Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9434/06.6TBMTS.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ
DIREITO À NÃO EXISTÊNCIA
DIREITO À VIDA
Data do Acordão: 01/17/2013
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / PERSONALIDADE JURÍDICA / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / NÃO CUMPRIMENTO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS - DIREITOS E DEVERES SOCIAIS.
DIREITO PENAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA INTRA-UTERINA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / DISCUSSÃO E JULGAMENTO DA CAUSA / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
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Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 66.º, N.ºS 1 E 2, 358.º, 364.º, 393.º, 483.º, N.º1, 563.º, 799.º, N.º1, 1154.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 655.º, 660.º, N.º2, 710.º, N.º1, 722.º, N.º3, 726.º, 729.º, N.º3.
CÓDIGO DEONTOLÓGICO DOS MÉDICOS, APROVADO EM 23 DE FEVEREIRO DE 1985, PUBLICADO REVISTA DA ORDEM DOS MÉDICOS 3/85: – ARTIGO 26.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 142.º, N.º1, ALÍNEA C).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º, 24.º, 25.º, 71.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16 DE JUNHO DE 2001, DE 19 DE JUNHO DE 2001, 5 DE JULHO DE 2001, 17 DE DEZEMBRO DE 2002, 6 DE MAIO DE 2004, 7 DE ABRIL DE 2005, 11 DE JULHO DE 2006, 22 DE MARÇO DE 2003, 18 DE SETEMBRO DE 2007, 27 DE NOVEMBRO DE 2007, 4 DE MARÇO DE 2008, 16 DE JUNHO DE 2009, 15 DE OUTUBRO DE 2009, 17 DE DEZEMBRO DE 2009, 21 DE JANEIRO DE 2010, 1 DE JULHO DE 2010, 7 DE OUTUBRO DE 2010, 18 DE MAIO DE 2011, 24 DE MAIO DE 2011, 13 DE SETEMBRO DE 2011, 15 DE NOVEMBRO DE 2011 E 23 DE FEVEREIRO DE 2012, IN WWW.DGSI.PT E SITE STJ, LINK JURISPRUDÊNCIA SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS.
Jurisprudência Internacional:
JURISPRUDÊNCIA FRANCESA: - DECISÃO DE 17 DE NOVEMBRO DE 2000, ARRÊT PERRUCHE, DA COUR DE CASSATION FRANCESA, EM WWW.COURDECASSATION.FR E WWW.LEGIFRANCE.GOUV.FR.
JURISPRUDÊNCIA HOLANDESA: - DECISÃO NO CASO «BABY KELLY MOLENAAR», PELO HOGE RAAD HOLANDÊS.
JURISPRUDÊNCIA NORTE AMERICANA: - DECISÃO DO TRIBUNAL DO ESTADO DO ILLINOIS, NO CASO ZEPEDA VERSUS ZEPEDA; DECISÃO DO CASO GLEITMAN V. COSGROVE, IN HARVEY TEFF, THE ACTION FOR WRONGFUL LIFE IN ENGLAND AND THE UNITED STATES, IN INTERNATIONAL AND COMPARATIVE LAW QUATERLY, Nº34, ISSUE 3, JULHO 1985, 423/441; CFR. TAMBÉM “WRONGFUL BIRTH» “WRONGFUL LIFE” Y “WRONGFUL PREGNANCY, ANALISIS DE LA JURISPRUDENCIA NORTAMERICANA. RESEÑA DE JURISPRUDÊNCIA FRANCESA, POR GRACIELA MEDINA Y CAROLINA WINOGRAD, DISPONÍVEL NA INTERNET NO SITE BIBLIOTECA JURÍDICA VIRTUAL.
Sumário :


