Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2889/15.0T8OVR-A.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: HIPOTECA
INDIVISIBILIDADE
PROPRIEDADE HORIZONTAL
FRAÇÃO AUTÓNOMA
DISTRATE
DIVISIBILIDADE
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
RENÚNCIA
DECLARAÇÃO TÁCITA
NORMA SUPLETIVA
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
CONDENAÇÃO EM CUSTAS
DECAIMENTO
REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O facto de o STJ, regra geral, não conhecer da matéria de facto, não significa, porém, que tenha de se ater exclusivamente quer aos factos selecionados pelas instâncias quer aos precisos termos verbais utilizados na sua enunciação.

II. O STJ goza de plena liberdade na forma linguística e formal como expressa o elenco factual definido pelas instâncias como, estando vinculado aos factos materiais adquiridos nos autos (artigos 607º, nº 4, 663º, nº 2 e 679º do CPC), deve também considerar os factos que resultem de meios de prova com força probatória plena, os factos notórios e, ainda, os factos tidos em conta, mas não enunciados no elenco factual que se mostrem relevantes para a apreciação jurídica da causa.

III. A hipoteca tem como características a realidade, a especialidade, a acessoriedade, a publicidade e a indivisibilidade;

IV. A indivisibilidade da hipoteca funda a sua razão de ser num assumido propósito do legislador de protecção do credor relativamente às consequências das vicissitudes da coisa onerada e tem por alicerce um equilíbrio entre a estabilidade material da garantia originária e a tutela do crédito garantido na sua integralidade; quebrado ou interrompido esse equilíbrio, a indivisibilidade da garantia perde o seu fundamento.

V. A indivisibilidade é uma característica natural, que não essencial, da hipoteca e está na disponibilidade das partes, que a podem afastar por convenção concomitante ou posterior à constituição da garantia, expressa ou tácita, e é susceptível de renúncia, expressa ou tácita, por parte do credor hipotecário.

VI. A hipoteca ou é indivisível ou é divisível; não há hipotecas parcialmente indivisíveis ou parcialmente divisíveis.

VII. Constando do contrato de abertura de crédito em conta corrente com garantia hipotecária que o financiamento se destinava à construção de um edifício multifamiliar, um conjunto de obrigações de informação por parte do promotor imobiliário indiciárias de um acompanhamento pormenorizado do desenvolvimento do empreendimento por banda do banco financiador e a obrigação de afectação do produto das vendas à redução do crédito, segundo critérios a determinar pelo banco financiador, haverá de interpretar tais declarações negociais, à luz do contexto socialmente típico desse tipo de operações e segundo critérios de interpretação integrativa, como convencionando que, uma vez constituído o prédio a construir em propriedade horizontal, a garantia hipotecária se distribuiria parcelarmente por cada uma das várias fracções, passando a hipoteca ser divisível.

VIII. Além de que, a referência no contrato da obrigação da afectação parte do preço na liquidação do crédito, segundo critério a estabelecer pelo credor, a referência à existência de um mapa de distrates e à indicação pelo banco previamente a cada acto de venda do montante a afectar à liquidação do crédito, montantes esses calculados em função da permilagem, e a consistente e reiterada emissão de declarações de distrate (42 em 47 fracções num prédio e 46 em 52 fracções noutro prédio) constituem ‘facta concludentia’ de uma convenção ou renúncia tácita à indivisibilidade da hipoteca.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE EMBARGOS DE EXECUTADO



ENTRE




AA

Executada 1 / Embargante 1 / Apelante / Apelada / Recorrente

BB

Executado 2 / Embargante 2 / Apelante / Apelado / Recorrente

CC

e

DD


Executado 3 / Embargante 3 / Apelante / Apelado / Recorrente

EE

Executado 4 / Embargante 4 / Apelante / Apelado / Recorrente

(aqui patrocinados por FF, adv.)





CONTRA

CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL


(aqui patrocinado por GG, adv.)

Exequente / Embargado / Apelante / Apelado / Recorrido



I – Relatório


O Exequente intentou a execução para pagamento de quantia certa n.º …, contra a Executada 1, intentando a cobrança de € 760.993,53 de capital, juros e demais encargos derivados do contrato de “abertura de crédito com hipoteca” com o n.º …60-1, celebrado em 21SET2006, dívida essa garantida por hipoteca sobre o prédio ...67..., de que a Executada 1 adquiriu a fracção “L”.

O Exequente intentou, também, a execução para pagamento de quantia certa n.º …, contra o Executado 2, intentando a cobrança de € 498.272.78 de capital, juros e demais encargos derivados do contrato de “abertura de crédito com hipoteca” com o n.º ... 61-9, celebrado em 21SET2006, dívida essa garantida por hipoteca sobre o prédio ...68..., de que o Executado 2 adquiriu a fracção “AH”.

O Exequente intentou, ainda, a execução para pagamento de quantia certa n.º ..., contra o Executado 3, intentando a cobrança de € 498.272.78 de capital, juros e demais encargos derivados do contrato de “abertura de crédito com hipoteca” com o n.º ... 61-9, celebrado em 21SET2006, dívida essa garantida por hipoteca sobre o prédio ...68..., de que o Executado 3 adquiriu as fracções “AM” e “AV”.

O Exequente intentou, por último, a execução para pagamento de quantia certa n.º …, contra o Executado 4, intentando a cobrança de € 1.259.266,31 de capital, juros e demais encargos derivados dos contratos de “abertura de crédito com hipoteca” com os n.ºs …60-1 e ... 61-9, celebrados em 21SET2006, dívida essa garantida por hipoteca sobre os prédios ...67... e ...68..., de que o Executado 4 adquiriu as fracções “W” do prédio ...67 e “AU” do prédio ...68.

Todos os Executados deduziram embargos à respectiva execução, arguindo preterição de litisconsórcio necessário passivo, o acordo do Exequente em excluir a sua fracção da garantia por a sua aquisição resultar de permuta, o abuso de direito, a prescrição da hipoteca e desconhecer quer o montante do crédito quer a sua liquidação.

O Exequente contestou todos os embargos propugnando pela improcedência dos embargos.

Por despacho de 23FEV2017 foi ordenada a apensação de todos os embargos, com vista ao julgamento e apreciação conjunta dos mesmos.

No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de preterição de litisconsórcio necessário passivo.

Após julgamento, foi proferida sentença que, considerando não ocorrer prescrição da hipoteca nos termos do art.º 730º, al. b) do CCiv, que a indivisibilidade da hipoteca é um benefício atribuído ao credor e por ele disponível, evidenciando os autos uma prática definida pela embargada que aceitava perante o devedor e os adquirentes das diversas fracções o distrate da hipoteca uma anuência à divisibilidade da hipoteca, e que a contagem dos juros só se inicia com a comunicação do montante actual do crédito, julgou os vários embargos de executado apensados parcialmente procedentes e determinou o

 «prosseguimento da execução para cobrança das seguintes quantias e nas condições a seguir indicadas:

Quanto ao contrato n.º ...01

- € 694.719,34, a título de capital ainda devido;

- juros de mora, à taxa contratualizada, sobre aquele capital, a contar da notificação do requerimento que a embargada juntou aos presentes embargos em 31/10/2019 (com a referência CITIUS ...), bem como imposto de selo sobre aqueles juros;

- cláusula penal moratória, à taxa de 3% ao ano, sobre aquele capital, a contar da notificação do requerimento que a embargada juntou aos presentes embargos em 31/10/2019 (com a referência CITIUS ...);

- as despesas liquidadas no requerimento que a embargada juntou aos presentes embargos em 31/10/2019 (com a referência CITIUS ...), e a contar da notificação desse requerimento.

• A responsabilidade de cada um dos embargantes calcula-se em função do montante global assim apurado e da permilagem das frações autónomas de que cada um dos embargantes é titular.

