Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1758/10.4TBPRD.P1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: FACTOS ESSENCIAIS
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CAMINHO PÚBLICO
PRESSUPOSTOS
DOMÍNIO PÚBLICO
ASSENTO
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
SANAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
FACTOS INSTRUMENTAIS
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
UTILIDADE PÚBLICA
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS / PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO - PROCESSO / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / SENTENÇA / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / ATREVESSADOUROS E CAMINHOS.
Doutrina:
- A. Carvalho Martins, Caminhos Públicos e Atravessadouros, 2.ª ed., 61, 65, 103.
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 348.
- Ana Gonçalves Moniz, O Domínio Público, 127 e ss., 152.
- Henrique Mesquita, in R.L.J. 134-366 e 135-62.
- Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. 1.º, 3.ª ed., 17.
- Manuel Rodrigues, A Posse, 3.ª ed., 298.
- Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 9.ª ed., 2.ª reimp, Vol. II, 887, 888, 921, 923.
- Mariana França Gouveia, «Princípio do dispositivo e a alegação de factos em processo civil», Estudos em Homenagem aos Professores Palma Carlos e Castro Mendes, 615 e 616.
- P. Ramos de Faria e Ana L. Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. I, 38 a 41 e Vol. II, 123 a 125.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. III, 2.ª ed., 283.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 2, AL. B), 415.º, 547.º, 615.º, N.º 1, AL. D), 662.º, 682.º, 684.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 15.06.2000, NO B.M.J. 498-226.

-DE 10.11.93, CJ STJ, I, 3, 135, DE 15.06.2000 (NO B.M.J. 498-226), DE 13.01.2004, DE 10.12.2009, DE 09.02.2012, DE 14.02.2012, DE 28.05.2013, DE 21.01.2014, 18.09.2014 E DE 26.05.2015, EM WWW.DGSI.PT .

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ASSENTO DE 19.04.1989, PUBLICADO NO D.R. I, DE 02.06.1989.

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JURISPRUDÊNCIA DAS RELAÇÕES:

-ACÓRDÃOS DA RELAÇÃO DE LISBOA DE 18.09.2014 E DE 13.10.2016; EM SENTIDO CONTRÁRIO, OS ACÓRDÃOS DA RELAÇÃO DO PORTO DE 15.09.2014 E DE 30.04.2015 E DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES DE 07.04.2016 E DE 15.09.2016, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. Não parece ser de sufragar o entendimento segundo o qual o aproveitamento de factos essenciais novos (complementares ou concretizadores) depende apenas da observância do princípio da audiência contraditória relativamente à produção do meio de prova de que eles emergem (art. 415º do CPC).

2. A disciplina prevista no art. 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com esses factos novos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).

3. Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre os factos que o tribunal se propõe aditar e só desse modo lhe é facultado o exercício pleno do contraditório, podendo requerer – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação a esses factos.

4. Daí que não pareça possível que, sem o acordo das partes, a Relação possa aditar à matéria de facto um facto novo, nos termos do art. 5º, nº 2, al. b), no âmbito da reapreciação da prova, efectuada nos termos do art. 662º do CPC (sem prejuízo de poder anular a decisão, considerando a relevância do facto na apreciação do mérito).

5. O Assento do STJ de 19.04.1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, sem a qual não é lícito o reconhecimento da dominialidade pública

6. A qualificação de um caminho, como público, pode, assim, basear-se no seu simples uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais (nos termos do Assento, com a referida interpretação); mas também pode fundar-se em ser ele propriedade de entidade de direito público e estar afectado à utilidade pública.

7. Tendo-se demonstrado que o caminho em causa é, há mais de 50 anos, ininterrupta e livremente utilizado por todas as pessoas da terra, satisfazendo interesses comuns, para se deslocarem para diversos destinos, deve concluir-se estar evidenciado um interesse colectivo enraizado nos costumes dessas pessoas que, pela sua relevância, deve ser salvaguardado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA e mulher BB instauraram acção popular contra CC, DD, EE, FF, GG e HH.

Pediram a condenação dos réus:

1. A reconhecerem a natureza pública do caminho do ... que liga a Rua de ..., freguesia de ..., à Rotunda dos ..., E.N. 000, freguesia de ..., ambas do concelho de ...;