I O acordo havido entre a a Autora e os Réus com vista à efectivação dos exames neo-natais, consistentes nas duas ecografias estabelecidas como obrigatórias no protocolo da Direcção Geral de Saúde, configura uma obrigação de meios pois tais exames destinavam-se, primacialmente, à identificação, determinação e informação de eventuais distúrbios e malformações do feto.
II Sendo a obrigação principal assumida pelo médico a de tratamento e dividindo-se esta obrigação em outras quantas prestações diversas que passariam, ou poderiam passar, consoante o protocolo a seguir segundo o caso concreto, por actividades de mera observação, diagnóstico, terapêutica efectiva e vigilância, é a mesma de qualificar como obrigação de meios e não de resultado
III Há um erro médico, quando ocorra uma falha profissional, não intencional, consistente numa deformada representação da realidade, in casu, imagiológica, decorrente das ecografias que foram efectuadas à Autora.
III Por parte dos Réus houve uma conduta ilícita e culposa, pois poderiam e deveriam ter agido de outro modo face à constatação inequívoca de malformações do feto, traduzindo-se a violação do dever cuidado na preterição da leges artis na matéria de execução do diagnóstico porque este deveria ter conduzido à aferição das aludidas malformações, atentos os meios empregues em termos de equipamento e tendo em atenção a preparação privilegiada do Réu.
IV A conduta dos Réus ao fornecerem à Autora uma «falsa» representação da realidade fetal, através dos resultados dos exames ecográficos que lhe foram feitos, contribuíram e foram decisivos para que a mesma, de forma descansada e segura, pensando que tudo corria dentro da normalidade, levasse a sua gravidez até ao termo.
V Estamos em sede de causalidade adequada, pois a conduta dos Réus foi decisiva para o resultado produzido, qual foi o de possibilitarem o nascimento do Autor com as malformações de que o mesmo era portador, o que não teria acontecido se aqueles mesmos Réus tivessem agido de forma diligente, com a elaboração dos relatórios concordantes com as imagens que os mesmos forneciam, isto é, com a representação das malformações de que padecia o Autor ainda em gestação.
VI Como deflui inequivocamente do preceituado na alínea c) do artigo 142º do CPenal, a Lei não pune a interrupção da gravidez nos casos em que há «seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez», constituindo aquela solução o único meio de tutela de interesses juridicamente protegidos, isto é, um meio sem alternativa, exigindo-se que sobre o caso haja um juízo de previsão fundada em motivos seguros, integrada por conseguinte pela certeza de que o nascituro sofre já da doença e/ou malformação, conduzindo desta sorte ao aborto por indicação embriopática ou fetopática.
VII A circunstância de a Lei permitir à grávidas a interrupção da gravidez nesta situação, além do mais, não tem de per si a virtualidade de «interromper» o apontado nexo, fazendo antes parte do mesmo, porque sendo aquela solução uma opção das interessadas, desde que devidamente informadas com o rigor que se impõe neste tipo de ocorrências, impenderia sobre os Réus os mais elementares deveres de cuidado no que tange à elaboração do diagnóstico, o que de forma culposa omitiram, impedindo assim a Autora de utilizar o meio legal que lhe era oferecido, atento o tempo de gestação em curso (inferior às vinte quatro semanas), de não levar a termo a sua gravidez caso o entendesse, o que esta teria feito atentas as circunstâncias, daqui decorrendo o dever de indemnizar a Autora por banda dos Réus
VIII De uma maneira geral a doutrina e jurisprudência europeia e norte americana admite as acções de wrongful birth, no caso sujeito a que se mostra intentada pela Autora, mãe do Autor, com vista a ser ressarcida pelos danos decorrentes da gravidez, bem como aqueles que decorrem das necessidades especiais da criança (onde se inclui a doutrina portuguesa maioritária, já que a nível jurisprudencial apenas existe uma única decisão deste STJ a propósito desta temática, de 19 de Junho de 2001 (Relator Pinto Monteiro)).
IX Todavia, aquelas mesmas correntes, nos casos em que a par da wrongful birth action se cumula uma wrongful life action, esta é rejeitada in limine por se considerar inadmissível o ressarcimento do dano pessoal de se ter nascido (para além igualmente das questões suscitadas a nível da quantificação do valor da vida – quanto vale a vida? pode uma vida valer mais do que outra? uma vida com deficiência é menos valiosa que uma vida sem deficiência? quais os critérios de valoração? etc - caso tal indemnização fosse possível), sendo que esta questão nos coloca perplexidades várias, passando pelas filosóficas, morais, religiosas, politicas, acrescidas, obviamente, das jurídicas.
X O problema com o qual nos deparamos, neste particular é o de saber se a atribuição de uma indemnização nestas circunstâncias específicas, o nascimento deficiente do Autor, constitui um dano juridicamente reparável atento o nosso ordenamento jurídico, o que não nos parece ser enquadrável em termos normativos, antes se nos afigurando a sua impossibilidade e nos levaria a questionar outras situações paralelas tais como a eutanásia e o suicídio, as quais passariam a ter leituras diversas, chegando-se então à conclusão que afinal poderá existir um “direito à não vida”, o que poria em causa princípios constitucionais estruturantes plasmados nos artigos 1º, 24º e 25º da CRPortuguesa, no que tange à protecção da dignidade, inviolabilidade e integridade da vida humana, quer na vertente do «ser», quer na vertente do «não ser».
XI Nem se poderá seguir pela chamada «terceira via» da responsabilidade civil, através do enquadramento neste instituto do contrato com eficácia de protecção para terceiro, um tertium genus, o que possibilitaria abarcar as situações de violação de deveres específicos de protecção e cuidado emergentes daquele acordo havido com os Réus e para com terceiros.
XII A nossa grande dificuldade, nesta possível construção jurídica, consiste na impossibilidade de se considerar como «terceiro» o feto, pois não se pode aceitar, de todo em todo que a criança, inexistente enquanto ser humano – em gestação apenas – face ao preceituado no normativo inserto no artigo 66º, nº1 do CCivil, que prescreve que a personalidade se adquire «(…) no momento do nascimento completo e com vida.», possa ser tida como parte interessada num contrato havido entre aqueles que a conceberam e outrem, sendo a mesma na altura um nascituro e por isso carecida de personalidade jurídica, sem prejuízo da Lei lhe atribuir alguns direitos.
XIII Nenhum outro direito se afigura concretizável com o nascimento do nascituro, maxime, o decorrente de um pretenso contrato com eficácia de protecção de terceiro (terceiro este apenas nascituro, falho da qualidade jurídica de terceiro para efeitos obrigacionais, por ausência de personalidade jurídica), a quem a Lei não concede qualquer protecção por via da celebração daqueloutro contrato de prestação de serviços médicos, a não ser a protecção directa do mesmo, ou seja, a decorrente de uma actuação do médico dirigida especificamente ao feto e por isso causadora das suas eventuais malformações, o que não se mostra ter ocorrido no caso sub judice.
XV O Autor existe, mas concluir-se que o mesmo não deveria existir assim desta forma deficiente e por isso tem o direito a ser ressarcido, não pode ser, uma vez que a tal se opõe, além do mais, o direito.
APB
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 

I S, por si e em representação do seu filho menor J, instaurou acção declarativa com processo ordinário contra CENTRO DE RADIOLOGIA X, LDA, DR. M, director clínico da primeira Ré, e DR.ª H, alegando essencialmente que o J nasceu a 26 de Novembro de 2003 (e não 26 de Novembro de 2006 como por lapso se escreveu na Petição Inicial) com sindroma polimalformativo às 38 semanas de gestação, designadamente sem mãos nem braços, deformação dos pés, da língua, do nariz, das orelhas, da mandíbula e do céu da boca. Durante a gravidez, a Autora realizou as ecografias obstétricas medicamente previstas para gravidez na 1ª Ré, onde foi sempre assistida pelo Sr. Dr. M, que elaborou os relatórios correspondentes às ecografias realizadas. À medida que os exames eram efectuados e visualizados, pelo Réu sempre foi dito e mostrado à Autora que o bebé era perfeitamente normal. Porém, incorreu em manifesto e grosseiro erro de apreciação e diagnóstico, pois que, segundo as actuais exigências das leges artis, com os conhecimentos científicos existentes na época, e actuando de acordo com um dever objectivo de resultado, seria visualizável a um médico radiologista, pela análise das películas em causa que existiam já determinadas patologias ou, pelo menos, indícios delas que deveriam constar dos relatórios efectuados, permitindo um diagnóstico definitivo através de novos exames. Caso não se demonstre que as películas demonstravam tais patologia, então houve troca grosseira das imagens. Não possuindo o Autor mãos e antebraços, fossem visíveis nas imagens ecográfícas – que não são – estas não lhe poderiam pertencer. Agindo como agiram, podendo e devendo ter identificado as patologias observáveis nos exames que realizaram, malformações congénitas permanentes e irreversíveis, os 1º e 2º Réus deixaram a Autora no desconhecimento de que gerava um feto que nasceria com profundas patologias morfológicas. Se as conhecesse à data dos exames ecográficos realizados, a Autora teria optado, por interromper voluntariamente a gravidez.

A 26 de Agosto de 2003 a Autora foi encaminhada pela sua médica de família para o Hospital P, por lhe ter sido diagnosticada ITU de repetição onde foi à consulta da 3ª Ré, Dr.ª H, especialista em obstetrícia, que qualificou a gravidez de “alto risco”, mas, procedendo à visualização e análise das ecografias referiu à Autora que nada de anormal se passava com o embrião, receitando-lhe medicamentos para a dita ITU. Pelo que também esta Ré incorreu em manifesto e grosseiro erro de apreciação e diagnóstico.

Por sucessiva negligência grosseira, foi coarctado à Autora o direito de auto-determinar a sua vontade relativamente ao destino da sua gravidez, pelo que ambos os Autores terão de encarar para a vida as malformações congénitas descritas. O Autor sempre dependerá de terceiros para a sua sobrevivência, e necessitará dos cuidados permanentes da Autora para a execução das mais simples tarefas do quotidiano. 

Com o nascimento do Autor com as patologias da malformação, a Autora passou a viver num desequilíbrio emocional profundo, já previsível aquando dos errados diagnósticos e a interrupção da gravidez seria, então, o único meio idóneo a evitar o real perigo que a gravidez constitui para a sua saúde psíquica.

Também o Autor sofre danos não patrimoniais, no interesse do qual a Autora deveria ter abortado, evitando a vida de angústia e sofrimento por que ambos os Autores passam.