Quanto ao contrato n.º ...19

- € 299.668,87, a título de capital ainda devido;

- juros de mora, à taxa contratualizada, sobre aquele capital, a contar da notificação do requerimento que a embargada juntou aos presentes embargos em 31/10/2019 (com a referência CITIUS ...), bem como imposto de selo sobre aqueles juros;

- cláusula penal moratória, à taxa de 3% ao ano, sobre aquele capital, a contar da notificação do requerimento que a embargada juntou aos presentes embargos em 31/10/2019 (com a referência CITIUS ...);

- as despesas liquidadas no requerimento que a embargada juntou aos presentes embargos em 31/10/2019 (com a referência CITIUS ...), e a contar da notificação desse requerimento.

• A responsabilidade de cada um dos embargantes calcula-se em função do montante global assim apurado e da permilagem das frações autónomas de que cada um dos embargantes é titular.»

 Quer o Exequente quer os Executados apelaram dessa sentença invocando, o primeiro, não ocorrer divisibilidade da hipoteca e não haver necessidade de nova interpelação para provocar o vencimento de juros, os segundos, impugnando a decisão de facto e invocando abuso de direito. Tendo a Relação, considerando não ocorrer erro na decisão sobre a matéria de facto, não ocorrer divisibilidade da hipoteca, não ocorrer abuso de direito ao accionar a hipoteca sobre as fracções permutadas e pela totalidade da dívida e que o momento relevante para a contagem dos juros é a constituição em mora do devedor, embora a hipoteca apenas garanta os referentes a três anos, decidiu

«julgar improcedente a apelação dos executados/embargantes e procedente a apelação do exequente/embargado. Em consequência, alteram a decisão recorrida, julgando agora totalmente improcedentes os embargos de executado e ordenando o prosseguimento da execução pela quantia exequenda sem prejuízo do assinalado quanto aos juros de mora».

Irresignados, interpuseram os Executados recurso de revista, “ao abrigo do disposto nos artigos 627.º; 629.º; 631.º; 637.º; 638.º; 639.º; 671.º; 672.º, n.º l, al. c), e 674.º “ do CPC, invocando contradição com acórdão do STJ e concluindo, em síntese, pela divisibilidade da hipoteca, apenas “respondendo pelo montante exequendo na proporção da sua permilagem”, e por correrem os juros apenas após a sua interpelação.

Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

II – Da admissibilidade e Objecto do Recurso


A situação tributária mostra-se regularizada.

O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC.

O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, passível de revista nos termos gerais (artigos 629º e 854º do CPC). E tendo por objecto um acórdão que revogou a decisão da 1ª instância não se verifica a circunstância obstativa da ‘dupla conforme’, pelo que se torna irrelevante a apreciação da invocada contradição com acórdão deste Supremo Tribunal, como fundamento de revista excepcional.

Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

Destarte, o recurso merece conhecimento.

Vejamos se merece provimento.           


-*-


Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- se a hipoteca era indivisível ou divisível;

- sendo divisível qual o critério da divisibilidade;

- para a constituição em mora relativamente ao crédito garantido por hipoteca basta a interpelação do devedor hipotecário ou é necessária a demonstração da interpelação dos titulares dos bens hipotecados.

III – Os Factos

Regra geral o Supremo Tribunal de Justiça não conhece de matéria de facto, competindo-lhe apenas aplicar o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelas instâncias (art.º 682º, nº 1, do CPC).

Isso não significa, porém, que tenha de se ater exclusivamente quer aos factos selecionados pelas instâncias quer aos precisos termos verbais utilizados na sua enunciação. O Supremo Tribunal de Justiça goza de plena liberdade na forma linguística e formal como expressa o elenco factual definido pelas instâncias como, estando vinculado aos factos materiais adquiridos nos autos (artigos 607º, nº 4, 663º, nº 2 e 679º do CPC), deve também considerar os factos que resultem de meios de prova com força probatória plena, os factos notórios e, ainda, os factos tidos em conta, mas não enunciados no elenco factual que se mostrem relevantes para a apreciação jurídica da causa (cf. acórdão do STJ de 02FEV2017, proc. 200/11.8TBFVN.C2.S1).

Nessa conformidade entende-se no caso concreto dos autos, e para além de uma diferente ‘arrumação’ segundo critério lógico-cronológico, não só ser de dar outra formulação a alguns dos factos elencados de forma a melhor expressar a realidade do ocorrido, como de levar ao elenco factual alguns factos e cláusulas contratuais que se encontram provados por documentos não impugnados com força probatória plena, bem como factos considerados, ainda que como insuficientes para evidenciar outros factos, no acórdão recorrido.

A factualidade relevante é, assim, a seguinte:


I


a) Em 6 de Novembro de 2007, os embargantes CC e mulher, DD na qualidade de primeiros outorgantes, e HH, em representação da sociedade comercial “Edificaveiro, Lda.”, na qualidade de segundo outorgante, declararam, por escrito, perante notário, os primeiros que cedem e transferem para a sociedade representada pelo segundo, no valor global de um milhão oitocentos e setenta e cinco mil euros, os prédios rústicos descritos na Conservatória do Registo Predial de ... com os n.ºs ... e …, ambos da freguesia de ..., tendo o segundo outorgante declarado, em nome da sua representada e no valor global de um milhão oitocentos e setenta e cinco mil euros, que cede e transfere para os primeiros outorgantes as fracções autónomas ali melhor descritas, dos prédios a construir nos lotes de terreno designados pelos números seis e sete, descritos na Conservatória do Registo Predial de ... com os n.ºs ...67 e ...68, ambos da freguesia de ..., conforme instrumento de contrato de fls. 15 a 17 dos presentes embargos, cujos demais dizeres se dão por integralmente reproduzidos.

b) A sociedade exequente apenas teve conhecimento do negócio mencionado na alínea anterior por altura da instauração do PER com o n.º ....


II


c) A sociedade exequente, no exercício da sua actividade, por escritura pública datada de 21 de Setembro de 2006, celebrou com a sociedade “Edificaveiro, Lda.” um contrato de abertura de crédito em conta corrente com garantia hipotecária (n.º ...01) segundo o qual era concedido financiamento, até ao limite de € 5.150.000,00, destinado “à construção de um edifício de habitação multifamiliar no imóvel adiante hipotecado”.

d) Para garantia do integral cumprimento das obrigações emergentes e assumidas nesse contrato pela referida “Edificaveiro, Lda.”, esta parte devedora declarou constituir hipoteca a favor da exequente sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º ...67, da freguesia de ..., abrangente de todas as construções, edificações, melhoramentos e benfeitorias que no mesmo viessem a ser implantadas e/ ou averbadas no registo predial, estando aquela hipoteca registada mediante a inscrição Ap. … de 2006/05/15, que garante o montante máximo de capital e acessórios de € 7.892.375,00.

e) O empréstimo foi concedido pelo prazo de 3 anos, prorrogável por períodos anuais até ao máximo de 2 anos, podendo ser movimentado a débito e a crédito, nos termos da Cláusula 2ª da referida escritura. A sociedade “Edificaveiro, Lda.” obrigou-se perante a exequente a pagar-lhe juros trimestral e postecipadamente sobre os saldos utilizados indexada à taxa Euribor a 6 Meses acrescida de uma margem de 0,9000%, como tudo consta da Cláusula Primeira do Documento Complementar anexo à Escritura.

f) No nº 2 da cláusula 1ª do referido contrato consta:

 «Para a utilização do crédito aberto a parte devedora obriga-se ao cumprimento das seguintes condições:

a) a informar a CRMG da afectação dos fundos utilizados e respectivos montantes, relativamente ao empreendimento / projectos de construção em curso;

b) a enviar à CEMG toda a documentação respeitante ao empreendimento, nomeadamente projecto de construção aprovado, licença de construção actualizada, autorização de loteamento, averbamento da construção ou alteração do seu projecto inicial na respectiva descrição predial, certidão de registo predial actualizada de onde resulte que o imóvel não está sujeito a outros encargos;

c) a manter informada a CEMG, relativamente ao empreendimento em curso financiado pela presente abertura de crédito, quanto início dos respectivos trabalhos de construção, seu desenvolvimento e conclusão dos mesmos, bem como a manter a CEMG informada quanto ao montante e evolução das respectivas vendas, obrigando-se ainda, a afectar o produto das mesmas na redução do limite de crédito, segundo critérios a determinar pela CEMG.;

d) obriga-se a autorizar o acesso à obra dos representantes da CEMG por forma a que estes possam efectuar vistorias e determinar a evolução da construção, de acordo com o respectivo projecto e plano temporal previsto para a obra».

g) Naquele prédio foi, entretanto, edificado um edifício destinado a habitação com três corpos, A, B e C, sito na Rua …, nº …, … e … e Rua … nº …, da freguesia de ..., concelho de ..., constituído em regime de propriedade horizontal, com 47 fracções autónomas, designadas pelas letras ‘A’ a ‘AU’.