2. A reporem o caminho no estado em que se encontrava antes da construção do muro;

3. A restituírem ao domínio público a parte do caminho que com a construção do muro se apropriaram;

4. A absterem-se da prática de quaisquer actos que atentem contra o direito de uso do referido caminho;

5. A absterem-se da prática de quaisquer actos que dificultem ou impeçam a livre circulação pelo caminho.

Como fundamento, alegaram que são donos do prédio rústico descrito no artigo 1° da p.i. e os RR. donos do prédio descrito no artigo 2° do mesmo articulado, sendo que este confronta a norte e poente com caminho público. Desde tempos imemoriais que, pelos prédios dos AA., RR. e demais proprietários de prédios confinantes, existe um caminho com largura de 3,50 a 5 metros, sempre usado pelas gentes da terra, com início próximo à actual rotunda de acesso à A00 e término na Rua de ..., sendo interceptado pela Travessa do ... e reconhecido pelos populares e pela Junta de Freguesia de ... como o caminho de ligação à feira do ..., ..., .... Os RR. construíram um muro de vedação do seu terreno, licenciado pela CM de .... Antes da construção do muro foi explicado e identificado o caminho público aos RR.. Com esta construção, os RR. taparam o caminho, impedindo os AA. e público em geral de por ali circularem. A CM de ... e a Junta de Freguesia de ... inseriram o caminho na toponímia da freguesia de ....

Os RR. contestaram alegando que o prédio identificado no artigo 2° da p.i. não é aquele sobre o qual existe o caminho público alegado pelos AA.; os terrenos contíguos ao terreno de II, S.A., pelo Sul deste, pertencem aos RR., individualmente; o acesso para a feira do ... ou outras é feito há mais de 50 anos pela EN 000, existindo, quando muito, um atravessadouro; há mais de 20 anos que ninguém vai de ... à Feira do ... a pé e se o faz não é pelos terrenos dos RR; o muro foi licenciado junto da CM de ... e da E.P., não havendo vestígio do caminho reivindicado como público na planta fornecida pelo departamento do Urbanismo nem foi catalogado na Toponímia de ... em Maio de 2005 ou anteriores; confirmam a construção do muro de vedação mas alegam a existência de outros acessos aos prédios dos AA., impugnando o demais alegado.

Os AA. replicaram alegando desconhecer as delimitações de cada um dos prédios pertencentes aos RR., não podendo identificar concretamente sobre qual dos prédios dos RR. se situa o leito do caminho público objecto da acção, sendo certo que todos foram objecto de embargo de obra pela Câmara Municipal de ..., registado em todas as descrições prediais, impugnando o demais alegado pelos RR..

Foi admitida a intervenção principal de JJ e mulher KK, LL e mulher MM, NN e FREGUESIA DE ....

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença, julgando-se a acção improcedente e, em consequência, absolvendo-se os RR. do pedido.

Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação que a Relação julgou procedente, revogando a sentença recorrida e condenando os Réus a:

1. Reconhecerem a natureza pública do caminho do ... que liga a Rua de ..., freguesia de ..., à Rotunda dos ..., E.N. 000, freguesia de ..., ambas do concelho de ...;

2. reporem o caminho no estado em que se encontrava antes de ser vedado com a construção do muro;

3. restituírem ao domínio público a parte do caminho de que, com a construção do muro, se apropriaram;

4. se absterem da prática de quaisquer actos que atentem contra o direito de livre circulação e uso do referido caminho.

Os réus vêm agora pedir revista, tendo apresentado as seguintes conclusões:

I- Decidiu mal a decisão recorrida ao alterar a resposta à matéria de facto, por insuficiência de fundamentos para essa alteração e violação do principio do contraditório em relação à matéria nova acrescentada à alínea G) dos factos provados com as consequências daí retiradas, e a nosso ver, independentemente dessa alteração ao decidir classificar o caminho em causa, como caminho publico.

II- Nada nos autos permite concluir que a mata dos ... que os autores identificam na petição seja precisamente a mata de entre as várias dos RR, no local, por onde o traçado do caminho objecto da reivindicação se desenvolve, antes pelo contrário, não se podendo por isso retirar qualquer conclusão com relevância para a decisão a respeito de antigas confrontações indicadas na descrição predial.

III- Assim da matéria provada não resulta que sobre a faixa identificada na petição a norte dos prédios dos AA, houvesse qualquer posse desde tempos imemoriais há mais de cinquenta anos de forma livre por todas as pessoas da terra muito menos que esse uso satisfizesse interesses colectivos relevantes.

IV- A primeira e segunda conclusão do recurso constituem jurisprudência pacífica e unânime em inúmeros acórdãos do STJ , muitos dos quais citados na decisão recorrida de que salientamos os referidos no artigo 1º e no plano dos tribunais administrativos o referido no artigo 2º destas alegações, após a prolação do assento n.º 4/89, que constituindo a interpretação mais merecida do referido assento não merece crítica, antes pelo contrário, não permitindo contudo a classificação do caminho dos autos como público.

IV- Segundo Paulo Pimenta, Factos Essenciais (artigo 5° n.º 1 e 5° n.º 2 alínea b) são aqueles de cuja verificação depende a procedência das pretensões deduzidas; Factos Instrumentais são aqueles que permitem a prova indiciária dos factos essenciais.

