Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8/19.2F1PDL.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO PER SALTUM
PATROCÍNIO OFICIOSO
DEFENSOR
SUBSTITUIÇÃO
INTERRUPÇÃO DO PRAZO DE RECURSO
DIREITO AO RECURSO
CONSTITUCIONALIDADE
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM
PROCESSO EQUITATIVO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
VENDEDOR
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA DE PRISÃO
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PENA SUSPENSA
Data do Acordão: 12/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO O RECURSO PROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O problema a resolver será o de saber se, havendo pedido de dispensa pelo defensor e posterior substituição com nomeação de outro defensor oficioso pela OA, o decurso dos prazos para apresentação de atos processuais, no caso para interposição de recurso, são ou não interrompidos, reiniciando-se com a nomeação de novo defensor.
II - A jurisprudência deste STJ tem sido, ao longo do tempo, constante, considerando que os prazos não são interrompidos quando se procede à substituição de defensor oficioso; posição que não tem sido contestada na jurisprudência do TC.
III - O TC não considerou inconstitucional a não interrupção do decurso dos prazos para interposição de recurso durante a pendência do pedido de dispensa do defensor junto da OA. Porém, o facto de não ser considerado inconstitucional, isto é, o facto de o TC entender que não estão violadas normas inconstitucionais, não significa que possa ser a interpretação mais correta. O Tribunal apenas considerou que esta interpretação não é contra a Constituição, sem curar de averiguar se seria (ou não) a melhor solução a dar ao problema.
IV - O TEDH tem sucessivamente condenado o Estado português por violação do art. 6.º, n.ºs 1 e 3, al. c), da CEDH quando, perante uma ausência de apoio judiciário efetivo, o arguido se vê privado de uma “defesa concreta e efetiva”.
V - Num processo como o processo penal, em que assumem especial importância não só as garantias de defesa do arguido, mas também um eficaz acesso ao direito, impõe-se que o arguido não veja limitadas as possibilidades de exercício do direito ao recurso, apenas porque o defensor oficioso foi sendo sucessivamente substituído, sem que nenhum deles assegure a continuidade da defesa, ou sem que, apesar da lei, se mantenha a exercer a sua função nos subsequentes atos até ser nomeado novo defensor.
VI - No caso dos autos, o arguido, entre as sucessivas nomeações, acabou por ficar abandonado à sua sorte sem que qualquer defensor oficioso realizasse o que a lei determinava — assegurar os subsequentes atos do processo até à nomeação de novo defensor (com a consequente responsabilidade disciplinar que possa existir) —, pelo que se entende que não foi assegurada uma efetiva defesa do arguido, que foram reduzidas de maneira significativa as garantias de defesa do arguido, tal como tem entendido o TEDH e, por conseguinte, admite-se o recurso interposto.
VII - Não estando dado como provado a que tipo de venda se destinava, a conclusão de que o arguido “não se dedicava ao retalho” parece constituir um argumento conclusivo sem qualquer arrimo nos factos provados; porém, dos factos provados resulta apenas que a droga se destinava a venda, sem mais, pelo que, não havendo matéria de facto provada que permita retirar aquela conclusão, não poderá ser tida em conta em desfavor do arguido.
VIII - Do texto da decisão recorrida não emerge qualquer dúvida quanto ao destino da droga recebida pelo arguido — dos factos provados resulta apenas que se destinava a venda, sem que se aflore se se tratava (ou não) de venda a retalho, e sem que do texto da decisão recorrida se vislumbre qualquer dúvida quanto ao facto de a droga se destinar a venda.
IX - Tendo ficado provado que o arguido destinava o haxixe à venda, mas não constando da decisão factos provados quanto à venda a retalho, ao consumidor final, tanto mais que o arguido não chegou a ter posse direta sobre parte do produto recebido, poderemos dizer que o argumento apresentado como não se destinando o haxixe a venda a retalho, e daí retirando a consequência de os factos não poderem ser subsumidos ao tipo legal de crime de tráfico de menor gravidade, constitui uma violação do princípio da presunção de inocência? O entendimento plasmado na fundamentação de facto e de direito como o de o arguido não se dedicar à venda a retalho constitui uma violação daquele princípio da presunção de inocência, por o juízo de certeza enunciado quanto a não se destinar a venda a retalho não se apresentar fundado.
X - Será a partir de uma análise global dos factos que se procederá à atribuição de um significado unitário quanto à ilicitude do comportamento, avaliando não só a quantidade como a qualidade do produto vendido, o lucro obtido, o facto de a atividade constituir ou não modo de vida, a utilização do produto da venda para a aquisição de produto para consumo próprio, a duração e intensidade da atividade desenvolvida, o número de consumidores/clientes contactados e o “posicionamento do agente na cadeia de distribuição clandestina”.
XI - Consideramos estar perante um crime de tráfico de menor gravidade porquanto: - não resulta da matéria de facto provada a utilização de meios sofisticados para a aquisição do produto estupefaciente, e muito menos a utilização de quaisquer meios para os atos de venda (uma vez que nem sequer existem factos provados de venda); na verdade, a droga foi adquirida (nem se sabe se gratuitamente ou onerosamente) por um meio simples – a receção de uma encomenda postal, e nada sofisticado; - não resulta da matéria de facto provada o modo como o arguido terá conseguido adquirir a droga, nem se percebe sequer se adquiria deste modo há muito ou pouco tempo; - o produto adquirido, e na parte em que o está provado, tem reduzida qualidade (cerca de 78 gr tinham apenas um grau de pureza de 18,5%), sendo que a este acresceram cerca de 390 gr, o que perfaz um total de haxixe de cerca de 470 gr, o que constitui uma quantidade que permite a criação de diversas doses individuais, mas nem sequer está provado que seria o arguido a transformar o produto em doses individuais e a vendê-lo a retalho; - não resulta da matéria de facto provada qual o lucro que obteria com o produto; - e apesar de se saber que o arguido, ao tempo dos factos, estava desempregado [facto provado a)] , não resulta da matéria de facto provada que o arguido fizesse da venda de produtos estupefaciente o seu modo de vida; - não há prova da duração e da intensidade venda de estupefacientes; - não há prova de a quantos consumidores (finais) vendeu droga, se é que vendeu, pois também não consta da matéria de facto provada; - não se tem prova de qual a sua posição na cadeia de distribuição do produto ilícito.
XII - Para além das exigências relevantes em matéria de prevenção geral atento o crime praticado, mas sabendo que abstratamente não há um tipo legal de crime que à partida impeça a possibilidade de aplicação de uma pena de substituição, e que o regime das penas de substituição não está restrito, legalmente, à prática de específicos crimes, consideramos que, atenta a quantidade de produto estupefaciente adquirido, as exigências de prevenção geral são relevantes, pelo que a aplicação de uma pena de substituição se mostra insuficiente para satisfazer estas exigências.
XIII - Da personalidade do agente revelada nos factos, e da sua conduta posterior, em particular, a sua reação aos factos praticados, não podemos concluir que a simples censura do facto e ameaça da pena o afaste de posteriormente cometer crimes, ou que a aplicação de uma pena de substituição realize de forma adequada as exigências de prevenção especial.
Decisão Texto Integral:


Processo n. º 8/19.2F1PDL. S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1.  No Tribunal Judicial da Comarca…… (Juízo Central Criminal  …………, Juiz 0), por acórdão de …. 2020, o arguido AA foi julgado e condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01 (e alterações posteriores), na pena de prisão de 6 (seis) anos e 10 (dez) meses.

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo no disposto no art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, e concluiu a motivação nos seguintes termos:

«1-O Acórdão recorrido condenou o Recorrente “pela prática do crime de tráfico de estupefacientes (integrador das condutas relativas às duas encomendas, p. e p. pelo arf. 21°, n°.l do DL 15/93, de 22.1, com referência à tabela I-C anexa a esse diploma, na pena de 6 (seis) anos e 10 (dez) de prisão”.

2-O Acórdão nestes autos deu como provada a matéria de facto sob os pontos 1 a 5, a) e não provada a constante do ponto 6, ambas supra transcritas nesta Motivação de recurso, para a qual ora nos remetemos e damos aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

3-O Recorrente foi condenado pela prática de 1 crime de tráfico de estupefacientes enquadrado pelo Acórdão no artº 21º/1 DL15/93 de 22-01, quando devia ter sido antes enquadrado no artº 25º/a) desse DL, dada a diminuição considerável da ilicitude do facto.

4-O ilícito p. no artº 25º DL 15/93 tem lugar sempre que se mostre a ilicitude consideravelmente diminuída, atentos nomeadamente: os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a quantidade ou qualidade das plantas ou substâncias estupefacientes — factos-índice a atender numa valoração global, não isolada, de que a configuração da acção típica carece, sendo que a quantidade não é o único nem o mais relevante factor.

5-Além desses factores, a Jurisprudência dá também especial relevo aos seguintes, que permitirão enquadrar o facto ilícito nesse conceito e no artº 25º DL 15/93: a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”; a dimensão dos lucros obtidos; o grau de adesão a essa actividade como modo e sustento de vida; a afectação ou não de parte dos lucros ao financiamento do seu consumo pessoal de drogas; a duração temporal e a intensidade no prosseguimento da actividade; a posição do agente no circuito da distribuição dos estupefacientes; o número de consumidores contactados; o âmbito geográfico da actividade do agente; o modo de execução da actividade de tráfico, se praticada isoladamente, ou com colaboradores, organização ou meios sofisticados.

6-Considerando os factos dados como provados no Acórdão recorrido, verifica-se: a)-Quanto ao indicador de ilicitude “meios utilizados” pelo arguido na sua actividade, provou‑se ser um “modus operandi” isolado e simples, actuou sozinho, sem qualquer estrutura, hierarquia, organização de meios e sem colaboração, não tendo sido apreendidos quaisquer instrumentos ou artefactos relacionados com o “grande tráfico” de droga como sejam balanças, moinhos, plásticos, estupefacientes e aditivos no quarto ou casa, ou sequer valores tipicamente conectados com tal actividade, nem o arguido possuía ou ostentava qualquer riqueza seja antes dos factos, à data dos factos ou à data da sua prisão preventiva à ordem destes autos.

7- b)- Quanto à qualidade do estupefaciente apreendido nestes autos, trata-se de haxixe, vulgo canábis (resina”), é uma droga considerada “leve” porque o seu efeito pernicioso é considerado inferior ao de outras drogas como a heroína ou a cocaína; sendo que a sua quantidade também não deve ser considerada elevada, tratando-se de gramas e não de kilo(s).

8-c)Quanto ao indicador “modalidade ou circunstâncias da acção”, o arguido era à data consumidor de droga (heroína)/toxicodependente, vivendo numa situação económica precária (sem qualquer actividade laboral estável que permitisse o seu sustento) e dependente economicamente do RSI e de ajudas externas relativamente à sua alimentação, num quarto arrendado em habitação problemática associada ao consumo de estupefacientes e alcoolismo (cfr. provado no Ponto 5,a) da matéria facto dada por provada no Ac.); agiu num curto espaço de tempo (só duas encomendas: de 7 maio e de 6 Junho de 2019- cfr. pontos 1 e 2 da matéria de facto dada por provada no Ac.), sendo que ambas as encomendas foram logo totalmente apreendidas pela PJ, não tendo sequer o estupefaciente chegado à posse e disposição do arguido.

9-d)-Tendo sido apreendidas ambas as encomendas, não houve qualquer consequência da actuação do arguido, nem qualquer venda de estupefacientes, nem contactos para tal, nem preços, nem produto de venda, nem lucros, nem terceiros consumidores/adquirentes, devendo a intensidade da sua actuação ser considerada quando muito mediana, senão mesmo pequena.

10-e)-As então condições pessoais do arguido, quer a sua situação económica bastante precária, vivendo do …….. que por insuficiente carecia de ajudas de alimentação a si prestadas pelo …… constantemente, vivendo num quarto em habitação problemática associada a consumos de estupefacientes e alcoolismo em que o próprio era toxicodependente de drogas duras, são um factor condicionador da falta de preparação do arguido para pautar a sua conduta por valores normais e ditames de direito, por ser uma situação propícia à solicitação para a prática de actividades ilícitas como por ex. a actividade de tráfico de droga.

