística – não deve considerar-se afectado pela decisão do tribunal recorrido: o tribunal não adoptou ele próprio um outro entendimento sobre a matéria de facto, tirando ilação, relativamente à causa do acidente, e presumindo que a mesma foi distinta da presunção judicial extraída pela 1ª instância.

Em momento algum o Tribunal da Relação colocou em causa a presunção da 1ª instância, pois sempre assumiu que os factos provados eram os descritos como tais, mais parecendo não se aperceber da presunção judicial relativa à causalidade ínsita naquela 1ª decisão judicial[5].

11.7. A fundamentação do acórdão na parte em que este alude à falta de prova de que o rebentamento do pneu foi determinado pelo excesso de velocidade também não inviabiliza a solução que aqui se defende. Só assim seria se, além das considerações aí empreendidas sobre a falta de prova do nexo de causalidade, o Tribunal da Relação tivesse, ele próprio, presumido em sentido oposto. Ora, isto nunca chegou a acontecer, nem o mesmo se pode considerar decidido no acórdão.

A fundamentação que o Tribunal da Relação utiliza ao afirmar “hão-de ser, deste modo, as circunstâncias a definir a adequação da causa, mas sem perder de vista que para a produção do dano pode ter havido a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, e que a causalidade não tem de ser necessariamente directa e imediata, bastando que a acção condicionante desencadeie outra condição que, directamente, suscite o dano-causalidade indirecta. Pode também acontecer que a lesão resulte de duas ou mais causas, que vários factos tenham contribuído para a produção do mesmo dano, isto é, que haja um concurso real de causas, o que sucede, designadamente, quando nenhum dos factos, singularmente considerado, é suficiente, só por si, para produzir o efeito danoso, mas o primeiro é causa adequada do facto que se lhe sucede, praticado por outro sujeito. Relevará, nessa aferição global da adequação, a necessidade de, num juízo de prognose posterior objectiva, formulado a partir das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de um observador experiente, se poder afirmar que certo facto do lesante, quando em colaboração com outro ou outros, provocaria ou favoreceria a espécie de dano em causa, surgindo este, pois, como uma consequência provável ou típica daquele facto”, também não é obstáculo ao entendimento que aqui se sufraga.

Ao invés, confirma-o.

Um acidente pode ter mais do que um facto causal, adequado a produzir o resultado danoso.

Não se esqueça ainda que o raciocínio do tribunal é apresentado com esta fundamentação a propósito da determinação da existência de culpa do condutor na ocorrência do acidente – e não a propósito da fixação dos factos provados sobre a dinâmica do acidente (é que o Tribunal da Relação foi chamado a analisar a matéria de facto, para efeito de decidir se a mesma devia ter sido fixada em sentido diverso, e respondeu negativamente a esta questão, mantendo intactos os factos provados e não provados tal como constavam do elenco da decisão da 1ª instância.)

Daqui se deduz que o Tribunal estava a analisar um problema de direito – subsunção dos factos às normas jurídicas – e não a definir o quadro fáctico; por isso, as considerações que faz devem ser interpretadas no âmbito de uma pronúncia de Direito e não no exercício de um poder de alteração da matéria de facto – pois a decisão judicial comporta necessidade de interpretação jurídica[6].

11.8. Está assim justificada a posição interpretativa apresentada relativa ao teor do acórdão na parte em que tratando da culpa do condutor, não retira ilações (presunções), nem afasta as já retiradas pela 1ª instância, e bem assim a possibilidade de este STJ conhecer deste assunto.
Em nosso entender, o Tribunal da Relação estava, naquele ponto, a tratar de uma outra questão – a de saber se o rebentamento do pneu foi determinado pelo excesso de velocidade. E, quanto a este ponto, o tribunal entendeu que não havia prova suficiente e não o deu por provado, através de presunção judicial, por considerar que não o podia fazer.
Isto em nada colide com a presunção da 1ª instância, que é distinta: aí se presumiu que a velocidade excessiva tinha sido causa do acidente, senão isoladamente, em conjunto com o rebentamento do pneu. E esta presunção, sendo distinta, e não vindo infirmada pelo Tribunal da Relação, não pode deixar de ser atendida na aplicação do Direito.

12. Por tudo o que se disse, ainda que o facto presumido não conste do elenco dos factos provados, não pode deixar de ser considerado como provado – por resultar de utilização de presunção judicial admitida pelo direito (a presunção, não sendo um meio de prova, consiste em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos, para dar como provados factos desconhecidos, nos termos do artigo 349.º do CC).
Ao esquecer o facto provado, o Tribunal da Relação fez uma apreciação jurídica da questão que lhe fora colocada na apelação, que não se pode aceitar, por não traduzir a aplicação do Direito aos factos provados.
Sabendo que o STJ é um tribunal que apenas conhece de Direito, a partir dos factos provados, identificando este um facto provado que não permite sustentar a posição jurídica do acórdão recorrido, e sendo a questão objecto do recurso, só se pode esperar que este tribunal altere a decisão, em conformidade com a lei.

12.1. Procede, assim, ainda que parcialmente e por razões distintas a questão suscitada pela EE e pelo FGA, sendo de reafirmar o que já fora decidido pela 1ª instância: a causa do acidente, que ocorreu após o rebentamento do pneu, tem-se também por fundada na velocidade excessiva imprimida pelo condutor, não tendo o rebentamento do pneu interrompido o nexo de causalidade – ainda que se possa admitir que tenha contribuído para a ocorrência e, em termos naturalísticos, seja este rebentamento do pneu a causa próxima (mas não única, nem excludente da força causal da velocidade excessiva).

E, porque, o excesso de velocidade – provado – muito acima do limite máximo de velocidade permitido, tem de se considerar resultado de uma decisão do condutor, que não podia ignorar o limite máximo permitido para a via em que circulava, até porque era encartado, a sua culpa tem-se por demonstrada, nos termos em que a prova desta se deve considerar facilitada.

Valem aqui as considerações apresentadas pelo Tribunal da Relação na parte em que este disse: “Para que tal não aconteça tem sido defendido que, nas acções por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, a posição daquele será frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova da primeira aparência (presunção simples)[7]. Como a este propósito escreve VAZ SERRA[8] “a jurisprudência tem facilitado a prova da culpa: basta para provar a culpa que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem muito verosímil a culpa. Mas o autor do prejuízo pode afastar esta chamada prova prima facie, demonstrando, por seu lado, outros factos que tornem verosímil ter-se produzido o dano sem culpa sua. Com isto, destrói a aparência a ele contrária e força o prejudicado a demonstrar completamente a culpa, já que ao admitir-se a prova prima facie, só se dá uma facilidade para produção da prova e não uma total inversão do encargo da prova”; … “Quer dizer: se a prova prima facie ou por presunção judicial, produzida pelo lesado, apontar no sentido da culpa do lesante, cabe a este o ónus da contraprova, ou seja, fazer a prova que invalide aquela, que a neutralize, criando no espírito do juiz um estado de dúvida ou incerteza (convicção negativa), sem que, no entanto, careça de persuadir o juiz de que o facto em causa não é verdadeiro (convicção positiva). Se aproximarmos as precedentes considerações do que normalmente acontece nos acidentes de viação, temos à partida que considerar o ato de conduzir viatura um ato voluntário, voluntariedade que, sendo normal, em princípio se repercute em todo o seu desenvolvimento, a menos que um facto anormal, no sentido excepcional, intervenha no processo. Significa isto que o facto de conduzir permite tirar a ilação de ele traduzir uma actuação normalmente voluntária, mesmo quando revista a forma contravencional, a menos que através dos factos alegados e provados se crie, pelo menos, uma situação de incerteza sobre a verificação daquela normalidade. Na esteira dessa visão das coisas, vem-se firmando na casuística o entendimento de que em princípio procede com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, causar danos[9]”; … “Isto dito, dúvidas não existem de que, a responsabilidade do condutor do JB só poderá derivar da circunstância de circular a velocidade superior à legalmente permitida. Portanto, como se sublinha no citado aresto desta Relação (que aqui seguimos de perto), o que releva, neste conspecto, é apreciar o reflexo da velocidade instantânea imprimida ao veículo em causa e que infringia o limite máximo fixado pela legislação estradal. E, nessa apreciação, há-de levar-se em linha de conta a análise da dinâmica do acidente por forma a surpreender o respectivo processo causal em ordem à determinação da existência de uma única causa ou duas ou mais concausas. Ora, é certo que o veículo JB transitava com velocidade instantânea objectivamente excessiva, o que constituindo violação da norma do disposto no art.º 27.º do Código da Estrada implica, em regra, presunção juris tantum de culpa (negligência), em concreto, do respectivo condutor, autor da contra-ordenação. Porém, a validade da regra ou princípio pressupõe que o comportamento contravencional objectivamente verificado seja enquadrável no espectro das condutas passíveis de causarem acidentes do tipo daqueles que a lei quer prevenir e evitar ao tipificá-las como infracções[10].”).

O que não se aceita como válida é a conclusão do Tribunal da Relação que, na sequência do exposto, conclui: “tendo em conta a dinâmica do acidente e o concreto circunstancialismo que contribuiu para a sua produção, temos por incontornável a conclusão que a sua causa naturalística se situa no referido rebentamento do pneu (como, aliás, expressamente reconheceu o decisor de 1ª instância[11]) e não no excesso de velocidade com que o JB circulava.”

É que concluir neste sentido é desvirtuar os factos provados e desrespeitar o Direito: em si mesmo, quer a velocidade excessiva, quer o rebentamento de um pneu podem ser tidas como causas adequadas de um acidente de viação, mas não é apenas isto que releva – importa ver os factos provados nos autos para se apurar a efectiva causa do acidente: a conjugação da velocidade excessiva com o rebentamento do pneu podem determinar um acidente de viação, tudo dependente do circunstancialismo do mesmo e da prova efectuada.

Essa prova – sobretudo resultante da presunção relativa ao efeito do excesso de velocidade – determinam que, no caso concreto, o acidente foi provocado por duas causas: uma naturalística – o rebentamento do pneu, ao qual se seguiu o despiste; outra derivada da conduta voluntária do condutor da viatura – a velocidade excessiva.

Está assim demonstrada a responsabilidade subjectiva do condutor – o que implica que os seus herdeiros, aqui RR, sejam responsáveis, condenados nos termos do art.º 483.º do CC.

Procede, pelo menos parcialmente, a revista da EE, Lda. neste ponto, e bem assim a revista do FGA.

Da possível responsabilidade por facto ilícito e culposo da EE, Lda.

13. Do exposto resulta ainda que, além da responsabilidade por facto ilícito e culposo do condutor, deve tomar-se em consideração a responsabilidade por facto ilícito e culposo do proprietário do automóvel – é que o rebentamento do pneu também vem provado como tendo sido a causa naturalística do despiste e, consequentemente, do acidente.

Estando provado que os “pneus instalados no eixo traseiro do veículo tinham as dimensões 275/40R19 107Y, correspondente a 275 mm de largura radiais, montados em jantes de 19 polegadas, com índice de carga 102 (850 kg), e projectado para uma velocidade máxima de 300 km/h, apresentando sulcos na banda de rodagem, de altura inferior a 1,6 mm” (facto 11), sabendo-se que a regulamentação legal obriga a que os pneus devam ter sulcos de altura bastante superior – Decreto regulamentar n.º7/98, de 6 de Maio, art.º 6.º, n.º1[12]– pode inferir-se que o proprietário da mesma deixou de respeitar esta norma, cuja observância é da sua responsabilidade, valendo aqui o que acima se indicou sobre o facto ilícito e a prova de culpa, como fez o Tribunal da Relação por referência à velocidade excessiva (trecho transcrito e correspondentes notas 5 a 8).

A importância dos sulcos e o efeito de os mesmos estarem abaixo de 1,6 mm é sobejamente conhecido – facto notório – e encontra-se referenciado nas regras e recomendações de segurança.