O Autor tem graves problemas de formação, desenvolvimento e crescimento que advêm da malformação uterina, pelo que nunca poderá, de forma independente, ter uma vida normal, mesmo no que se refere à realização das mais básicas tarefas do quotidiano. Tendo perfeita consciência disso por ter um desenvolvimento mental normal, sofre profunda revolta, nervosismo e incompreensão no seu penoso dia a dia.

Pela sua gravidade e perenidade, os critérios de equidade impõem compensação global nunca inferior a € 100.000.00.

O Autor sofre também danos patrimoniais resultantes da total falta de capacidade de trabalho que se irá prolongar por toda a sua maioridade, completamente dependente de terceiras pessoas. A capacidade de ganho está totalmente afectada, ou pelo menos é extremamente reduzida, constituindo um dano futuro previsível a reparar desde já por recurso à equidade e, assim, num valor que estima em € 300.000,00.

 Quanto à Autora:

Estima a compensação dos seus graves danos não patrimoniais na quantia de € 100.000,00.

Relativamente aos seus danos patrimoniais, invoca as despesas de farmácia para cuidar do J, a impossibilidade de trabalhar por causa da indispensável dedicação quase exclusiva ao Autor, vivendo ela apenas do rendimento social de inserção no valor mensal de € 318,32, tendo ainda a mãe e um outro filho menor, mais velho, a cargo. Antes do nascimento do Autor auferia, em média, € 600,00 por mês do seu trabalho. O seu prejuízo patrimonial ascende já a € 10.140.48 (36 meses).

Além disso, os Réus devem ser condenados no pagamento da quantia de € 281,68 (€ 600,00 - € 318,32) por cada mês que decorra entre a data da petição inicial (19 de Novembro de 2006) e a efectiva contratação de técnico que venha a acompanhar o Autor, permitindo que a Autora regresse ao trabalho.

A situação clínica do Autor determinará um acréscimo de despesas para a Autora que só no futuro poderão ser determinadas.

Terminam com o seguinte pedido:

«Termos em que

Deve a acção ser julgada totalmente procedente por provada e, por via dela, serem os Réus solidariamente condenados:

a) a liquidar ao Primeiro Autor quantia nunca inferior a €. 100.000 (cem mil euros), pela gravidade e perenidade dos danos não patrimoniais descritos nos artigos 137° a 179°, directamente imputáveis às condutas dos Réus;

b) a liquidar ao Primeiro Autor quantia nunca inferior a €. 300.000,00 (trezentos mil euros), pelos danos patrimoniais causados pelos R.R., melhor descritos nos artigos 180° a 202°, montante equitativo atendendo a que aquele Autor poderia ter cerca de 50 anos de vida útil, e poderia vir a auferir um rendimento equitativamente médio de cerca de €. 500,00,

c) a liquidar à Segunda Autora quantia nunca inferior a €. 100.000 (cem mil euros), pela gravidade e perenidade dos danos não patrimoniais descritos nos artigos 203° a 249°, directamente imputáveis às condutas dos Réus;

d) a liquidar à Segunda Autora a quantia de €. 10.957,91 (dez mil novecentos e cinquenta e sete euros e noventa e um cêntimos, acrescida de €. 281,68 (€. 600,00 - €. 318,32) por cada mês que decorra entre a presente data de 19 de Novembro de 2006 até à efectiva contratação de técnico que venha a acompanhar o Primeiro Autora, - para compensação dos danos patrimoniais líquidos melhor alegados nos artigos 250° a 265°.

e) A liquidar à Segunda Autora quantia correspondente às despesas médicas e de educação que assumem carácter extraordinário, melhor alegadas nos artigos 266° a 286°, quantia essa a fixar em sede de incidente de liquidação ou, em alternativa, em sede de execução de sentença, ou ainda por critérios de equidade, caso a instrução da demanda assim venha a permitir.

f) No pagamento de juros moratórios, à taxa legal, contados sobre as importâncias líquidas acima peticionadas, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

g) No pagamento de todas as custas e encargos do processo, bem como de procuradoria.» (sic)

Citados, os Réus contestaram a acção.

O 1º Réu, Centro de Radiologia, impugnou parcialmente os factos alegados pelos Autores dizendo que as ecografias realizadas não são “as medicamente previstas” e que apenas permitem uma avaliação fotográfica do instante/momento em que o exame é realizado, sem uma natureza definitiva, atento o carácter dinâmico e progressivo da gestação que, por seu lado, é interferível por uma multiplicidade de factores endógenos e exógenos com os quais, naturalmente, o exame ecográfico em si mesmo não contende.

As expressões utilizadas de «favorável», «compatível» e «feto normal», são o que a imagem do equipamento permite visualizar, e não a absoluta realidade, o diagnóstico absoluto, que os equipamentos não captam nem captarão e não é possível realizar, nem nos dias de hoje.

Dada a limitação dos equipamentos imageológicos, não houve qualquer erro de diagnóstico e as imagens tiradas (doc.s de fl.s 110 e seg.s) não permitiam conclusões diversas das constantes dos relatórios.

Ascende a 45% a percentagem de erro na execução técnica dos exames ecográficos, mesmo quando realizada pelos melhores especialistas médicos. E no exame ecográfico não há qualquer resultado de diagnóstico alcançável fora do contexto de intervenção do equipamento ecográfico, com a sua falibilidade intrínseca própria. Não se pode garantir um resultado que o equipamento não atinge (e que por essa circunstância não pode ser atingido).

Por outro lado, a leitura que o ecografista faz das imagens por si captadas da forma medicamente indicada destinam-se ao médico assistente da utente, não sendo um exame do qual se parta para a execução imediata de acordo com a conclusão que dele se retira. Cabia à médica de família ou médico assistente da Autora a formulação de um juízo próprio, sem sujeição ao relato do médico ecografista.

Além disso impunha-se a realização de uma terceira ecografia às 28ª/32ª semanas de gestação.

Entre a 15ª semana de gestação e o parto podem acontecer múltiplas vicissitudes à gravidez e, por consequência, ao feto, como certamente aconteceram, designadamente por medicação a que a grávida se submeta com errada indicação médica ou por sua iniciativa, sem controlo médico.

Conclui que nem as malformações eram patentes à data da realização dos exames, nem a sua configuração podia ser diagnosticada, nem a afirmação, actual da Autora, pode ter qualquer valor retroactivo. Nega qualquer relação causal entre o diagnóstico efectuado e os danos alegados pela Autora, considerando ainda exagerados os valores indemnizatório peticionado.

Por tudo, defende a improcedência da acção, com as legais consequências.

O Réu M opôs-se à petição inicial em termos em quase tudo idênticos aos da contestação do Centro de Radiologia.

Impugna os danos, por desconhecimento, considerou inadequados os exames realizados, quer quanto aos momentos em que tiveram lugar, quer relativamente às ecografias previstas pela Ordem dos Médicos.

Desvalorizou as ecografias no sentido de que não são um valor absoluto em si mesmo quanto aos resultados que apresentam por não eliminarem margens de erro e invocou também a não realização, pela Autora, de todos os exames medicamente previstos e aconselháveis, daí derivando também o seu desconhecimento sobre as características do feto.

Concluiu, tal como a 1ª Ré, pela improcedência da acção. 