De entre os factos essenciais distingue os seguintes:

Nucleares - Constituem o Núcleo Primordial da Causa de Pedir (ou da excepção) desempenham uma função individualizadora ou identificadora ao ponto da respectiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial (ou nulidade da excepção)

Complementares - São os cumprimentadores de uma causa de pedir (ou de uma excepção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma excepção) aglutinadora de diversos elementos uns constitutivos do núcleo principal outros complementares daquele.

Acrescem aos factos nucleares, preenchem em conjunto com a fatispecie normativa do efeito pretendido, com a acção ou com a excepção; é de natureza do que é complementar acrescentar algo ao que pré existe, no caso pré-existe o facto nuclear.

Concretizadores - Tem por função pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto, sendo exactamente essa concretização dos factos anteriormente alegados que se toma fundamento para procedência da acção ou da excepção.

Pormenorizam, minuciam, explicitam ou particularizam factos (nucleares ou complementares) já alegados; daí resulta a plena assunção do facto nuclear ou complementar;

Campo de Aplicação: alegações vagas, genéricas, imprecisas ou dúbias

V- Pessoalmente cremos que os factos novos acrescentados na alínea G) dos factos provados pela segunda instância, pela importância e significado que lhe foi dado para a decisão da causa, constituem factos nucleares dentro da categoria de factos essenciais, por nos parecer que tais factos não complementam nem concretizam nada do que os autores tenham alegado na PI, não encontrando abrigo na referência a alegação da alínea b) do n.º 2 do artigo 5° do NCPCivil, porém,

VI- Seguindo o pensamento de Paulo Pimenta, nomeadamente olhando aos exemplos que dá, tender-se-á a considerar que os referidos factos constituem factos essenciais complementares, portanto não precludidos pela não alegação na petição desde que resultem da instrução do processo e às partes tenha sido dada a oportunidade para sobre eles se pronunciarem (artigo 5° n.º 2 al b) do NCPCivil).

VII- A apreciação de factos essenciais ainda que complementares só pode ser feita se tiver sido dada à contraparte a oportunidade de sobre eles se pronunciar nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 5° do NCPCivil.

VIII- O facto essencial para a decisão da pretensão jurídica solicitada que não foi alegado pela partes na primeira instância não pode ser tido em conta em sede de recurso. (cf. Acórdão Relação de Coimbra de 22/09/2015, processo 60/14.7TBSAT.Cl).

IX- O principio do contraditório na apreciação de matéria nova, ou factos essenciais ainda que complementares não alegados nos articulados, não é respeitado pelo simples facto da instrução de julgamento a partir da qual se fez a apreciação, ter sido feita, como não podia deixar de ser, em audiência de julgamento, na presença dos advogados das partes, para os quais os temas da prova só sofreriam alteração se lhes fosse dada a oportunidade de sobre eles se pronunciarem, como parece resultar claramente do disposto no artigo 3° n.º 3 e 5° n.º 2 al b) do NCPCivil, ao contrário do que se decidiu a este respeito na decisão recorrida que também nesse ponto errou.

X- Ao apreciar para preenchimento do requisito de utilização colectiva relevante, não alegado na petição, a matéria transposta na alteração dos factos provados da alínea G) do acórdão recorrido, violou assim a decisão recorrida entre outros o disposto no artigo 3° n.º 3, 5° n.º 2 al b), 615° n.º 1 al d) do NCPCivil, daqui resultando a sua nulidade, nessa parte.

XI- A questão ali apreciada nem sequer fazia parte do objecto de recurso, especificado nas conclusões, nem sequer da matéria alegada no recurso, sendo também por esse facto matéria que o Tribunal da Relação não podia conhecer.

XII- O caminho dos autos apresenta nas suas características uma situação de identidade ou mesmo igualdade com os caminhos não declarados como públicos nos acórdãos do STJ de 15/06/2000, BMJ 498, 226, processo 00B429 n.º convencional JSTJ00040535 e Acórdão STJ 31/05/2001, processo 01B990, n.º convencional JSTJ00041338,

XIII- O n.º 3 do artigo 3° e alínea b) do n.º 2 do artigo 5° do NCPCivil devem ser interpretados no sentido de que surgindo factos novos essenciais para a decisão da causa, ainda que complementares ou concretizadores, o tribunal de 1ª instancia só os poderá apreciar se chamar a atenção às partes para a alteração ou complementação dos temas da prova daí resultantes, convidando-as a pronunciarem-se e a parte que não os tendo alegado dos mesmos se queira servir em 2ª instância, terá de manifestar essa intenção necessariamente em julgamento da 1ª instância, estando definitivamente vedado à 2ª instância a sua apreciação pela primeira vez, por falta do necessário prévio contraditório na 1ª instância.

XIV- Em face daquela interpretação o caminho dos autos não poderia nunca merecer a qualificação como público desde logo por falta do elemento essencial de utilização pelo público na satisfação de interesses colectivos relevantes que terão de ser contemporâneos ao seu uso e não futuros de médio e longo prazo, ainda que discutíveis, com que parece turvado o pensamento na decisão recorrida, e a acção deve improceder.