A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) tem na sua página informática recomendação e informação técnica onde se lê: “Fim da vida útil: temos de considerar que um pneu atingiu o final da vida útil quando o respectivo piso apresentar o padrão mínimo legal de profundidade dos seus sulcos de 1,6 milímetros.”, e que se vem a arvorar em recomendação de segurança da própria autoridade (“Os pneus são componentes vitais para a segurança rodoviária. A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária recomenda que se tenha em atenção as condições de manutenção dos pneus referidas” )[13].

Não se tendo provado por que motivo a EE, Lda. facultou a sua viatura ao condutor – não se provou que o vendeu, nem que cedeu o uso com intuito publicitário –, estando apenas demonstrado que houve uma cedência autorizada, sabendo o proprietário, ou devendo sabê-lo, até na sua qualidade de empresário do ramo do comércio de automóveis, que a viatura não estava em condições de circular, e nada mais se demonstrando nos autos, não se pode no entanto afirmar que tenha sido demonstrada a causalidade naturalística decorrente da violação da regra legal e o efeito da mesma no rebentamento do pneu, pelo que fica afectada a causalidade normativa entre a violação do preceito legal e a uma conduta ilícita e culposa da Ré, EE.

Da possível responsabilidade objectiva da EE, Lda.

14. O título de imputação da responsabilidade da Ré, EE, Lda. pode ainda ser analisado na perspectiva da responsabilidade objectiva enquanto detentor de veículo, por força do art.º 503.º do CC.

Já sabemos que foi este o entendimento do Tribunal da Relação, e que com o mesmo se apresenta discordante a Ré, EE, Lda. (implícita na revista da EE, Lda. está a questão de saber se a mesma pode ser condenada por força do regime da responsabilidade objectiva, quando existe um responsável com culpa, obrigado a indemnizar).

Vejamos.

14.1. Para tratar deste ponto, o Tribunal da Relação teceu as seguintes considerações:
“Por regra, tem a direcção efectiva do veículo o proprietário deste. A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo seu proprietário. Sendo tais requisitos de verificação cumulativa é, pois, sobre o proprietário do veículo que incide o ónus de demonstrar o contrário, já que, como se vem decidindo[14], é de admitir a existência de uma verdadeira presunção de direcção efectiva e interessada do veículo a favor do seu proprietário, posto que o conceito de direcção efectiva e interessada cabe perfeita e legalmente dentro do conceito do direito de propriedade.
Por outro lado, o veículo circula no interesse de quem tira vantagens da sua circulação. O interesse não tem de ser necessariamente económico. Pode ser de outra ordem, designadamente espiritual, de simples gentileza ou cortesia.
No tocante à utilização no próprio interesse, não tem a mesma que ser necessariamente uma utilização proveitosa ou lucrativa, em sentido económico; pode haver nela um mero interesse de gentileza, como quando se cede a viatura a um amigo, um interesse meramente recreativo, o que não deixa de constituir aquela posição favorável à satisfação de uma necessidade.
Como a este respeito escreve DARIO MARTINS DE ALMEIDA[15], “normalmente, quem empresta a viatura a um amigo, gratuitamente, fá-lo, portanto, no seu interesse; e, porque não deixa de manter a direcção efectiva, responde solidariamente com aquele por danos causados nessa viagem”.
E, como anotam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[16], “o segundo requisito - utilização no próprio interesse - visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem”.
Na decorrência do descrito regime normativo e considerando que, como se sublinhou, a propriedade do veículo faz presumir (presunção natural) a direcção efectiva e a circulação no interesse do respectivo proprietário, competia, pois, à ré EE, Ldª – na sua qualidade de proprietária do mencionado veículo -, o ónus de provar que, nas circunstâncias espácio-temporais em que o ajuizado acidente de trânsito ocorreu, não tinha a direcção efectiva nem o mesmo circulava no seu interesse o que, todavia, não logrou demonstrar.
Acresce que, para que fosse excluída a responsabilidade emergente do n.º 1 do citado art.º 503º, tornar-se-ia mister que o acidente pudesse considerar-se imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou que resultasse de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (art.º 505.º do Cód. Civil), sendo que, como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[17], neste último normativo não se coloca um problema de culpa, mas de causalidade, pois “trata-se de saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima ou por terceiro”.
Ora, no caso vertente - como supra se considerou - na génese do acidente não esteve um facto praticado pelo condutor do JB ou por terceiro, mas sim o rebentamento de um pneu que acarretou a perda do domínio do veículo, eventualidade inerente ao seu funcionamento e, qua tale, compreendida no risco, como recorrentemente tem sido afirmado pela doutrina pátria[18].
Como assim, a ré EE, Ldª, por mor do disposto no n.º 1 do art.º 503.º, responderá objectivamente pelas consequências resultantes do ajuizado acidente de trânsito[19].”

E decidiu que a EE, Lda. devia ser responsabilizada objectivamente, por o acidente dos autos ter resultado do rebentamento do pneu – e não do facto do lesado, nem de terceiro.

14.2. Por seu turno, a 1ª instância havia interpretado o art.º 503.º, n.º1, em conjugação com o art.º 505.º CC e decidido em sentido diverso: porque o acidente tinha sido causado pelo excesso de velocidade – e com uma causa naturalística associada, o rebentamento de pneu –, haveria responsabilidade por facto ilícito e culposo do condutor, que afastaria a responsabilidade objectiva, por a tal obrigar o normativo do art.º 505.º, ao aludir ao facto de terceiro.

A EE, Lda. defende a correcção desta interpretação pretendendo com esta ideia que o tribunal reconheça que pode operar aqui uma causa de exclusão da sua responsabilidade – o acidente é imputável a terceiro, o condutor – art.º 505.º CC – pois quebrar-se-ia o nexo de causalidade entre o risco próprio do veículo e o dano.

14.3. O principal ponto a analisar na questão em causa prende-se com o sentido de condenar dois sujeitos distintos: um com base na responsabilidade objectiva resultante da direcção efectiva de automóveis e o outro com base numa responsabilidade por facto ilícito fundada na culpa.

14.4. A possibilidade de um acidente de viação poder resultar do concurso de um perigo especial do veículo e do facto de terceiro, com responsabilização de vários sujeitos e a imputação de responsabilidade objectiva a uns e por facto ilícito e culposo a outro, tem tido algum acolhimento doutrinal[20], mas não merece um apoio unânime na jurisprudência, para todos os casos, em especial neste STJ, sobretudo no que toca a defender a manutenção da responsabilidade objectiva quando também se pode imputar a outrem um acto ilícito e culposo que origina danos[21].

O que se procura saber, no caso dos autos, é se o detentor do veículo deve responder objectivamente pelos riscos próprios do seu funcionamento, quando o acidente é causado (também causado) por uma atitude ilícita e culposa do seu condutor, sendo lesado um terceiro – que não é nem o condutor, nem o detentor.

14.5. Antes de tomar posição sobre a adequação da interpretação indicada e sua aplicação ao caso concreto sub judicio, sempre se impõe tecer algumas considerações sobre o entendimento veiculado pelas instâncias no sentido de, por força do art.º 505.º, a responsabilidade pelo risco estar excluída por existir responsabilidade do condutor – terceiro – fundada em acto ilícito culposo.

O art.º 505.º, com a epígrafe “Exclusão da responsabilidade” diz o seguinte:

“Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”

Tal como está redigida, o que a norma pretende dizer é que, por não estarem verificados os requisitos de que depende a aplicação do art.º 503.º, não há lugar a responsabilidade objectiva.

Contudo, o seu teor literal parece apontar para uma situação diferente – a de estar aí consagrada uma causa de exclusão da responsabilidade. Sabendo que este teor literal não pode ser suficiente para a análise do sentido da norma, que o enunciado legal é o ponto de partida da interpretação, que a baliza, mas não é o único critério que o intérprete deve tomar em consideração quando se trata de apurar o seu sentido, torna-se fácil de justificar que o intérprete tem de contextualizar a norma, inserindo-a no seio do sistema jurídico e procurando para o teor literal um sentido mais consentâneo com a finalidade que ditou a sua previsão. Ora é evidente que a norma pretende excluir a responsabilidade pelo risco quando o acidente não é causado pelo risco próprio relativo à utilização da viatura, não porque não deva existir responsabilidade pelo risco da viatura, mas porque se entende que o risco da viatura, nesse caso, não corre por conta do detentor, nos termos do art.º 503.º do CC. Assim, o sentido lógico do art.º 505.º, na sua referência a acidente imputável a terceiro, é apenas a de excluir a responsabilidade objectiva do detentor, e não excluir que a responsabilidade pelo risco seja concorrente com a responsabilidade por facto ilícito. Quando a norma se reporta a terceiro está a pensar em alguém que tem responsabilidade pelo acidente, que não o detentor[22]. O detentor esse responde pelo risco próprio da viatura – compreendendo-se no risco próprio as situações relativas ao próprio automóvel (por exemplo, rebentamento de um pneu) e as situações relativas ao condutor do automóvel que estejam relacionadas com o risco da própria máquina (por exemplo, um desmaio do condutor). Quando se alude no art.º 505.º a terceiro pretende-se fazer uma referência a alguém que é alheio ao controlo do risco da própria viatura. É, aliás, este o sentido que se alcança na jurisprudência quando esta aplica o art.º 505.º, na maior parte das situações por existir uma conduta do lesado a quem é imputável o acidente, ou porque há intervenção de mais do que um veículo envolvido no acidente, sendo o veículo do “terceiro” aquele a quem se considera dever ser imputada a causa do acidente.

Assim, um primeiro elemento para o qual cumpre chamar à atenção na interpretação do art.º 505.º é para o conceito de terceiro. É o de que o terceiro que aí se indica não nos parece que seja o condutor do veículo a cujo risco a análise se reportam já que este não é verdadeiramente um “terceiro” em relação ao veículo em causa.

 Por isso, quando um terceiro – que não o condutor do veículo a que se reporta o risco – causa um acidente, pode discutir-se se o detentor do veículo (a que se reporta o risco) deve responder pelo referido risco, sendo (porventura mais) fácil de aceitar que a exclusão da responsabilidade pelo risco ocorra num caso como esse, já que se está a indicar que foi o comportamento do terceiro – ilícito e culposo – que deu causa (única causa) ao acidente, quebrando a relação de causalidade entre o risco próprio da viatura e o dano. Ao assim se concluir, está a dizer-se que não faz sentido a responsabilidade objectiva porque o detentor não cumpre todos os requisitos de que depende a sua responsabilização objectiva – detenção e utilização em proveito próprio – que são a justificação para a criação de um regime gravoso de responsabilidade sem facto ilícito e culposo.

15. No nosso caso a situação é distinta: a responsabilidade da Ré (EE, Lda.), a ocorrer, prender-se-ia com o facto de, sendo detentora do veículo, o utilizar em seu benefício próprio (art.º503.º)[23] e dessa utilização se poder deduzir que os riscos objectivos associados à utilização do bem[24], na sua relação com um lesado, devem conduzir o detentor a responder objectivamente pelo danos causados – seria uma responsabilidade na relação com o lesado ou na relação externa.

A base fundante desta responsabilidade pelo risco prender-se-ia com o aproveitamento das vantagens proporcionadas pela coisa – quem tem os benefícios, deve suportar o risco próprio da utilização do bem[25]. O responsável seria assim aquele a quem incumbe providenciar para o bom funcionamento do bem, sem causar danos a terceiros[26]: pessoa que deve controlar o seu funcionamento, como vigiar a direcção, as luzes, afinar os travões, verificar os pneus, controlar o ar, efectuar o seguro de responsabilidade civil.

Além disso, no caso dos autos, temos a particularidade de o acidente ter sido provocado por duas causas, ambas a contribuírem para a produção dos danos: o rebentamento do pneu e o excesso de velocidade. Não estamos perante uma causa única que devesse conduzir à consideração de que o facto ilícito e culposo absorve a responsabilidade pelo risco[27].

Assim, no caso dos autos, não há razões válidas para excluir a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, nos termos do art.º 503.º do CC, pelo facto de o mesmo originar um acidente que seja imputável também ao condutor, pessoa distinta, e muito menos quando o acidente não é exclusivamente imputável a esse condutor – como na situação dos autos.