III


h) A sociedade exequente, no exercício da sua actividade, por escritura pública datada de 21 de Setembro de 2006, celebrou com a sociedade “Edificaveiro, Lda.” um contrato de abertura de crédito em conta corrente com garantia hipotecária (n.º ...19) segundo o qual era concedido financiamento, até ao limite de € 5.150.000,00 destinado “à construção de um edifício de habitação multifamiliar no imóvel adiante hipotecado”.

i) Para garantia do integral cumprimento das obrigações emergentes e assumidas nesse contrato pela referida “Edificaveiro, Lda.”, esta parte devedora declarou constituir hipoteca a favor da exequente sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º ...68, da freguesia de ..., abrangente de todas as construções, edificações, melhoramentos e benfeitorias que no mesmo viessem a ser implantadas e/ou averbadas no registo predial, estando aquela hipoteca registada mediante a inscrição Ap. … de 2006/05/15, que garante o montante máximo de capital e acessórios de € 7.892.375,00;

j) O empréstimo foi concedido pelo prazo de 3 anos, prorrogável por períodos anuais até ao máximo de 2 anos, podendo ser movimentado a débito e a crédito, nos termos da Cláusula 2ª da referida escritura. A sociedade “Edificaveiro, Lda.” obrigou-se perante a exequente a pagar-lhe juros trimestral e postecipadamente sobre os saldos utilizados indexada à taxa Euribor a 6 Meses acrescida de uma margem de 0,9000%, como tudo consta da Cláusula Primeira do Documento Complementar anexo à Escritura.

k) No nº 2 da cláusula 1ª do referido contrato consta:

 «Para a utilização do crédito aberto a parte devedora obriga-se ao cumprimento das seguintes condições:

a) a informar a CEMG da afectação dos fundos utilizados e respectivos montantes, relativamente ao empreendimento / projectos de construção em curso;

b) a enviar à CEMG toda a documentação respeitante ao empreendimento, nomeadamente projecto de construção aprovado, licença de construção actualizada, autorização de loteamento, averbamento da construção ou alteração do seu projecto inicial na respectiva descrição predial, certidão de registo predial actualizada de onde resulte que o imóvel não está sujeito a outros encargos;

c) a manter informada a CEMG, relativamente ao empreendimento em curso financiado pela presente abertura de crédito, quanto início dos respectivos trabalhos de construção, seu desenvolvimento e conclusão dos mesmos, bem como a manter a CEMG informada quanto ao montante e evolução das respectivas vendas, obrigando-se ainda, a afectar o produto das mesmas na redução do limite de crédito, segundo critérios a determinar pela CEMG.;

d) obriga-se a autorizar o acesso à obra dos representantes da CEMG por forma a que estes possam efectuar vistorias e determinar a evolução da construção, de acordo com o respectivo projecto e plano temporal previsto para a obra».


l) Naquele prédio foi, entretanto, edificado um edifício destinado a habitação com três corpos, A, B e C, sito na Rua … , n.ºs …, …., … e … e Rua …  nº …, da freguesia de ..., concelho de ..., constituído em regime de propriedade horizontal, com 52 fracções autónomas, designadas pelas letras ‘A’ a ‘AZ’.



IV


m) Na sequência da emissão pela sociedade exequente do respectivo documento de cancelamento parcial da hipoteca foi inscrito no registo predial o cancelamento da hipoteca referida em d), nas datas e relativamente às fracções do prédio ...67 constantes do seguinte quadro:


Prédio ...67
FracçãoDistrateFracçãoDistrate
A1620SET2010AA20.214JUL2010
B15.129JUL2010AB11.829JUL2010
C21---AC11.603NOV2010
D12.206JAN2011AD2728MAI2012
E13.325AGO2010AE23.312AGO2010
F20.105AGO2010AF28.713JUL2010
G12.106JAN2011AG29.528AGO2010
H13.225AGO2010AH23.120AGO2010
I20.304AGO2010AI28.509AGO2010
J25.520OUT2010AJ1425AGO2010
K20.307OUT2010AK13.607ABR2011
L25.2---AL23.820OUT2010
M21.114ABR2011AM27.4---
N25.514ABR2011AN14.125AGO2010
O22.428OUT2010AO13.629SET2010
P15.229JUL2010AP23.326OUT2010
Q12.302AGO2010AQ28.508NOV2010
R13.328JUL2010AR29.419AGO2010
S19.520NOV2013AS24.206AGO2010
T45.824SET2010AT28.508ABR2011
U26.402AGO2010AU2923SET2015
V19.503SET2010---------
W25.5------------
X2013AGO2010---------
Y25.629OUT2010---------
Z20.5------------

n) Na sequência da emissão pela sociedade exequente do respectivo documento de cancelamento parcial da hipoteca foi inscrito no registo predial o cancelamento da hipoteca referida em i), nas datas e relativamente às fracções do prédio ...68 constantes do seguinte quadro:


Prédio ...68
FracçãoDistrateFracçãoDistrate
A8.131MAI2011AA20.216MAR2010
B12.207OUT2010AB12.314NOV2010
C13.7---AC13.508ABR2010
D19.609MAR2010AD19.927MAR2011
E14.304FEV2010AE12.402JUN2010
F1406JAN2011AF13.724FEV2010
G2914JUN2010AG20---
H2427SET2010AH25.9---
I14.325AGO2010AI20.111FEV2010
J13.908FEV2010AJ2617DEZ2010
K29.920MAI2010AK20.202JUN2010
L2423MAR2010AL2611JUL2011
M14.425AGO2010AM15.2---
N14.118MAI2010NA16.103FEV2010
O2925NOV2010AO12.319ABR2010
P23.806SET2010AP13.519FEV2010
Q3024FEV2010AQ21.618FEV2010
R29.214JUN2010AR12.628ABR2010
S25.625FEV2010AS14.229ABR2010
T14.416MAR2010AT21.609ABR2010
U13.902JUN2011AU25.3---
V29.416FEV2012AV20.6---
W24.606MAI2010AW2631MAR2010
X15.729MAR2010AX20.710FEV2010
Y10.906SET2010AY25.909DEZ2011
Z11.822FEV2010AZ20.424MAR2011

o) Todas as alienações das fracções vendidas pela sociedade “Edificaveiro, Lda.” a terceiros e em relação às quais a exequente emitiu documento de cancelamento parcial da hipoteca ocorreram após 13.07.2010.

p) O valor de cada distrate era composto por uma parte de capital amortizado calculado em função da permilagem da fracção autónoma a expurgar da hipoteca, pelos juros remuneratórios desse capital em função do tempo decorrido, e ainda por despesas (p. ex., seguros) e comissões contratualizadas.

q) Nos seus testemunhos os funcionários do banco exequente afirmaram que havia um mapa de distrates e que ele era seguido na emissão dos mesmos.

r) As testemunhas que eram sócios e gerentes da sociedade de construções devedora também afirmaram que havia um mapa de distrates pelo que quando queriam avançar para a celebração da escritura de venda de uma fracção o banco mutuante os informava do valor que lhe devia ser entregue para fornecer o distrate e assim era feito.