11-f)- Atendendo ainda às condições pessoais deste arguido, consumidor de drogas duras, conjugado com todos os supra referidos factores e as regras da experiência comum, permitiria quando muito concluir que estamos perante uma situação de pequeno tráfico completamente distinta do médio ou grande tráfico, sendo mais possível deduzir que o estupefaciente apreendido visasse em grande parte senão totalmente o financiamento do consumo do próprio arguido, o qual à data dos factos consumidor (toxicodependente) de droga dura (heroína), a viver em situação de miséria, não tinha manifestamente meios económicos para a adquirir e alimentar o seu próprio vício de consumo.

12-Sopesando em conjunto todos os factores expostos em 4 a 11 destas Conclusões de recurso, sustentados na matéria de facto dada por provada (transcrita supra na Motivação), tudo indica uma situação de gravidade/ilicitude consideravelmente diminuída p. artº25º DL 15/93 de 22.01.

13-Porém, estas circunstâncias factuais não foram devidamente valoradas no Acórdão recorrido, pois se tivessem sido devidamente valoradas teria o Acórdão recorrido enquadrado juridicamente a conduta ilícita do arguido no artº 25º/a) DL 15/93 e já não no artº 21º/1 desse Diploma como, a nosso ver, indevidamente enquadrou.

14-Notámos que no enquadramento jurídico operado pelo Acórdão recorrido, este concluiu sem mais e, a nosso ver, indevidamente, “de que a actividade não é de retalho”. Essa conclusão/dedução não sustentada em qualquer matéria de facto provada sob os pontos 1,2 e 3 do Acórdão (transcrita supra na Motivação), é incongruente o dito em fundamentação da decisão de facto:“(…)o arguido era, efectivamente, o destinatário do haxixe aqui em causa e que, naturalmente, destinava à venda, ainda que não ao retalho porque nem foi aflorado(…)”. E não foi aflorado porque houve logo a apreensão de ambas as encomendas e da totalidade do haxixe.

15-Logo, não pode o Tribunal concluir se seria a retalho ou não, sob pena de não respeitar a matéria de facto dada por provada e que não inclui qualquer acto de venda por inexistente dada a referida e automática apreensão da droga. Não pode o Tribunal presumir e basear-se em algo não apurado, nem sequer dado como provado, para sustentar um enquadramento dos factos no tipo de ilícito mais grave p. no artº 21º/1DL 15/93, em vez de no artº 25º/a) desse DL, afastando com base em tal mera dedução a aplicação desta última norma e enquadramento jurídico mais favorável ao arguido, quando todos os factores por nós supra referidos impõem Decisão inversa.

16- Na fundamentação das Decisões, o Tribunal deve ater-se a factos no sentido de ocorrências materiais, não devendo aí incluir conceitos de direito ou juízos de valor sobre a matéria de facto; logo, a expressão em causa venda “a retalho”, desacompanhada como se está de quaisquer acontecimentos exteriores ou factos apurados, nem devia ter sido mencionada na fundamentação do Acórdão recorrido, pois nem consta sequer da matéria de facto aí dada por provada. Deve, a nosso ver, tal expressão ser excluída da fundamentação do Acórdão recorrido, que ao ter levado em conta no enquadramento jurídico que fez dos factos dados por provados, uma mera dedução/conclusão de que a venda não seria a “retalho” sem qualquer suporte fáctico, incorreu na violação do disposto no artº 32º/2 CRP.

17-Ao ter subsumido os factos que deu por provados no artº 21º/1 DL15/93, em vez de aplicar o artº 25º/a) desse DL, o Acórdão recorrido fez uma errada subsunção jurídica dos factos e incorreu na violação dos arts. 21º/1, 25º/a) DL 15/93) e 32º/2CRP, devendo ser revogado e substituído por outro que condene o arguido por 1 crime de tráfico de menor gravidade nos termos do artº 25º/a) DL 15/93 e já não do artº 21º/1 desse DL, e, por conseguinte, revogado quanto à medida da pena que aplicou, não podendo esta ultrapassar os 5 anos de prisão.

18-Na mera hipótese do Tribunal “ad quem” manter a qualificação jurídica do Tribunal “a quo”, mas sem concedermos sobre toda a matéria supra exposta nestas Conclusões de recurso, sempre se diria, de qualquer modo, que a pena aplicada de 6 anos e 10 meses de prisão mostra-se desajustada à conduta do Arguido, por excessiva/desproporcional, inadequada e desnecessária.

19-Na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal está vinculado aos critérios do artº 71º/1,2 CP, nomeadamente, as circunstâncias da sua actuação ilícita que não façam parte do tipo de ilícito, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, e o seu comportamento posterior aos factos. O Acórdão recorrido, não obstante aludir ao artº 71º CP, não atendeu a estes factores no que respeita ao arguido.

20-O Acórdão recorrido invocou como alegado fundamento para a fixação da pena nessa medida, sobretudo as necessidades de protecção das expectativas de prevenção geral e também de prevenção especial, embora reconhecendo que a conduta do arguido “reveste-se de mediana ilicitude…e, dentro dos actos passíveis de integrarem o crime de tráfico, estamos perante factos que, ainda assim se situam abaixo do meio da moldura (…)”.(sublinhado nosso). Porém, estas circunstâncias não foram devidamente valoradas pelo Acórdão recorrido, impondo-se neste caso uma redução da pena aplicada a este arguido, pois o “mediano” grau de ilicitude tem de se reflectir mais na medida da pena, e a culpa não pode ser considerada elevada.

21-Também são de considerar as circunstâncias em que o arguido praticou os factos num quadro de situação pessoal de toxicodependência (consumidor de heroína) e precária a todos os níveis e por isso propícia à solicitação para a prática de actividades ilícitas (vivendo numa situação económica precária, sem qualquer actividade laboral estável que permitisse o seu sustento e dependente economicamente do ……. e de ajudas externas relativamente à sua própria alimentação, num quarto arrendado em habitação problemática associada ao consumo de estupefacientes e alcoolismo - cfr. provado no Ponto 5,a) da matéria de facto dada por provada no Acórdão); o curto período de tempo de duração da conduta ilícita do arguido; o facto de terem as encomendas sido totalmente apreendidas sem que houvesse qualquer venda de droga, nem “lucro”, nem quaisquer consequências danosas para terceiros consumidores; e as demais circunstâncias que depõem a favor do arguido como o seu comportamento posterior aos factos.

22-Na verdade, como consta do Ponto 5,a) da matéria de facto provada no Acórdão (supra transcrita na Motivação deste recurso): “Em contexto prisional, o arguido tem revelado capacidade de adesão e cumprimento das regras internas. Mantém-se integrado no programa de tratamento com opiáceos de substituição - metadona” - além de receber visitas frequentes do irmão.

23-No caso “sub judice”, estas circunstâncias referidas em 19 a 22 destas Conclusões (e cfr. artº 71º/1,2, a)b)d)e) CP) devem relevar a favor do arguido na determinação da medida da pena, mas o Acórdão assim não entendeu nem deu relevância. Além disso, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa (artº 40º/2 CP), porém o Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito, não fez uma ponderação equitativa dos valores em questão que deviam ter merecido especial atenção na determinação da medida da pena, tendo assim incorrido o Acórdão recorrido na violação do disposto nos arts. 40º/2 e 71º/1,2, a),b),d),e) CP.

24-O arguido tem antecedentes criminais mas não do tipo de ilícito p. artº 21º/1 DL 15/93, mas sim do artº 25º/a) desse DL em que lhe foi aplicada uma pena de prisão de 3 anos e 6 meses por factos já de 2013 (cfr. resulta da matéria de facto dada por provada no ponto 4. do Acórdão, supra transcrita na Motivação), sendo os demais antecedentes criminais respeitantes a tipos de ilícito de natureza diversa destes e já praticados na sua maioria há muito mais de 10 anos.

25- O Acórdão recorrido ainda considerou, indevidamente porém, a mera conclusão/dedução, não sustentada na matéria de facto provada, “de que a actividade não é de retalho”. Ora, com os mesmos argumentos que preconizámos em 14,15 e 16 destas Conclusões de recurso, que aqui damos por reproduzidos, não pode o Tribunal presumir e basear-se em algo não apurado, nem sequer dado como provado, para levar em conta na determinação da medida da pena de prisão a aplicar. Ao tê-lo feito, o Acórdão recorrido violou o disposto no artº 32º/2 CRP.

26-Todas estas circunstâncias referidas por nós nestas Conclusões, deviam ter sido devidamente valoradas pelo Acórdão recorrido, que não o fez, e imporiam a fixação de uma pena de prisão não superior a 5 anos que é e será uma reacção institucional proporcional à culpa do arguido nos factos, justa em face das condições de vida do arguido (toxicodependente e a viver em condições precárias a todos os níveis) que estão na base e são o contexto do seu comportamento ilícito, e adequada a corresponder às exigências de prevenção geral e especial no caso.

27-Nestes termos, e considerando a violação dos arts. 40º/2, 71º/1,2,a),b),d),e) CP, 21º/1,25º/a) DL15/93 de 22-01 e 32º/2 CRP em que incorre o Acórdão recorrido, ao ter condenado o arguido numa pena de 6 anos e 10 meses de prisão com base num incorrecto enquadramento do facto no artº 21º/1 DL15/93, deve pois o mesmo ser revogado e substituído por outro Acórdão que qualifique o facto ilícito cometido pelo arguido como 1 crime de tráfico de menor gravidade (artº 25º/a) DL 15/93), procedendo a final, e em todo o caso, à redução da pena aplicada em 1ª instância, aplicando-se-lhe pena nunca superior a 5 anos de prisão.

Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o Douto Suprimento de V. Exas., Sábios Juízes Conselheiros deste Supremo Tribunal, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por conseguinte, ser revogado o Acórdão recorrido, operando-se a final a subsunção jurídica dos factos ao artº 25º/a) DL 15/93 de 22-01, e, em todo o caso e de qualquer modo, procedendo-se à redução da pena aplicada em 1º instância ao arguido e aplicando-se-lhe a final uma pena nunca superior a 5 anos de prisão- tudo nos termos expostos nesta Motivação e Conclusões de recurso.».

3. Depois de despacho de ……2020 onde não foi admitido o recurso por extemporâneo, o recurso foi admitido a ……2020, após decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de …..2020, decorrente da reclamação daquele despacho inicial.

4. No Tribunal Judicial da Comarca ………, o Magistrado do Ministério Público respondeu, tendo concluído nos seguintes termos:

«1- É elevado o grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido AA e muito subida foi a intensidade do dolo. dolo directo.

2- Na verdade, perante a quantidade de produto estupefaciente apreendida, que não é diminuta, perto de meio quilo de canábis (466.292 gramas), a atuação do arguido que demonstra uma forma organizada de reabastecimento, o destino que iria dar à mesma e apesar de se tratar de uma droga considerada "leve", o tráfico não seria entendível qualificá-la como de menor gravidade.

3- A gravidade da conduta do arguido AA é assim significativa e não beneficia de qualquer circunstância que faça diminuir a ilicitude do facto.

4- Face ao que se provou, ao sentido geral e particular do relato dos autos, e tendo em conta as consequências do facto, a culpa, a personalidade do arguido, as exigências de reprovação e os fins de prevenção, a medida da pena encontrada não poderia ter sido outra.

5- Na verdade, são muito relevantes as cargas de ilicitude e de dolo, conjugadas com notórias e prementes exigências de prevenção de futuros crimes, através de severas reacções penais dirigidas aos traficantes.

6- É elevada a ilicitude, porquanto a conduta do arguido BB é merecedora de elevada censura ético-jurídica, já que o tráfico de drogas é um flagelo actual da nossa sociedade, qual maré negra com todo o corolário de males que lhe estão associados. acarretando o cometimento de outros crimes, em especial de furto e roubo.

7- Efectivamente a droga é uma arma de destruição lenta e maciça: destrói o tecido social, esgota recursos preciosos e aniquila a liberdade.

8- E diga-se, que o arguido AA tem um vasto registo criminal, tendo já sido condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes e já cumpriu pena de prisão, tendo lhe sido concedida a liberdade a …… 2018.

9- Resulta, assim que o arguido AA cerca de um ano após lhe ter sido concedida a liberdade definitiva lhe foram apreendidos 466.292 gramas de canábis que lhe eram dirigidos.

10- Verifica-se pois que a culpa do arguido, limite da pena. é muito elevada.

11- Só pode concluir-se que, afinal, a pena é o resultado da tolerância do Tribunal, situando-se abaixo do ponto de encontro entre os limites máximo e mínimo da correspondente moldura penal abstracta.