Acresce que sempre se poderia dizer que o proprietário do veículo, detentor e responsável nos termos do art.º 503.º, não pode dizer que houve um terceiro a quem é imputável o acidente, uma vez que o acidente vem imputado como responsabilidade por facto ilícito ao condutor mas o proprietário responde pelo risco de a sua viatura ser conduzida por uma pessoa que pratica um acto ilícito culposo, por o risco próprio da viatura também incluir o risco do condutor.

 15.2. A conjugação dos títulos de responsabilidade opera por motivos distintos: o primeiro é fundado no risco de detenção e utilização de um bem que comporta riscos próprios e justifica-se sempre que esses riscos possam estar presentes na situação concreta em que o acidente ocorreu; a segunda prende-se com um acto ilícito e culposo que afecta direitos alheios.

As duas fontes de imputação de responsabilidade ao operarem em conjunto não duplicam a indemnização – apenas oferecem ao lesado dois meios[28], alternativos, de melhor satisfazer o seu crédito indemnizatório: ou contra o responsável com culpa ou contra o responsável objectivo.

A responsabilidade objectiva da EE é aqui uma responsabilidade solidária com a do condutor na relação que estes responsáveis têm para com o lesado – também dita responsabilidade da relação externa.

15.3. No caso dos autos encontra-se ultrapassada a dúvida de saber quem é o detentor do veículo e se o utilizava no seu próprio proveito – não existem dados no processo que permitam identificar outro detentor que não a Ré, EE, Lda; a questão foi tratada nos autos e não vem suscitada por nenhum dos recorrentes na revista.

Esta posição de identificar no proprietário o detentor do veículo é, aliás, muito seguida na jurisprudência[29].

No contexto dos autos – e com os factos provados que aqui se tem de utilizar – em que o acidente teve uma causa naturalística[30] – rebentamento de pneu – associada a velocidade excessiva – podem estar reunidas as condições para que se cumule uma responsabilidade objectiva – pelo risco – com a responsabilidade por facto ilícito.

A base fundante desta responsabilidade pelo risco prende-se com o aproveitamento das vantagens proporcionadas pela coisa – quem tem os benefícios, deve suportar o risco próprio da utilização do bem. O responsável é assim aquele a quem incumbe providenciar para o bom funcionamento do bem, sem causar danos a terceiros: pessoa que deve controlar o seu funcionamento, in casu, a EE.

15.4. A responsabilidade pelo acidente – objectiva e subjectivamente - será solidária, quer se entenda ser aqui aplicável o regime do art.º 497.º, n.º 2, quer o do 507.º, n.º 2, do Código Civil – e opera nas relações dos responsáveis civis perante o lesado, in casu a Autora[31].

Na relação interna – entre a EE, Lda. e o condutor, aqui representado pelos herdeiros – o problema da responsabilidade poderá ser visto de modo diferente, admitindo-se, em tese, soluções do tipo i) a responsabilidade fundada em facto ilícito afasta a responsabilidade objectiva da EE; ii) determinação da contribuição de cada causa para o dano e repartição proporcional da responsabilidade entre os devedores, sem que este tribunal tenha de tomar posição sobre essa problemática, já que a mesma não é objecto do recurso, não é de conhecimento oficioso, nem é objecto da acção, afastando-se, liminarmente, qualquer argumento no sentido de existir omissão de pronúncia.

Outras questões da revista da EE, Lda. Remissão

16. Na revista a R., EE, Lda, também pretende que se analise em que medida a não utilização do cinto de segurança (pela A.) pode ser um factor a tomar em consideração no âmbito de aplicação do art.º 570.º do CC – contribuição do lesado para a gravidade dos danos.

Este mesmo recorrente pretende ainda que se sindique o valor da indemnização arbitrada pelo dano não patrimonial e pelo dano patrimonial.

Estas questões são também objecto da revista por força do recurso da A. e serão, por isso, apreciadas quando se analisar esse recurso.

Revista da EE, Lda. e danos a liquidar posteriormente

17. A Ré EE Lda. também colocou como questão da revista saber se o tribunal decidiu bem ao arbitrar uma indemnização de 400.000,00 euros em favor da autora para fazer face a despesas em que esta incorrerá ao contratar 3ª pessoa para a ajudar, dadas as limitações pessoais com que ficou no seu dia-a-dia.

Para contestar a condenação invoca que o montante do dano não pode ainda ser liquidado porque não está concretizado – é certo e previsível – e deve ser suscitado em incidente de liquidação.

17.1. Sobre o ponto o Tribunal da Relação, ao tratar do mesmo problema na sequência da questão suscitada na apelação pelo R., Fundo de Garantia Automóvel, disse:
“Relativamente a este concreto dano escreveu-se na sentença recorrida que «[a] sinistrada alegou – matéria não provada – que a referida assistência iria implicar a disponibilidade de três pessoas para assegurarem as tarefas que se encontra impossibilitada de realizar.
 Quem tem garantido tais tarefas tem sido, desde o acidente, o seu progenitor, mas, como é evidente, não é exigível nem expectável que a situação se mantenha, tanto mais que, a partir de determinada altura, o avanço da idade irá impedi-lo de continuar a desempenhar uma função tão esgotante e difícil.
 O critério a que temos de atender, para este efeito, é o salário que irá, presumivelmente, auferir um profissional (prestador dos serviços de assistência) durante um período de quase 60 (sessenta) anos, atendendo à idade da sinistrada e à esperança média de vida que actualmente se conhece.
O valor peticionado, a este propósito, ascende a 400.000,00 €, montante que poderá, até, pecar por defeito, uma vez que se atendermos a um salário médio mensal o valor será significativamente superior.
No entanto, atendendo aos demais valores que são atribuídos e à circunstância de, durante mais algum tempo, a autora, presumivelmente, não ter qualquer dispêndio a este título, dada a assistência prestada pelo seu progenitor, julga-se apropriado para ressarcir este dano a verba que foi indicada no articulado inicial».
Os apelantes, mormente o Fundo de Garantia Automóvel, discordam da linha de raciocínio seguida no ato decisório sob censura, argumentando fundamentalmente que, por um lado, a despesa em causa ainda não existe (dado que a assistência vem sendo prestada pelo progenitor da autora) e, por outro, também se desconhece o custo da mesma.
Nessa decorrência advoga que se está em presença de um dano certo e previsível mas que ainda não se concretizou, pelo que não pode ainda ser liquidado.
Apelando ao quadro factual apurado dele emerge que a autora necessita, de forma permanente e vitalícia, do auxílio de terceira pessoa (factos nºs 27 e 29), sendo que quem lhe vem prestando esse auxílio, desde a altura do acidente, é o seu progenitor (cfr. facto provado nº 41).
Ora, contrariamente ao entendimento preconizado pelo apelante, a jurisprudência tem reconhecido assistir ao lesado direito a verba indemnizatória para compensar a sua necessidade do apoio de terceiro, mesmo quando sejam os familiares a prestar esse apoio, podendo, assim, dispor dessa verba para pagar a assistência prestada.
De igual modo, entende-se que não há necessidade de relegar para posterior incidente de liquidação a fixação do respectivo quantum indemnizatur, dado que a circunstância de a autora estar impossibilitada de autonomamente fazer a sua vida, ao ponto de carecer do auxílio de terceira pessoa para todas as tarefas quotidianas (designadamente actos tão vitais como cuidar da sua higiene), constitui um dano – que alguns consideram assumir natureza não patrimonial - cuja compensação deve ser atribuída, mais uma vez, com base em critérios de equidade, não se justificando, nessa medida, o recurso ao mecanismo estabelecido no art.º 358º.”

Os argumentos apresentados pelo Tribunal da Relação para indeferir a pretensão do FGA são de aplicação à questão suscitada pela EE, Lda.

Não se identificam ilegalidades na decisão judicial, que imponham uma decisão diferente, pelo que se indefere a pretensão da recorrente.

Recurso do FGA - Questões coincidentes do recurso da EE

18. O recurso do FGA centra-se na necessidade de determinar se os responsáveis civis, herdeiros do condutor, devem ser condenados.

O problema levantado pelo FGA apenas surgiu na sequência do julgamento do Tribunal da Relação que, absolveu os RR, herdeiros representantes da herança aberta por óbito do condutor, veio a retirar ao FGA a possibilidade de exercer o direito de reaver o que venha a pagar em substituição daquele que tivesse obrigação de efectuar seguro e não o tivesse feito (chame-se lhe regresso, sub-rogação ou apenas direito a reaver o que pagou em substituição). O FGA tem, assim, uma preocupação legítima, mas a mesma não carece de ser analisada por este STJ para além do já indicado nos pontos anteriores – é que ao se decidir que, quer os herdeiros representantes da herança aberta por óbito do condutor, quer a EE, Lda., são responsáveis pelos danos sofridos pela A. – lesada –, estão reunidas as condições de que o FGA carece para exercer o seu direito, ficando acautelada a sua posição[32].

Recurso da Autora - Questões coincidentes com o recurso da Ré, EE, Lda.

19. A primeira questão suscitada pela Autora prende-se com a concorrência do seu comportamento, por não usar cinto de segurança, para a dimensão dos danos que sofreu. A Autora entende que, mesmo que usasse o cinto, os danos ter-se-iam produzido, nos termos em que ocorreram, ou até poderiam ser maiores (morte da A.). Diz, em sua defesa, que “não existe nexo causal entre a não utilização do cinto de segurança pela recorrente e a produção das lesões de que padece, não tendo sido produzida qualquer prova nos autos que permita essa constatação causal”.

19.1. A falta de utilização do cinto e os efeitos daí decorrentes apenas foram ponderados pelo Tribunal da Relação, na sequência dos recursos aí apresentados.

Sobre o ponto, disse o Tribunal recorrido:
“Tais lesões levam-nos a questionar, como o fazem os recorrentes, se a autora seguisse no mesmo veículo mas com o cinto de segurança colocado, se teria sofrido as mesmas lesões naquele acidente.
É certo que não resulta expressamente da matéria de facto que a falta de uso de cinto de segurança por banda da demandante tenha contribuído para os danos verificados, sendo que a prova directa desse facto sempre seria muito difícil, porquanto, na prática, não é possível determinar quais as concretas lesões que ela teria (ou não) sofrido caso tivesse colocado esse cinto, já que as lesões sofridas por cada um dos ocupantes de um veiculo interveniente em acidente de viação (que, frequentemente, apresentam gravidade substancialmente diferente) são o produto de múltiplos factores, tais como a forma e o local como o veículo embateu ou foi embatido, o posicionamento de cada um dos ocupantes dentro do veículo, e até a concreta posição em que se encontravam no momento do embate ou os movimentos que efectuaram como reacção e, na maioria dos casos, não é possível determinar quais as concretas razões que determinam que, em consequência do mesmo embate, um dos ocupantes sofra lesões muito graves ou mesmo a morte, ao passo que outro sai dele ileso, como, aliás, se verificou no ajuizado acidente de trânsito.
Enfim, há toda uma variedade de factores que nem sequer são apuráveis e que impediriam sempre a obtenção de uma resposta com um grau de certeza absoluta que permitisse afirmar que a falta de cinto de segurança foi causa adequada dos danos sofridos, ou de parte deles.
Essa falta de prova, baseada em elementos probatórios convencionais, não nos pode impedir, no entanto, de discorrer em termos de normalidade e de razoabilidade, ponderando, à luz dos factos apurados, o que seria normal e razoável acontecer, ou seja, retirando deles a devida ilação, em termos de presunção judicial.”

E na sequência do raciocínio apresentado, o Tribunal acabou por fazer uso de uma presunção judicial – retirando ilações de factos conhecidos, para deles extrair factos desconhecidos: “Perante tal constatação – firmada em estudos técnico-empíricos – não será, pois, de estranhar que a jurisprudência pátria venha considerando que a falta do uso de cinto de segurança se não é causa adequada para os danos sofridos – uma vez que essa causa é o acidente, provocado pelo condutor da viatura - é motivo para contribuir para o agravamento dos danos sofridos, os quais, em caso de uso daquele dispositivo, seriam, necessariamente minimizados.”; “concluímos do que fica exposto, por recurso a uma presunção judicial[33] (estribada na materialidade supra considerada), que a falta de uso do cinto de segurança por parte da autora determinou um agravamento dos danos por ela sofridos, que deveria ter sido considerada pelo tribunal recorrido, nos termos consagrados no art.º 570.º do Cód. Civil, o que conduzirá a que a indemnização a que tenha direito terá de ser reduzida na medida dessa agravação.”)