V


s) A sociedade “Edificaveiro, Lda.” foi declarada insolvente por sentença de 03.12.2014 proferida no âmbito do proc. n. º …, que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Unidade Central de ..., Secção de Comércio J…, tendo anteriormente sido instaurado PER com o n.º ...;

VI


t) A fracção autónoma designada pela letra “L” do prédio urbano descrito na CRP de ... com o n.º ...67 encontra-se registada a favor da Embargante AA, mediante a inscrição Ap. … de 2010/07/13, que adquiriu por doação (dando-se por reproduzidos os dizeres da escritura pública conforme instrumento junto em anexo às petições de embargos como documento n.º 3);

u) A fracção autónoma designada pelas letras “AH” do prédio urbano(descrito na CRP de ... com o n.º ...68 encontra-se registada a favor do Embargante BB, mediante a inscrição Ap. 241 de 2010/07/13, que adquiriu por doação (dando-se por reproduzidos os dizeres da escritura pública conforme instrumento junto em anexo às petições de embargos como documento n.º 3);

v) As fracções autónomas designadas pelas letras “AM” e “AV” do prédio urbano descrito na CRP de ... com o n.º ...68 encontram-se registadas a favor dos Embargantes CC e DD, mediante as inscrições Ap. … de 2010/03/09 e Ap. … de 2010/03/15, que adquiriu por doação (dando-se por reproduzidos os dizeres da escritura pública conforme instrumento junto em anexo às petições de embargos como documento n.º 3);

w) A favor do embargante EE encontram-se registas as fracções autónomas designadas pelas letras “W” do prédio urbano com a descrição ...67 da freguesia de ..., ..., e “AU” do prédio urbano com a descrição ...68 da mesma freguesia, mediante as inscrições Ap. … de 2010/07/13, que adquiriu por doação (dando-se por reproduzidos os dizeres da escritura pública conforme instrumento junto em anexo às petições de embargos como documento n.º 3);

x) A sociedade exequente não emitiu os documentos de distrate hipotecário e do cancelamento das fracções autónomas identificadas nas precedentes alíneas t), u), v) e w), que se encontram registas a favor dos embargantes.


VII


y) O capital em dívida relativo ao contrato n.º ...01 ascende, presentemente, a €694.719,34, e o capital em dívida relativo ao contrato n.º ...19 ascende, presentemente, a €299.668,87.

z) A sociedade exequente não contactou os embargantes sobre a dívida da sociedade “E..., Lda.”, nem tão pouco lhes deu conhecimento do seu montante e qual a repartição desse encargo em relação àquelas fracções autónomas.

aa) Os embargantes apenas tiveram conhecimento do valor do crédito da exequente através da citação para os termos das execuções e mediante a análise da nota de liquidação que a acompanha.

IV – O Direito

O caso dos autos convoca a apreciação de uma problemática relacionada com uma situação recorrente e típica no hodierno contexto social: o promotor imobiliário que, financiado por entidade bancária que beneficia de hipoteca constituída, antes do início da obra, sobre o terreno onde irá ser erigido o empreendimento imobiliário, constrói sobre esse mesmo terreno um edifício e o constitui em propriedade horizontal, alienando posteriormente as diversas fracções autónomas do edifício a múltiplos adquirentes, e em que o credor hipotecário vai consentindo no distrate da hipoteca relativamente a cada uma ou algumas daquelas fracções autónomas à medida que vão sendo adquiridas. E em particular de como integrar juridicamente aquele comportamento do credor hipotecário.

Comecemos por atentar nas respostas que à situação vem sendo dada pela jurisprudência:

I - Acórdão da Relação do Porto de 05JUN1988 (CJ, III/88, 235)

Em acção em que se pretendia a expurgação de hipoteca constituída sobre imóvel antes de nele construído edifício que foi constituído em propriedade horizontal relativamente a uma das fracções autónomas através do pagamento da parte da dívida correspondente ao valor da fracção autónoma no conjunto do edifício (16%), foi negada essa pretensão invocando-se a indivisibilidade da hipoteca; indivisibilidade essa que não se teve por afastada, quer em face de propostas de distrate da entidade bancária garantida por valores inferiores ao da dívida (porque acompanhadas de condições e não chegaram a ser aceites), quer em face do cancelamento da hipoteca no que respeita a outras fracções (sem que se indique em que condições).

II – Acórdão da Relação de Lisboa de 11OUT1990 (CJ, IV/90, 147)

Tratava-se de embargos de terceiro deduzidos por quem veio a adquirir, por execução específica de promessa de venda, uma fracção autónoma em edifício sobre o qual incidia uma hipoteca, constituída antes da construção do edifício, para garantia do crédito resultante de um contrato de abertura de crédito para construção desse mesmo edifício, e que foi alvo de penhora na correspondente execução instaurada pelo credor hipotecário. Os embargos foram rejeitados com o fundamento, entre outros, em que a indivisibilidade da hipoteca “obsta a que a credora hipotecária, ora embargada, seja prejudicada pela constituição da propriedade horizontal, não sendo, pois, incompatível o seu direito de crédito garantido por hipoteca com o direito do proprietário do prédio a ela sujeito a instituir o referido regime”.

Acórdão da Relação de Coimbra de 02FEV1993 (CJ, I/93, 31)

No âmbito de uma graduação de crédito hipotecário, cuja hipoteca incidia sobre diversas fracções autónomas, discutia-se se as fracções penhoradas respondiam pela totalidade da dívida garantida, uma vez que não só na escritura de constituição da hipoteca fora atribuído valor específico a cada uma das fracções autónomas, como algumas das fracções autónomas haviam já sido distratadas. Afirmou-se, então, a irrelevância da atribuição de valor individual a cada uma das fracções autónomas, porquanto resulta de exigências do Código do Notariado, e que o cancelamento parcial da hipoteca não implica necessariamente a renúncia do credor, que tem de ser expressa, à indivisibilidade da hipoteca.

Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 21SET1993 (CJ/STJ, III/93, 15)

Em execução em que foram penhoradas duas fracções autónomas de um edifício vieram os credores hipotecários relativamente a todo o edifício reclamar a totalidade dos seus créditos, tendo-se o exequente oposto com o fundamento em que tendo os credores hipotecários procedido ao distrate da hipoteca relativamente a diversas fracções autónomas haviam dessa forma tornado as hipotecas divisíveis. Conclui-se que “expurgadas, uma ou mais fracções da hipoteca, esta mantém-se indivisível sobre as restantes fracções”.

Acórdão da Relação de Coimbra de 21JAN1997 (CJ, I/97, 15)

Visava-se a expurgação de hipoteca relativamente a uma fracção autónoma pelo pagamento da fracção da dívida correspondente à permilagem dessa fracção. Pretensão que não foi acolhida dada a inexistência de alegação e prova de qualquer circunstancialismo donde se pudesse retirar qualquer declaração tácita no sentido do afastamento da indivisibilidade da hipoteca.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12FEV2004 (proc. 03B2831)

Estava em causa a exigência, em execução hipotecária, da totalidade do remanescente da dívida relativamente apenas a algumas fracções autónomas do edifício construído no imóvel previamente hipotecado para garantia do financiamento dessa operação urbanística, quando tinha havido distrate relativamente à larga maioria das fracções autónomas que compunham o edifício. Concluiu-se que, não obstante a hipoteca se ter transferido na globalidade para as fracções autónomas do edifício construído no imóvel hipotecado, por força da indivisibilidade da hipoteca, essa indivisibilidade pode ser afastada por convenção em contrários e que “é essa convenção que se verifica quando o credor aceita o distrate da hipoteca sobre uma determinada fracção, normalmente contra o pagamento da parte proporcional do crédito (ainda) em dívida”; nessa circunstância “o banco, que por força do mencionado princípio da indivisibilidade tinha o direito de garantir a totalidade do seu crédito também através da fracção ou fracções que distratou, abriu mão da garantia, nessa parte, através de um acordo entre ele e o titular ou titulares da fracção ou fracções distratadas (ou/e o seu devedor)”, não sendo concebível “que o banco pudesse, depois, fazer recair sobre o titular ou titulares das restantes fracções um tal acordo, cobrando deste ou destes, ou de cada um destes, a totalidade do seu crédito”, e “também porque, a ser possível uma tal solução, o titular ou titulares das fracções distratadas veriam posto em causa o acordo celebrado pelo banco, porque qualquer dos não distratados, pagando a totalidade da dívida, poderia exercer o seu direito de regresso contra aqueles outros, pedindo-lhes a parte proporcional do que tivessem pago”.