Termos em que deve ser dado provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido e julgando-se improcedente a acção.

Os autores contra-alegaram, tendo concluído pela improcedência do recurso.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Falta de fundamento para a alteração da decisão de facto;

- Nulidade do acórdão recorrido - violação do princípio do contraditório e excesso de pronúncia;

- O requisito respeitante à satisfação de interesse colectivo relevante.

III.

A decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª instância é deste teor (indicam-se em itálico os factos que sofreram alteração no acórdão recorrido, adiante reproduzida):

 

Factos assentes por acordo:

A) O prédio rústico designado por "..., com a área de 800m2, sito no Monte do ... na Freguesia de ..., Concelho de ..., a confrontar a nascente com herdeiros de OO, poente e sul com herdeiros de PP e norte com caminho, está descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.° 00000/000788 e ali registado a favor dos autores e inscrito na matriz sob o artigo 76 (ponto A. dos factos assentes);

B) O prédio designado por Bouça dos ..., com mato e árvores, sito na freguesia de ..., concelho de ..., a confrontar a norte com QQ, a sul com RR, a nascente com OO e a poente com SS, está descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 81 e ali registado a favor dos réus e inscrito na matriz sob o artigo 73 (ponto B. dos factos assentes);

Factos demonstrados por produção de prova:

C) Pelos prédios dos Autores, Réus e demais proprietários de prédios confinantes existe um caminho, cuja largura medeia entre os 3,50m e os 5,00m com início próximo à actual rotunda de ligação à auto-estrada A00 (denominada rotunda dos ..., E.N. 000), terminando no limite da Freguesia de ... com a Freguesia de ... (mais precisamente na Rua de ...), ambas do concelho de ... (ponto 2. da base instrutória);

D) Este caminho é interceptado pela Travessa do ..., que começa na estrada nacional 000, também designada, na toponímia da Junta de Freguesia de ..., como Avenida do ... (ponto 3. da base instrutória);

E) Após terem tomado posse do referido prédio os Réus procederam à construção de um muro de vedação do seu terreno, procedendo à tapagem do caminho referido em C) e D) - ponto 11. da base instrutória;

F) Por causa do referido em E), os autores, demais proprietários de prédios confinantes e pessoas em geral que acedam ao caminho, seja pela Travessa do ..., seja pela Rua de ..., ao chegarem ao prédio dos Réus, em virtude do muro por estes construído, vêem-se forçados a voltar para trás, quando poderiam sair para a nacional 000 (ponto 12. da base instrutória);

G) O caminho referido em C e D) destina-se a servir matas (ponto 13. da base instrutória);

H) Por não poderem entrar por um lado do caminho e sair pelo outro os tractores agrícolas que transportam mato ou madeiras têm muito dificultada a manobra de inversão do sentido de marcha (ponto 14. da base instrutória);

I) Mesmo que, em algumas partes o caminho tenha somente cerca de 3,50m de largura, se o mesmo não se encontrasse bloqueado pelo muro que os Réus construíram a circulação seria feita sena qualquer tipo de transtorno (ponto 15. da base instrutória);

J) A Junta de Freguesia de ... reconhece o caminho indicado em C) como o caminho de ligação à feira do ..., ..., ... (corresponde a parte do ponto 10. da base instrutória).

Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos:

1) O prédio designado por Bouça dos ... confronta a norte e poente com caminho público (ponto 1. da base instrutória);

2) Desde tempos imemoriais, há mais de 50 anos que a Freguesia de ... mantém e sempre manteve sob a sua administração e jurisdição o referido caminho, com exclusão de outros, por actos repetidos e sempre renovados, de forma contínua, nomeadamente por meio de deliberações qualificando-o como público, mantendo-o no cadastro, procedendo à limpeza e conservação do mesmo e inserindo-o na toponímia da Freguesia, sem oposição ou contestação de quem quer que seja, à vista de toda a gente, exercendo o seu direito de propriedade no interesse das gentes da terra e do desenvolvimento da Freguesia, sendo desde sempre utilizado de forma livre por todas as pessoas da terra (pontos 4. a 9. da base instrutória);

3) As gentes da terra sempre utilizaram o caminho indicado em C) e D), sendo reconhecido pelos populares como o caminho de ligação à feira do ..., ..., ... (corresponde a parte do ponto 10. da base instrutória)».

No acórdão recorrido a antecedente decisão sobre a matéria de facto foi alterada nestes termos:

"a) A Al. G) dos «factos demonstrados por produção de prova» passa a ter a seguinte redacção:

O caminho referido em C e D destina-se a servir de acesso às matas existentes na zona do ... e ao uso da população em geral para aceder às freguesias vizinhas de ..., ... e ... e concelho de ..., sendo também usado como caminho de acesso à feira do ....

b) Os pontos 1 e 3 da relação de factos considerados não provados na sentença passam a considerar-se provados, com o seguinte teor:

1) O prédio designado por Bouça dos ... confronta a norte e poente com caminho público.