Requereu a intervenção principal provocada da Unidade Local de Saúde de M ou, subsidiariamente, a respectiva intervenção acessória, incidente este que foi recusado por falta de pagamento da correspondente taxa de justiça e multa (cf. despacho de fl.s 406).

Também a Ré H contestou a acção, desde logo invocando a sua ilegitimidade resultante do facto prestar serviços em regime de exclusividade no Hospital P, instituição de saúde que os Autores, aliás, já demandaram nos tribunais administrativos e onde referiram que a ora Ré é sua funcionária.

Com efeito, podendo vir a ser accionada na sequência de eventual condenação do hospital, no exercício do direito de regresso que a este assiste, entende que deve ser absolvida da instância.

Defendeu-se ainda por impugnação dos danos e dos factos relacionados com os exames ecográficos e a sua obrigação de os interpretar. Faz sobressair o carácter dinâmico do exame ecográfico e as especiais exigências que se impõem ao ecografista, enquanto médico especialista.

Concluiu que, não sendo absolvida da instância, deve ser absolvida do pedido.   

Os Autores deduziram réplica pela qual, sobretudo, impugnaram a matéria das contestações, concluindo em conformidade com a Petição Inicial.

Em sede de despacho saneador foi a Ré H absolvida da instância, por se ter entendido ser o Tribunal incompetente em razão da matéria, a qual estaria cometida aos Tribunais Administrativos.

 A final foi proferida sentença que culminou com o seguinte segmento decisório:

«(…)Em conclusão, com fundamento nas normas legais citadas, julgo a presente acção parcialmente provada e procedente, em razão do que condeno os RR. Centro de Radiologia X, Lda e Dr. M a pagarem à autora S, solidariamente, a título de indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais que lhe causaram, respectivamente, duas quantias de cem mil euros cada, num total de 200.000€ (duzentos mil euros), a acrescer com juros que se contarão à taxa anual de 4%, até integral pagamento, sobre 100.000€ (cem mil euros) desde a data desta sentença; e sobre os outros 100.000€ (cem mil euros) desde a data da respectiva citação.

No mais, quer no que respeita ao demais pedido pela autora S, quer no que respeita à totalidade do pedido pelo autor J, julgo a acção não provada e improcedente, absolvendo os RR. do restante que contra ambos vinha pedido (…)».

Inconformados, apelaram os Autores e os Réus, tendo a Apelação destes sido julgada improcedente e parcialmente procedente a Apelação dos Autores e, em consequência, alterando a sentença, na procedência do pedido da Autora S condenaram-se os Réus a satisfazer a titulo de indemnização as despesas futuras relativas ao acompanhamento clínico permanente de que o J necessita e continuará a necessitar, tratamento e acompanhamento técnico de que a Autora não tem conhecimentos para assegurar; próteses de que o J necessitar; e educação e instrução especial de que o J houver de ter em razão da deficiência, com a contratação de professores, técnicos, e material de ensino especialmente direccionados ao seu estado clínico, que se quantificar em oportuna liquidação, mantendo-se a mesma no mais.

Deste Aresto, inconformadas, recorreram de Revista ambas as partes.

Os Autores apresentaram as seguintes conclusões:

- Nos autos não é a vida, em si mesma, que consubstancia o dano do recorrente, mas sim a vida com deficiência;

- A causa de pedir que o recorrente alega não contende com a indisponibilidade da vida humana, sendo justamente o respeito pela dignidade da vida humana a impor a atribuição de uma indemnização que assegure uma vida com um mínimo de condições;

- A questão que se coloca não é a de saber se o ordenamento jurídico contém um "direito à não existência" e uma indemnização pela sua violação.

- Na discussão desta temática é usual o recurso a um "vocabulário dos direitos", sendo invocada frequentemente a inexistência de um "direito a não nascer";

- A utilização deste tipo de discurso pode perturbar a compreensão do que verdadeiramente está em causa neste tipo de acções. Neste sentido, MOTA PINTO (2007) defende que "não é útil trabalhar com um pretenso «direito a não nascer», ou com um «direito à não-existência», cuja difícil articulação, pela contradição que encerra em si mesmo, logo remete o julgador para uma atitude negativista. Tal noção, embora corrente, parece-nos mesmo, susceptível de criar confusões, dando a entender que a posição da criança se tem de fundamentar num tal "direito".

- Nos autos não é a vida, em si mesma, que consubstancia o dano, mas sim a vida com deficiência. O dano invocado pelo autor centra-se, não na discussão, como refere ARAÚJO (1999: 96), de "saber se há um limite (e onde está) para lá do qual a vida perde de tal modo o sentido que a sua ocorrência é um dano para quem a experimenta", mas apenas e tão-somente na necessidade de responsabilizar o profissional negligente que ilegitimamente se substituiu aos pais na tomada de uma decisão que só a eles pertence (CARDOSO CORREIA, 2007: 106). Neste sentido, o acórdão do tribunal de 2ª instância holandês no célebre caso Kelly Molenaar;

- O dano não é a deficiência de per si, nem o próprio nascimento, mas antes o nascimento nessa condição, ou seja, o nascimento deficiente. - Tal tutela não contende com a dignidade da existência humana e com a indisponibilidade do direito à vida;

- O Autor da acção não pretende auto-limitar nenhum direito de personalidade, concretamente o direito à vida - muito pelo contrário, ele pôde intentar a demanda justamente porque está vivo e é sujeito de direito.

- A indisponibilidade da vida humana não é posta em causa pelo simples facto de se atribuir uma indemnização ao autor;

- Do que se trata nestes autos não é da vida como valor ou desvalor, mas antes, realmente, dos sofrimentos e das necessidades causadas pela deficiência.

- A indemnização não deve compensar o dano de ter nascido mas sim a dor e o sofrimento que a criança experienciou após o nascimento.

- É facto, incontestável, de que nasceu uma pessoa com deficiências severas, que busca a reparação dos danos sofridos, pessoa essa que está viva e não morta.

- A obrigação de indemnizar o autor surgiu com a verificação de determinados pressupostos legais: o dano, ilicitude, a culpa, e o nexo causal;

- O dano invocado pelo autor - a dor, o sofrimento que experiência após o nascimento, e as necessidades causadas pela deficiência - são consequência directa e necessária do acto ilícito e culposo praticado pelas rés;

- O conteúdo e alcance dos efeitos do contrato médico são delimitados, também, pelo Código Deontológico que rege a profissão médica;

- Não devendo o direito ser estranho ao amplo alcance que a qualidade de vida, dignidade do doente, e os amplos interesses dos doentes são impostos como deveres especiais no âmbito do contrato médico.

- Em especial - e num sentido de protecção muito mais abrangente do que resulta do direito civil geral - no que concerne à proteção da vida desde o seu início e na protecção dos interesses do futuro ser humano.

- Interpretando convenientemente as normas próprias de exercício da profissão médica, vinculativa a todos os contratos médicos, o recorrente tinha já direitos ante o recorrido, sendo que, obviamente, apenas com o seu nascimento os mesmos se consolidaram na sua, então surgida, esfera jurídica.

- O recorrido violou aqueles seus deveres ante o recorrente, que obtêm expressa tutela nas normas que regem o exercício da profissão e que, assim, impunham uma verdadeira obrigação contratual no cumprimento do contrato celebrado com a autora mãe, com efeitos face ao recorrente.