12- Assim, o Tribunal "a quo" não violou o artigo 71° e ss do Código Penal. pois. utilizou os critérios previstos no artigo 71° do Código Penal, tendo tido em consideração a intensidade dolo, a culpa do agente, as exigências de prevenção e várias outras circunstâncias que. não fazendo parte do tipo. depuseram contra e a favor daquele

13 - Face ao exposto, por se ter por correcta a escolha da pena e o seu doseamento. por considerarmos nós. tal pena. justa e equilibrada, entendemos dever ser negado provimento ao recurso ora apresentado e confirmado, pois. o douto Acórdão recorrido.»

5. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, foram a vistos ao Ministério Público, nos termos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, e a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer nos seguintes termos:

«Questão prévia- da intempestividade do recurso interposto

1.Não obstante o teor da Decisão Sumária proferida nos autos em …...2020, pela Exª Srª Vice-Presidente do STJ, com todo o respeito pelos fundamentos e posição aí assumida, acompanham-se os fundamentos aduzidos no despacho judicial proferido no tribunal de 1ª instância, datado de …..2020 , no sentido de o disposto no art. 34º nº 2 da Lei 34/2004 de 29.07 não ter aplicação em sede de processo penal, não ocorrendo suspensão ou interrupção   de prazo  de interposição de recurso por situação de pedido de escusa de advogado  nomeado ao arguido, afigurando-se, assim, ter  sido intempestivamente interposto o recurso dos presentes autos.

 Neste sentido se pronunciou o acórdão do STJ de 23-06-2005, proc. n.º 2251/05 - 5.ª Secção (em Sumários de Acórdãos do STJ), cujo sumário se transcreve:

I - Se, em geral, a nomeação de patrono se inclui no âmbito do apoio judiciário, já o correspondente regime geral é «inaplicável» à «nomeação de defensor ao arguido, dispensa e substituição de patrono no âmbito do processo penal», «dada a especialidade que decorre dos artigos 42.º a 47.º deste diploma [DL 387.B/87 de 29-12]» e, antes, dos arts 42.º e ss. («Disposições especiais sobre processo penal») da Lei 30-E/2000 de 20-12. E o mesmo se diga do pedido de escusa (ou, em processo penal, de «dispensa do patrocínio»: art. 66.º, n.º 2 do CPP) do defensor nomeado. Com efeito, «a nomeação de defensor ao arguido, a dispensa de patrocínio, substituição e remuneração são feitas nos termos do Código de Processo Penal (...)» (arts. 42.º, n.º 1 da Lei 30-E/2000 e 39.º, n.º 1 da Lei 34/2004 de 29-07).

 II – O art. 66.º, nºs. 2 e 3 do CPP (que prevê a dispensa do defensor a pedido deste e a substituição do defensor a pedido do arguido), o art. 66.º, n.º 4 do mesmo diploma (que determina que o defensor nomeado se mantenha para os actos subsequentes do processo «enquanto não for substituído») e os arts. 42.º e ss. da Lei 30-E/2000 («Disposições especiais sobre processo penal») e 39.º e ss. da Lei Lei 34/2004 (idem) não preveem, no âmbito do incidente de substituição do defensor, a interrupção dos prazos em curso. Pelo contrário, os arts. 42.º, n.º 3 e 45.º, n.º 2 da Lei 30-E/2000 e 39.º, n.º 4 e 42.º, n.º 3 da Lei 34/2004 dispõem, especialmente, que, em processo penal, «o requerimento para a concessão de apoio judiciário não afecta a marcha do processo» e «enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo».

 III – Daí que não suspenda o prazo de interposição de recurso o pedido de escusa, de substituição ou de dispensa do defensor oficioso apresentado, no seu decurso, pelo próprio ou pelo arguido.

Ainda no âmbito de jurisprudência do STJ , de referir os acórdãos de 12-05-2005 (proc. 05P1310), de 15-01-2004 (proc. 02P3297), de 09.11.2016 (proc. 2356/14.9JAPRT.P1.S1-3ª Secção, citando-se o teor do acórdão do TC 450/2013), referentes a  revogação de mandato em processo penal, e a nível do Tribunal da Relação, por todos, a Decisão proferida em sede de reclamação, no T. Relação de Lisboa, datada de 28.10.2019, proc. 1794/13.9POLSB-a.C1, nele se citando o teor do acórdão do TC 487/2018 (todos em dgsi.pt). 

Nos presentes autos, como consta do despacho judicial …..2020, na audiência de leitura do acórdão, em …..2020, esteve presente o defensor nomeado ao arguido, HB, bem como na única sessão de julgamento realizada, o qual fora   nomeado em sede de inquérito, aquando da notificação da acusação .

Sem constar dos autos requerimento de escusa do referido Defensor, dá entrada, em ……2020, e-mail da Ordem dos Advogados comunicando que, em substituição do Sr. Advogado H B. foi nomeado o Senhor Advogado A.P., tendo o mesmo apresentado requerimento, em ……2020, a informar que nessa data pediu escusa do patrocínio.

Em …… 2020, através de e-mail vem a Ordem dos Advogados comunicar que em substituição do Senhor Advogado AP, foi nomeada a Senhora Advogada TC.

A interposição de recurso do acórdão condenatório ocorre em ...…2020, que se afigura intempestiva.

2.Na eventualidade de assim não ser entendido, emite-se desde já parecer:

2.1. Por acórdão de tribunal coletivo proferido em ……2020, o arguido AA foi condenado  pela prática do crime  de tráfico de estupefacientes (integrador das condutas relativas às duas encomendas), p. e p. pelo artº. 21º nº.1 do DL 15/9, de 22.1, com referência à tabela I-C , na pena de 6 (seis) anos e 10 (dez) de prisão.

2.2.O arguido encontra-se sujeito a medida de prisão preventiva, tendo sido detido em ……2019, e tendo sofrido dois dias de detenção (em ……2019).

3.De tal acórdão interpõe recurso o arguido, em …..2020, diretamente para o STJ (tendo ocorrido no decurso do prazo de interposição de recurso pedido de escusa de inicial, e de subsequente, defensor nomeados) pugnando pela alteração da subsunção jurídica dos factos provados à previsão do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º/a) DL 15/93 de 22-01, e, “de todo o modo,  pela redução da pena aplicada em 1ª instância , pugnando por aplicação de pena nunca superior a 5 anos de prisão”.    

4. A Magistrada do MºPº em 1ª instância respondeu fundadamente ao recurso interposto, pugnando pela sua improcedência global., acompanhando-se os fundamentos aduzidos na citada resposta , os quais pelo rigor e objetividade de análise nos dispensam de considerações adicionais, por tautológicas.»

6. Notificado o arguido nos termos do art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), respondeu alegando que:

«O Ministério Público junto desta Instância de recurso começa por invocar no seu Parecer questão já resolvida por Douta Decisão Sumária e Superior deste Supremo Tribunal de Justiça já transitada em julgado, a qual decidiu, e bem, pela tempestividade do recurso interposto por este arguido, não tendo o Ministério Público recorrido dessa Mui Douta Decisão que transitou em julgado. Pelo que, carece totalmente de fundamento a matéria invocada a esse propósito pelo Ministério Público junto desta instância de recurso.»

Quando ao mais, reitera a motivação do recurso e as suas conclusões.

7. Colhidos os vistos, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Questão Prévia

1. Tendo em conta a questão prévia inicial, apresentada pelo Ministério Público, cumpre, em primeiro lugar, averiguar da tempestividade (ou não) do recurso interposto.

Constituem elementos decisivos para a decisão desta questão os seguintes:

- o arguido foi sujeito a 1.º interrogatório de arguido detido a ……2019 (cf. ref. …….) tendo sido assistido pelo defensor oficioso, Senhor Dr. CC; aquando da acusação era ainda o mesmo o defensor oficioso (ref. …..);

- o arguido foi condenado por acórdão de ……2020 e, aquando da leitura deste, em audiência, o arguido, não tendo estado presente, foi representado pelo seu defensor oficioso Senhor Dr. CC (ref. ……..); tendo sido também o mesmo o defensor presente na única sessão de audiência (ref. ……);

- o arguido foi notificado do acórdão, no Estabelecimento Prisional (cf. ofício de ……2020, ref. ……), a ……2020 (ref. ……);

- mais tarde, foi elaborado, a ……2020, um despacho (ref. ……) para que fosse comunicado aos autos se o arguido preenchia algumas das condições elencadas no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 9/2020, de 10.04; o despacho foi notificado ao defensor oficioso, Senhor Dr CC, a ……2020 (ref. ………; foi, igualmente, notificado ao arguido na mesma data) sem que tivesse havido qualquer resposta (cf. despacho de ……2020, ref. ………);

- sem que conste dos autos qualquer comunicação onde o defensor nomeado solicite a sua dispensa, nos termos do art. 42.º, da Lei n.º 34/2004, de 29.07 (e posteriores alterações), é junta ao processo uma mensagem de correio eletrónico, de ……2020, proveniente da Ordem dos Advogados, comunicando que, em substituição do anterior defensor oficioso, foi nomeado novo defensor oficioso (é este o assunto da mensagem) o Senhor Dr. DD (ref. ……);

- a ……2020 (ref. ………), este último defensor nomeado informa os autos de que pediu “escusa à Ordem dos Advogados do Conselho Distrital dos ……”;

- e a ……2020, por mensagem de correio eletrónico, a Ordem dos Advogados informa que o defensor oficioso (é este o assunto da mensagem) foi substituído e passou a ser a Senhora Dr.ª EE (ref. ………);

- a secretaria consignou o trânsito em julgado a ……2020 (ref. ……);

- o recurso foi interposto, pela última defensora oficiosa nomeada, a ……2020;

- por despacho de ……2020, o recurso interposto não foi admitido por extemporaneidade, por se considerar que o acórdão já tinha transitado em julgado aquando da sua interposição (ref. ………);

- apresentada a reclamação do despacho, por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de ……2020, determinou-se a substituição do despacho reclamado por outro que admita o recurso, por tempestivo; considerou-se que:

«A intervenção de defensor nomeado (como no processo civil de novo mandatário — artigo 47.°, n.° 5, do CPC) visto na perspectiva do processo em causa, em que decorrem prazos processuais para a prática de actos, supõe que o novo defensor (ou mandatário) disponha de um tempo razoável para tomar contacto com o processo e poder, adequadamente, preparar a prática dos actos que considere necessários à melhor condução do processo na perspectiva do sujeito que defende ou da parte que patrocina.

Em processo civil a questão está definida.

Em processo penal, com regime próprio, e tendo em conta o exercício do direito ao recurso como garantia de defesa (com inscrição constitucional — artigo 32.°, n.° 1, da CRP), a integridade do direito só será garantida se o prazo em curso de interposição do recurso for interrompido com a aceitação da dispensa de patrocínio.

O novo defensor nomeado deverá, assim, na integridade do direito, dispor de novo prazo para interpor e motivar o recurso, contado a partir do momento da notificação da sua nomeação.

Assim sendo, o prazo de 30 dias do artigo 411.º, n.º 1, alínea a), do CPP para a interposição do recurso do acórdão proferido em 1.ª instância começou a contar a partir de ……… de 2020. Daí o recurso em causa, por apresentado em ……. de 2020 ter sido tempestivamente interposto.»

Tendo em conta o exposto, analisemos.

Nos termos do art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), em processo penal devem ser asseguradas todas as garantias de defesa, devendo o arguido ser assistido por um defensor “em todos os actos do processo” (art. 32.º, n.º 3, da CRP), estabelecendo a lei os casos ou fases em que a presença de um defensor é obrigatória. E de acordo com o disposto no art. 64.º, do CPP, é obrigatória a assistência de defensor, nomeadamente, no interrogatório do arguido, na audiência, em recurso, e quando tenha sido deduzida acusação contra o arguido. Aquando da nomeação de defensor pelo tribunal, nos termos do art. 64.º, n.º 3, do CPP, o arguido é advertido de que ficará obrigado a pagar os honorários do defensor, a menos que obtenha apoio judiciário (cf. art. 64.º, n.º 4)[1]; e ainda é informado de que pode substituir o defensor mediante a constituição de advogado. Por força do disposto no art. 66.º, do CPP, o defensor nomeado pode ser dispensado quando alegar justa causa, assim entendida pelo Tribunal (n.º 2 do dispositivo citado), podendo ainda ser substituído a requerimento do arguido (n.º 3); porém, enquanto não for substituído “mantém-se para os actos subsequentes do processo” (n.º 4).