3) As gentes da terra sempre utilizaram o caminho indicado em C) e D), sendo reconhecido pelos populares como o caminho de ligação à feira do ..., ..., ....

c) O ponto 2 da relação de factos considerados não provados na sentença passa a considerar-se provado, mas apenas nos seguintes termos:

Desde pelo menos 1980 que a Freguesia de ... mantém sob a sua administração e jurisdição o referido caminho, com exclusão de outros, por actos repetidos e renovados, inscrevendo-o na toponímia aprovada por deliberação da mesma Junta de 30.04.2008, qualificando-o então como público e mantendo-o no cadastro, procedendo (desde pelo menos essa altura) à limpeza e conservação do mesmo, sem oposição ou contestação de quem quer que seja, à vista de toda a gente, assim agindo no interesse das gentes da terra e do desenvolvimento da Freguesia, sendo, porém, que o mesmo caminho já é desde tempos imemoriais, há mais de 50 anos, utilizado de forma livre por todas as pessoas da terra.

IV.

Analisada a fundamentação do acórdão recorrido e as posições assumidas nesta revista por recorrentes e recorridos, vemos que não existe qualquer divergência de entendimentos sobre os requisitos de que depende o reconhecimento da dominialidade de um caminho.

Por isso, vamos cingir-nos a uma breve síntese desse regime, apenas para permitir um melhor enquadramento das questões postas no recurso.

Questões estas que têm a ver essencialmente com a decisão da matéria de facto e com as alterações nesta introduzidas pelo acórdão recorrido; para além disso, os recorrentes apenas discordam da verificação, no caso, de um dos requisitos para o reconhecimento da referida dominialidade.

1. O Assento do STJ de 19.4.89[2] surgiu pela necessidade de se pôr termo a controvérsia antiga na jurisprudência sobre o que deveria entender-se por caminhos públicos.

Com efeito, para uns, bastava que o caminho estivesse a ser usado directa e imediatamente pelo público, desde tempo imemorial; para outros, para além dessa utilização, o caminho teria de ser produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva pública.

Firmou-se, então, o entendimento de que são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.

Como foi reconhecido[3], o Assento, interpretado em termos literais, levaria a considerar que os atravessadouros com posse imemorial seriam qualificados como caminhos públicos, contrariando o que, com longa tradição, se dispõe no art. 1383º do CC.

Segundo Marcello Caetano[4], a atribuição do carácter dominial depende de um ou vários dos seguintes requisitos: a existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria do domínio público; a declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe; a afectação dessa coisa à utilidade pública.

Esta afectação, que aqui nos interessa, "é o acto ou prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública"; "pode resultar de um acto administrativo (decreto ou ordem que determine a abertura, utilização ou inauguração) ou traduzir-se num mero facto (a inauguração) ou numa prática consentida pela Administração em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público"[5].

A utilidade pública consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas, aí residindo o verdadeiro fundamento da sua publicidade[6].

Daí que, desde cedo, se tenha defendido que o aludido Assento deveria ser interpretado restritivamente: no sentido de o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, sem a qual não é lícito o reconhecimento da dominialidade pública[7].

Assim, a qualificação de um caminho, como público, poderá basear-se no seu simples uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais (nos termos do Assento, com a referida interpretação); mas também poderá fundar-se em ser ele propriedade de entidade de direito público e estar afectado à utilidade pública.

A este respeito, como se refere no citado Acórdão de 21.01.2014, "desde que se prove que o caminho foi construído ou foi legitimamente apropriado por uma autarquia, que exerce sobre ele jurisdição, administrando-o, melhorando-o e conservando-o, não pode duvidar-se que se trata de um caminho público, pertencente àquela entidade pública, ou seja, que estamos em presença de um bem dominial possuído pela autarquia, como tal insusceptível de apropriação particular, inalienável e imprescritível"[8].

Para concluir este ponto, importa acrescentar que, não se demonstrando que o caminho tenha sido produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva pública ou que por esta seja administrado, a sua dominialidade só pode fundamentar-se no uso directo e imediato do público.

Importa, neste caso, verificar se ocorrem os demais requisitos apontados, isto é, a imemorialidade do uso e a satisfação de interesses colectivos.

Como resulta do próprio termo, o uso será imemorial "se os vivos não sabem quando começou; não o sabem por observação directa, nem o sabem pelas informações que lhes chegaram dos seus antecessores"[9]; isto é, verifica-se quando o uso teve uma permanência uniforme por um espaço de tempo que excede a memória de todos os homens[10].