Acórdão da Relação de Coimbra de 22JAN2013 (Proc. 2210/09.6TBLRA-C.C1)

Tratava-se de oposição à execução hipotecária por parte do titular de uma das fracções autónomas do edifício construído no imóvel hipotecado para garantia da dívida contraída para o financiamento desse empreendimento imobiliário que argumentava que tendo o credor hipotecário distratado 18 das 30 fracções que compõem o edifício a hipoteca se tornou divisível, não lhe podendo ser exigido, como está a ser, a totalidade do montante do crédito ainda em dívida. Nesse aresto se concluiu que o acordo de exclusão da indivisibilidade da hipoteca não tem de ser firmado no acto da sua constituição, podendo ser superveniente e firmado expressa ou tacitamente e, consequentemente, se o credor aceitou o distrate da hipoteca relativamente a determinadas fracções por delas ter recebido parte do seu crédito em determinada proporção haverá de ter-se por verificada a sua anuência à divisibilidade da hipoteca e com isso “renuncia ao seu direito de accionamento pela totalidade do remanescente do crédito apenas contra um dos restantes devedores”; e isso porque “o credor não pode ter uma actuação dualista, aceitando receber apenas a respectiva quota parte de alguns e exigindo a totalidade do remanescente a outros, pois que tal actuação, para além de incongruente, é, para estes, objectivamente prejudicial e, acima de tudo, discriminatória e frustrante das suas expectativas, legitimamente criadas pelo seu (do credor) próprio agir”.

Acórdão da Relação do Porto de 23OUT2018 (Proc. 3746/16.8T8LOU-A.P1)

Tratava-se, igualmente, de oposição a execução hipotecária por parte do titular das fracções penhoradas que invocava a limitação da sua responsabilidade à quota parte das suas fracções dada a divisibilidade da hipoteca decorrente do distrate de outras fracções autónomas, tendo o tribunal concluído, seguindo a posição dos citados acórdãos de 12FEV2004 e 22JAN2013, que “os distrates operados quanto a cada uma daquelas 20 fracções do edifício construído sobre o terreno hipotecado a favor do ora exequente constituem factos concludentes que revelam, com toda a probabilidade, a manifestação de uma declaração negocial no sentido de concordar com a divisibilidade da hipoteca”. Pelo que “tendo distratado a hipoteca relativamente a vinte fracções autónomas, deve entender-se que cada uma das cinco restantes fracções não garante a totalidade da dívida que a hipoteca garantia, mas apenas a dívida na proporção da permilagem da fracção”.

Acórdão da Relação de Lisboa de 27JUN2019 (10801/13.4YYLSB-A.L1-6)

Mais uma vez se estava perante uma oposição a execução hipotecária por parte do executado titular de uma fracção autónoma adquirida através de execução específica invocando divisibilidade da hipoteca por terem ocorrido distrates relativamente a outras fracções, tendo o tribunal concluído que “ao permitir a divisibilidade da hipoteca para outros promitentes compradores, a credora ora embargada renunciou tacitamente à indivisibilidade da hipoteca, não podendo reclamar a totalidade da dívida apenas a alguns dos titulares do direito sobre parte do edifício onerado e posteriormente dividido e, relativamente a outros, reclamar valores parcelares, sendo certo que se assim não se entendesse, poderiam os titulares das fracções com hipotecas distratadas ser confrontados com o pedido de direito de regresso por parte daqueles a quem fosse exigida a totalidade da dívida”.

  - o acórdão recorrido de 19MAR2020

Mais uma vez estamos perante uma oposição à execução hipotecária por parte dos titulares das fracções autónomas penhoradas invocando a divisibilidade da hipoteca derivada do distrate ocorrido relativamente à grande maioria das fracções que compõem o edifício, tendo o tribunal afirmado o seu afastamento da jurisprudência mais recente, considerando manter-se a indivisibilidade da hipoteca relativamente às fracções não distratadas.


-*-


Resulta dessa resenha uma evolução jurisprudencial que partindo de uma posição de afirmação categórica e sem consideração de qualquer particularidade circunstancial da indivisibilidade da hipoteca, passa a analisar os requisitos da renúncia a essa indivisibilidade, aceitando que pode ser feita por declaração tácita e concluindo que o distrate mediante o pagamento de uma parte do crédito é causa de renúncia à indivisibilidade da hipoteca. Posição essa que tem vindo a ser seguida desde o apontado acórdão deste Supremo Tribunal de 12FEV2004, só dela se tendo afastado o acórdão recorrido.

Vejamos, pois, se se justifica inflectir o que vinha sendo a tendência jurisprudencial ou, pelo contrário, prosseguir na sua senda.

A hipoteca (em particular a hipoteca voluntária, que é a categoria em causa na situação dos autos) é uma garantia especial das obrigações que, segundo o art.º 686º, nº 1, do CCiv, “confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.

Tem como características (cf. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12ª ed., 2014, pg 946; ISABEL MENERES CAMPOS, O Direito Português da Hipoteca, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXXV, 2009, pg 725, ss):

A) – a realidade

É um direito real de garantia e, consequentemente, provido de prevalência (o credor hipotecário tem o poder jurídico de executar a coisa através de venda judicial fazendo-se pagar com o respectivo produto preferentemente em relação aos demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, derrogando o princípio da ‘par conditio creditorum’), sequela (a garantia é inerente à coisa, acompanhando-a em posteriores alienações ou onerações, seguindo-a em todas as transferências) e oponibilidade ‘erga omnes’ (são inoponíveis ao credor hipotecário quaisquer modificações subjectivas ocorridas relativamente à coisa hipotecada, designadamente que esta tenha sido alienada a outrem que não seja pessoalmente responsável pela dívida).

B) – a especialidade

Só pode incidir sobre bens e direitos previstos na lei, especificando a coisa sobre que recai, o montante do crédito assegurado, dos seus acessórios e o respectivo fundamento.

C) – a acessoriedade

A hipoteca é sempre acessório de um crédito, não sendo admissível hipoteca sem crédito, nem hipoteca para garantia de obrigações destituídas de coercibilidade ou insusceptíveis de avaliação pecuniária (cf. ISABEL MENERES CAMPOS, O Direito Português da Hipoteca, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXXV, 2009, pg 729). A existência e a validade da hipoteca dependem da existência e validade da obrigação garantida, a qual tem de ser individualizada e determinada; e a extinção da dívida implica a correspondente extinção da hipoteca. Por outro lado, tem de haver coincidência entre a posição de credor e de titular da garantia, pelo que a transmissão do crédito importará a cedência da garantia.

D) – a publicidade

O registo da hipoteca é requisito de eficácia da mesma, inclusive em relação às partes, nas hipotecas voluntárias, ou mesmo requisito constitutivo, nas hipotecas legais ou judiciais.

E) – a indivisibilidade

Institui um regime de solidariedade quer quanto à coisa onerada com a garantia quer quanto ao crédito garantido (cf. ISABEL MENERES CAMPOS, op. cit., pg 734, e anotação ao artigo 696º (4) in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, pg 933; no mesmo sentido RUI ESTRELA DE OLIVEIRA, A Renúncia Tácita do Credor à Indivisibilidade da Hipoteca, 2020, a que acedemos por https://hdl.handle.net/10316/92824).

«Se a hipoteca recai sobre dois ou mais prédios, homogéneos, a garantia recai por inteiro sobre cada um deles e não apenas parcelarmente, ou fragmentariamente, em proporção ao valor de cada um deles» e «o mesmo regime se aplica à hipótese de o prédio onerado com a hipoteca vir a ser dividido em dois ou mais prédios distintos. Sobre cada uma das partes do imóvel dividido ou fraccionado recai, por inteiro, o encargo da dívida assegurada». «Por outro lado, se o crédito garantido se fraccionar, v.gr. mercê da sua cessão parcial a um ou mais cessionários, qualquer dos credores goza do poder de executar o seu crédito, por inteiro, sobre o imóvel ou imóveis onerados» (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, reimpressão da 7ª edição, 2001, pg 556).