E dispositivos idênticos encontram-se na Lei n.º 34/2004, de 29.07 (e posteriores alterações) no capítulo IV relativo às “disposições especiais sobre o processo penal” e na portaria que regulamenta esta lei (cf. art. 45.º, n.º 2) — portaria n.º 10/2008, de 03.01 (e alterações posteriores). Por força do disposto no art. 39.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, “A nomeação de defensor ao arguido, a dispensa de patrocínio e a substituição são feitas nos termos do Código de Processo Penal”. E no art. 42.º, da Lei n.º 34/2004, determina-se que o defensor nomeado pode pedir dispensa de patrocínio, porém “enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo” (n.º 3). Ou seja, um regime idêntico ao previsto no Código de Processo Penal. Deve ainda salientar-se que a nomeação de defensor oficioso, no âmbito do processo penal, sendo obrigatória, ocorre ainda que o arguido não tenha solicitado apoio judiciário, caso em que terá que assegurar o pagamento do defensor (art. 39.º, n.º 7), devendo, nestas circunstâncias, pagar o triplo do valor, previsto no art. 36.º, n.º 2, isto é, os valores fixados “portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, tendo em conta a evolução da inflação e a necessidade de garantir uma remuneração digna e justa aos advogados intervenientes.” Mas, caso o arguido solicite apoio judiciário, este requerimento “não afecta a marcha do processo “(art. 39.º, n.º 10).

São outras, todavia, as regras relativas ao patrono nomeado após concessão de apoio judiciário, no âmbito das ações civis. Desde logo, o simples pedido de apoio judiciário determina que a ação se considere proposta no momento em que o apoio é solicitado (33.º, n.º 4), devendo o patrono intentar a ação no prazo de 30 dias após a notificação da sua nomeação (art. 33.º, n.º 1).  O patrono pode pedir escusa; porém, o prazo que estiver em curso interrompe‑se (art. 34.º, n.º 2).

Da análise de ambos os diplomas, apenas num caso o regime se tornou idêntico quer quanto ao patrono nomeado na ação civil, quer quanto ao defensor ofício nomeado na ação penal — é o referente ao substabelecimento que, nos termos do art. 35.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, parecia estar restrito ao patrono, mas que foi alargado ao defensor por força do disposto no art. 17.º, da Portaria n.º 10/2008.

O problema a resolver será o de saber se, havendo pedido de dispensa pelo defensor e posterior substituição com nomeação de outro defensor oficioso pela Ordem dos Advogados, o decurso dos prazos para apresentação de atos processuais, no caso para interposição de recurso, são ou não interrompidos, reiniciando-se com a nomeação de novo defensor.

Vejamos o que diz a doutrina e a jurisprudência.

A doutrina tem sustentado a ideia de que o defensor nomeado está obrigado a assegurar as suas funções até à sua substituição, devendo o estudo e a preparação do anterior advogado ser transmitido ao novo[2]. Mas acrescentam que “em caso de renúncia, substituição, escusa, sempre deverá o tribunal estar atento a uma situação fáctica de carência de exercício das funções de defensor que atente contra o direito ao efetivo recurso. Se assim for, deverá zelar pela concretização na prática desse direito de recurso efetivo, destarte concedendo prazo para o efeito, por via da invalidade dos termos do processo em que o arguido, efetivamente, não esteve assistido por advogado que permitisse concretizar o seu direito de defesa e recurso.”[3] Embora se considere que a «apresentação do requerimento pelo defensor ou pelo arguido, invocando “justa causa”, não interrompe eventual prazo que esteja a decorrer para a prática de qualquer ato (...). O mesmo se passa quando o defensor, nomeado no âmbito do patrocínio oficioso, invoca ter suscitado pedido de “escusa” à AO e igualmente quando os defensores que se sucederam tenham pedido sucessivamente “escusa”. Nesse aspecto, como acima foi referido, a sua intervenção no processo penal passa a reger-se pelo disposto no art. 66.º/2 CPP, em conformidade, aliás, com o disposto nos arts. 39 e 42.º LADT: v. Ac. STJ, 23.06.2005 (Carmona da Mota); ac. RP, 4.04.2018 (Luís Coimbra). Por isso, o pedido de “escusa” não interrompe o prazo da prática do ato que esteja a decorrer, por exemplo, de interposição de recurso, o qual, como é referido no ac. TC 314/2007, “é atribuído ao arguido e não à pessoa do seu defensor, não exigindo a necessidade de garantia de um efectivo direito ao recurso em processo penal, que se concedam tantos prazos distintos quantos os defensores que se sucedam na assistência ao arguido. (...) Precisamente para assegurar sempre, sem qualquer interrupção ou suspensão, a defesa efetiva do arguido, é que o art. 66.º/4 estabelece que, enquanto não foi substituído, o defensor nomeado para um ato mantém-se para os atos subsequentes do processo. O que se compreende porque a nomeação para o cargo de defensor oficioso significa desde logo que o advogado vai ficar sujeito a um “conjunto de deveres funcionais e deontológicos”, precisamente para assegurar todas as garantias de defesa (art. 32.º/1 CRP), como é realçado, entre outros nos acs. TC 378/2003 e 489/2008”.»[4]

Posição idêntica nos é apresentada por Germano Marques da Silva, que escreve: “Enquanto não foi substituído, o defensor nomeado mantém-se para os atos subsequentes do processo (art. 66.º, n.º 4) e o defensor constituído mantém-se enquanto não for substituído e até à junção ao processo de certidão da notificação, salvo nos casos em que a constituição de defensor é obrigatória, porque nestes a renúncia só produz efeito depois de constituído ou nomeado o defensor (art. 47.º do CPC)”[5].

A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem sido, ao longo do tempo, constante, considerando que os prazos não são interrompidos quando se procede à substituição de defensor oficioso.

Assim:

- Acórdão do STJ de 23.06.2005, proc. n.º 2251/05 (Relator: Cons. Carmona da Mota)

«I - Se, em geral, a nomeação de patrono se inclui no âmbito do apoio judiciário, já o correspondente regime geral é «inaplicável» à «nomeação de defensor ao arguido, dispensa e substituição de patrono no âmbito do processo penal», «dada a especialidade que decorre dos artigos 42.º a 47.º deste diploma [DL 387.B/87 de 29-12]» e, antes, dos arts 42.º e ss. («Disposições especiais sobre processo penal») da Lei 30-E/2000 de 20-12. E o mesmo se diga do pedido de escusa (ou, em processo penal, de «dispensa do patrocínio»: art. 66.º, n.º 2 do CPP) do defensor nomeado. Com efeito, «a nomeação de defensor ao arguido, a dispensa de patrocínio, substituição e remuneração são feitas nos termos do Código de Processo Penal (...)» (arts. 42.º, n.º 1 da Lei 30-E/2000 e 39.º, n.º 1 da Lei 34/2004 de 29-07).

II – O art. 66.º, nos. 2 e 3 do CPP (que prevê a dispensa do defensor a pedido deste e a substituição do defensor a pedido do arguido), o art. 66.º, n.º 4 do mesmo diploma (que determina que o defensor nomeado se mantenha para os actos subsequentes do processo «enquanto não for substituído») e os arts. 42.º e ss. da Lei 30-E/2000 («Disposições especiais sobre processo penal») e 39.º e ss. da Lei Lei 34/2004 (idem) não prevêem, no âmbito do incidente de substituição do defensor, a interrupção dos prazos em curso. Pelo contrário, os arts. 42.º, n.º 3 e 45.º, n.º 2 da Lei 30-E/2000 e 39.º, n.º 4 e 42.º, n.º 3 da Lei 34/2004 dispõem, especialmente, que, em processo penal, «o requerimento para a concessão de apoio judiciário não afecta a marcha do processo» e «enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo».

III – Daí que não suspenda o prazo de interposição de recurso o pedido de escusa, de substituição ou de dispensa do defensor oficioso apresentado, no seu decurso, pelo próprio ou pelo arguido.» (a lei aqui citada é equivalente à lei atual)

- acórdão do STJ de 03.10.2007, proc. n.º 07P2818, Relator: Cons. Raúl Borges

«(...) Repetindo o que constava do artigo 25º, nº 4, da Lei nº 30-E/2000, dispõe o nº 4 do mesmo preceito [art. 24.º da lei n.º 34/2004]: Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.

Este dispositivo nada adianta para o nosso caso, já que prevê a situação de nomeação de patrono, modalidade aqui não impetrada.

No Capítulo IV da Lei em referência contêm-se as disposições especiais sobre processo penal.

E aí de modo claro, renovando-se o que constava do artigo 42º, nº 3, da Lei nº 30-E/2000, prescreve-se no nº 4 do artigo 39º: “O requerimento para a concessão de apoio judiciário não afecta a marcha do processo”.

De acordo com o nº 1 do artigo 44º, em tudo o que não esteja especialmente regulado no presente capítulo relativamente à concessão de protecção jurídica ao arguido em processo penal aplicam-se, com as necessárias adaptações, as disposições do capítulo anterior, com excepção do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 18º, devendo o apoio judiciário ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final.

Deste conjunto normativo resulta que o pedido de concessão de apoio judiciário em processo penal não tem qualquer influência na marcha do processo, face à disposição especial do artigo 39º, nº4, da Lei nº 34/2004.»

- acórdão do STJ de 10.12.2015, Proc. n.º 150/15.9YFLSB.S1, Relator: Cons. Manuel Augusto Matos[6]

« (...)., o regime do acesso ao direito e aos tribunais, aprovado pela Lei 34/2004, de 29-07, estabelece no n.º 10 do art. 39.º que «o requerimento para a concessão de apoio judiciário não afecta a marcha do processo», e nos termos do art. 42.º, n.º 3 «Enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo», norma que se harmoniza com o que dispõe o art. 66.º, n.º 4, do CPP.»

- acórdão do STJ de 09.11.2016, Proc. n.º 2356/14.9JAPRT.P1.S1, Relatora: Cons Rosa Tching[7]

«IV - Tendo em conta que o art. 39.º, n.º 10, da Lei 34-2004 dispõe especialmente que em processo penal o requerimento para concessão de apoio judiciário não afecta a marcha do processo, forçoso é concluir que, nem mesmo o disposto no art. 44.º, n.º 1, desta mesma Lei, legitima a aplicação ao processo penal da norma do art. 24.º, n.º 4. Desde logo porque, não só não estamos perante uma lacuna da lei processual penal nem da Lei 34/2004, como também o regime geral previsto no art. 24.º, n.º 4, desta última lei não é compatível com o regime da representação do arguido no processo penal. Do mesmo modo e pela mesma ordem de razões julgamos ser de afastar a aplicação analógica da norma do art. 34.º, n.º 2, da Lei 34/2004.

V – Os prazos em curso no processo penal, nomeadamente o prazo para interposição de recurso não se suspendem nem se interrompem por via da renúncia ao mandato por parte do advogado constituído do arguido. A lei processual penal ao não permitir que o arguido, na pendência do processo, possa estar em momento algum, desacompanhado de defensor, assegura ao arguido todas as garantias de defesa incluindo o recurso (neste sentido o acórdão do TC 450/2013).»

- acórdão do STJ de 27.04.2017, Proc. n.º 1482/13.3TXLSB-E.S1, Relator: Cons Manuel Braz[8]

«III - Tendo a sentença de 17-03-2015 que condenou o requerente em prisão por dias livres sido notificada ao requerente e ao seu defensor e dela não tendo sido interposto recurso, a mesma transitou em julgado, a tal não obstando o facto de eventualmente o requerente ter pedido a substituição de defensor dentro do prazo de recurso e de não ter havido pronúncia sobre essa pretensão, pois, enquanto não for substituído, o defensor nomeado mantém-se em funções. 

IV - O acórdão da Relação de 06-12-2016, que confirmou a decisão do TEP de 05-07-2016, que determinou o cumprimento da pena em regime contínuo, foi regularmente notificado ao defensor do requerente. E relativamente a essa decisão não foi admitida qualquer via de impugnação, sem qualquer reacção de quem a podia desencadear, que era o defensor. Como decorre do art. 64.º, n.º 1, al. d), o requerente só podia intervir no âmbito do recurso respectivo, através do seu defensor.»

- acórdão do STJ de 20.12.2017, Proc. n.º 7459/00.4TDLSB-K.S2, Relator: Cons. Manuel Braz[9]

«IV -    O requerimento da requerente a pedir o afastamento do defensor nomeado, não tem como efeito a interrupção dos prazos que estiverem a correr, visto nenhum norma prever essa consequência. Enquanto não for substituído, o defensor oficioso nomeado mantém-se em funções no processo, como estabelecem o art. 42.º, n.º 3, da Lei 34/2004, de 29-07 e art. 66.º, n.º 4, do CPP. 