Por outro lado, como se afirmou, a dominialidade tem como pressuposto a satisfação de relevantes interesses colectivos; um caminho público será usado por uma generalidade de pessoas, destinando-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre povoações ou localidades[11].

2. Segundo os recorrentes, o acórdão recorrido ignorou por completo a prova documental que indicam, que infirma a apreciação feita pela Relação, sendo insuficiente para a afirmação da existência de um caminho utilizado pela generalidade da população; acrescentam que não vêem fundamento para a afirmação de que a freguesia de ... mantém, desde 1980, sob a sua administração e jurisdição esse caminho.

Os recorrentes suscitam assim, no que respeita aos dois pontos de facto referidos, a questão da reapreciação e da valoração da prova efectuada pelo Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no art. 662º do CPC, entendendo, no fundo, que houve erro na apreciação das provas e na fixação dos referidos factos materiais da causa.

É sabido, porém, que o Supremo Tribunal de Justiça intervém muito limitadamente neste domínio da decisão sobre a matéria de facto. Por regra, apenas conhece de matéria de direito, não podendo alterar a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto.

É o que resulta do disposto no art. 682º do CPC:

1. Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no nº 3 do art. 674º.

Ou seja, como se estatui neste preceito legal: o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não podem ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Nestas situações excepcionais, o Supremo actua em regime de substituição, anulando o facto que indevidamente tenha sido julgado provado ou considerando o facto com base no meio de prova que não tenha sido atendido[12].

Ora, os recorrentes não invocam a violação de disposição legal que, com relação aos aludidos factos, imponha um meio específico de prova ou com especial força probatória, sem o concurso das quais o erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto não pode ser objecto do recurso de revista.

Está, pois, vedada a intromissão deste Tribunal na fixação dos factos e na valoração da prova efectuada pela Relação, não podendo o acórdão recorrido, neste âmbito, ser aqui objecto de censura.

3. Sustentam também os recorrentes que os factos novos acrescentados na al. G) são factos essenciais (nucleares), não constituindo complemento ou concretização dos factos alegados na p.i..

Mas, mesmo que se considerassem complementares, esses factos não poderiam ser utilizados pelo Tribunal sem ter sido dada à contraparte oportunidade de sobre eles se pronunciar – art. 5º, nº 2, al. b), do CPC.

Não o tendo feito, o acórdão recorrido violou o princípio do contraditório (art. 3º, nº 3, do CPC), incorrendo na nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do referido diploma legal.

Vejamos.

O facto referido é deste teor:

O caminho referido em C e D destina-se a servir de acesso às matas existentes na zona do ... e ao uso da população em geral para aceder às freguesias vizinhas de ..., ... e ... e concelho de ..., sendo também usado como caminho de acesso à feira do ....

Reconheceu-se no acórdão recorrido que esta factualidade "não foi expressamente alegada (no seu todo) nos articulados", acrescentando-se que se trata de "matéria factual muito relevante, pois tem a ver com o núcleo da questão de meritis que nos autos se discute".

Não se compreende, por isso, que logo a seguir se admita qualificar esses factos como instrumentais que, como aí também se afirma, têm uma mera função probatória.

Não terá sido isso o que se pretendeu afirmar, como decorre desde logo da exposição subsequente, toda ela respeitante a factos essenciais, complementares e concretizadores, e ao seu aproveitamento.

Afirma-se no acórdão recorrido que a matéria litigiosa é definida pelas partes, dando assim concretização ao princípio do dispositivo. Todavia, "a factualidade relevante – logo, compreendida na causa de pedir ou na matéria de excepção invocadas – adquirida durante a instrução, (deve ser) considerada pelo tribunal, sem mais formalidades – respeitando, é claro, o princípio da audiência contraditória (art. 415º do CPC)".

Adiante, acrescentou-se que este princípio foi "escrupulosa e exaustivamente respeitado" e que a factualidade da aludida alínea ficou "amplamente provada (à saciedade, diga-se)", dando-se procedência à pretensão dos aí apelantes, de reconhecimento dos factos em questão.

Segundo o acórdão recorrido, bastaria, pois, que fosse observado o princípio do contraditório – previsto, em geral, no citado art. 415º para a produção de qualquer meio de prova – para que o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), resultante da produção de um qualquer meio de prova, pudesse ser aproveitado; sem qualquer outra formalidade.

Com o devido respeito, não se subscreve este entendimento, apesar do apoio de doutrina que o acórdão recorrido reproduz[13].

Existe, porém, doutrina também em sentido diferente[14].

A jurisprudência reflecte essa divergência[15].

A posição que se possa assumir aqui sobre essa questão não parece, por si, determinante pelo que adiante será referido.

De todo o modo, tomando posição, parece-nos que, pela solução do acórdão recorrido, passaria a não existir diferença relevante entre o aproveitamento pelo juiz de factos instrumentais e de factos essenciais (complementares ou concretizadores).