 A indivisibilidade da hipoteca, ainda que apelando à estrutura do direito real (princípio da totalidade da coisa), não encontra nela a sua razão de ser, mas antes num assumido propósito do legislador de protecção do credor relativamente às consequências das vicissitudes da coisa onerada, especialmente contra a desvalorização da coisa em virtude da sua divisão, a necessidade de interpor um número indeterminado de acções, a necessidade de impugnar actos do devedor (e.g. a atribuição da permilagem às diversas fracções autónomas do imóvel constituído em propriedade horizontal) ou a necessidade de proceder a uma avaliação prévia dos bens (cf. PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed. Revista e actualizada, 1987, pg 719; OLIVEIRA ASCENSÃO /MENEZES CORDEIRO, Expurgação de Hipoteca, CJ, 5/1986, pg 42).

 «Os propósitos do legislador com a norma em causa centram-se, pois, na garantia do crédito, tendo pretendido evitar-se que as eventuais vicissitudes a ocorrer na coisa dada em garantia pudessem sacrificar a satisfação do crédito, nomeadamente, que parte daquele crédito deixasse de ser garantido ou que a garantia, ao invés do seu momento inicial, se viesse a revelar curta ou insuficiente para os propósitos iniciais. Há, pois, uma relação umbilical e de dois sentidos entre o crédito e a indivisibilidade da garantia: a indivisibilidade, com a apontada instituição da estabilidade material da garantia originária, tem em vista (…) a tutela do crédito garantido na sua integralidade» (RUI ESTRELA DE OLIVEIRA, A Renúncia Tácita do Credor à Indivisibilidade da Hipoteca, 2020, a que acedemos por https://hdl.handle.net/10316/92824).

 E, consequentemente, o legislador deixou na disponibilidade das partes a possibilidade de afastar a indivisibilidade da hipoteca, estabelecendo no art.º 696º do CCiv essa característica como supletiva.

 A indivisibilidade da hipoteca é, dessa forma, uma característica natural, mas não essencial da hipoteca (OLIVEIRA ASCENSÃO /MENEZES CORDEIRO, Expurgação de Hipoteca, CJ, 5/1986, pg 40; ISABEL MENERES CAMPOS, Indivisibilidade da Hipoteca, Cadernos de Direito Privado, nº 9, JAN/MAR2005, pg 16; RUI ESTRELA DE OLIVEIRA, A Renúncia Tácita do Credor à Indivisibilidade da Hipoteca, 2020, a que acedemos por https://hdl.handle.net/10316/92824).

Decorrendo da apontada teleologia um amplo poder para o beneficiário da hipoteca indivisível ele não é totalmente arbitrário pois que sendo a sua base fundamental o equilíbrio genético entre a estabilidade material da garantia originária e a tutela da integralidade da dívida, só a manutenção desse equilíbrio legitima a indivisibilidade; assim, quebrado ou interrompido esse equilíbrio, a indivisibilidade da garantia perde o seu fundamento.

 E pela própria natureza da indivisibilidade da hipoteca resulta que também esta característica não é em si mesma divisível: a hipoteca ou é indivisível ou é divisível; não existem hipotecas parcialmente indivisíveis ou parcialmente divisíveis (cf. RUI ESTRELA DE OLIVEIRA, A Renúncia Tácita do Credor à Indivisibilidade da Hipoteca, 2020, a que acedemos por https://hdl.handle.net/10316/92824; no entanto, em contrário, ISABEL MENERES CAMPOS, O Direito Português da Hipoteca, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXXV, 2009, pg 733).

 A indivisibilidade da garantia pode, como vimos, ser afastada por convenção das partes.

Desde logo no acto constitutivo da garantia; ou seja, e quando a garantia incida sobre imóveis, mediante a representação no título constitutivo (escritura pública, testamento ou documento autenticado) das correspondentes declarações negociais que manifestem, pela sua interpretação integrativa (procurando «não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global mas antes o discernir o sentido juridicamente relevante do complexo regulativo que é o negócio jurídico como um todo», pois que «é sempre necessário integrar o conteúdo e o sentido do negócio como globalidade de regulação autónoma e dele extrair os critérios de concretização da sua disciplina»  - (cf. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 8ª ed., 2017, pgs. 479-483), o correspondente acordo de vontades no sentido da divisibilidade da hipoteca.

Nada obsta, porém, a que essa convenção seja posterior à constituição da hipoteca; ou seja, que se acorde que uma hipoteca que, por aplicação da regra supletiva, era indivisível passe a ser divisível.

Sendo esse acordo expresso em instrumento formal idêntico ao da constituição da hipoteca, são aplicáveis os mesmos critérios enunciados para o acordo concomitante com a constituição da garantia.

Põe-se, no entanto a questão de saber se as declarações negociais em que se consubstancia esse acordo podem dispensar requisitos formais; se o acordo se pode efectivar através de declarações tácitas, que se deduzem de factos que, com toda a probabilidade, as revelam (art.º 217º, nº 1, do CCiv).

A resposta, entendemos, deve ser positiva, por duas ordens de razões.

Em primeiro lugar, e desde logo, se se verificar o condicionalismo estabelecido no nº 2 do mesmo artigo: que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz.

Por outro lado, porque se deverá entender que a exigência de forma não tem aplicação no caso, uma vez que essa exigência se deve considerar restrita à constituição ou modificação dos elementos essenciais da hipoteca e não já aos seus elementos naturais, como resulta do disposto nos artigos 96º do CRPredial (que a publicidade decorrente da inscrição no registo abrange apenas, e para a além da identificação dos titulares e da coisa sujeita inerente a todos os registos, a identificação do crédito e seus acessórios, a referência ao montante máximo assegurado e a causa da garantia; sem qualquer referência à divisibilidade ou indivisibilidade) e 731º, nº 1, do CCiv e 56º do CRPredial (que afastam a aplicação das estritas exigências de forma previstas para a constituição ou modificação da hipoteca, aligeirando significativamente as exigências de forma para a renúncia à hipoteca).

 No que concerne ao aligeiramento das exigências de forma relativamente à renúncia à hipoteca é certo que as normas indicadas não dispensam a declaração expressa, mas não podemos deixar de ter em consideração a qualitativa diferença entre um acto de extinção do direito real de garantia e um acto de alteração de uma característica não essencial desse mesmo direito, tornando injustificada para este último a exigência de declaração expressa (no mesmo sentido, RUI ESTRELA DE OLIVEIRA, A Renúncia Tácita do Credor à Indivisibilidade da Hipoteca, 2020, a que acedemos por https://hdl.handle.net/10316/92824).

 E para além da convenção das partes terá, ainda, de se admitir o afastamento da indivisibilidade da hipoteca por acto unilateral do beneficiário da hipoteca, por renúncia à indivisibilidade da hipoteca.

 Com efeito, admitindo o nosso ordenamento jurídico em termos gerais a renúncia a direitos não indisponíveis (cf. FRANCISCO PEREIRA COELHO, A Renúncia abdicativa no direito civil (algumas notas tendentes à definição do seu regime), Stvdia Ivridica, 8, 1995) e em particular a renúncia à hipoteca (art.º 731º, nº 1 do CCiv), não pode deixar de se admitir a renúncia a uma característica não essencial e supletiva desse direito.

 Quanto aos termos dessa renúncia valem as considerações expendidas a propósito da convenção das partes.      


-*-


Integrando a concreta situação dos autos no entendimento expendido temos que desde logo se fixou um acordo de divisibilidade no acto de constituição garantia.

 Com efeito logo nos contratos, que designaram de abertura de crédito em conta corrente com garantia hipotecária, o Exequente declarou que o financiamento se destinava à construção de um edifício multifamiliar (ou seja, com diversas habitações autonomizáveis) no imóvel hipotecado; mais se estabeleceu um conjunto de obrigações de informação por parte do promotor imobiliário indiciárias de um acompanhamento pormenorizado do desenvolvimento do empreendimento por banda do Exequente; estabeleceu-se, ainda, a obrigação de afectação do produto das vendas (o plural indicia claramente que se vislumbra a venda das fracções autónomas a constituir) à redução do crédito, segundo critérios a determinar pelo Exequente (ou seja, fixando o Exequente a parte do preço da venda que se destinava à satisfação do seu crédito).