V -    Se o art. 42.º, n.ºs 1, 2 e 3 da Lei 34/2004, diz como proceder no caso de o defensor oficioso nomeado ao arguido pedir dispensa do patrocínio, prevendo que o nomeado se mantenha em funções até ser substituído, não há ausência de regulação que legitime a aplicação da regra do n.º 2 do art. 34, pela via n.º 1 do art. 44.º do mesmo diploma. A substituição do defensor oficioso pode ocorrer, a pedido do arguido, nos termos do n.º 3 do art. 66.º do CPP. E no art. 34.º, n.º 2, da Lei 34/2004 só se prevê a interrupção do prazo que esteja em curso com o pedido de escusa de advogado. Não há norma que preveja a interrupção do prazo no caso de substituição do defensor oficioso ocorrer a pedido do arguido.»

A posição aqui defendida nestes arestos não tem sido contestada pelo Tribunal Constitucional. Assim, no acórdão 487/2018 deliberou-se:

«não julgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 39.º, n.º 1, 42.º, n.º 3, e 44.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, e do artigo 66.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo de interposição de recurso da decisão depositada na secretaria não se interrompe nem se suspende no caso de, no decurso do mesmo, o arguido apresentar junto da Ordem dos Advogados pedido de substituição do defensor que lhe fora nomeado no processo».

E em recente acórdão decidiu-se:

« Não julgar inconstitucional os artigos 39.º, n.º 1, 42.º, n.º 3, e 44.º, n.º 1, todos da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, e artigo 66.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que o prazo para interpor recurso de acórdão condenatório depositado na secretaria se conta desde a data do depósito, não se interrompendo na pendência de pedido de dispensa do defensor junto da Ordem dos Advogados devidamente comunicada aos autos.» (acórdão n.º 221/2020, Relator: Cons. João Pedro Caupers)[10].

Perante tudo o exposto mantém-se a pergunta: havendo sucessiva substituição do defensor oficioso e ainda que o disposto no art. 66.º, n.º 4, do CPP, determine que “enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo” (disposição idêntica àqueloutra constante do art. 42.º, n.º 3, da Lei n.º 34/2004) deve considerar-se que há interrupção dos prazos, mormente os relativos à interposição de recurso, tal como determina o disposto no art. 34.º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004?

Cumpre, em primeiro lugar, realçar que o art. 42.º, da Lei n.º 34/2004, foi alterado pela Lei n.º 47/2007, de 28.08. Ora, na versão anterior do referido dispositivo (no anterior n.º 4), previa-se uma situação onde expressamente se remetia para o disposto no art. 34.º, e com isso se poderia considerar que havia interrupção dos prazos em curso: era a situação em que o advogado nomeado defensor tivesse pedido a dispensa de patrocínio invocando como fundamento “a salvaguarda do segredo profissional”. Tendo esta remissão, neste aspeto em particular, desaparecido, poderemos ainda entender que se deve aplicar ao pedido de dispensa do defensor oficioso o mesmo regime do pedido de escusa do patrono e, consequentemente, considerar que os prazos são interrompidos?

Vimos que o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional a não interrupção do decurso dos prazos para interposição de recurso durante a pendência do pedido de dispensa do defensor junto da Ordem dos Advogados. Porém, o facto de não ser considerado inconstitucional, isto é, o facto de o Tribunal Constitucional entender que não estão violadas normas inconstitucionais, não significa que possa ser a interpretação mais correta. O Tribunal apenas considerou que esta interpretação não é contra a Constituição, sem curar de averiguar se seria (ou não) a melhor solução a dar ao problema. Ou seja, outras interpretações podem ser realizadas, sem que se viole os preceitos constitucionais. E estas outras interpretações não contrariam sequer a decisão do Tribunal Constitucional, uma vez que aquela decisão não cristalizou aquela interpretação, apenas a considerou não desconforme com a Constituição da República Portuguesa.

Perante isto, cumpre salientar que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem sucessivamente condenado o Estado português por violação do art. 6.º, n.ºs 1 e 3, al. c), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) quando, perante uma ausência de apoio judiciário efetivo, o arguido se vê privado de uma “defesa concreta e efetiva”. Assim considerou, no caso Panasenko c. Portugal[11]:

“(...) O Tribunal relembra desde logo os princípios que emanam da sua jurisprudência sobre apoio judiciário. Por diversas vezes declarou que a Convenção não tem por fim proteger os direitos teóricos ou ilusórios, mas os direitos concretos e efectivos. No entanto, a nomeação de defensor oficioso não assegura só por si a efectividade da assistência devida ao arguido. (...) se é verdade que o requerente foi acompanhado formalmente por dois defensores oficiosos sucessivos, estes não tomaram nenhuma medida na qualidade de defensores para verdadeiramente «assistir» o arguido. (...) As circunstâncias da causa impunham, pois, às jurisdições competentes a obrigação positiva de assegurar o respeito concreto e efectivo dos direitos de defesa do requerente, que se viu privado da possibilidade de fazer apreciar o bem fundado da sua condenação face à ausência de apoio jurídico efectivo.

54. Estes elementos bastam ao Tribunal para concluir que houve violação dos n.ºs 1 e 3, alínea c), conjugados, do artigo 6.º da Convenção.”

E também no caso Bogumil c. Portugal[12] reafirmou que “a Convenção tem por finalidade proteger direitos não teóricos ou ilusórios, mas concretos e efectivos, sendo que a designação de um advogado não garante por si só a efectividade do apoio judiciário a prestar ao arguido”.

Na verdade, num processo como o processo penal, em que assumem especial importância não só as garantias de defesa do arguido, mas também um eficaz acesso ao direito, impõe-se que o arguido não veja limitadas as possibilidades de exercício do direito ao recurso, apenas porque o defensor oficioso foi sendo sucessivamente substituído, sem que nenhum deles assegure a continuidade da defesa, ou sem que, apesar da lei, se mantenha a exercer a sua função nos subsequentes atos até ser nomeado novo defensor. Tendo em conta o disposto no art. 66.º, n.º 4, do CPP, o defensor nomeado, logo que a decisão fosse notificada, deveria verificar (de acordo com a vontade do arguido, com o qual deveria manter o contato até a nomeação de novo defensor oficioso) se era (ou não) de interpor o recurso e deveria organizar a competente peça processual; uma vez nomeado novo defensor, o trabalho já realizado deveria ser transmitido ao novo nomeado. Não o fazendo, o arguido, querendo interpor recurso, apesar da nomeação formal dos defensores, não viu assegurado de forma efetiva o seu direito de defesa, enquanto garantia de um processo equitativo. Tal como afirma o TEDH “a nomeação de defensor oficioso não assegura só por si a efectividade da assistência devida ao arguido”[13].

Ora, tendo em conta este entendimento, e revertendo ao caso concreto, verificando que o arguido, entre as sucessivas nomeações, acabou por ficar abandonado à sua sorte sem que qualquer defensor oficioso realizasse o que a lei determinava — assegurar os subsequentes atos do processo até à nomeação de novo defensor (com a consequente responsabilidade disciplinar que possa existir) —, entende-se que não foi assegurada uma efetiva defesa do arguido, que foram reduzidas de maneira significativa as garantias de defesa do arguido, tal como tem entendido o TEDH e, por conseguinte, admite-se o recurso interposto.

Entende-se ainda que deverá ser dado conhecimento à Ordem dos Advogados deste caso concreto para o que entender por conveniente.

B. Matéria de facto

1. Na decisão recorrida, são dados como provados os seguintes factos:

«1. (NUIPC 7/19.4……)

No dia 7 do mês de maio de 2019, na Rua ……, nº ..., em …, o arguido AA, conhecido pelo nome de “AA”, recebeu um envelope postal, provindo do continente português, o qual continha, para além de roupa (pijamas), 4 placas de haxixe com o peso total de 388,400g;

Tal envelope ostentava como remetente “FF” com morada na “………… nº…, ……..-…” e como destinatário “GG” com morada na “Rua ……….  nº…, …. ….-… ………..”;

2. No dia 6 de junho de 2019, pelas 8h45, a equipa cinotécnica da GNR dirigiu-se às instalações dos CTT sitas na Av. …………, em ……, tendo o “binómio” (homem/cão) sinalizado uma encomenda endereçada a HH, Rua de ………., nº…., ……., …..;

Tal encomenda continha 2 placas de haxixe com o peso total de 77,892g, com o grau de pureza de 18,5% (288 doses), estando a casa em questão desabitada e pertencendo a II, a qual não conhece qualquer pessoa com o nome constante do destinatário da encomenda;

Na porta daquela casa estava afixado um papel manuscrito com as inscrições “HH, Rua ……, nº…. -…….. - …”, papel este que após recolhido se apurou conter as impressões digitais do arguido AA, o qual era o verdadeiro destinatário da encomenda, tanto mais que este arguido e o seu irmão -JJ - estavam sentados na soleira da porta da casa do lado - a do nº…. da Rua de ..….em …. - no dia 7.6.2019, pela manhã, quando o funcionário    dos    CTT    ali    se    dirigiu    para    fazer    a    entrega    da    encomenda,    tendo  ambos reconhecido os inspetores da PJ que ali estavam nas proximidades para vigiar a entrega da encomenda, motivo pelo qual nada fizeram para a receber;

3. Na realidade, o arguido AA pretendia introduzir nesta ilha aquelas quantidades de haxixe (as dos pontos 1. e 2.), para posterior venda com obtenção de lucro;

Haxixe é o nome por que é vulgarmente designada a canábis (resina), que é uma substância contida na tabela I-C anexa ao DL nº. 15/93 de 22.1, e o arguido AA conhece perfeitamente as suas características, nomeadamente a sua natureza estupefaciente, sabendo que não se encontrava autorizado a deter, transportar ou transacionar, por qualquer forma, tal substância;

O arguido AA agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo bem que a sua conduta era proibida e punida por lei;

4. Acresce que o arguido AA já foi condenado:

- pela prática, em.….…2008, de um crime de injúria agravada, no processo 53/08.3……. do 2º Juízo do Tribunal Judicial ………, por sentença de ……2008, transitada em …..2008, na pena de 180 dias de multa, declarada extinta em ……2008;

- pela prática, em ……2008, de um crime de condução sem habilitação legal, no processo 174/08.2……. do 0º Juízo do Tribunal Judicial ............, por sentença de …2008, transitada em ……2008, na pena de 70 dias de multa, declarada extinta em ……2009;

- pela prática, em ………2008, de um crime de ofensa à integridade física simples, no processo 52/08.5….. do 0º Juízo do Tribunal Judicial ………, por sentença de …..…2009, transitada em …….2009, na pena de 160 dias de multa, declarada extinta em ……2011;

- pela prática, em ……2010, de um crime de dano, no processo 440/10.7…… do 0º Juízo do Tribunal Judicial de ............, por sentença de …….2012, transitada em ……..2012, na pena de 70 dias de multa, declarada extinta com efeitos reportados a ……..2013;

- pela prática, em ..…..2013, de 3 crimes de roubo e 1 crime de roubo na forma tentada, no processo 108/13.2…… do 0º Juízo do Tribunal Judicial de ............, por sentença de ……2014, transitada em ……..2014, na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão efetiva;

- pela prática, em ……2013, de um crime de tráfico de menor gravidade, no processo 179/13.1…… do Juiz 0 do Juízo Local Criminal de ............, por sentença de ……2014, transitada em …….2014, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva, tendo aqui sido efetuado o cúmulo jurídico das penas dos últimos dois processos, sendo-lhe aplicada a pena única de 4 anos e 10 meses de prisão efetiva, por acórdão de …….2015, transitado em ……2015, pena esta que cumpriu integralmente, até ao dia ……..2018;

Não tendo aquelas condenações, nem o cumprimento daquelas penas, servido para o afastar desta atividade de tráfico;

Resulta do relatório social e do CRC do arguido:

5. a). AA, com …. anos de idade, é o penúltimo de uma fratria de cinco elementos, nascido no seio de um agregado familiar de humilde condição socioeconómica e cultural. A infância decorreu no seio deste agregado, constituído pelos pais, três irmãos germanos e uma irmã uterina. O pai era carpinteiro e a mãe doméstica. Em 1985, pelas dificuldades económicas que o agregado vivenciava e pelo falecimento do progenitor quando AA tinha três anos de idade, o núcleo familiar emigrou para os Estados Unidos da América. No país de emigração, a progenitora voltou a contrair matrimónio. O arguido teve processo de crescimento e desenvolvimento envolto numa dinâmica familiar estruturada, pautada pela coesão entre os vários elementos e capacidade de imposição de regras e limites aos descendentes. AA integrou o sistema de ensino em idade própria, no entanto, apresentou um percurso escolar irregular, caraterizado por absentismo e problemas de comportamento e associação a grupo de pares caraterizado pela adoção de comportamentos desviantes, o que originou a sua exclusão do sistema de ensino, quando contava dezasseis anos de idade, tendo concluído o 10º grau americano (Senior High Schools, que corresponde ao 10º ano de escolaridade do ensino português) Nesta fase, integrou um grupo de pares com o qual era frequente envolver-se em confrontos/brigas com outros grupos e ingerir bebidas alcoólicas em excesso. AA iniciou atividade laboral aos quinze anos de idade, nunca tendo efetivado um percurso laboral regular, tendo desempenhado tarefas indiferenciadas e de curta duração na área da construção civil, piscatória e mecânica automóvel. A sua primeira ligação ao sistema de justiça americano ter-se-á dado aos vinte e um anos de idade, na sequência de ofensas à integridade física, tendo cumprido pena de prisão até aos vinte e três anos de idade. No ano seguinte (2005), veio repatriado para ………, ilha na qual não dispôs de apoio familiar. Aos vinte e cinco anos de idade, contraiu matrimónio com KK, tendo nessa altura, vivido num anexo à habitação dos sogros na Vila de ………. A relação conjugal era instável ainda que associada à sua problemática aditiva e consequentes dificuldades económicas sentidas no seio familiar. O casal acabou por se separar em abril de 2013, altura em que o arguido integrou a Associação “...”. À data dos factos, AA encontrava-se a residir só, num quarto arrendado, numa habitação problemática, associada ao consumo de estupefacientes e de alcoolismo por parte de outros inquilinos. À data da atual reclusão, encontrava-se desempregado, em situação económica precária, auferindo o ……. (…) e beneficiando, através do Núcleo de Ação Social, de apoio para a alimentação. Terá iniciado a problemática aditiva (consumo/dependência de heroína) com cerca de vinte e quatro anos de idade, contudo, já antes, era adito de bebidas alcoólicas em excesso. Nesta ilha, iniciou tratamento à toxicodependência, registando ao longo do tratamento, várias recaídas. Em contexto prisional, o arguido tem revelado capacidade de adesão e cumprimento das regras internas. Mantém-se integrado no programa de tratamento com opiáceos de substituição - metadona, não tendo, ainda, sido submetido a testes de despiste de substâncias psicoativas. No que concerne à educação, foi admitido no 1º ciclo da ……. (serviço criado pelo Governo dos …. com o objetivo de assegurar a todos os cidadãos uma oportunidade de qualificação e certificação, de nível básico, secundário e/ou profissional, quer pela via da certificação de competência adquiridas, quer pelo encaminhamento para ofertas formativas) em 3.10.2019, tendo sido, no entanto, excluído em 21.12.2019 por falta de assiduidade, encontrando-se inativo. Tem recebido visitas frequentes do irmão JJ. O primeiro contacto formal com o sistema de justiça português ocorreu em 2009, tendo o arguido sido acompanhado pela Equipa da DGRS em diversas medidas de caráter probatório pela prática de diversos tipos de crimes: ofensas à integridade física simples, injúria agravada, resistência e coação sobre funcionário, condução sem habilitação legal, crime de dano simples, de roubo e de tráfico de estupefacientes de menor gravidade. Face aos factos pelos quais se encontra presentemente acusado, o arguido não se revê nos comportamentos descritos, revelando alguma dificuldade em compreender a conduta criminal em causa, acabando por assumir uma postura de desresponsabilização. O arguido tem revelado dificuldade em gerir os impulsos e em ajustar o seu comportamento às normas e regras sociais vigentes. Tem vindo a demonstrar um estilo de funcionamento muito centrado nas suas necessidades pessoais, não revelando sentido crítico face ao seu passado e face à sua atual situação jurídico-penal. Segundo informações prestadas pela Polícia de Segurança Pública, encontra-se indiciado no NUIPC 1682/18.2..….. por crime de ofensa à integridade física ocorrido em ……2018. AA., com …. anos de idade, é um indivíduo que beneficiou de um contexto familiar estruturado, na primeira infância, pesem embora as dificuldades económicas vivenciadas pela família, que determinaram a emigração para os …………, onde o arguido permaneceu até aos 23 anos de idade, altura em que foi repatriado. No regresso a …………, revelou acentuadas dificuldades de estruturação, caracterizando-se o seu percurso pela toxicodependência, bem como pela precariedade e dependência económica. Após a última libertação, o arguido evidenciou fatores positivos, como sendo a aceitação da intervenção externa/acompanhamento desta Equipa, contexto em que aderiu às obrigações judicialmente impostas e às orientações que lhe foram transmitidas, sendo os principais fatores de risco o longo historial de dependência de substâncias psicoativas, desocupação e consequente tendência para se relacionar com grupos de pares, igualmente, desocupados e ligados ao universo da toxicodependência;

b). Este arguido, além das acima apontadas em 3., não conta outros antecedentes criminais;

*

AB - Factos não provados:

6. Que o arguido vendesse comprimidos;

Que a encomenda do ponto 2. acima, constitua nova resolução, desligada da que se reporta à encomenda do ponto 1. e resultante de interrupção lograda com o 1º interrogatório judicial a que o arguido foi sujeito e lhe ter sido aplicada, nessa sequência, a medida de coação de obrigação de apresentação periódica, no inquérito 7/19.4……..»

C. Matéria de Direito

1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente e, perante estas, o arguido apresenta as seguintes questões:

- uma relativa à qualificação jurídica dos factos, que entende que deveriam ter sido qualificados como um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade [nos termos do art. 25.º, al. a), do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01] dada a diminuta ilicitude dos factos;

- outra relativa à medida da pena, que entende que não devia ultrapassar os 5 anos de prisão, a vencer a sua pretensão quanto à qualificação jurídica dos factos;

- alega também que, a manter-se a qualificação jurídica, a pena aplicada é desproporcional, excessiva, desadequada e desnecessária, não devendo exceder os 5 anos de prisão;

- considera ainda o arguido que o entendimento do Tribunal integrando os factos provados num crime de tráfico de estupefacientes resulta de ter consignado que a droga adquirida (haxixe) se “destinava à venda, ainda que não ao retalho porque nem foi aflorado”, pese embora tal entendimento não resulte, segundo o arguido, dos factos provados, pelo que devia tal considerando ser retirado da decisão, sob pena de violação do art. 32.º, n.º 2, da CRP.

Vejamos.

2. Sobre a violação do art. 32.º, n.º 2, da CRP, máxime da proibição da presunção de inocência do arguido

2.1. O arguido entende haver violação do disposto no art. 32.º, n.º 2, da CRP, pois apesar de ter sido dado como provado (no facto 3) que a droga se destinava a venda a terceiros, o certo é que, na fundamentação de direito, o Tribunal começou por afirmar que o arguido “recebeu e aprestou-se a receber…para venda a terceiros o produto haxixe” e depois, para fundamentar o entendimento de que os factos não se podiam subsumir ao disposto no art. 25.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, entendeu que a “conduta do arguido é altamente censurável especialmente se atendermos a que não se dedicava ao retalho, ainda que a droga não seja a que maior danosidade acarreta…coisa que, de forma clara, já que este tipo de crime de ilicitude diminuída se quadra para o retalho, que não é o caso…está afastada.”

Ou seja, da matéria de facto provada resulta que o arguido destinava o produto estupefaciente à venda, mas não se sabe, apenas a partir da matéria de facto provada, se iria vender aquela droga em doses individuais a consumidores que a ele se dirigissem, ou se iria vender a totalidade apenas a uma pessoa que depois faria o tal dito “comércio a retalho”. Ora, não estando dado como provado a que tipo de venda se destinava, a conclusão de que o arguido “não se dedicava ao retalho” parece constituir um argumento conclusivo (tal facto não foi levado nem à matéria de facto provada, nem à matéria de facto não provada) sem qualquer arrimo nos factos provados.  

Ora, em atenção ao princípio da presunção de inocência de que o princípio in dubio pro reo é um corolário, não havendo matéria de facto provada que permita retirar aquela conclusão, não poderá ser tida em conta em desfavor do arguido. E não se diga que com isto estamos a alterar matéria de facto; estamos sim a analisar a conduta do arguido na estrita medida da matéria de facto provada — isto é, a droga destinava-se a venda. E estamos a proceder a uma simples análise da matéria de facto provada apresentada pelo Tribunal partindo dos factos provados (e sedimentados) na 1.ª instância (dado que não houve interposição de recurso em matéria de facto para o Tribunal da Relação) e do texto da decisão recorrida.

Constituindo o princípio in dubio pro reo um princípio em matéria de prova, a análise da sua violação (ou não) constitui matéria de direito[14], ou questão de direito enquanto juízo de valor ou ato de avaliação da violação (ou não) daquele princípio[15], portanto no âmbito de competência deste tribunal. E assim tem sido entendido por este tribunal:

- “O princípio in dubio pro reo, que nada tem a ver com as dúvidas suscitadas ao nível da interpretação das leis, é um princípio geral de direito processual penal, corolário do princípio da presunção da inocência do arguido, com tradução no n.º 2 do art. 32.º da CRP, constituindo a sua violação uma questão de direito, muito embora se assuma como princípio de prova, conformando um daqueles princípios passível de revista.”[16]

- “O princípio in dubio pro reo é princípio geral do processo penal decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido. Como tal, assume a natureza de uma questão de direito de que o STJ deve conhecer quando da globalidade do próprio texto da decisão resultar que o tribunal, apesar da hesitação sobre a prova de determinado facto, decidiu em sentido desfavorável ao arguido.”[17]

- “O STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.” [18]

Assim sendo, a análise da violação deste princípio constitui matéria de direito no âmbito de cognição deste tribunal.

Ora, tendo em conta os factos provados, nomeadamente, que o arguido destinava a droga a venda (sendo que daquela matéria de facto apenas resulta isto mesmo)  do texto da decisão recorrida não emerge qualquer dúvida quanto ao destino da droga recebida pelo arguido — dos factos provados resulta apenas que se destinava a venda, sem que se aflore se se tratava (ou não) de venda a retalho, e sem que do texto da decisão recorrida se vislumbre qualquer dúvida quanto ao facto de a droga se destinar a venda.

2.2. Constituindo o princípio in dubio pro reo um corolário do princípio da presunção da inocência (como referimos), embora de âmbito mais restrito do que este último, caberá averiguar se não ocorreu uma violação deste outro princípio, tal como alegado pelo recorrente.

Considerando que:

“O princípio in dubio pro reo só se aplica no caso de surgir a dúvida quanto à apreciação da matéria de facto. O princípio da presunção de inocência, atento o objetivo que visa atingir, intervém em momento anterior, condicionando o surgimento dessa dúvida, impondo-o em todas as situações em que, à luz da verdade material, a culpabilidade do arguido não possa considerar‑se afirmada com certeza.

A dúvida é, assim, por imposição do princípio de presunção de inocência, uma dúvida legal: uma dúvida que deve surgir em determinadas circunstâncias e constitui também matéria de direito, não só a questão de saber se a dúvida surgida na apreciação da prova foi resolvida favoravelmente ao arguido – caso em que se está perante a verificação do respeito do princípio in dubio pro reo –, mas também se, em face da prova produzida, a dúvida surgiu quando devia, ou, noutra perspetiva, se o juízo de certeza foi bem fundado. Nesse caso, o princípio cujo respeito se avalia é, não já o in dubio pro reo, mas, mais rigorosamente, o princípio da presunção de inocência.

O princípio da presunção de inocência distingue-se, assim, do princípio in dubio pro reo, não só pela sua relevância no tratamento do arguido ao longo de todo o processo e pelo seu reflexo extraprocessual como critério dirigido ao legislador ordinário, mas também, em sede de prova, impondo que a dúvida surja em determinadas circunstâncias, assim possibilitando, em momento lógico posterior, a aplicação do princípio in dubio pro reo[19],

terá havido neste caso violação do princípio da presunção da inocência?