19.2. A A. não aceita esta posição.

Vejamos se lhe pode ser atribuída razão, nomeadamente, considerando a prova produzida, e os factos que dela resultaram (ou não) demonstrados nos autos.

Sobre o uso do cinto ficou assente na matéria de facto provada:

10 – A autora não utilizava o cinto de segurança quando se fazia transportar no referido veículo, motivo que conduziu a que a mesma fosse projectada para o exterior do veículo na sequência do sinistro, ficando a cerca de 10 metros da viatura.

Sobre o uso do cinto ficou assente na matéria de facto não provada:
i) A autora levava o respectivo cinto de segurança;
ii) As lesões que a autora sofreu não teriam ocorrido caso a mesma viajasse com o cinto de segurança colocado.

Provado que a A. não levava cinto de segurança, analisemos a situação em termos de saber se, caso o usasse, os danos sofridos teriam sido menores.

Sobre o ponto importa chamar a atenção para um facto não demonstrado:  o de que a falta de cinto foi determinante para a dimensão dos danos.

A falta de prova deste elemento – que constitui um (eventual) limite ao valor indemnizatório devido, porque impeditivo do direito que a A. invoca (art.º 483.º CC), deve ser invocado e provado por quem pretende dele aproveitar-se, o que significa que o ónus da sua prova incumbiria aos RR, responsáveis pelos danos. Não se tendo demonstrado o facto impedimento do direito da A., o efeito desfavorável da falta de prova será suportado por aquele que tinha o dever de o provar – funcionando aqui o regime do ónus da prova como regra jurídica que nos diz como deve ser decidido – art.º 342.º, n.º2 do CC.

19.3. Também importa dizer que, porque se tratou de facto não provado, não pode o Tribunal da Relação, alterá-lo por via de presunção judicial. É este o entendimento que este STJ tem dado à possibilidade (negando-a) de utilização de presunções judiciais para afirmar factos contrários aos não provados[34].

No caso dos autos, o tribunal recorrido presumiu que a falta de utilização de cinto (provado), porque violador do dever de circular em automóvel com o mesmo colocado, foi uma decisão da A. e contribuiu para os danos por esta sofridos. Esta decisão é oposta à prova produzida – não logrou demonstrar-se a relevância, nos resultados desastrosos do acidente, da falta do uso de cinto. Não se pode, por isso, aceitar a decisão, que retira presunção judicial contra facto não provado.

Procede, assim, quanto a esta questão o recurso da Autora.

19.4. A Ré, EE, Lda., também aludiu a esta problemática, mas não se identificam no recurso questões que não se encontrem já tratadas, pelo que nada mais há a acrescentar.

Improcede o argumento da recorrente, por se entender que assiste razão à Autora.

Obras de adaptação da casa – recurso da A.

20. A segunda questão suscitada pela A. prende-se com a absolvição dos RR. em relação ao pedido relativo a obras de adaptação da casa onde reside.

Na sua PI a Autora havia formulado o pedido de condenação dos RR a pagarem-lhe: “e) A título de obras de adaptação da casa onde reside a autora, o valor de 24.787,30 € (vinte e quatro mil setecentos e oitenta e sete euros e trinta cêntimos)”.

Sobre este pedido, na sentença veio a dizer-se: “No campo dos prejuízos patrimoniais, é peticionada uma verba a título de obras de adaptação da casa…” (…) a mesma não é devida uma vez que o dispêndio do correspondente montante foi efectuado pelo progenitor da sinistrada, não se traduzindo, assim, num prejuízo que tenha atingido a esfera jurídica da daquela”.

Na apelação a A. já havia manifestado a sua discordância.

20.1. O Tribunal da Relação entendeu que não deviam proceder os argumentos da A. Justificou a decisão assim:
“No concernente ao pedido identificado em i) a autora alegou na petição inicial (cfr. art.º 105º) ter sido ela a realizar as obras de adaptação da residência (ainda que com a ajuda de familiares) e que nelas despendeu a verba de €24.787,30.
No entanto, tal proposição factual não logrou demonstração, resultando antes provado (cfr. facto nº 35) que o custo dessas obras (acessos à habitação, piso adaptado a cadeira de rodas, alteração da largura das portas, etc.) - que implicaram um dispêndio da importância total de €24.787,30 -, foi efetivamente suportado pelo progenitor da autora (afirmação de facto que não foi alvo de impugnação em sede recursória).
Assim sendo - independentemente de se entrar na análise da questão de saber se a realização das obras de adaptação por banda do pai da autora é (como nos parece), ou não, uma despesa passível de ser subsumida à previsão normativa do nº 2 do art. 495º do Cód. Civil[35] (no qual se consagra uma excepção à regra de que só o lesado goza do direito de exigir a indemnização) - a variação patrimonial negativa decorrente do pagamento das mesmas registou-se directamente na esfera jurídica do seu progenitor.
Desse modo, não tendo a demandante suportado tal despesa, carece, à luz do disposto nos arts. 562º, 563º e 564º do Cód. Civil, de título (entendida a expressão no seu sentido civilístico, isto é, enquanto fundamento ou causa da titularidade de determinado direito) que legitime o aludido pedido condenatório.
Improcedem, assim, as conclusões 10ª a 15ª do seu recurso.”

20.2. Porque as duas instâncias já se pronunciaram sobre o pedido indicado, que fora autonomizado na PI e manteve essa autonomização em ambas as decisões judiciais; porque as decisões judiciais vão no mesmo sentido – ilegitimidade da A. para requerer a reparação das despesas suportadas pelo seu pai –, assentam na mesma fundamentação e não há voto de vencido, ocorre aqui uma situação de dupla-conforme, impeditiva de este tribunal poder conhecer da questão (além de haver aqui um problema de ilegitimidade da A. para pedir o valor de despesas que não foram por si suportadas).

Ajudas técnicas, médicas e medicamentosas – recurso da A.

21. A terceira questão suscitada pela A. prende-se com a decisão relativa aos danos relativos a ajudas técnicas, médicas e medicamentosas.

21.1. Na sua PI a Autora havia formulado o pedido de condenação dos RR a pagarem-lhe: “h) Montante, a liquidar em execução de sentença, referente a ajudas técnicas de que a autora carece; i) Qualquer tratamento, intervenção cirúrgica, internamento ou medicamentos que a autora venha a necessitar por ordem médica, a liquidar posteriormente”.

21.2. Sobre este pedido, na sentença veio a dizer-se:
“No campo dos prejuízos patrimoniais, é peticionada uma verba (…) bem com um valor referente a substituição de material/equipamento destinado a ajudas técnicas, e bem assim uma verba (residual) referente a despesas médico-medicamentosas” (…) No que concerne às (duas outras) verbas indicadas, não se provou a factualidade que as sustente, pelo que (também) não são devidas” (p. 43 da sentença) (…)
(p. 44 da sentença) “Resta-nos, em relação ao pedido formulado pela A., apreciar as pretensões que dizem respeito a danos futuros, sendo que a primeira diz respeito a (…) e a segunda a despesas decorrentes de intervenções, internamentos ou medicação de que a mesma venha a carecer“
(p. 45 da sentença) “Por último, o pedido (ilíquido) atinente a despesas (futuras) decorrentes de tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos e medicação é de atender, considerando a factualidade provada e o disposto no já citado art.º 564.º, n.º2 do CC”
(p. 46-7 da sentença) “b) Condenar os RR….a pagarem à Autora (…) a quantia que se vier a liquidar referente a intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos e medicação que a mesma venha a necessitar, tudo por indicação médica, em resultado das lesões/sequelas decorrentes do acidente em discussão nos autos”.

21.3. Na apelação a A. já havia manifestado a sua discordância, voltando agora a suscitar a questão, nos seguintes termos:
“24º. A recorrente apelou recurso pela condenação dos recorridos na prestação de ajudas técnicas, médicas e medicamentosas necessárias devido à sua condição físico-psíquica, resultante das lesões causadas pelo acidente de viação.
25.º O douto Acórdão recorrido julgou improcedente a apelação da recorrente, fundamentando que a mesma “não lançou mão do incidente de liquidação tendente a quantificar os referidos danos que, em consonância com o substrato factual apurado, assumem natureza de danos futuros previsíveis mas ainda não determináveis” – pág. 115 do douto Acórdão-.
26.º O art.º 358.º, n.º 2 do CPC refere que o incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do art.º 609.º, n.º2 do CPC, portanto, em nada obsta a que seja proferida decisão sobre o pedido de condenação genérico formulado pela recorrente.                         
27.º A recorrente tem o direito a deduzir o incidente de liquidação a posteriori, quando se encontrem reunidos os elementos necessários e precisos para quantificar o pedido formulado.
28.º O Tribunal ad quem deveria ter revogado a douta sentença recorrida, neste concreto ponto decisivo, e proferir decisão condenatória dos recorridos na prestação deste pedido genérico, a liquidar posteriormente.”

 

21.4. O Tribunal da Relação disse sobre isto:
“No articulado com que deu início à presente demanda a autora não aduziu qualquer pedido líquido quanto aos danos que identificou nos arts. 104.º[36] e 106.º[37], formulando antes um pedido genérico nos moldes constantes das als. h) e i) da conclusão dessa peça processual.
É certo ter ficado provado que a autora “encontra-se, a título permanente, dependente de ajudas medicamentosas, neste caso medicação habitual e futuramente prescrita por Ortopedia, Neurologia/Neurocirurgia, Psiquiatria e Medicina Física e Reabilitação” (ponto nº 32) e que “necessita, permanentemente, de recurso a ajudas técnicas para prevenir, compensar ou neutralizar o dano pessoal (do ponto de vista anatómico, funcional e situacional) com vista à obtenção da maior autonomia e independência possível nas actividades da vida diária, neste caso almofada anti-escaras, colchão anti-escaras, cadeira de rodas eléctrica com comando de acompanhante, talas de posicionamento dos membros inferior e superior direito, banco para duche, poltrona e estrado articulado na sua cama actual” (ponto nº 34).
Certo é também que, no decurso do processo, a demandante não lançou mão do incidente de liquidação tendente a quantificar os referidos danos que, em consonância com o substrato factual apurado, assumem natureza de danos futuros previsíveis mas ainda não determináveis.
Nessas circunstâncias, em conformidade com o disposto no nº 2 do art.º 564º do Cód. Civil, impunha-se uma condenação genérica como a que se consta da alínea b) do dispositivo da sentença, que, pela sua amplitude, comporta inequivocamente o reclamado ressarcimento de despesas com ajudas técnicas e despesas médico-medicamentosas.
Consequentemente, improcedem as demais conclusões recursivas.”

21.5. A decisão do Tribunal da Relação, impugnada pela A., modificou a decisão da 1ª instância sobre os dois pedidos da A., indicados na PI sob as alíneas h) e i).

A modificação é relevante apenas no que concerne à alínea h), pois o pedido formulado sob esta alínea havia sido desatendido na sentença, passando agora a dar-se por acolhido, mas com uma reinterpretação: é um pedido de condenação genérica, já que, no momento em que é formulado, não existem elementos suficientes para determinar o valor indemnizatório devido, que assim se relegará para determinação em momento posterior.

Do exposto anteriormente pode concluir-se que, na sentença, este pedido não havia sido atendido, e agora (no acórdão da Relação) o mesmo foi deferido.

Não se justifica, assim, quanto a esta questão, o recurso interposto, já que a decisão judicial do Tribunal da Relação é favorável à A. e os recursos destinam-se a impugnar decisões desfavoráveis, ou que não atendem ao pedido formulado.