- Considerar entendimento diverso, plasmando assim que ao recorrente nenhum direito próprio assiste, será até, eventualmente, denegar-lhe justiça - pois ele é, na essência, o principal interessado no ato médico praticado, e, em última instância, o maior lesado com a omissão do recorrido.

- Sendo porventura mais aviltante considerar que o maior lesado com o incumprimento de normas contratuais (destinadas a protegê-lo) seja totalmente ignorado do ponto de vista jurídico - considerando que nenhum direito adquiriu - do que porventura considerar que a responsabilização do incumpridor poderá pôr em causa uma aplicação meramente teórica de princípios que o legislador não previu para situações ad hoc como a destes autos, mas que nem por isso deixam de merecer a devida tutela.

- Sendo assim totalmente admissível que a obrigação de indemnizar o autor, de facto, exista, por preenchimento dos requisitos legais que subjazem à responsabilidade civil: dano, ilicitude, a culpa, e o nexo causal.

Os Réus apresentaram as seguintes conclusões:

- Através da douta sentença recorrida, no plano da matéria de facto, o Tribunal a quo 1 º qualifica como ecografia morfológica e retira daí consequências, quando afinal, a ecografia solicitada pela autora, sob indicação da médica assistente, foi uma ecografia obstétrica; 2º recusa reconhecer que a percentagem de erro na execução técnica de exames ecográficos ascende a percentagem significativa, mesmo quando realizados pelos melhores especialistas situando-se as taxas de detecção das malformações estabelecidas em perícia, consoante o segmento da morfologia fetal em causa, de modo inequívoco em sentido frontalmente contrário ao decidido pelo Tribunal, o que impunha uma fundamentação que inexiste; em ambas as perícias se estabelece, sem qualquer margem para dúvidas, aquilo que é consensual, ou seja, que estes exames ecográficos, atenta a sua natureza própria, comportam uma margem de falibilidade; 3º recusa reconhecer falibilidade ao exame ecográfico, sujeitando a discussão a um vazio, por se ter de reflectir sem o facto dessa falibilidade; 4º Das ecografias realizadas pela autora à volta das 28ª/32ª semanas de gestação, a designada ecografia do terceiro trimestre, nenhuma corresponde à ecografia morfológica recomendada pelo Serviço Nacional de Saúde, pelo que o Tribunal a quo incorre até na contradição de por um lado, dar como provado que a autora «confiando do diagnóstico da Primeira e Segunda RR não repetiu o mesmo tipo de exames, nem adoptou cuidados médicos especiais ... » (página 9, § 7º) e dar como não provado o facto alegado pelos RR de que «a autora deveria ter feito, no mínimo, a 3ª ecografia», a qual, aliás, estava recomendado ser feito pelo próprio relatório a que se referem as Alíneas G) a J), em torno do qual se desenvolve todo o objecto do presente processo.

- Embora reconheçam estarmos perante uma obrigação de meios, tanto a douta quanto o Acórdão recorrido reflectem e decidem como se estivéssemos perante uma obrigação de resultado, por i) erradas consideração e relevo da natureza dos equipamentos utilizados na execução do exame ecográfico, e ii) inconsiderando a falibilidade destes, fazendo impender sobre os réus um designado «dever objectivo de resultado»;

- É significativa a margem de falibilidade na execução de exames ecográficos, porque se verifica 1 º a complexidade científica do acto, 2º o exame incide sobre um feto com escassos centímetros de comprimento,

- Não era razoável concluir e decidir como a douta sentença e o Acórdão recorrido vieram a fazer, reflectindo num contexto de obrigação de meios, mas movendo-se e decidindo no quadro factual de uma obrigação de resultado.

- o princípio consagrado subjacente à doutrina do Acórdão do STJ de 2008 é a de que uma obrigação pode ser de meios ou de resultado, estando em causa a utilização de equipamentos médicos, técnicos, a margem de falibilidade, consoante seja maior ou menor (ou nenhuma) a falibilidade dos equipamentos e do exame em causa.

- No caso do Acórdão está em análise um exame laboratorial de anatomia patológica em que a margem de falibilidade é negligenciável, de onde o Supremo tribunal estabeleceu que a obrigação podia e devia ser tratada como de resultado e o médico responsabilizado, sendo de meios quando a margem de falibilidade seja significativa ou não negligenciável e de resultado quando inexiste margem de falibilidade.

- A ilicitude no domínio da responsabilidade contratual afere-se pela preterição de uma concreta obrigação contratual preterida pelo devedor, ou de particular obrigação legal associada à realização da prestação.

- Não está estabelecida da qualquer obrigação contratual que possa reputar-se violada, e assim, ilicitamente, nem que os Recorrentes tenham violado alguma norma legal ou regulamentar, do domínio das leges artis médicas que possa concluir-se como sendo o pressuposto da ilicitude.

- No caso dos autos, embora a douta sentença e o Acórdão recorrido o afirme, até no próprio enunciado da matéria de facto, a verdade é não estar devidamente identificado qual o «dever cuidado» que foi preterido; e qual das leges artis na matéria de execução do diagnóstico foi violada.

- A douta sentença e o Acórdão recorrido adoptam um verdadeiro raciocínio consequencial reversível, isto é, parte da constatação de malformações para concluir que se há malformações, então deveriam ter sido diagnosticadas e, como não o foram, há ilicitude e culpa médica nessa não detecção e consequente informação à grávida.

- Não pode exigir-se ao médico ecografista, utilizando equipamentos falíveis, o atingimento de um resultado de diagnóstico, «um dever objectivo de resultado» que não está ao seu completo alcance, no seu integral e pleno domínio, realizar, nem é censurável que o não alcance; E, não podendo exigir-se, não pode haver juízo de censura que consubstancie a culpa.

- O pressuposto da causalidade adequada regulado na nossa lei civil constitui um elemento objectivo do instituto da responsabilidade civil [tal como o elemento culpa constitui um elemento subjectivo] pelo que a causalidade adequada constitui um elemento de imputação objectiva, isto é, densificada por factos, por situações e circunstâncias, não podendo sê-lo por declarações de vontade;

- Nesse contexto, uma declaração de vontade do lesado, não poderá contribuir para consubstanciar o pressuposto da causalidade adequada;

- No caso dos autos, em caso algum pode estabelecer-se uma relação causal de responsabilidade civil entre o acto de diagnóstico de realização da ecografia a que se referem as alíneas D) a J) da matéria assente e as malformações e danos associados de que padece o Autor J; nem às necessidades particulares que a autora terá de enfrentar com a criação do filho; 

- Sem embargo de se poder admitir uma afectação da margem de autodeterminação, por falta de informação da grávida quanto ao desenvolvimento da sua gravidez (que - nas ecografias indicadas pelo Serviço Nacional de Saúde, nas fases de gestação estabelecidas) se dirige à orientação da gravidez e não à formação da decisão de abortar ou não;

- Na elaboração do diagnóstico, por exame ecográfico, o erro médico constitui no limite uma afectação da capacidade de autodeterminação da vontade do paciente, nunca uma causa da própria produção do dano consequente ao exercício dessa autodeterminação.