Isto é, não tendo ocorrido prova quanto ao modo como o arguido iria vender a droga que recebeu, e uma vez que nada mais de concreto foi provado, estaremos perante um caso de violação daquele princípio, quando se afirma que o arguido não se dedicava “ao retalho”?

Isto é, tendo ficado provado que o arguido destinava o haxixe à venda, mas não constando da decisão factos provados quanto à venda a retalho, ao consumidor final, tanto mais que o arguido não chegou a ter posse direta sobre parte do produto recebido, poderemos dizer que o argumento apresentado como não se destinando o haxixe a venda a retalho, e daí retirando a consequência de os factos não poderem ser subsumidos ao tipo legal de crime de tráfico de menor gravidade, constitui uma violação do princípio da presunção de inocência?

Embora a um outro propósito, o Tribunal Constitucional afirmou:

«na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.»[20]

Ora, tendo em conta a matéria de facto provada, nomeadamente o facto conhecido e provado de que “pretendia introduzir [na] ilha aquelas quantidades de haxixe (...) para posterior venda com obtenção de lucro”, consideramos que nada nos permite concluir que o arguido não iria vender diretamente ao consumidor final, diretamente a retalho. Não temos elementos que nos permitam concluir isso, nem o seu contrário. Aliás, tendo em conta a forma rudimentar como a droga lhe chegou e parecendo atuar isoladamente, entendemos que haveria um maior grau de probabilidade de considerar que a droga se destinava ao consumidor final e a ser vendida a retalho, em pequenas doses, do que o contrário. Pelo que o entendimento plasmado na fundamentação de facto[21] e de direito[22] como o de o arguido não se dedicar à venda a retalho constitui uma violação daquele princípio da presunção de inocência, por o juízo de certeza enunciado quanto a não se destinar a venda a retalho não se apresentar fundado.

Perante isto, nada obsta, porém, ao conhecimento das restantes questões, uma vez que há factos provados que podem ser qualificados juridicamente, pelo que se considera que o Tribunal tem elementos suficientes para decidir. Sendo que a análise que se seguirá apenas se baseará nos factos provados, sem que seja dado qualquer relevo à afirmação de que o arguido não destinava a droga à venda a retalho.

Quanto a saber se o provado deve ser ou não subsumido ao crime de tráfico de menor gravidade, iremos proceder a essa análise infra.

3. Sobre a qualificação jurídica dos factos

O crime de tráfico de estupefacientes, nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, integra como conduta típica uma série muito diferenciada de ações — cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, colocar à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver produtos estupefacientes. Tendo em conta a abrangência das condutas típicas, partindo de uma análise do crime quanto à conduta, e tendo em conta a dicotomia desta classificação, entre crime de mera atividade e crime de resultado, isto é, entre os casos em que a conduta é logo punida independentemente da verificação (ou não) de um resultado, e os casos em que só é punida a conduta que produza um resultado espácio-temporalmente distinto da ação, podemos concluir que haverá casos em que se pode entender que existe um resultado distinto da simples conduta — como no ato de cultivar a planta, em que da conduta, cultivar, surge um resultado, a planta, distinto quer no tempo, quer no espaço, daquela — e outros em que o tipo pune a conduta independentemente da verificação do resultado e, por isto, se tem entendido que se trata de um crime de mera atividade.

Quanto ao bem jurídico, tem sido este classificado como um crime de perigo abstrato, considerando-se que daquelas atividades descritas no tipo decorre já um perigo de lesão do bem jurídico da “saúde pública”; protege também diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, embora o bem jurídico primariamente protegido seja o da saúde pública. Ou, mais precisamente, “o escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. Assim, o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e, demais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos[23]; ou nas palavras de Lourenço Martins[24]o bem jurídico primordialmente protegido pelas previsões do tráfico é o da saúde e integridade física dos cidadãos vivendo em sociedade, mais sinteticamente a saúde pública. (…) Em segundo lugar, estará em causa a protecção da economia do Estado, que pode ser completamente desvirtuada nas suas regras (…) com a existência desta economia paralela ou subterrânea erigida pelos traficantes”.

Aquilo que distingue o crime de tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º, do DL n.º 15/93 do crime previsto no art. 25.º, do mesmo diploma, reside apenas na menor ilicitude da conduta punida neste último dispositivo. Segundo a lei, constituem, entre outros, fatores relevantes dessa menor ilicitude, os meios utilizados na venda do estupefaciente, a modalidade e circunstância em que a conduta é realizada, a qualidade e quantidade do produto vendido, entre outros fatores que, atento o caso concreto, possam diminuir a ilicitude da conduta realizada.

Sem curar de analisar a problemática inerente a um tipo que deixa em aberto a caracterização da ilicitude da conduta como diminuta, teremos que recorrer à jurisprudência para que, com alguma constância, possamos determinar o que integra a menor ilicitude num comportamento de tráfico de estupefacientes.

Assim, tem-se considerado que será a partir de uma análise global dos factos que se procederá à atribuição de um significado unitário quanto à ilicitude do comportamento[25], avaliando não só a quantidade como a qualidade do produto vendido, o lucro obtido, o facto de a atividade constituir ou não modo de vida, a utilização do produto da venda para a aquisição de produto para consumo próprio, a duração e intensidade da atividade desenvolvida, o número de consumidores/clientes contactados e o “posicionamento do agente na cadeia de distribuição clandestina”[26].

Numa tentativa de estabelecer critérios para o que se possa designar de tráfico de menor gravidade, em acórdão de 2011[27] foi então considerado que integram esta categoria aqueles casos em que cumulativamente se verifiquem as seguintes circunstâncias:

a) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet);

b) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;

c) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;

d) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas.

e) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;

f) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;

g) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;

h) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.”

Por seu turno, estaremos perante um comportamento a integrar no tipo fundamental de crime de tráfico de estupefacientes, previsto no art. 21.º do DL n.º 15/93, quando estamos perante um vendedor com uma atividade de média ou grande escala provocadora de uma danosidade social média ou elevada, sem que, no entanto, se atinja o grau de ilicitude agravada pressuposto no art. 24.º do diploma referido.

É certo que poderemos considerar que existem alguns casos cuja gravidade não se apresenta como significativa, sem que, porém, se possa concluir existir uma considerável diminuição da ilicitude. Será aquilo que este Supremo Tribunal[28] integrou no que designou como “zona cinzenta”, em que “o juiz fica na dúvida sobre a real dimensão do tráfico em causa e, nesses casos, deverá, tendencialmente, aplicar uma pena cuja medida concreta é coincidente na moldura penal abstracta do crime de tráfico comum e na do crime de tráfico menor gravidade, a qual, conforme se pode verificar pelos artigos 21.º e 25.º, se situa entre os 4 e os cinco anos de prisão. (...) Naqueles casos a que chamámos de «zona cinzenta», o legislador apontou para que se aplicasse o crime regra – o do art.º 21.º - mas permitiu que a sua moldura mais baixa convergisse com a penalidade própria do art.º 25.º. (...) Note-se que o legislador não se contentou com uma simples diminuição da ilicitude para enquadrar o crime de tráfico de menor gravidade, pois obrigou a que fosse “consideravelmente diminuída”. Do mesmo modo, não aceitou que o tráfico que é realizado pelo agente com a finalidade de obter droga para o seu consumo seja sempre integrado no crime privilegiado do traficante-consumidor, pois que essa finalidade tem de ser “exclusiva”. Em ambos os casos, o legislador deu um sinal claro ao intérprete de que os crimes privilegiados são a excepção e nunca a regra[29].

Tendo em conta estes considerandos, analisemos, a partir da matéria de facto provada, a conduta praticada, o modo, a intensidade, a regularidade do comportamento do arguido julgado nestes autos.

Ficou provado que nos dias 7 de maio de 2019 e 6 de junho de 2019, o arguido recebeu duas encomendas contendo, entre outras coisas, num caso 4 placas de haxixe com o peso total de 388, 40 gr (facto provado 1) e no outro caso contendo 2 placas de haxixe com um peso total de 77, 892 gr e com um grau de pureza de 18,5 % sendo suficiente para 288 doses (facto provado 2), ou seja, um total de 466, 292 gr — trata-se de uma quantidade significativa que ultrapassa em muito o que seria necessário para um consumo diário do arguido. Foi ainda dado como provado que o arguido pretendia vender a droga, e ficar com o lucro desse comércio. São estes apenas os factos provados, e perante estes teremos que concluir se se tratou ou não de um tráfico de menor gravidade.

Consideramos estar perante um crime de tráfico de menor gravidade, dado que a situação provada revela uma ilicitude diminuída relativamente às condutas que integram o tipo legal de crime base do crime de tráfico de estupefacientes (previsto no art. 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93), isto porquanto:

- não resulta da matéria de facto provada a utilização de meios sofisticados para a aquisição do produto estupefaciente, e muito menos a utilização de quaisquer meios para os atos de venda (uma vez que nem sequer existem factos provados de venda); na verdade, a droga foi adquirida (nem se sabe se gratuitamente ou onerosamente) por um meio simples – a receção de uma encomenda postal, e nada sofisticado;

- não resulta da matéria de facto provada o modo como o arguido terá conseguido adquirir a droga, nem se percebe sequer se adquiria deste modo há muito ou pouco tempo;

- o produto adquirido, e na parte em que o está provado, tem reduzida qualidade (cerca de 78 gr tinham apenas um grau de pureza de 18,5%), sendo que a este acresceram cerca de 390 gr, o que perfaz um total de haxixe de cerca de 470 gr, o que constitui uma quantidade que permite a criação de diversas doses individuais, mas nem sequer está provado que seria o arguido a transformar o produto em doses individuais e a vendê-lo a retalho;

- não resulta da matéria de facto provada qual o lucro que obteria com o produto;

- e apesar de se saber que o arguido, ao tempo dos factos, estava desempregado [facto provado  a)] , não resulta da matéria de facto provada que o arguido fizesse da venda de produtos estupefaciente o seu modo de vida;

- não há prova da duração e da intensidade venda de estupefacientes;

- não há prova de a quantos consumidores (finais) vendeu droga, se é que vendeu, pois também não consta da matéria de facto provada;

- não se tem prova de qual a sua posição na cadeia de distribuição do produto ilícito.

Do exposto, somos forçados a concluir que a conduta se integra na noção de tráfico de menor gravidade, nos termos do art. 25.º, do Decreto-Lei n.º 15/93.

Na verdade, não podemos aderia à fundamentação do acórdão recorrido, para concluir tratar-se de um crime de tráfico de estupefacientes, nos termos do art. 21.º, do diploma referido.

Segundo o acórdão recorrido:

«(...) Efetivamente, recebeu e aprestou-se a receber…para venda a terceiros o produto haxixe (...). A conduta do arguido é altamente censurável especialmente se atendermos a que não se dedicava ao retalho, ainda que a droga não seja a que maior danosidade acarreta…coisa que, de forma clara, já que este tipo de crime de ilicitude diminuída se quadra para o retalho, que não é o caso…está afastada.» (cf. ac. recorrido).

Verifica-se que o Tribunal a quo pretende fundamentar o seu entendimento no facto de o arguido não vender a retalho, mas a matéria de facto provada é omissa quanto a isso. E por isso, não havendo factos provados da densidade do negócio a realizar, não podemos, tal como a matéria de facto provada se apresenta, concluir pela maior ilicitude.  Tanto mais que da fundamentação da matéria de facto também nada resulta quanto ao negócio do arguido. Apenas se refere que à data dos factos o arguido não trabalhava (“não trabalhava nem trabalha e estava…nitidamente…à espera da encomenda…” – cf. ac. recorrido) e que não havia dúvidas quanto a ser o arguido o destinatário de ambas as encomendas (o que resulta expressamente da matéria de facto provada) e que destinava a droga a venda (também resulta de forma expressa da matéria de facto provada) — “não restam dúvidas que o arguido era, efetivamente, o destinatário do haxixe aqui em [causa] e que, naturalmente, destinava à venda, ainda que não ao retalho porque nem foi aflorado, pois não é, como o confessou, consumidor desse tipo de droga” (cf. ac. recorrido); porém, a razão de se ter concluído que não se tratava de venda a retalho não aparece exposta na fundamentação da matéria de facto, nem dos factos provados. Consta ainda da fundamentação da matéria de facto que “o arguido dedicava-se à venda de haxixe e…sendo-lhe apreendido o produto que [mercava]…necessariamente haveria de se reabastecer…o que fez” (cf. ac. recorrido), embora não existam factos provados desta atividade de mercar.