Não sendo este o caso, não cabe recurso deste segmento decisório, não se tomando conhecimento da questão.

21.6. Mas isto dito não significa que o Acórdão Recorrido não contenha um lapso que não deva ser reparado.

É que ao inverter a decisão da 1ª instância sobre o pedido relativo às ajudas técnicas, médicas e medicamentosas necessárias, considerando-o no âmbito de danos futuros, não afirmou expressamente que revogava a decisão da 1ª instância sobre o referido pedido. Disse, ao invés, que improcedia o pedido da A.

Na verdade, não é isso que se conclui da análise efectuada: o Tribunal da Relação deferiu o pedido de indemnização quanto à alínea h), mas entendeu que o mesmo não envolve já a determinação do montante indemnizatório, que se apurará mais tarde.

Por isso, se impunha que tivesse decidido favoravelmente em relação ao pedido da A., condenando os RR. no pagamento do valor que se vier a apurar relativo a ajudas técnicas, médicas e medicamentosas necessárias, tal como formulado na alínea h) dos pedidos indicados na PI.

Apenas se justificava a decisão da Relação de julgar improcedente a apelação da A., na parte relativa ao pedido formulado sob a alínea i) dos pedidos registados na PI. (Qualquer tratamento, intervenção cirúrgica, internamento ou medicamentos que a autora venha a necessitar por ordem médica, a liquidar posteriormente).

Não obstante os pedidos efectuados pela A. na PI sob as referidas alíneas h) e i) serem ambos relativos à mesma realidade – danos futuros passíveis de serem liquidados posteriormente – não tendo esclarecido que os considerava um único pedido, que o mesmo estava atendido já na sentença, o Tribunal criou uma dúvida à A., que se pode admitir razoável.

Importa, por isso, deixar claro que a decisão relativa aos pedidos h) e i) foi no sentido de ambos, com o tratamento unitário que se lhes impõe, terem sido deferidos, podendo a A. lançar mão da liquidação dos pedidos genéricos para fazer valer a condenação dos RR. no seu pagamento, nos termos em que a lei o admite.

Procede a argumentação na A., na parte em que identificou a falta de coerência da decisão recorrida, a impor esclarecimento.

Valor do dano não patrimonial – recurso da A. e da EE

22. A quarta questão suscitada pela A. prende-se a decisão relativa aos danos não patrimoniais.

22.1. Sobre o assunto disse a Relação o seguinte:
“No concernente à sua quantificação, o n.º 3 do art.º 496.º do Cód. Civil determina que o montante da respectiva indemnização deve ser fixado equitativamente[38], tendo em atenção as circunstâncias referidas no art.º 494.º do mesmo Corpo de Leis, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, não devendo esquecer-se ainda, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, sendo que, neste particular, a jurisprudência, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, rectius compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista.
A este propósito, ANTUNES VARELA[39] desenvolve algumas reflexões que é útil recordar: “o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”.
Destarte embora a determinação dos danos não patrimoniais indemnizáveis dependa do prudente arbítrio do juiz, deve este referir sempre com a necessária precisão o objecto do dano para evitar que a sua liquidação se converta num ato puramente arbitrário do tribunal.
Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa. A equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias) em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende, tal como nota DARIO MARTINS DE ALMEIDA[40], que “a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo”.
Ora os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis; não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da sua utilização. Como salienta CARLOS MOTA PINTO[41], não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal.
Resulta do exposto que o juiz, para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que determina que o julgamento seja feito de harmonia com a equidade, deverá, pois, atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu.
Assim se compreende que a actividade do juiz no domínio do julgamento à luz da equidade, não obstante se veja enformada por uma importante componente subjectiva não se reconduza ao puro arbítrio, mas claro que o julgador ao atribuir esta compensação não está subordinado a critérios normativos fixados na lei. O que aqui tem força são razões de conveniência, de oportunidade, de justiça concreta em que a equidade se funda.
De qualquer modo, haverá que sublinhar que, neste domínio, se tem considerado que os componentes mais importantes do dano não patrimonial são, primordialmente, os seguintes: o dano estético - que simboliza o prejuízo anatomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o prejuízo de afirmação social - dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, afectiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da saúde geral e da longevidade - em que avultam o dano da dor e o défice de bem-estar, e que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem-estar da vítima e o corte na expectativa de vida; o pretium juventutis - que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida; o pretium doloris - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária; o prejuízo sexual, consistente nas mutilações, impotência, resultantes de traumatismos nos órgãos sexuais; o prejuízo da autossuficiência, caraterizado pela necessidade de assistência de terceira pessoa para os actos correntes da vida diária, decorrentes da impossibilidade de caminhar, de se vestir, de se alimentar.
No caso vertente, na formulação do juízo de equidade para a fixação do montante compensatório, haverá que atentar ao quadro factual que logrou demonstração (pontos de facto nºs 18 a 30, 36 a 55), com especial ênfase para a seguinte materialidade:
- a autora ficou portadora de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica (na parte em que se repercute na esfera não patrimonial) fixável em 91 pontos, implicando que necessite, permanentemente, do auxílio de terceira pessoa para a auxiliar nas actividades da vida diária;
- relativamente às dores resultantes das lesões/sequelas e tratamentos efectuados (quantum doloris) foi fixado no grau seis, numa escala de sete graus de gravidade crescente;
- o dano estético permanente foi fixado no grau seis, numa escala de sete graus de gravidade crescente;
- a repercussão permanente na actividade sexual e nas actividades desportivas e de lazer, em ambos os casos fixados no grau máximo que a escala actualmente em vigor comporta (sete pontos);
- como consequência do acidente, nunca mais voltou a estudar;
- não tem capacidade cognitiva suficiente para frequentar uma escola com o programa normal de qualquer estudante, atentas as lesões/sequelas que apresenta;
- pretendia fazer um curso na área de hotelaria e seguir a carreira de modelo, sendo que o facto de não poder seguir essa carreira, causa-lhe um grande desgosto;
- manifestava o propósito de casar e ter filhos;
- sofreu o afastamento de amigos, atentas as lesões/sequelas que apresenta;
- era uma pessoa sem qualquer limitação de ordem física, bem-disposta e com autoestima elevada;
- gostava de viajar, de sair, de se divertir e de conviver com familiares e amigos;
- deixou de frequentar a praia e poder efetuar caminhadas, atividade que gostava muito de realizar.
O tribunal a quo, apelando aos factores enunciados no citado art.º 494º, e tendo por base a descrita factualidade, decidiu, como se referiu, fixar em € 500.000,00 a compensação devida à autora por esses danos de natureza não patrimonial.

 Num bosquejo, ainda que breve, pela jurisprudência[42]-[43] - com o que se procura dar expressão à preocupação da normalização ou padronização quantitativa da compensação devida por esta espécie dano, e, por essa via, aos princípios da igualdade e da unidade do direito e ao valor eminente da previsibilidade da decisão judicial – verifica-se que em situações análogas à dos presentes autos (mormente no que tange ao coeficiente de desvalorização e quantum doloris) têm sido fixados valores indemnizatórios que se situam entre €250.000,00 e €400.000,00.

Tais considerações aliadas ao quadro factual conhecido, globalmente considerado, mas com particular relevo para o sofrimento experimentado pela demandante quer aquando da produção da lesão, quer posteriormente, designadamente com os numerosos internamentos hospitalares e tratamentos médicos a que foi submetida (sendo que a este respeito o quantum doloris foi estimado no grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente), o dano estético permanente de que ficou portadora (fixável no grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente) e bem assim o prejuízo de afirmação pessoal (mormente traduzido na repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, sendo fixável no grau 7 numa escala de sete graus de gravidade crescente), e considerando outrossim que em resultado das graves e irreversíveis lesões (designadamente tetraplegia espástica, à esquerda com movimentos globais e pouco selectivos e à direita sem movimentos) de que ficou a padecer, a autora, com apenas 17 anos de idade, viu-se de um momento para o outro e, infelizmente, até ao final dos seus dias, privada quer da possibilidade de realizar os seus sonhos quer da qualidade mínima a que qualquer pessoa, pelo simples facto de o ser, tem pleno direito, levam-nos a considerar como razoável e équo, nos termos do art.º 566.º, n.º 3 do Cód. Civil, o montante de €350.000,00, mais ajustado aos valores que, em casos similares, têm sido fixados na casuística, mormente do Supremo Tribunal de Justiça.”

22.2. Na sentença havia sido escrito:
(p. 39) - “O que faz sentido, em nosso entender, é avaliar de forma separada os danos que assumem claramente uma natureza não patrimonial …” Assim, (…) temos a considerar:
- o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, o qual atinge uma cifra particularmente significativa (91 pontos) e implica que a autora necessite, permanentemente, do auxílio de 3ª pessoas para a auxiliar nas actividades de via diária;
(p. 49) - As dores resultantes das lesões/sequelas e tratamentos efectuados, as quais também atingem um patamar muitíssimo elevado (seis graus, numa escala de sete de graus de gravidade crescente;
- O dano estético permanente, que atinge, também seis graus numa escala de dete graus de gravidade crescente;
-A repercussão permanente da actividade sexual e nas actividades desportivas e de lazer, em ambos os casos fixados no grau máximo que a escala actualmente em vigor comporta (sete pontos);
- O desgosto e demais limitações, descriminados na factualidade provada, que a autora apresenta em virtude das lesões/sequelas sofridas.
Não é demais salientar que se trata de um caso particularmente grave, que justifica uma indemnização que possa ressarcir, na medida do possível, danos gravosos como aqueles que estão patenteados nos autos.
Pelo exposto, e considerando os critérios normativos a que aludimos, em especial da equidade previsto no art.º496.º, n.º4, do CC, julga-se adequado o montante de 500.000,00 euros (quinhentos mil euros) para ressarcir os prejuízos causados na esfera patrimonial da autora.”

22.3. A posição da A., em relação a estes danos, variou, assim, entre a sentença e o acórdão do Tribunal da Relação, tendo este arbitrado um valor menor que naquela.

Ao fixar o novo valor o tribunal recorrido procurou, através de um juízo de equidade, definir um montante que, à luz de decisões judiciais anteriores, com alguma identidade nos pressupostos em questão, pudesse servir de bitola para aferir se o valor da sentença seria o mais correcto.

Nesse seu juízo de equidade o tribunal recorrido encontrou um valor que, na sua opinião, seria mais justo. Fundamentou a sua decisão no recurso à equidade – critério legal que está previsto para a fixação do valor da indemnização nestas situações.

22.4. A A. discorda do valor arbitrado no acórdão, por considerar mais justo o valor fixado na sentença.

Argumenta em sua defesa: “ O Tribunal ad quem ao julgar e decidir como fez no douto Acórdão recorrido violou todo o sentido, inerente à compensação pelos danos não patrimoniais, esvaziando de qualquer fundamento lógico ou moral, constante dos art.º 496º e 566.º do CC, pelo que, deveria ter mantido o valor atribuído em primeira instância, respeitando o pensamento e juízo jurídico-valorativo do Tribunal a quo.; O douto Acórdão de que se recorre procedeu a uma errada apreciação da matéria factual provada e não provada, e de direito, constituindo uma profunda e clamorosa injustiça, violadora dos mais elementares princípios de boa-fé e de justiça.”

22.5. Do referido em todo o ponto 22. conclui-se que a recorrente não indica que o Tribunal se tenha afastado dos critérios de equidade que são utilizados habitualmente pela jurisprudência em casos similares.

Como também resulta demonstrado, o tribunal recorrido socorreu-se da equidade para avaliar o dano não patrimonial da A., por não ser possível uma quantificação objectiva do mesmo. Fê-lo ao abrigo de poder legal – art.º 496.º do CC.

Ora, quando o tribunal de 1ª instância ou a Relação se socorrem da equidade para fixar o valor dos danos a indemnizar, estão a socorrer-se de normas jurídicas que, em rigor, não se traduzem na resolução de uma «questão de direito», sendo que no STJ apenas cabe conhecer de matérias de direito, nomeadamente, verificar se os critérios seguidos na fixação da indemnização são os que se entendem passíveis de ser generalizados e se se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis – neste sentido, cf. Acórdão de 8/6/2017, 2104/05.4TBPVZ.P1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) e ainda Acórdão de 29/6/2017, proc. 976/12.5TBBCL.G1.S1 (Lopes do Rego).