 Tais elementos declarativos evidenciam um socialmente típico contexto negocial que o acórdão recorrido tão bem enunciou (embora, a nosso ver, sem daí retirar a devida ilação):

 «Nos financiamentos a empresas que se dedicam à construção e comercialização de imóveis, o mutuante e o mutuário sabem – e naturalmente desejam – que o financiamento será afecto a essa construção, possibilitando-a, que o edifício se destina à comercialização das fracções que o irão compor, que a mutuária necessita de vender as fracções para obter receitas para liquidar o financiamento e que não é possível retardar para um único momento a emissão dos distrates para a totalidade das fracções porque a mutuária necessita de ir vendendo as fracções para obter receitas e controlar ou diminuir o custo do financiamento.

 Nesse contexto de forma expressa ou tácita as partes acordam que as fracções irão sendo distratadas à medida que o devedor lograr vendê-las a terceiros, sempre mediante o pagamento ao credor de um valor. Para o efeito, haverá normalmente uma qualquer convenção, expressa ou tácita, a regular a emissão dos distrates, aquilo que na gíria comercial se chama mapa de distrates, uma vez que cada um dos contraentes necessita de saber em que condições as fracções poderão ser alienadas livres de ónus e encargos, como seguramente exigirá o adquirente. Nessa situação o distrate não é afinal uma anomalia contratual, não é algo que surja ao arrepio do contrato e que encerre qualquer modificação da vontade contratual. Os distrates são emitidos pelo credor hipotecário porque ele se obrigou a fazê-lo uma vez reunidas as condições estabelecidas».

 Aquelas declarações negociais inseridas no contrato, interpretadas em função do referido contexto social típico do negócio globalmente considerado, levam-nos a considerar que devem ser entendidas como convencionando desde logo que, uma vez constituído o prédio a construir em propriedade horizontal, a garantia hipotecária se distribuiria parcelarmente por cada uma das várias fracções; que a hipoteca passaria a ser divisível, respondendo cada fracção autónoma apenas até ao limite do critério estabelecido pelo Exequente (pressupostamente inferior ao respectivo preço de venda).

Mas ainda que assim se não entendesse sempre se teria de concluir pela posterior conclusão de um acordo tácito de divisibilidade da hipoteca, pois que é isso que resulta, com toda a probabilidade dos seguintes ‘facta concludentia’:

- a referência no contrato da obrigação de afectação de parte do preço na liquidação do crédito, segundo critério a estabelecer pelo Exequente (factos c), f), h) e k));

- a referência à existência de um mapa de distrates (factos q) e r));

- a consistente e reiterada emissão de declarações de distrate (42 distrates em 47 fracções no prédio ...67 e 46 distrates em 52 frações no prédio ...68), necessariamente através de declarações de acordo com as exigências de forma, pois que foram levadas ao registo predial (factos m) e n));

 - mediante a entrega de valores calculados em função da permilagem de cada fracção (facto p);

- na sequência do comportamento referido no facto r).

 E os mesmos ‘facta concludentia’ imporiam, inexoravelmente, a conclusão de uma renúncia tácita à divisibilidade por parte do Exequente. «Como não há hipotecas parcialmente indivisíveis ou parcialmente divisíveis, o comportamento do credor que, invocando a garantia, não pretende cobrar a integralidade da dívida pelas forças de uma só parte, supervenientemente autonomizada do prédio originariamente hipotecado, está, necessariamente a renunciar à faculdade [da indivisibilidade]» (RUI ESTRELA DE OLIVEIRA, A Renúncia Tácita do Credor à Indivisibilidade da Hipoteca, 2020, a que acedemos por https://hdl.handle.net/10316/92824).


-*-


Concluindo-se pela divisibilidade da hipoteca importa agora determinar o critério dessa divisibilidade; designadamente se, como pretendem os Executados (conclusão 16), “respondem pelo montante exequendo na proporção à sua permilagem” ou, como defendido pelo Exequente (conclusões L e LI), o critério da permilagem será de aplicar “em função do crédito original e nunca em função do montante actual da dívida” por ter sido esse a que “se sujeitou os distrates que foram emitidos”.

 Haverá desde logo de ter em conta que pela ‘natureza das coisas’ o cálculo do montante da dívida garantido por cada fracção autónoma sempre padecerá de alguma aleatoriedade. Com efeito, no tipo de contrato em causa, o montante da dívida é sempre um montante variável na medida em que depende quer do montante do crédito efectivamente utilizado, quer dos pagamentos parcelares efectuados, quer do tempo decorrido e do consequente montante de juros, quer dos percalços no cumprimento do contrato e das suas repercussões nos acessórios do crédito também garantidos.

 Uma das formas de atenuar essa aleatoriedade é a elaboração dos já referidos ‘mapas de distrates’, em que à partida se estabelece em concreto o montante da responsabilidade de cada fracção na garantia do crédito do credor hipotecário (e sem discutir agora se, no caso de se frustrarem os pressupostos da sua elaboração, ele pode ou não ser alterado tendo em vista a garantia da totalidade do crédito). Mas no caso dos autos, embora havendo referências a um ‘mapa de distrates’, desconhece-se o conteúdo do mesmo, estando inviabilizado o recurso ao mesmo para a determinação do critério da divisibilidade.

Se bem que a permilagem não seja o único critério elegível para determinar o ‘quantum’ da divisibilidade (veja-se, a título de exemplo o acima referido acórdão de 27JUL2019 em que o critério utilizado foi o remanescente do preço ajustado no contrato promessa), deverá ser ele o utilizado no caso concreto uma vez que (como resulta do facto p)) foi ele o utilizado relativamente ao distrate das demais fracções autónomas.

 Por outro lado, haverá de realçar que a responsabilidade resultante da divisibilidade nunca poderá alcançar montante superior ao que resultaria da responsabilidade máxima abrangida pela hipoteca; ou seja, o montante pelo qual responde cada uma das fracções não pode ultrapassar, em caso algum, o montante que resulte da aplicação da permilagem da fracção ao montante máximo garantido pela hipoteca – no caso, 7.892.375,00 € para cada um dos prédios. Nessa conformidade a responsabilidade das fracções dos Embargantes nunca poderá ultrapassar as quantias de 198.887,85 € a fracção L, 201.255,56 € a fracção W, 204.412,51 € a fracção AH, 119.964,10 € a fracção AM, 199.677,09 € a fracção AU e 162.582, 93 € a fracção AV.

Embora podendo a responsabilidade das fracções em causa estender-se até ao referido limite máximo elas só respondem, no entanto, pelo montante actual da dívida e, consequentemente a sua responsabilidade há-de ser encontrada por referência à proporcionalidade dentro do conjunto das fracções ainda abrangidas pela hipoteca, segundo uma ‘regra de três simples’: se o conjunto da permilagem das fracções não distratadas responde pela totalidade do crédito ainda em dívida, então a permilagem de cada uma dessas fracções corresponde a determinada parte desse crédito.

 E aplicando essa ‘regra de três simples’ ao caso em apreço obteremos o seguinte resultado:

- prédio ...67:

        Fracção L – 21,7%

         Fracção W – 21,3%


- prédio ...68

           Fracção AH – 21,5%

            Fracção AM – 12,6%

           Fracção AU – 21%

           Fracção AV – 17,1%

 Nessas percentagens sobre o montante da dívida exequenda se devendo fixar a responsabilidade dos Executados.


-*-


No que concerne aos juros de mora, haverá de ter em consideração que os titulares dos bens hipotecados não são devedores, mas sim titulares de bens onerados com uma garantia real, que abrange quer o capital quer outros acessórios do crédito garantido. Dessa forma a constituição em mora do devedor depende exclusivamente do comportamento e da relação deste com o credor. Não há, por isso, necessidade de qualquer interpelação dos posteriores adquirentes dos bens hipotecados que se encontram numa posição de sujeição a verem executados os bens do seu património para pagamento de uma dívida alheia.