- Com efeito, o exercício da vontade da grávida constitui uma interrupção do nexo causal ligado ao acto de diagnóstico e enceta um novo processo autónomo;

- Com efeito, o dano limite a indemnizar não pode deixar de se conter na própria informação/notícia não prestada - surpresa pelo nascimento da criança com malformações, e nunca, já não, pelos danos subsequentes, associados, directos ou indirectos, com as próprias malformações de que padece a criança.

- Não há um «autêntico direito a interromper a gravidez» pois «Na nossa ordem jurídica não existe qualquer" direito" ao aborto. Apenas ocorre que nalguns casos se encontra estabelecida a não punibilidade do aborto (Assim, literalmente, o art 142º do Código Penal. Isto induz dogmaticamente a perspectiva de que, nestas situações, a ilicitude permanece), in Manuel A Carneiro da Frada, op cit;

- Não estão assim estabelecidos valida e comprovadamente os pressupostos de que dependeria a responsabilização contratual do médico ecografista pela deficiente realização do exame ecográfico, e pela consequente não prestação da informação correcta à mulher grávida, pelos danos patrimoniais inerentes ao agravamento das condições e necessidades de vida da mãe da criança deficiente;

- A atitude contratual dos RR restringiu-se à (não) prestação de informação correcta, com atingimento e perturbação da vontade da titular do direito à informação.

- Como mostra o Prof José Fragata, op cit, «Não obstante o enorme desenvolvimento da ciência e das técnicas para protecção da saúde e tratamento das doenças, inúmeras situações não são vencíveis pela medicina. E o médico não é um super-homem. Certamente que em muitos casos ao médico deparam-se situações de difícil interpretação em que o médico pode errar; ... o médico pode não ter a preparação científica ou técnica para abordar uma situação especial, mas ter de agir sem o tempo necessário para adquirir essa preparação. Em todos estes casos - e muitos outros poderiam imaginar-se - não pode falar-se de negligência»

- Ao ter decidido como o fez, violaram a douta sentença e Acórdão recorrido as normas dos arts 563º, 562º, 564º, 494º e 496º do Código Civil, art 142º do Código Penal - este por ter sido interpretado como se houvesse um direito subjectivo a interromper a gravidez, os quais poderiam e deveriam, ainda à luz da doutrina e jurisprudência aqui invocadas, ser aplicados no sentido da absolvição dos RR. 

- Subsidiariamente, não pode deixar de ser reduzido o montante arbitrado a título de ressarcimento dos danos morais da A pela diminuição da intensidade da culpa médica que resulta da utilização de equipamentos para a produção do acto médico de diagnóstico.

Nas contra alegações as partes pugnam pela procedência das suas pretensões e consequente improcedência das da contraparte.

II Põem-se como questões a decidir no âmbito do presente recurso as de saber, no que concerne ao recurso dos Autores se o Autor J tem ou não direito à indemnização peticionada a titulo de danos morais, bem como a titulo de perda da capacidade de ganho e no que tange ao recurso dos Réus, saber se não se encontram verificados os requisitos de que depende a sua responsabilização, ou, caso se verifiquem, se a indemnização arbitrada à Autora, deverá ser objecto de redução.

As instâncias declararam como assentes os seguintes factos:

- A Primeira Ré é uma clínica que se dedica à realização de exames e diagnósticos radiológicos.(Alínea A))

- O Segundo Réu é o director clínico da Primeira Ré. (Alínea B))

- A Segunda A. começou por ser acompanhada pela sua médica de família, Sr.ª Drª C – Doc. de fls 104. (Alínea C))

- Para realizar as ecografias obstétricas a segunda A consultou e contratou os serviços da clínica privada “CENTRO DE RADIOLOGIA X, LDA”, Primeira Ré. (Alínea D))

- Ali foi assistida pelo Sr. Dr. M, Segundo Réu, que elaborou os relatórios correspondentes às ecografias realizadas. (Alínea E))

- No exame ecográfico realizado em 4 de Junho de 2003 foi examinado o líquido amniótico e placenta, e efectuada uma avaliação embrionária, havendo o 2º Réu concluído: “gravidez com evolução favorável e compatível com 12 semanas e 6 dias de gestação, a controlar às 20/21 semanas” – Docs de fls 110 a 12 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (Alínea F))

- No exame ecográfico realizado em 17 de Julho de 2003 foi visualizado os membros, a coluna e a cabeça. (Alínea G))

H) Nas imagens ecográficas do Doc. junto de fls 111 assinala-se a existência de mãos e a visualização de pés, bem como do lábio superior. (Alínea H))

- Nos documentos de fls 112 e 113 assinala-se também a visualização de pés, lábio superior e fémur. (Alínea I))

- Em todos os casos, o relatório do Segundo R. conclui que a gravidez é normal e com evolução favorável, referindo expressamente:

- “anomalias morfofuncionais – não evidenciadas” – doc. de fls 112;

- cabeça, coluna e membros – visualizados” – doc. de fls 113. (Alínea J))

- A Primeira R. possui um corpo clínico formado por profissionais competentes, actualizados permanentemente no campo da imagiologia. (Alínea L))

- No âmbito da especialidade que exerce – radiologia – o Segundo R. é um médico com conhecimentos e capacidades acima da média, tendo sido nomeado membro da “Royal Society of Medicine” – organização inglesa de grande prestígio na área da medicina a nível mundial. (Alínea M))

- A 26 de Agosto de 2003 (e não 2006, como por lapso manifesto se deixou consignado), a Segunda A. foi encaminhada pela sua médica de família para o Hospital P, por lhe ter sido diagnosticada ITU de repetição Doc. de fls 118. (Alínea N))

- O Primeiro A. sempre dependerá de terceiros para a sua sobrevivência, e necessitará dos cuidados permanentes da Segunda A. para a execução das mais simples tarefas do quotidiano. (Alínea O))

- A Segunda A. viverá sempre com a preocupação do futuro do Primeiro A., especialmente caso este lhe sobreviva. (Alínea P))

- Assim como será sempre angustiante para a Segunda A., como ser humano e como mãe, assistir à inevitável infelicidade do seu filho J, Primeiro A., dadas as insuficiências de que enferma.