Em face do exposto, não deve este STJ conhecer da justiça equitativa inerente ao valor apurado senão na medida em que envolva critérios normativos, que não vieram colocados em causa.

Improcede o argumento da recorrente.

22.6. A Ré, EE, Lda., também colocou esta questão na revista, mas não identifica quais terão sido os critérios que foram aplicados – no domínio da equidade – e que podem ser escrutinados por este STJ no âmbito dos seus poderes, tal como já sobejamente explicitados.

Das suas alegações apenas se deduz que considera o valor excessivo. Ora, este argumento não procede, pois é ao Tribunal que compete, tendo em conta a prova produzida, apurar o valor indemnizatório que se lhe afigura equitativo – e foi apenas isto que o tribunal fez.

Para que o STJ pudesse sancionar o montante da indemnização apurado com base na equidade teria de vir alegado (e justificado) que não foram, de todo, observados os critérios habituais da jurisprudência indicando-se quais os que no entender do recorrente deviam ser utilizados e porquê.

Improcede o argumento da recorrente.

Valor do dano patrimonial por perda de capacidade de ganho – recurso da A. e da EE, Lda.

23. A quinta questão suscitada pela A. prende-se a decisão relativa aos danos patrimoniais.

23.1. Sobre o assunto disse a Relação o seguinte:
“Como supra se referiu, o tribunal recorrido fixou a este nível um montante indemnizatório de € 551.650,00, divergindo deste valor os recorrentes entendem que tal montante se devia situar em € 300.000,00 ou em €352.581,00.
Analisando.
Como deflui do regime vertido nos arts. 564.º e 566.º, nº 3 do Cód. Civil, o princípio geral a presidir à tarefa de determinação do aludido quantum indemnizatório deve assentar em critérios de equidade, sendo tal noção absolutamente indispensável para que a justiça do caso concreto funcione, assim, portanto, devendo ser rejeitados puros critérios de legalidade estrita.
É certo que a equidade não corresponde a arbitrariedade. Por isso, de há longo tempo, a jurisprudência pátria[44], num esforço de clarificação na matéria, tem procurado definir critérios de apreciação e de cálculo do dano em causa, assentando fundamentalmente nas seguintes ideias-força:
1ª) A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendi­mento que a vítima não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida;
2ª) No cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equi­dade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso nor­mal das coisas, é razoável;
3ª) As tabelas financeiras por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero carác­ter auxi­liar, indicativo, não substituindo de modo algum a pon­dera­ção judi­cial com base na equi­dade;
4ª) Deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que per­mitirá ao seu beneficiá­rio rentabilizá-la em termos finan­ceiros; logo, haverá que consi­derar esses pro­veitos, introdu­zindo um des­conto no valor achado, sob pena de se verificar um enri­que­cimento sem causa do lesado à custa alheia;
5ª) E deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida activa da vítima, a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as neces­si­dades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de traba­lhar por vir­tude da reforma (em Portu­gal, no momento presente, a esperança média de vida das mulheres já ultrapassa os 83 anos, e tem tendência para aumen­tar[45]).
Acolhendo tais directrizes, revertendo ao caso sub judicio, temos ainda que ter em consideração, fundamentalmente, os seguintes factos relativos à autora: a sua idade à data do acidente (17 anos, posto que nasceu a 6 de agosto de 1993) e o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 91 pontos de que ficou afectada em consequência desse evento súbito.
Já se deu nota, que na data do acidente, a demandante não exercia ainda actividade remunerada.
Nestas circunstâncias vêm-se advogando que para efeito de apuramento do quantum indemnizatur há que partir de um vencimento superior ao salário mínimo, de preferência de um valor próximo do salário médio nacional[46]-[47], não se nos afigurando, por isso, desajustado o valor do rendimento mensal considerado pelo juiz a quo na decisão recorrida (€850,00), sendo certo que, nos casos como o presente, em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade.
Como assim, tomando por base um rendimento de €850,00 (x 14), a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida da lesada, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional activa), com uma dedução que razoavelmente se pode estimar em 1/4, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.
Sopesados estes elementos de facto à luz das precedentes considerações[48], entende-se que a indemnização arbitrada pelo tribunal de 1ª instância (ainda que utilizando uma solução não totalmente coincidente) deve ser mantida por se revelar aceitável[49], quer na vertente da justiça do caso, quer na óptica da justiça comparativa, pelo que não há que censurá-lo nem, consequentemente, a decisão que o determinou.”

23.2. Na sentença o valor arbitrado por danos patrimoniais (indemnização pelo “dano patrimonial futuro, na vertente de perda de capacidade de ganho) já havia sido fixado no mesmo valor de 551.650,00 Euros.

A A. não recorreu da decisão judicial que lhe reconheceu este direito, no momento em que ela foi proferida. Pode dizer-se que, tendo-lhe sido favorável, eventualmente não podia dela recorrer (pelo menos a título principal).

Contudo, a decisão da 1ª instância foi, quanto a este ponto, impugnada, quer pelos RR., Fundo de Garantia Automóvel, quer pelos réus BB e CC (na qualidade de herdeiros de DD). Quando assim sucede a lei permite ao vencedor que recorra subordinadamente da decisão que lhe é favorável, prevenindo a possibilidade de, em recurso, a decisão ser alterada.

A A. não utilizou esta prerrogativa, pelo que, neste momento, em princípio, a impugnação pela A. do valor da indemnização arbitrada a favor seu favor, em recurso de revista, deve considerar-se precludida.

23.3. Este motivo seria, por norma, suficiente para que não se tomasse em consideração a questão suscitada no recurso. Contudo, estamos em crer que, no caso dos autos há outros elementos fundamentais que merecem ser discutidos, antes de se tomar uma posição definitiva naquele apontado sentido.

Não pode deixar de se observar que a decisão do Tribunal da Relação, apesar de não ter modificado o valor da indemnização devida à A. a este título, veio indicar que o valor a que se devia ter chegado, se observado o mesmo critério da Relação, era – no quantitativo bruto – inferior ao arbitrado pela 1ª instância.

Para o efeito, a Relação entendeu que devia descontar ao valor indemnizatório apurado uma quantia (1/4) pelo facto de a indemnização ser paga na totalidade antecipadamente em relação a danos patrimoniais futuros, dizendo:
“Como assim, tomando por base um rendimento de €850,00 (x 14), a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida da lesada, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional activa), com uma dedução que razoavelmente se pode estimar em 1/4, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.”

Da análise do recurso da A. deduz-se que é do desconto destes 25% que a A. recorre, num primeiro momento, embora também discorde do critério utilizado na fixação do valor – quando o tribunal atende ao tempo de vida activa e não à esperança média de vida.

23.4. Considerando assim que, pelo menos por agora, deve ser admitida a discussão relativa ao montante da indemnização pelo dano patrimonial futuro relativo à perda de capacidade de ganho, iremos analisar as questões (e com elas, os argumentos) apresentados pela A., com o seguinte limite: o valor apurado pelas instâncias é o resultado do julgamento efectuado com recurso à equidade. Nestes casos, porque o STJ apenas pode conhecer questões de Direito, só nos é permitido averiguar se as instâncias se socorreram dos critérios habituais – utilizados em situações equivalentes para apurar o montante équo da indemnização – por se entender que a equidade não significa arbitrariedade. Para o efeito importaria dizer aqui que o STJ não deve, ele próprio, definir o valor da indemnização equitativa – ainda que deva aferir em que medida os critérios utilizados pelo tribunal recorrido são os critérios usuais para casos idênticos – por razões de tratamento igualitário, matéria jurídica de legalidade estrita.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 12/7/2018, proc. 1842/15.8T8STR.E1.S1 (ROSA TCHING), disponível em www.dgsi.pt:
E porque um tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», tem-se defendido, designadamente nos Acórdãos do STJ, de 05.11.2009 (proc. 381/2009.S1) de 20.05.2010 (proc. 103/2002.L1.S1), de 28.10.2010 (proc. 272/06.7TBMTR.P1.S1), de 07.10.2010 (proc. 457.9TCGMR.G1.S1) e de 25.05.2017 (proc. 868/10.2TBALR.E1.S1), que «tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e, em última análise, o princípio da igualdade».”

Feitas estas considerações, vejamos, então, como decidiram as instâncias.

23.5. Na 1ª instância não se consegue perceber com detalhe o iter seguido para o apuramento do quantum da indemnização encontrado, embora se consiga concluir que aí se utilizou o valor do salário mensal de 850,00 euros[50], que foi multiplicado pelo número de anos que, previsivelmente, a demandante trabalharia no período compreendido entre a entrada no mercado de trabalho (que se estimou seria aos 20 anos) e a reforma por velhice (66 anos) – tudo perfazendo 46 anos e 5 cinco meses –  [(€850,00 x 14 meses[51]) x 46 anos [52] + (€850,00 x5 meses[53]) = € 551.650,00].

Na opção pelo critério temporal – 46 anos e 5 cinco meses – terá sido utilizado o referencial período de vida profissional activa (a lesada tinha 17 anos à data do acidente, não estava inserida no mercado de trabalho, onde devia ingressar pelos 20 anos, mantendo-se até aos 66 anos).

O Tribunal da Relação, porque lhe foi solicitado, pronunciou-se sobre este referencial e disse que considerava mais adequado utilizar o critério da “esperança média de vida”, e não apenas a duração da vida profissional activa.

23.6. Sobre este ponto, estamos em crer que o tribunal recorrido tem razão: a vida do ser humano não se esgota no dia em que se reforma. É preciso acautelar a situação do lesado por todo o seu tempo de vida. Não se sabendo antecipadamente qual será esse tempo, é de aceitar o critério da “esperança média de vida”.

Ao utilizar este critério o tribunal recorrido não violou o sentido da Jurisprudência do acórdão do STJ de 23/11/2009, processo nº 397/03.0GEBNV.S1 (Raúl Borges), ao contrário do que invoca a recorrente A..

Conforme de pode ver no Acórdão do STJ, de 06.12.2017 (processo nº 1509/13.1TVLSB.L1.S1), «neste tipo de situações, a solução seguida pela jurisprudência deste Supremo Tribunal é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando uma expectativa de vida activa não confinada à idade-limite para a reforma».

Nada a apontar, neste sentido, ao acórdão recorrido.

23.7. Analisando com detalhe a decisão do Tribunal Recorrido, podemos, ainda, verificar que o mesmo – tendo adoptado outro critério temporal[54], que alargaria o referencial por mais alguns anos (dos 66 aos 80, sensivelmente) – referiu que o cálculo do apuramento da indemnização sofreria uma alteração de valor significativa. Fê-lo na nota 45, dizendo:
“De acordo com os enunciados factores, considerando que a autora ficou afectada de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 91 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a €10.829,00 [(€850,00 x 14) x 91%], o que permitiria alcançar, ao fim de 66 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente a autora contava 17 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 83 anos de idade), o montante de €717.714,00, apurando-se um valor indemnizatório de cerca de €540.000,00 após se operar o apontado desconto de ¼.”

Do exposto resulta que o valor encontrado pelo Tribunal foi de € 717.714,00.

Mas porque o Tribunal entendeu que o valor de € 717.714,00 seria um valor a receber de uma só vez, para que fosse cumprido o “objectivo” de o valor apurado corresponder “a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida da lesada, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional activa)”, efectuou uma dedução ao montante encontrado - para compensar o efeito de antecipação do pagamento da totalidade - , que determinou fosse de ¼.

É por virtude desta dedução que vem a fixar o valor em € 540.000,00, e dizer, que por via da equidade, não lhe parece que seja necessário modificar o valor definido na 1ª instância - € 551.650,00:
“Sopesados estes elementos de facto à luz das precedentes considerações[55], entende-se que a indemnização arbitrada pelo tribunal de 1ª instância (ainda que utilizando uma solução não totalmente coincidente) deve ser mantida por se revelar aceitável[56], quer na vertente da justiça do caso, quer na óptica da justiça comparativa, pelo que não há que censurá-lo nem, consequentemente, a decisão que o determinou.”