 Isso sem embargo de, como já referido nas instâncias, a garantia da hipoteca relativamente a juros se limitar aos juros de três anos, nos termos do art.º 693º, nº 2, do CCiv; e a que haverá de atender.


-*-


Uma última palavra atinente às custas processuais:

  Além de fixar as custas referentes à revista, e porque em resultado desta são alteradas as decisões das instâncias, haverá de fixar a repercussão dessa alteração na responsabilidade por custas quer na apelação, quer nos embargos.

  Na revista pretendia-se o reconhecimento da divisibilidade e da necessidade da interpelação; obtiveram ganho de causa quanto à primeira pretensão, mas já não quanto à segunda. Consequentemente, haveria de repartir a responsabilidade pelas custas da revista na proporção de 80% para o Exequente/Recorrido e 20% para os Executados/Recorrentes.

Na apelação do Exequente pretendia-se o reconhecimento da indivisibilidade e da desnecessidade de interpelação; em face do agora decidido constata-se que lhe não assistia razão quanto à primeira pretensão e que era fundada a segunda pretensão. Consequentemente, haveria de repartir a responsabilidade pelas custas dessa apelação na proporção de 80% para o Exequente/Apelante e 20% para os Executados/Apelados.

 Na apelação dos Executados pretendia-se o reconhecimento do abuso de direito ao executarem a hipoteca relativamente às suas fracções que resultavam de uma permuta; em face do agora decidido constata-se que lhes não assistia razão. Consequentemente, a responsabilidade pelas custas dessa apelação caberia por inteiro aos Executados/Apelantes.

 Com cada um (dos quatro) procedimentos de embargos pretendia-se a extinção da execução; o resultado final alcançado foi a prossecução da execução em termos e por montante inferior ao peticionado pelo Exequente que tornavam adequado a fixação da correspondente responsabilidade pelas custas na proporção de metade para cada um.

 Ocorre, no entanto, a circunstância de ter sido determinada a apensação dos embargos de forma a proporcionar um julgamento conjunto dos mesmos (quer quanto à causa quer quanto aos recursos), dessa forma se alcançando uma significativa economia de meios, que se impõe ter em consideração na fixação das custas do processo, designadamente justificando uma redução da taxa de justiça resultante das tabelas. Em função dessa circunstância considera-se adequado proceder à fixação da taxa de justiça devida e à repartição da responsabilidade das custas por referência quer a uma visão unitária de todo o processado, e considerando o valor global do crédito exequendo, quer ao conjunto dos intervenientes.

 Por aplicação das tabelas anexas ao RCP a taxa de justiça devida (embargos, considerados unitariamente e não individualmente e por referência ao valor global da quantia exequenda peticionada, 2 apelações e revista) ascenderia a 28.152 €; valor que, em face da tripla função das taxas (pagamento do serviço ou vantagem prestados, regulação da utilização dos bens ou serviços e redistribuição de encargos) e considerando a globalidade do decorrer processual e a complexidade nele alcançada, se nos afigura não respeitar os limites da proporcionalidade. No respeito por aqueles limites afigura-se-nos adequado fixar a taxa de justiça devida por todo o processado no montante global de 12.500 €, repartindo-se os encargos pelas custas na proporção de 50% para o Exequente, 6,25% para o Executado 1, 6,25% para o Executado 2, 17,5% para o Executado 3 e 20% para o Executado 4.

V – Decisão

  Termos em que, concedendo a revista, se decide, na parcial procedência dos embargos, o prosseguimento das execuções para cobrança:

1) relativamente ao contrato ...01

a. de 21,7%, mas nunca superior a 198.887,85 €, do montante em dívida (capital, juros limitados a 3 anos e demais acessórios) pelo valor da fracção L do identificado prédio ...67;

b. de 21,3%, mas nunca superior a 201.255,56 €, do montante em dívida (capital, juros limitados a 3 anos e demais acessórios) pelo valor da fracção W do identificado prédio ...67;

2) relativamente ao contrato ...19

a. de 21,5%, mas nunca superior a 204.412,51 €, do montante em dívida (capital, juros limitados a 3 anos e demais acessórios) pelo valor da fracção AH do identificado prédio ...68;

b. de 12,6%, mas nunca superior a 119.964,10 €, do montante em dívida (capital, juros limitados a 3 anos e demais acessórios) pelo valor da fracção AM do identificado prédio ...68

c. de 21%, mas nunca superior a 199.677,09 €, do montante em dívida (capital, juros limitados a 3 anos e demais acessórios) pelo valor da fracção AU do identificado prédio ...68

d. de 17,1%, mas nunca superior a 162.582,93 €, do montante em dívida (capital, juros limitados a 3 anos e demais acessórios) pelo valor da fracção AV do identificado prédio ...68.

Fixa-se a taxa de justiça devida pela globalidade do processado (embargos, apelações e revista) em 12.500,00 €, dispensando-se o pagamento do demais remanescente.

Custas na proporção de 50% para o Exequente, 6,25% para o Executado 1, 6,25% para o Executado 2, 17,5% para o Executado 3 e 20% para o Executado 4.


Lisboa, 11 MAR 2021


Rijo Ferreira

[Relator por vencimento]

[Com voto de conformidade dos Exmo. Juiz Conselheiro Cura Mariano, sendo que a Exma. Juíza Conselheira Catarina Serra apresentou a declaração de voto que segue, conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]

Cura Mariano

Catarina Serra

[Vencida, conforme declaração de voto que junto]


DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencida por considerar que a interpretação correcta do artigo 696.º do CC é aquela que foi adoptada pelo Tribunal a quo, pelo que teria negado a revista e confirmado o Acórdão recorrido na parte respeitante à indivisibilidade da hipoteca.

Destaca-se, na fundamentação do Acórdão recorrido, a demonstração de que o facto em causa, isto é, o distrate da hipoteca relativamente a algumas das fracções, não constitui uma convenção em contrário à indivisibilidade da hipoteca no sentido do artigo 696.º do CC – o acto de distrate dificilmente pode ser qualificado como ou reconduzido a uma convenção e, mesmo que o fosse, sempre se trataria de uma convenção entre a credora hipotecária e cada um dos titulares das fracções distratadas, ou seja, de uma convenção alheia ao contrato de constituição da hipoteca[1].

Destaca-se, depois, a demonstração de que esta interpretação não comporta violação do princípio da igualdade – o tratamento diferenciado (o distrate da hipoteca relativamente a algumas das fracções e o não distrate relativamente a outras) funda-se em razões objectivas, que não se prendem sequer com os adquirentes das fracções mas sim com a fase e as circunstâncias da execução do contrato de financiamento.

Destaca-se, por fim, a demonstração de que esta interpretação não comporta violação das legítimas expectativas dos adquirentes – eles estabeleceram relações jurídicas com o devedor hipotecário sabendo ou devendo saber que a hipoteca se encontrava registada para garantia do crédito do credor hipotecário, pelo que a responsabilidade pela totalidade da dívida garantida não pode apanhá-los de surpresa.

Tudo considerado, não me parece que o caso dos autos corresponda à hipótese ressalvada no artigo 696.º do CC, pelo que, em face da lei vigente, os adquirentes das fracções dos autos só deveriam conseguir a expurgação da hipoteca se a dívida fosse paga na íntegra.

________

[1] No sentido de que a aceitação pelo credor do cancelamento da hipoteca sobre uma ou algumas das fracções não equivale, no plano do Direito constituído, a uma renúncia ao exercício do seu direito na totalidade sobre as fracções que permanecem oneradas e de que, para que isso ocorra, é preciso que a renúncia seja expressa e, consequentemente, o valor máximo garantido pela hipoteca seja alterado no registo predial, cfr. Isabel Menéres Campos, “Indivisibilidade da hipoteca”, in: Cadernos de Direito Privado, 2005, n,º 9, pp. 12 e s. (esp. pp. 15 e s.), e ainda Comentário ao Código Civil – Direito das obrigações – Das obrigações em geral, cit., p. 934.