É certo que a prova deve ser interpretada livremente “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” (art 127.º, do CPP), porém, isto mesmo tem que resultar plasmado de alguma forma nos factos provados; ora, dos factos provados resulta expressamente que a droga se destinava a venda para posterior lucro, mas qual a dimensão da venda, quer em quantidade quer em destinatários, se se tratava ou não de uma venda de rua ou a retalho, se tinha ou não uma rede de consumidores que abasteceria regularmente, nada disto resulta dos factos que nos permita melhor sedimentar uma subsunção destes ao tipo de ilícito mais grave.

Deve ainda referir-se que a habitualidade ou reiteração da atividade deve também estar de algum modo refletida na matéria de facto provada, o que aqui também não acontece. É certo que, do facto provado 4, resulta que o arguido já anteriormente foi condenado num crime de tráfico de menor gravidade; porém, a habitualidade e reiteração da atividade tem que ser aferida pelos factos provados nestes autos, e não por outros factos provados noutros autos, sob pena de estarmos a punir duas vezes os factos julgados naqueles outros autos. Acresce que, num direito penal do facto, a decisão de condenação (ou não) deve ter por base os factos provados, e não deve constituir uma condenação por uma conduta global decorrente de outros factos julgados em outros processos (uma possível análise global de todos os factos julgados em diversos processos apenas deverá ocorrer numa situação de concurso de crimes, o que não é de todo o caso).

Assim sendo, entendermos tratar-se de uma conduta subsumível ao disposto no art. 25.º, al. a), do Dec. Lei n.º 15/93, procedendo nesta parte o recurso interposto.

4. Sobre a medida da pena

4.1. Comecemos por referir que, pese embora o arguido tenha sido acusado (por dois crimes de tráfico de estupefacientes nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93) como reincidente, foi absolvido “da reincidência”[30]; e da matéria de facto provada (cf. facto provado 4) verifica-se que o arguido foi condenado em crime de tráfico de menor gravidade, praticado a 14.11.2013, numa pena de prisão efetiva de 3 anos e 6 meses, tendo terminado o cumprimento da pena (em cúmulo com outras) a 30.04.2018; os factos dos autos foram praticados em 2019. Apesar disto, e em atenção ao princípio da proibição da reformatio in pejus (cf. art. 409.º, do CPP), ainda que se entenda que os pressupostos formais da reincidência estão preenchidos, não vamos analisar o pressuposto material. Não só em atenção ao princípio referido, mas também porque, tendo havido uma decisão absolutória quanto a este ponto, em 1.ª instância, essa parte da decisão não só não foi objeto de recurso pelo arguido, como não foi objeto de recurso interposto pelo Ministério Público contra o arguido. Assim sendo, nesta parte a decisão transitou em julgado.

4.2. A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenham sido tomadas em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

Estamos perante um crime contra a saúde pública, onde as necessidades de prevenção geral de integração da norma e de proteção de bens jurídicos são prementes. Além disto, o “sentimento jurídico da comunidade” apelando, por um lado, a uma eliminação do tráfico de estupefacientes e, por outro lado, a uma diminuição deste tipo de criminalidade, pretende uma correspondente consciencialização de todos aqueles que se dedicam a estas práticas ilícitas para os efeitos altamente nefastos para a saúde e vida das pessoas.

No presente caso, o arguido vem condenado pela aquisição de haxixe num total de cerca de 470 gr, sendo que foi provado que em uma parte se tratava de droga com baixo grau de pureza; tratou-se de uma aquisição em dois momentos distintos, separados temporalmente em 1 mês.

Ora, lado a lado com aquelas enormes exigências de prevenção geral, afiguram-se‑nos igualmente relevantes as exigências de prevenção especial do agente, especialmente tendo em conta que foi dado como provado que “Face aos factos pelos quais se encontra presentemente acusado, o arguido não se revê nos comportamentos descritos, revelando alguma dificuldade em compreender a conduta criminal em causa, acabando por assumir uma postura de desresponsabilização. O arguido tem revelado dificuldade em gerir os impulsos e em ajustar o seu comportamento às normas e regras sociais vigentes. Tem vindo a demonstrar um estilo de funcionamento muito centrado nas suas necessidades pessoais, não revelando sentido crítico face ao seu passado e face à sua atual situação jurídico-penal” [cf. facto provado 5 a)]. Porém, em meio prisional, o arguido “tem revelado capacidade de adesão e cumprimento das regras internas” [cf. facto provado 5 a)], e “mantém-se integrado no programa de tratamento com opiáceos de substituição” [cf. facto provado 5 a)]. Além disto, “após a última libertação, o arguido evidenciou fatores positivos, como sendo a aceitação da intervenção externa/acompanhamento” e aderiu “às obrigações judicialmente impostas e às orientações que lhe foram transmitidas, sendo os principais fatores de risco o longo historial de dependência de substâncias psicoativas, desocupação e consequente tendência para se relacionar com grupos de pares, igualmente, desocupados e ligados ao universo da toxicodependência” [cf. facto provado 5 a)].

Ora, a partir de uma moldura penal entre 1 e 5 anos de prisão, e tendo em conta a atuação dolosa do arguido (cf. facto provado 3), e considerando a culpa manifestada no facto, reveladora de uma atitude contra o direito, considera-se como adequada e necessária a pena de 4 (quatro) anos de prisão.

4.3. Tendo em conta a pena concreta aplicada, e sabendo que nosso sistema de reações criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade — cf. art. 70.º do CP — devendo o tribunal dar primazia a estas quando se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, há que equacionar da possibilidade (ou não) de aplicação de uma pena de substituição. Atenta a pena concreta deve (ou não) aplicar-se a pena de substituição da suspensão da execução da pena de prisão?

Ora,  tendo em conta a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e, principalmente, a sua conduta posterior à prática dos crimes aqui julgados, dever‑se‑á concluir, para que haja a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, que “a censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição” (art. 50.º, n.º 1 do CP), isto é, as finalidades referidas no âmbito do art. 40.º, n.º 1 do CP — “protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

Assim sendo, e a partir dos factos dados como provados, terá que se avaliar aqueles elementos que nos permitam concluir pela aplicabilidade ou não da pena de substituição da suspensão da execução da pena de prisão.

Dos factos provados, e para além das exigências relevantes em matéria de prevenção geral atento o crime praticado, mas sabendo que abstratamente não há um tipo legal de crime que à partida impeça a possibilidade de aplicação de uma pena de substituição, e que o regime das penas de substituição não está restrito, legalmente, à prática de específicos crimes, consideramos que, atenta a quantidade de produto estupefaciente adquirido, as exigências de prevenção geral são relevantes, pelo que a aplicação de uma pena de substituição se mostra insuficiente para satisfazer estas exigências.

Mas estas devem ser articuladas com as exigências de prevenção especial. Porém, o arguido já anteriormente foi condenado pela prática do mesmo crime, e tendo sido condenado em prisão efetiva, nada o impediu de voltar a cometer novo crime. Por outro lado, não só não revela arrependimento quanto à conduta praticada, como assume uma atitude de desresponsabilização, para além de “demonstrar um estilo de funcionamento muito centrado nas suas necessidades pessoais, não revelando sentido crítico face ao seu passado e face à sua atual situação jurídico-penal” [facto provado 5b)]. Ora, destes elementos, da personalidade do agente revelada nos factos, e da sua conduta posterior, em particular, a sua reação aos factos praticados, não podemos concluir que a simples censura do facto e ameaça da pena o afaste de posteriormente cometer crimes, ou que a aplicação de uma pena de substituição realize de forma adequada as exigências de prevenção especial. Pelo que, consideramos não estarem verificados os pressupostos necessários para aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão. 

III

Conclusão

Nos termos expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA,

1) condenar o arguido pelo crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade nos termos do art. 25.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 (e alterações posteriores), na pena de prisão de 4 (quatro) anos;

2) determinar a remessa de cópia da presente decisão, da ata de audiência de discussão e julgamento do dia da leitura da decisão, bem como das sucessivas comunicações da Ordem dos Advogados a nomear novo defensor oficioso, da decisão de não admissão do recurso, e de posterior decisão a admiti-lo, à Ordem dos Advogados para o que entender por conveniente quanto aos Senhores Advogados CC e DD.

Custas com 3 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 3 de dezembro de 2020

Os juízes conselheiros,

    

(Helena Moniz)         

(Francisco Caetano)

              

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[1] Nos presentes autos foi deferido o pedido de proteção jurídica nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, e pagamento de compensação de defensor oficioso (fls. 153 e 154).
[2] Tiago Caiado Milheiro, art. 64, § 54, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, Coimbra: Almedina, 2019, p. 713.
[3] Idem.
[4] Maria do Carmo Silva Dias, art. 66.º, §§ 29, 30 e 31, Comentário Judiciário... cit. supra, p. 739-740
[5] Direito Processual Penal Português, vol. 1, Lisboa: UCP, 2017, p. 335.
[6] Sumário publicado aqui: www.stj.pt/jurisprudência/Acórdãos/Sumários
[7] In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a8476cff4551f9078025806b005b9507?OpenDocument
[8] Sumário in www.stj.pt/jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos/Criminal - Ano de 2017
[9] Sumário in www.stj.pt/jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos/Criminal - Ano de 2017
[10] In www.tribunalconstitucional.pt
[11] Ac. de 22.07.2008, Requête n.º 10418/03 (in  http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/caso_panasenko_c_portugal_queixa_10418-03_traducao.pdf).

[12] Ac. de 07.10.2008, Requête n.º 35228/03, in http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/caso_bogumil_traducao_queixa_35228-03.pdf; em sentido idêntico, considerando que deve garantir-se uma verdadeira assistência e não uma simples “nomeação”, cf. caso Falcão dos Santos c. Portugal, Requête n.º 50002/08, ac. de 03.07.2012, in https://hudoc.echr.coe.int/fre#{%22itemid%22:[%22001-111835%22]}
[13] Caso Panasenko c. Portugal cit. supra.
[14] Assim, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, nm. 235.
[15] Figueiredo Dias, Crime Preterintencional, causalidade adequada e questão-de-facto, RDES, ano XVII (1970), p. 34 da separata.
[16] Ac. de 22-01-2013, Proc. n.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1 - 3.ª Secção, Armindo Monteiro (relator).
[17] Ac. de 06-02-2013, Proc. n.º 593/09.7TBBGC.P1.S1 - 3.ª Secção, Sousa Fonte (relator).
[18] Ac. de 29-05-2013, Proc. n.º 344/11.6JALRA.E1.S1 - 3.ª Secção, Santos Cabral (relator).
[19] Helena Magalhães Bolina, «Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção da inocência (art. 32.º, n.º 2, da CRP»), Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXX, 1994, Coimbra, págs.445-6
[20] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015, in www.tribunalconstitucional.pt.
[21] “(...) não restam dúvidas que o arguido era, efetivamente, o destinatário do haxixe aqui em caus e que, naturalmente, destinava à venda, ainda que não ao retalho porque nem foi aflorado, pois não é, como o confessou, consumidor desse tipo de droga.” (ac. recorrido na fundamentação de facto).
[22]A conduta do arguido é altamente censurável especialmente se atendermos a que não se dedicava ao retalho, ainda que a droga não seja a que maior danosidade acarreta…coisa que, de forma clara, já que este tipo de crime de ilicitude diminuída se quadra para o retalho, que não é o caso…está afastada.” (ac. recorrido na fundamentação de direito).
[23] Ac. do TC n.º 426/91, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19910426.html
[24] Droga e direito, Lisboa: Æquitas/Ed. Notícias, 1994, p. 122.
[25] Neste sentido, ac. do STJ, proc. n.º 111/10.4PESTB.E1.S1, de 07.12.2011, relator: Cons. Rodrigues da Costa, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b0d5a0c6991279928025799e003c8c90?OpenDocument
[26] Ac. do STJ, proc. n.º 17/09.0PJAMD.L1.S1, de 15.04.2010, relator: Cons. Maia Costa, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8a76d4064195af838025771c004b7568?OpenDocument
[27] Cf. Acórdão do STJ de 23.11.2011, supra citado.
[28]Cf. Acórdão do STJ de 23.11.2011, supra citado.
[29] Cf. Acórdão do STJ de 23.11.2011, supra citado.
[30] Consta do dispositivo “(...) B) absolver o arguido Adelino Salvador Tavares Pereira da reincidência que lhe vinha imputada”.