Repare-se que essa solução apenas exige que seja observado o princípio da audiência contraditória na produção do meio de prova de que emerge o facto novo a considerar. Mas essa exigência é feita, em geral, em relação à produção de qualquer meio de prova e, portanto, é pressuposto que se coloca a montante do aproveitamento do facto – de qualquer facto, seja ele instrumental ou essencial – que resulte desse meio de prova.

Questão diferente pode pôr-se depois, a respeito do aproveitamento de um facto novo que surja com a produção do meio de prova.

Admitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.

Crê-se que a disciplina prevista no art. 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).

Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar. E só assim se assegurará um processo equitativo (art. 547º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam.

Em decorrência lógica do que acaba de dizer-se, não parece possível que, sem o acordo das partes, a Relação possa aditar à matéria de facto um facto novo, nos termos do art. 5º, nº 2, al. b), no âmbito da reapreciação da prova, efectuada nos termos do art. 662º do CPC (sem prejuízo de poder anular a decisão, considerando a relevância do facto na apreciação do mérito).

Mas, no caso, estar-se-á realmente face a um facto novo, essencial e complementar, não anteriormente alegado?

Pelo que já se disse, o acórdão recorrido não é peremptório a este respeito.

Não nos referimos à qualificação em si, mas ao próprio teor do facto, isto é, à realidade que o mesmo consubstancia, referindo-se ali, com efeito, que o facto "não foi expressamente alegado (no seu todo) nos articulados".

Todavia, percorrendo os articulados, vemos que:

No art. 9º da réplica os autores alegaram que "O caminho objecto de discussão nos presentes autos é um caminho de ligação entre a freguesia de ... e a freguesia de ..., via essa utilizada desde tempos imemoriais pelas populações de várias localidades e pelos proprietários dos vários prédios ao longo do seu leito, pelo que jamais poderia considerar-se uma servidão de passagem apenas para usufruto dos proprietários dos prédios confinantes com o leito do caminho".

No art. 4ºA da p.i. aperfeiçoada, os autores alegaram, para além do mais (cfr. nº 2 dos factos alterados pela Relação), que "esse caminho sempre foi utilizado de forma livre por todas as pessoas da terra".

E no art. 7º desse mesmo articulado, alegaram que "As gentes da terra sempre utilizaram o caminho em apreço, sendo reconhecido pelos populares e pela própria Junta de Freguesia como o caminho de ligação à feira de ..., ..., ...".

Ora, o facto da aludida al. G) é deste teor:

O caminho referido em C e D destina-se a servir de acesso às matas existentes na zona do ... e ao uso da população em geral para aceder às freguesias vizinhas de ..., ... e ... e concelho de ..., sendo também usado como caminho de acesso à feira do ....

Confrontando este facto com os acima reproduzidos, não nos parece que entre eles exista uma diferença substancial, no que respeita à utilização do caminho. Naquele, a mais do que nestes, apenas se identificam as freguesias de "..." e "...", como freguesias vizinhas a que o caminho dá acesso.

No entanto, nos factos alegados no processo já se afirma que o caminho serve "as gentes da terra" e, para além disso, "a população em geral", "as populações das várias localidades"; sempre, portanto, num âmbito que vai além dos limites da própria freguesia de ....

Acresce a tal alegação apenas a específica referência às freguesias de ... e ....

Assim, no entendimento que acima preconizámos, existe, em rigor, excesso de pronúncia – art. 615º, nº 1, al. d), do CPC – mas somente naquela reduzida extensão.

Esse excesso deve ser sanado pela simples eliminação, no facto provado, da referência às duas referidas freguesias – art. 684º, nº 1, do CPC.

Como parece evidente, mantendo-se o facto provado na parte restante, essa eliminação não tem, parece-nos, qualquer repercussão na apreciação do mérito.

Este problema, porém, já se enquadra na questão que a seguir se vai analisar.

4. Dissemos atrás que o Assento de 18.04.1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que, para além do uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, esta utilização deve ter por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.

No caso, no que respeita ao mérito, os recorrentes põem apenas em causa que se verifique este requisito – a satisfação de um relevante interesse colectivo –, advogando para o efeito a eliminação do facto da al. G), aditado pela Relação, em que esta também se baseou para concluir pela existência do caminho público.

Referimos já que o facto não deve ser eliminado, devendo sê-lo tão só a parte em que se refere as freguesias de ... e ..., sendo, pois, de considerar que o caminho referido em C e D se destina a servir de acesso às matas existentes na zona do ... e ao uso da população em geral para aceder à freguesia vizinha de ... e ao concelho de ..., sendo usado como caminho de acesso à feira do ....

Como se referiu no Acórdão do STJ de 13.01.2004, acima citado[16], "o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto do dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais".