Assim, o Tribunal Recorrido fixou o valor da indemnização devida a este título em € 551.650,00, valor que já tem incluída a dedução de ¼ do montante de € 717.714,00, (e envolve ainda uma ponderação equitativa, como se explicou).

Sabendo que é aquele valor de € 551.650,00 que a recorrente aceitou, processualmente falando[57] – a questão que a A. coloca (dever ou não haver desconto) fica prejudicada: é que, como já se explicou, a A. obteve uma decisão favorável ao pedido de dano patrimonial em análise logo na 1ª instância. Não se manifestou contra a decisão através de recurso subordinado ao recurso das partes que podiam recorrer e que colocaram em dúvida a razoabilidade do valor condenatório. A sua atitude processual determina, neste ponto, que o limite do valor que ela pode discutir agora é o arbitrado pela 1ª instância. Qualquer outro valor está precludido. Não há que analisar a questão suscitada no sentido de saber, se no caso, deveria ter deixado de se efectuar o desconto de ¼, por a sua resolução não poder influir no resultado.

E porque em recurso o tribunal da Relação, por diferentes motivos, veio a confirmar aquele valor como razoável – por razões distintas, que o mesmo tribunal indicou – ficou definitivamente afastada a possibilidade de, neste recurso e a partir da análise da questão por si colocada neste âmbito, vir a A. a ver ser-lhe reconhecido um valor indemnizatório superior.

É assim de confirmar que os RR. devem indemnizar a A. pelo montante de € 551.650,00, a título de satisfação do pedido da A. relativa aos danos patrimoniais futuros relativos à perda da capacidade de ganho/ esforço acrescido.

Esclarece-se que este valor já comporta o desconto de ¼, que incidiu sobre o montante de € 717.714,00 (€ 538.285,50), e foi ajustado pela equidade.

Improcede a questão colocada pela A. a este título.

23.8. A Ré EE, Lda. também colocou esta questão na revista, mas, mais uma vez, não identifica quais terão sido os critérios que foram indevidamente aplicados – no domínio da equidade – e que podem ser escrutinados por este STJ no âmbito dos seus poderes, tal como já supra explicitados.

Valem aqui os argumentos já expostos, pelo que improcede a questão da recorrente.

III. DECISAO

Pelos fundamentos indicados:
I.       É concedida, parcialmente, a revista a Autora:
i) a Autora não contribuiu com a sua conduta para o agravamento dos danos;
ii) Esclarece-se que a condenação dos RR. no pagamento das despesas relativas aos pedidos das alíneas h) e i) da PI é uma condenação única – com o sentido que a sentença já fixara (a quantia que se vier a liquidar referente a intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos e medicação que a mesma venha a necessitar, tudo por indicação médica, em resultado das lesões/sequelas decorrentes do acidente em discussão nos autos);


II.       Não se conhece do objecto da revista da Autora:
i) Quanto ao pedido de obras de adaptação da casa;
ii) Quanto ao pedido de pagamento das despesas relativas aos pedidos das alíneas h) e i) da PI, no que não abrangido pela concessão parcial da revista;

III. É negada, parcialmente, a revista da Autora quanto ao valor dos danos patrimoniais;
i) Esclarece-se que a condenação dos RR. quanto aos danos patrimoniais relativos à perda da capacidade de ganho/esforço acrescido é no montante de 551.650,00 (valor que já sofreu o corte de 1/4 determinado pelo Tribunal da Relação).

IV. É negada a revista da Autora quanto ao valor dos danos não patrimoniais;

V. É concedida a revista da EE, Lda., na parte em que se entende que os RR, herdeiros do condutor, são responsáveis a título de responsabilidade por facto ilícito e culposo.

VI. É negada, parcialmente, a revista da EE, Lda nos seguintes termos:
i) Mantém-se a condenação da Ré, EE, Lda., na qualidade de proprietária do veículo e responsável objectiva pelo risco associados à sua utilização;
ii) A responsabilidade da Ré EE, Lda. é solidária com a dos herdeiros do condutor e com a do FGA, no que toca à relação com a autora (relação externa) e abrange tudo em que os RR. vieram condenados, nomeadamente:
a) O valor dos danos patrimoniais – que é de manter;
b) O valor dos danos não patrimoniais – que é de manter;
c) A condenação dos juros de mora;
d) A condenação no pagamento das despesas do hospital;
e) A condenação no valor de 400.000,00 por ajuda de terceiro;
f) A condenação em valor a liquidar posteriormente, por ajudas técnicas, médicas e medicamentosas – esclarecendo-se que a condenação dos RR, EE Lda. e dos herdeiros do condutor no pagamento das despesas relativas aos pedidos das alíneas h) e i) da PI é uma condenação única – com o sentido que a sentença já fixara: a quantia que se vier a liquidar referente a intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos e medicação que a mesma venha a necessitar, tudo por indicação médica, em resultado das lesões/sequelas decorrentes do acidente em discussão nos autos”

iii) É negada a revista da EE, Lda. quanto ao pedido de condenação em valor a liquidar posteriormente relativo aos danos resultantes da necessidade de auxílio de terceiro.

VII. É concedida a revista do FGA quanto à questão de os herdeiros do condutor serem responsáveis civis (mantém-se a condenação do FGA, solidária, com a Ré EE, Lda. e herdeiros do condutor por todos os danos indicados e juros).

VIII. Mantém-se a condenação solidária dos RR. a pagar ao Centro Hospitalar do ..., E.P.E., da quantia de € 39.079,82 (trinta e nove mil e setenta e nove euros e oitenta e dois cêntimos), inclui todos os RR. demandados na acção – nos termos em que esta condenação havia sido decretada já na 1ª instância.

Custas na proporção do decaimento pelos recorrentes vencidos, sem prejuízo ao apoio judiciário da A..

A taxa de justiça adicional do recurso é reduzida para 50% do valor tabelar, em face da complexidade do processo, nos termos do regime do art.º 6º.º, n.º5 do RCP.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2018

Fátima Gomes

Acácio Neves

Maria João Vaz Tomé

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[1] Identifica-se aqui um lapso – o Acórdão indicado reportar-se ao STJ onde a Sra Conselheira Relatora desenvolveu sempre o seu trabalho (nos tribunais judiciais).
[2] Assim, LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum, p. 298 e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, p. 54.
[3] Na sentença extraiu-se, por via de presunção judicial, um facto desconhecido (facto presumido) a partir de um facto conhecido (facto-base) – art.º 349.º do Código Civil. A situação já ocorreu em outras situações submetidas à apreciação deste STJ – cf. Ac. de 10-03-2016 (Tavares da Paiva), proc. 137/11.0TBALD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz: “A melhor técnica jurídica, é certo, aconselhava que o facto presumido e a sua fundamentação constassem, respectivamente, nos factos provados e na motivação de facto, e não na parte do direito, da sentença, porque, primeiro, tratava-se de um facto e das razões lógicas a ele conducentes, e, segundo, conferia-lhes maior visibilidade para efeitos de sindicância recursiva. Mas, menos certo é que a lei processual não impunha (não impõe) tal técnica, mas apenas que “na fundamentação da sentença (…) o juiz toma ainda em consideração os factos (…), extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência” – artigo 607.º, n.º4 do CPC – segmento que comportava (comporta) o sentido impositivo mínimo de o juiz revelar na fundamentação – fosse nos factos provados, na motivação ou no direito aplicável – a presunção, desfibrando o (s) facto (s) base, o facto presumido e o nexo lógico inferencial entre ambos. Tendo sido satisfeita essa exigência legal, não foi a deslocalização formal, na sentença de 1.ª instância, do tratamento da presunção e do facto presumido dos factos provados para o direito aplicável, que convolou a questão de facto em questão de direito, estando vedado, por consequência, ao tribunal da Relação, após decidir não conhecer da impugnação da matéria de facto, subtrair o facto presumido com as perspectivas argumentativas de não resultar necessariamente dos factos base ou de traduzir um facto constitutivo não oportunamente alegado.” No mesmo sentido, cf. ainda o Ac.do STJ de 29/9/2016, proc. 286/10.2TBLSB.P1.S1 (Tomé Gomes) e o Acórdão de 24/11/2016, proc. 96/14.8TBSPS.C1.S1(Tomé Gomes), disponíveis em www.dgsi.pt.

[4] Cf. Acórdão de 24/11/2016, proc. 96/14.8TBSPS.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

[5] O que não se estranha em absoluto por, com esta técnica, de dar por assentes factos através de presunção, sem os vir a indicar no elenco dos factos provados, não se ter uma enumeração única e sistemática da matéria de facto.
[6] Cf. neste sentido EVARISTO MENDES/FERNANDO SÁ, Anotação aos art.ºs 236.º a 239.º do CC, in Comentário ao Código Civil, UCEditora, 2014, p. 532 e  ss –  podendo discutir-se se são as regras dos negócios jurídicos ou da interpretação da lei as aplicáveis, havendo jurisprudência que admite a aplicação daquelas (p. 546, ponto, VII, último parágrafo) – a sentença ter-se-ia de interpretar com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do seu contexto, tendo em conta não só a parte decisória como toda a sua fundamentação; também na p. 547, anotação X (art.º 238.º) se afirma ser matéria de direito saber se um certo sentido tem ou não o mínimo de correspondência no texto.
[7] Sobre esta temática, veja-se, para maior desenvolvimento, CASTRO MENDES, Do conceito de prova em processo civil, págs. 669 e seguintes e PIRES DE SOUSA, Prova por presunção no Direito Civil, 2012, págs. 57 e seguintes.
[8] In BMJ nº 68, pág. 87.
[9] Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 23.02.2016 (processo nº 74/12.1SRLSB.L1.S1) e de 26.02.92 (processo nº 081804), acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Cfr., neste sentido, acórdãos do STJ de 6.01.87 (BMJ nº 363, pág. 488) e de 7.11.2000 (CJ, acórdãos do STJ, ano VIII, tomo 3º, pág. 104).
[11] Com efeito, escreveu-se na decisão recorrida o seguinte: “do que resulta provado – e é essa a factualidade que devemos ater-nos – dúvidas não podem restar que a causa naturalística do acidente reside no rebentamento de um pneumático que equipava o eixo traseiro da viatura, sendo certo, no entanto, que se ignora se esse rebentamento se deveu ao estado de conservação do mesmo ou devido a uma causa externa à viatura, como seria um objecto no pavimento que tivesse provocado o corte da respectiva tela. Tudo o que possa dizer-se ou afirmar-se a este propósito, salvo melhor entendimento, é pura especulação, uma vez que não existem elementos de ordem científica (pericial) que nos ajudem a esclarecer por que razão ou motivo o referido pneumático se degradou até ao ponto de ocorrer o rebentamento”.
[12] Onde se diz “1 - Os automóveis ligeiros e os reboques de peso bruto não superior a 3500 kg não podem transitar na via pública sem que o piso de todos os seus pneus, incluindo o de reserva, quando obrigatório, apresente em toda a circunferência da zona de rolagem desenhos com uma altura de, pelo menos, 1,6 mm nos relevos principais; e do art.º 11º, n.º1, al.b), 7.º, constituindo contra-ordenação.
[13] Cf. in www.ansr.pt - Rui Manuel da Silva Oliveira, A importância dos pneus na segurança rodoviária, pdf. 
[14] Cfr., inter alia, acórdãos do STJ de 27.10.88 (BMJ nº 469, pág. 257), de 6.11.2001 (CJ, ASTJ, ano X, tomo 3º, pág. 141) e de 29.01.2014 (processo nº 249/04.7TBOBR.C1.S1), acessível em www.dgsi.pt, onde se considerou que “a simples alegação da propriedade do veículo, sem a invocação expressa de quem tem a sua direcção efectiva e interessada, é suficiente para poder conduzir à procedência do pedido de indemnização emergente de acidente de viação contra a proprietária do veículo”.
[15] In Manual dos acidentes de viação, 3ª ed., pág. 317.
[16] Ob. citada, pág. 514.
[17] Ob. citada, pág. 491.
[18] Cfr., por todos, VAZ SERRA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118º, pág. 209, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 4ª ed., pág. 589 e MENEZES LEITÃO, ob. citada, pág. 354, onde elenca como circunstâncias relativas ao funcionamento do veículo, ainda que provocadas por um facto externo, a derrapagem, o rebentamento de pneus, a quebra da direcção ou o incêndio por curto-circuito do motor.
[19] Sem prejuízo da obrigação de reembolso em que igualmente fica constituída por mor do disposto no art.º 54.º do DL n.º 291/2007, de 21.08, em resultado de não ter cumprido a obrigação de segurar estabelecida no n.º 1 do art.º 6.º do mesmo diploma legal.
[20] Ana Prata, Anotação ao art.º 507.º do CC, in Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2017, p. 668 escreve o seguinte: nota 3 – “a primeira parte do n.º2 tem claro sentido no quadro do risco como fundamento da responsabilidade. A segunda parte não tem explicação jurídica, salvo a da obsessiva ideia de que a causalidade é abandonada quando existe culpa, pois esta tudo absorve.”