- A Segunda A. sofre, contínua e permanentemente, de profunda angústia e indignação. (Alínea Q))

- A sua mãe sofreu uma profunda depressão e desgosto, encontrando-se internada no Hospital de M. (Alínea S))

- O seu filho mais velho acha-se perenemente irado, sem capacidade para entender o motivo de ter um irmão mais novo nas condições de vida actuais. (Alínea T))

- Assistir um filho como o Primeiro A. é, e será, uma contínua tarefa, para toda a vida da Segunda A. (Alínea U))

- A Segunda A. sente profundo desgosto, ira, e desorientação sempre que dá banho ao seu filho J, Primeiro A. (Alínea V))

- Quando o alimenta, quando o veste, quando o leva ao Pediatra. (Alínea X))

- Quando assiste à própria frustração da criança, que com o decorrer do tempo, se vai apercebendo das suas tremendas limitações em se mexer, em tocar, em saborear, em andar, em comunicar. (Alínea Z))

- A segunda A tem vindo a recorrer a anti-depressivos como último recurso para manter o seu alento em viver nas circunstâncias actuais. (Alínea AA))

- A segunda A deixou de poder encarar familiares, amigos, conhecidos e até desconhecidos. (Alínea BB))

- Nenhum tratamento, internamento, ou prévia preparação psiquiátrica constitui meio idóneo e cabalmente capaz de assegurar, nestas circunstâncias, a tutela da saúde psíquica da progenitora, aqui Segunda A. (Alínea CC))

- Sendo, neste tipo de casos, absolutamente previsível - e usual - a ocorrência nas progenitoras de alterações psico – neuróticas da personalidade, evoluções neurasténicas ou depressivas e tendências suicidas. (Alínea EE))

- Os RR. têm uma situação financeira próspera, com actividades profissionais estáveis e lucrativas. (Alínea EE))

- O agregado familiar dos AA. é extremamente pobre, não detendo qualquer tipo de rendimento fixo, nem património a que recorrer. (Alínea FF))

Da Base Instrutória provou-se ainda que:

- J, Primeiro A., nasceu em 26 de Novembro de 2003, no Serviço de Obstetrícia do Hospital de M. (Ponto 1. da BI)

- À data, tinha 38 semanas de idade gestacional. (Ponto 1. da BI)

- Pesava 1885 (mil oitocentas e oitenta e cinco) gramas. (Ponto 2. da BI)

- Tinha 43 centímetros de comprimento. (Ponto 3. da BI)

- E nasceu com Síndroma Polimalformativo. (Ponto 4. da BI)

- Padece, e sempre padecerá das seguintes patologias:

a) Agenesia de ambos os antebraços e braços;

b) M.I.direito: pé boto, com presença de 3 dedos com sindictilia parcial, agenesia do 4º e 5º dedos;

c) M. I. esquerdo: sindactilia do 2º e 3º dedos;

d) Face: hipoplasia da mandíbula e hipoglossia; palato ogival, sem fenda palatina; nariz largo; pavilhões auriculares de implantação baixa;

e) Micropénis;

f) Hipospádias;

g) Síndrome oromandibular;

h) Hipogenesia dos membros;

i) Candidíase oral e perineal;

j) Cremeloma umbilical;

k) Hiperecogenicidade bilateral da matriz germinal. (Ponto 6. da BI)

- A autora realizou as ecografias previstas nas indicações da DGS para o seguimento da gravidez, designadamente a primeira, às 12 semanas e 6 dias, referida em F), e a segunda, às 19 semanas e 2 dias, referida em G). (Ponto 8. da BI)

- No segundo dos referidos exames, foi efectuada avaliação fetal, econometria fetal, exame à anatomia fetal, à placenta e ao líquido amniótico O exame atrás referido é a denominada eco grafia morfológica, que analisa toda a anatomia fetal e detecta a grande maioria das malformações graves.

- Além disso permite avaliar os marcadores ecográficos de anomalias cromossômicas e/ou genéticas, e uma análise sistemática e completa da morfologia fetal, a saber:

1. crânio (forma e ossificação);

2. cérebro;

3. face (lábios, palato, globo ocular, cristalino, osso nasal,

mandíbula, maxilar);

4. orelhas (implementação e formato);

5. coluna (cervical, toráxica, lombar);

6. nuca;

7. tórax;

8. coração;

9. abdómen;

10. rins;

11. bexiga;

12. estômago;

13. fígado e intestino;

14. membros (pernas, pés, braços, mãos e dedos);

15. genitais. (Ponto 11. da BI)

- O Sr. Dr. M, Segundo R., ali conclui : “gravidez com evolução favorável e compatível com 19 semanas e 2 dias de gestação”. (Ponto 12. da BI)

- Nos exames referidos em F) e G), à medida que os mesmos eram efectuados, e visualizados, sempre foi dito e mostrado à Segunda Autora que o bebé era perfeitamente normal. (Ponto 13. da BI)

- Sendo que lhe foi até indicado no monitor onde estariam os braços, pés, e mãos do Primeiro A. J. (Ponto 14. da BI)

- Agindo segundo as actuais exigências das leges artis, com os conhecimentos científicos existentes na época, e actuando de acordo com um dever objectivo de resultado, seria visualizável a um médico radiologista, pela análise das películas juntas de fls 110, 111, 113 e 114, as seguintes patologias:

1. agenesia de ambos os braços e antebraços;

2. membro inferior direito com pé boto e ausência de 2 dedos;

3. membro inferior esquerdo com sindactilia do 2º e 3º membros;

4. hipoplasia e hipoglossia da mandíbula;

5. nariz largo;

6. hipogenesia dos membros;

7. micropénis. (Ponto 15. da BI)

- Ou, pelo menos, seriam detectáveis indícios da mesmas, que deveriam constar dos relatórios efectuados, permitindo um diagnóstico definitivo através de novos exames. (Ponto 16. da BI)

- O mesmo diagnóstico se exigiria à Primeira e Segundo RR.. (Ponto 17. da BI)

- As referidas malformações eram definitivas e irreversíveis. (Ponto 18. da BI)

- Confiando no diagnóstico da Primeira e Segundo RR., a Segunda A. não repetiu o mesmo tipo de exame, nem adoptou quaisquer outros cuidados médicos especiais, não aconselhados na altura pelo relatório das ecografias. (Ponto 20. da BI)

- Ficando a Segunda A. no desconhecimento que gerava um feto que nasceria com profundas patologias morfológicas. (Ponto 21. da BI)

- Caso tivesse conhecido a existência das referidas patologias à data dos exames ecográficos realizados, a Segunda Autora teria optado por interromper voluntariamente a gravidez, por lhe parecer que seria muito reduzida a qualidade e esperança de vida do primeiro A. (Ponto 22. da BI)

- No dia referido em N) foi-lhe agendada consulta com a Doutora H, tendo a sua gravidez sido classificada como de “risco”. (Ponto 23. da BI)

- Na mesma consulta, a Dra. H atentou na circunstância de a gravidez da primeira autora exigir cuidado em função de esta padecer de infecções urinárias de repetição. (Ponto 24. da BI)

- Procedendo à visualização e análise das ecografias já juntas de fls 110 a 115 a referida médica nada mais diagnosticou do que o que já havia sido diagnosticado – ITU de repetição. (Ponto 25. da BI)

- Limitando-se a referir à Primeira A. que nada de anormal se passava com o embrião, e

receitando-lhe medicamentos para a dita ITU. (Ponto 26. da BI)

- Perante este diagnóstico, mais uma vez a Segunda A. absteve-se de efectuar qualquer exame adicional de diagnóstico. (Ponto 27. da BI)

- O A. J é uma criança com graves problemas de formação, desenvolvimento e crescimento. (Ponto 28. da BI)

- Para além das malformações congénitas, o A. J tem um deficit de crescimento de 70%. (Ponto 29. da BI)

- O autor J, em Julho de 2009, pesava 11,590kg e media 96,5 cm, ambos os valores de peso e altura num percentil correspondente inferior a 10. (Ponto 30. da BI)

- Tal situação é irreversível. (Ponto 31. da BI)

- Por força das deficiências do nariz, palato, língua, e mandíbula, padece ainda de constantes e variadas patologias associadas às vias respiratórias – sendo certo que o aumento gradual de actividade impunha um desenvolvimento da capacidade respiratória. (Ponto 33. da BI)