No caso, ficou provado que o caminho é utilizado livremente por numerosas pessoas – ou seja, "por todas as pessoas da terra" – satisfazendo interesses comuns desses habitantes; não serve apenas o interesse próprio de cada um dos proprietários de acederem aos seus terrenos que confinam com o caminho.

Era por aí que essas pessoas se deslocavam para a freguesia vizinha de ... e era esse também o percurso utilizado para se dirigirem à feira de ..., em .... Sempre utilizaram o caminho para esses destinos, sem qualquer impedimento ou obstrução, há mais de 50 anos.

Ora, essa utilização revela um interesse colectivo que parece manifesto, numa prática enraizada nos costumes das "gentes da terra" que, pela relevância que assume para estas, deve ser salvaguardado.

Conclui-se, pois, que ao reconhecer a existência desse relevante interesse colectivo, a decisão recorrida não merece censura.

Será, aliás, de acrescentar que, mesmo que assim se não concluísse, isto é, se se considerasse que não se tinha feito prova da verificação do requisito relativo ao aludido interesse colectivo na utilização do caminho, nem assim, parece-nos, a acção poderia deixar de proceder, com fundamento no outro modo de aquisição da dominialidade, acima referido, tendo em conta a factualidade provada – ponto 2 (dos factos não provados na sentença) alterado no acórdão recorrido –, que traduz a apropriação do caminho pela autarquia, a realização de actos de jurisdição, administração, limpeza e conservação e a afectação do caminho à utilidade pública.

V.

Em face do exposto, decide-se negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 07 de fevereiro de 2017

Pinto de Almeida – Relator

Júlio Gomes

José Rainho

_______________________________________________________
[1] Proc. nº 1758/10.4TBPRD.P1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 170)
Cons. Júlio Gomes; Cons. José Rainho
[2] DR I, de 02.06.1989.
[3] Entre outros, o Acórdão do STJ de 15.06.2000, BMJ 498-226, com anotação concordante de Henrique Mesquita, RLJ 134-366 e 135-62.
[4] Manual de Direito Administrativo, 9ª ed., 2ª reimp, Vol. II, 921. Cfr. também Ana Gonçalves Moniz, O Domínio Público, 127 e segs.
[5] Ob. Cit., 923.
[6] Ob. Cit., 887 e 888.
[7] Neste sentido o Acórdão do STJ de 10.11.93, CJ STJ, I, 3, 135, e toda a jurisprudência posterior do STJ – entre outros, os Acórdãos de 15.06.2000 (atrás referido), de 13.01.2004, de 10.12.2009, de 09.02.2012, de 14.02.2012, de 28.05.2013, de 21.01.2014, 18.09.2014 e de 26.05.2015, em www.dgsi.pt.
[8] Nestes casos, como observa Ana Gonçalves Moniz, "se o bem constituiu objecto de actos de apropriação, jurisdição e administração por parte de uma pessoa colectiva pública, não será necessário o recurso à figura do imemorial, bastando recorrer à figura da afectação implícita" – Ob. Cit., 152.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2ª ed., 283.
[10] Manuel Rodrigues, A Posse, 3ª ed., 298; A. Carvalho Martins, Caminhos Públicos e Atravessadouros, 2ª ed., 61; Acórdãos do STJ de 13.01.2004, de 18.09.2014 e de 26.05.2015, acima citados.
[11] Neste sentido, Carvalho Martins, Ob. Cit., 65 e 103.
[12] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 348.
[13] P. Ramos de Faria e Ana L. Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de processo Civil, Vol. I, 38 a 41 e Vol. II, 123 a 125.
[14] Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 1º, 3ª ed., 17. Do que refere este Autor, depreende-se que a parte "há-de ser notificada para «se pronunciar»", mas acrescenta que, como o impõe o princípio do dispositivo, se nenhuma das partes se pronunciar, o facto não pode integrar a fundamentação da decisão, não podendo ser considerado oficiosamente.
Mariana França Gouveia (Princípio do dispositivo e a alegação de factos em processo civil - texto escrito para os Estudos em Homenagem aos Professores Palma Carlos e Castro Mendes, 615 e 616) defende também que os factos principais (complementares ou concretizadores) podem ser alegados até ao fim do julgamento, mas não podem ser oficiosamente adquiridos. Acrescenta, todavia, que, na prática, como o art. 5º, nº 2 b) exige que as partes se pronunciem sobre os factos, desta pronúncia se retirará o acordo (expresso ou tácito) na sua alegação.
[15] Não encontrámos qualquer acórdão do STJ que se tenha pronunciado sobre a questão colocada nestes autos. As Relações encontram-se divididas: no sentido do acórdão recorrido, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 18.09.2014 e de 13.10.2016; em sentido contrário, os Acórdãos da Relação do Porto de 15.09.2014 e de 30.04.2015 e da Relação de Guimarães de 07.04.2016 e de 15.09.2016, todos em www.dgsi.pt..
[16] Cfr. também o Acórdão do STJ de 18.09.2014.