[21] A cumulação da responsabilidade objectiva e subjectiva também se encontra reconhecida de modo inequívoco no art.º 500.º, n.º3 do CC.

[22] Segundo o artigo 505.º do Código Civil, a responsabilidade a que se refere o artigo 503.º é excluída se o acidente se apresentar como consequência de facto atribuível ao lesado ou a terceiro Entende-se que, se o acidente é imputável ao lesado ou a terceiro, fica quebrado o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, cit., p. 675) “ (p. 16).
[23] Fundamentos para a existência deste regime podem ser encontrados no facto de esta responsabilidade estar relacionada com o princípio segundo o qual existindo uma fonte de riscos, ou de potenciais riscos, quem a criou, ou a mantém em seu proveito próprio, deve suportar as consequências negativas que daí possam advir.

[24] O artigo 503.º do Código Civil consagra um regime de responsabilidade objectiva de quem tenha, em proveito próprio, a direcção efectiva de veículo de circulação terrestre.

[25] Essa responsabilidade é limitada aos riscos próprios do veículo.

São considerados como riscos próprios dos veículos, em circulação, o atropelamento e o embate, e dos imobilizados, o incêndio por curto-circuito, v.g., conforme situações paradigmáticas indicadas pela doutrina – cf. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, e LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. I- Introdução. Da Constituição das Obrigações.
[26] Os responsáveis são os que exerçam um controle de facto, o que inclui, em regra, o proprietário, o usufrutuário, o adquirente sob reserva de propriedade, o locatário, o comodatário, etc. cf. ANTUNES VARELA, op. cit., 8ª ed., p. 669.
[27] O que nos afasta da situações consideradas pela jurisprudência deste STJ quando, em múltiplas decisões, decidiu que a culpa absorve o risco, não colhendo eventuais argumentos no sentido de se estar a contradizer a jurisprudência deste tribunal.
[28] Por facilidade de expressão: é de aplicar o regime da solidariedade.
[29] Na maior parte das situações, não se encontra excluída a possibilidade de o detentor ser o condutor – caso em que este também poderia responder objectivamente.
[30] O rebentamento do pneu é um risco próprio da viatura.
[31] Cf. art.º 499.º CC.
Não parece que o regime da solidariedade previsto nestas normas pressuponha uma identidade da fonte da obrigação. No regime do art.º 500.º admite-se mesmo a falta dessa identidade. O que importará é perceber o objectivo legal por detrás dessa solidariedade – nomeadamente nas relações com o lesado. Para uma síntese desses motivos cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, p. 753, Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2001 (reimp.), p. 168 e Mafalda Miranda Barbosa, Do Nexo de Causalidade ao Nexo de Imputação, Vol. II, Princípia, Cascais, 2013, p. 1275, entre outros.
[32] Não se justificam maiores desenvolvimentos sobre o ponto. Remete-se para o DL. 291/2007 e para o regime do FGA.
[33] Negrito nosso.
[34] cf. a este propósito o Ac. do STJ de 6/4/2017, proc. 374/13.3TBSTS.P1.S1 (Maria da Graça Trigo), disponível em www.dgsi.pt.
[35] Cfr., sobre a questão, VAZ SERRA, O dever de indemnizar e o interesse de terceiros, in BMJ nº 86, págs. 103 e seguintes.
[36] Onde alega que «necessita para toda a vida de ajudas técnicas, consultas médicas, cirurgias, exames, próteses, ortóteses, camas e colchões adaptados à sua condição física, entre outros e tratamentos subsequentes no presente e no futuro da sua duração de vida».
[37] Que tem o seguinte teor: «A autora necessita em permanência durante a sua vida: a) de cadeira de rodas e as canadianas sejam substituídas de 3 em 3 anos; b) de cama articulada com colchão adequado, a ser substituída de 3 em 3 anos; c) de ortóteses de posicionamento dos membros superiores e inferiores direitos; d) de ajudas de medicamentos; e) de assistência médica e de enfermagem nas áreas de medicina geral, neurocirurgia, ortopedia, fisioterapia, psicologia, terapeuta da fala, terapeuta ocupacional e reabilitação cognitiva; f) mesinha de cabeceira e tabuleiro de apoio; g) cadeira de banho».
[38] Sendo que, contrariamente ao que os apelantes preconizam, não haverá, neste domínio, que atender aos critérios enunciados na Portaria nº 377/2008, de 26.05 (com as alterações da Portaria nº 679/2009, de 25.06), dado que, conforme pacificamente se vem entendendo na casuística, os mesmos não são aplicáveis na fixação judicial da indemnização já que não são vinculativos, dada a sua natureza de indicadores da negociação extracontratual das indemnizações.
[39] Ob. citada, pág. 561.
[40] Ob. citada, pág. 103.
[41]  In Teoria Geral do Direito Civil, 2005, pág. 107.

[42] Cfr., v.g., acórdãos do S.T.J. de 2.03.2011 (processo nº 1639/03.8TBBNV.L1-6ª secção) - arbitrou uma compensação de € 400.000,00 a um lesado de 19 anos, com uma incapacidade funcional permanente de 95 pontos, com incapacidade total e permanente para o trabalho, necessitando de assistência permanente de terceira, em que as lesões sofridas, os seus tratamentos e suas sequelas provocaram dores lancinantes; não pode ter relações sexuais, nem prazer sexual, nem procriar; vive em permanente estado de amargura e angústia, tendo ficado com a expectativa de vida encurtada-, de 30.10.2014 (revista n.º 2313/08.4TVLSB.L1.S1 – 2.ª Secção, no qual se fixou idêntico valor), de 8.03.2005 (revista 4486/04-6ª) – fixou uma compensação de €250.000,00 a um lesado com 27 anos de idade que ficou na situação de tetraparésia -, de 29.10.2008 (processo nº 3380/05) – fixou uma compensação de €250.000,00 a um lesado de 17 anos, com um coeficiente de desvalorização de 45 pontos, dano estético de grau 6 e quantum doloris de grau 6, que deixou de poder descer e subir escadas, deixou de poder tomar banho sozinho, perda de relacionamento com o seu grupo de amigos, ansiedade e depressão clínica-, de 25.11.2009 (processo nº 397/03.0GEBNV.S1 – 3ª Secção), fixou uma compensação de €250.000,00 a um menor que ficou paraplégico, com quantum doloris de grau 6, de dano estético de grau 5, necessitando do apoio de terceira pessoa.

[43] Para uma análise da casuística sobre esta temática, vide ANA PINHEIRO LEITE, A equidade na indemnização dos danos não patrimoniais, em especial págs. 65 e seguintes, trabalho acessível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/16261/1/Leite_2015.pdf.
[44] Cfr., inter alia, acórdãos do STJ de 10.02.98 e de 25.06.02, publicados na CJ, Acórdãos do STJ, ano VI, tomo 1º, pág. 66 e ano X, tomo 2º, pág. 128.  
[45] Segundo as Tábuas de Mortalidade relativas ao triénio 2014-2016, a esperança de vida à nascença em Portugal foi estimada em 77,61 anos para os homens e de 83,33 anos para as mulheres.
[46] Cfr., neste sentido, ÁLVARO DIAS, ob. citada, pág. 297 e acórdãos do STJ de 3.06.2003 (processo nº 03A1270), de 18.12.2003 (03A3897), de 25.11.2009 (processo nº 397/03.0GEBNV.S1) e de 9.07.2014 (processo nº 686/05.0TBPNI.L1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[47] De acordo com a informação colhida na base de dados PORDATA, o salário médio nacional no ano de 2011 cifrou-se no valor de € 905,10.
[48] De acordo com os enunciados factores, considerando que a autora ficou afectada de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 91 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a €10.829,00 [(€850,00 x 14) x 91%], o que permitiria alcançar, ao fim de 66 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente a autora contava 17 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 83 anos de idade), o montante de €717.714,00, apurando-se um valor indemnizatório de cerca de €540.000,00 após se operar o apontado desconto de ¼.
[49] A montante aproximado se chega através da solução preconizada pelo Conselheiro SOUSA DINIS, em trabalho publicado na CJ, Acórdãos do STJ, ano V, tomo 2º, págs. 15 e seguintes e bem assim por RITA SOARES, O dano biológico quando da afectação funcional não resulte perda da capacidade de ganho – o princípio da igualdade, in Julgar, nº 33, pág. 126 e seguintes.
[50] O Tribunal recorrido sufragou este valor; a lesada também não o contesta.
[51] Valor anual € 11.900,00.
[52] Valor € 547.400,00.
[53] Valor € 4.250,00.

[54] É que o Tribunal da Relação disse o seguinte: “É certo que a equidade não corresponde a arbitrariedade. Por isso, de há longo tempo, a jurisprudência pátria, num esforço de clarificação na matéria, tem procurado definir critérios de apreciação e de cálculo do dano em causa, assentando fundamentalmente nas seguintes ideias-força:

1ª) A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendi­mento que a vítima não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida;

2ª) No cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equi­dade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso nor­mal das coisas, é razoável;

3ª) As tabelas financeiras por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero carác­ter auxi­liar, indicativo, não substituindo de modo algum a pon­dera­ção judi­cial com base na equi­dade;

4ª) Deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que per­mitirá ao seu beneficiá­rio rentabilizá-la em termos finan­ceiros; logo, haverá que consi­derar esses pro­veitos, introdu­zindo um des­conto no valor achado, sob pena de se verificar um enri­que­cimento sem causa do lesado à custa alheia;

5ª) E deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida activa da vítima, a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as neces­si­dades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de traba­lhar por vir­tude da reforma (em Portu­gal, no momento presente, a esperança média de vida das mulheres já ultrapassa os 83 anos, e tem tendência para aumen­tar[54]).

Acolhendo tais directrizes, revertendo ao caso sub judicio, temos ainda que ter em consideração, fundamentalmente, os seguintes factos relativos à autora: a sua idade à data do acidente (17 anos, posto que nasceu a 6 de agosto de 1993) e o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 91 pontos de que ficou afectada em consequência desse evento súbito.”
[55] De acordo com os enunciados factores, considerando que a autora ficou afectada de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 91 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a €10.829,00 [(€850,00 x 14) x 91%], o que permitiria alcançar, ao fim de 66 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente a autora contava 17 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 83 anos de idade), o montante de €717.714,00, apurando-se um valor indemnizatório de cerca de €540.000,00 após se operar o apontado desconto de ¼.
[56] A montante aproximado se chega através da solução preconizada pelo Conselheiro SOUSA DINIS, em trabalho publicado na CJ, Acórdãos do STJ, ano V, tomo 2º, págs. 15 e seguintes e bem assim por RITA SOARES, O dano biológico quando da afectação funcional não resulte perda da capacidade de ganho – o princípio da igualdade, in Julgar, nº 33, pág. 126 e seguintes.
[57] Preclusão e ponto 51º das conclusões da revista.