- O seu desenvolvimento mental é, aparentemente, normal tendo o mesmo, e cada vez mais terá, consciência das suas profundas malformações e correspondentes limitações. (Ponto 35. da BI)

- O que já lhe provoca, e continuará a provocar, profunda revolta, nervosismo e incompreensão. (Ponto 36. da BI)

- O Primeiro A. nunca poderá, de forma independente, ter uma vida normal, mesmo no que se refere à realização das mais básicas tarefas do quotidiano. (Ponto 37. da BI)

- Por si só nunca poderá tratar da sua higiene pessoal. (Ponto 38. da BI)

- Nunca poderá fazer as suas necessidades físiológicas. (Ponto 39. da BI)

- Nunca se conseguirá vestir. (Ponto 40. da BI)

- Jamais poderá alimentar-se. (Ponto 41. da BI)

- Não poderá falar. (Ponto 142 da BI)

- Não terá capacidade de expressão gestual. (Ponto 43. da BI)

- Não poderá escrever. (Ponto 44. da BI)

- O seu rosto nunca adquirirá capacidade expressiva perceptível. (Ponto 45. da BI)

- Pelo que terá sempre grandes dificuldades de comunicação. (Ponto 46. da BI)

- Não conseguirá deslocar-se. (Ponto 47. da BI)

- Não poderá ler, estudar, e instruir-se. (Ponto 48. da BI)

- Não poderá brincar, seja sozinho, seja com outros meninos da sua idade. (Ponto 49. da BI)

- A consciência das suas limitações causarão desequilíbrios emocionais profundos. (Ponto 50. da BI)

- Com grande tendência para a criação de quadros psiquiátricos graves. (Ponto 51. da BI)

- Já hoje o Primeiro A. tem acessos de profunda revolta, nomeadamente ao tentar interagir, e imitar os outros meninos da sua idade, especialmente o irmão mais velho, também criança. (Ponto 52. da BI)

- Clinicamente, o tempo de vida do A. J é incerto. (Ponto 53. da BI)

- Podendo-se prever que seja mais curto que a esperança de vida média da população portuguesa, atenta a dificuldade de desenvolvimento que o afecta. (Ponto 54. da BI)

- O que causará acrescida angústia ao seu penoso dia a dia. (Ponto 55. da BI)

- As carências fisionómicas de que padece irão dificultar, senão mesmo impedir, o Primeiro A. de vir a ter qualquer tipo de relacionamento amoroso. (Ponto 56. da BI)

- Bem como de vir a constituir família. (Ponto 57. da BI)

- O Primeiro A., por via das incapacidades congénitas, que se agravam, não terá qualquer capacidade para o trabalho. (Ponto 58. da BI)

- Caso a mãe não lhe sobreviva restar-lhe-á o irmão, que poderá ou não ter capacidade para assumir o seu sustento. (Ponto 59. da BI)

- Caso sobreviva a ambos, ficará sem qualquer meio próprio de assegurar o seu sustento. (Ponto 60. da BI)

- A Segunda A. não pode deixar o Primeiro A. sozinho por um único momento. (Ponto 61. da BI)

- Não pode, nem seria capaz, de deixar o Primeiro A. ao cargo de pessoas de confiança, devido à especificidade de cuidados que o mesmo precisa. (Ponto 62. da BI)

- A segunda A ficou sem emprego após ter sido internada na sequência da gravidez. (Ponto 63. da BI)

- E deixou de ter um emprego regular desde o nascimento do Primeiro A., visto que as necessidades constantes deste são completamente incompatíveis com um horário de trabalho fixo. (Ponto 64. da BI)

- Por esse motivo, a Segunda A. não tem qualquer tipo de realização profissional, o que a frustra profundamente. (Ponto 65. da BI)

- A Segunda A. vive a vida do seu filho, deixando de ter tempo, disponibilidade, ou mesmo vontade de viver a sua. (Ponto 66. da BI)

- A Segunda A., seu primeiro filho e mãe eram uma família, apesar de modesta, muito feliz, equilibrada e socialmente inserida. (Ponto 67. da BI)

- Os amigos deixaram de conviver com a Segunda A. e sua família, atentas as dificuldades em conseguir lidar com a presença do Primeiro A. (Ponto 68. da BI)

- A avó do primeiro autor precisa de acompanhamento psiquiátrico para lidar com as condições de vida do seu agregado e da sua filha e neto. (Ponto 69. da BI)

- O filho mais velho da Segunda A. vive revoltado com a triste sina do irmão, não sendo igualmente fácil para este lidar com a inocente crueldade dos amigos e colegas da sua idade que têm conhecimento da existência do J. (Ponto 70. da BI)

- A restante família afastou-se dos AA.. (Ponto 71. da BI)

- A Segunda A. deixou de frequentar locais públicos, como um simples café, como era habitual, devido à exclusão, ainda que involuntária, que o seu filho provoca, e que a Segunda A. não consegue encarar. (Ponto 72. da BI)

- E ainda que quisesse frequentar um simples café, também não poderia, pois as dificuldades económicas que se multiplicaram com as despesas relacionadas com o Primeiro A. implicaram a impossibilidade financeira de frequentar tais locais. (Ponto 73. da BI)

- Apenas nos últimos meses foi despendida a quantia de € 817,43 (oitocentos e dezassete euros e quarenta e três cêntimos) em produtos de farmácia. (Ponto 74. da BI)

- A Segunda A. vive apenas do rendimento social de inserção, com o montante mensal de €.318,32 (trezentos e dezoito euros e trinta e dois cêntimos). (Ponto 75. da BI)

- Para além do J, a Segunda A. tem um outro filho menor a seu cargo, mais velho que aquele. (Ponto 76. da BI)

- Para além dos dois filhos menores que consigo vivem, a Segunda A. tem ainda financeiramente a seu cargo a sua mãe, avó do J que, pela sua idade e fraca saúde não consegue contribuir em nada, antes constituindo, neste aspecto, mais uma despesa na vida familiar. (Ponto 77. da BI)

- A Segunda A. auferia, em média, €. 600,00 (seiscentos euros) líquidos mensais. (Ponto 78. da BI)

- Desde que se viu forçada a deixar de trabalhar decorreram já, até à data da propositura da acção, 36 meses. (Ponto 39. da BI)

- O Primeiro A. necessitará de acompanhamento clínico permanente, tratamento e acompanhamento técnico que a Segunda A. não tem conhecimentos para assegurar. (Ponto 80. da BI)

- O Primeiro A. necessitará de próteses. (Ponto 81. da BI)

- Para a instrução e educação do Primeiro A será necessário a contratação de professores, técnicos, e material de ensino especialmente direccionados ao seu estado clínico. (Ponto 82. da BI)

- O acompanhamento da gravidez pelo Serviço Nacional de Saúde e de acordo com as orientações do Colégio da Especialidade da Ordem dos Médico, implica a realização de análises ecográficas às 11ª./13ª., 20ª./22ª. E 28ª./32ª. Semanas de gestação. (Ponto 83. da BI)

- A actuação clínica dos médicos ecografistas implica a manipulação cuidada da sonda ecográfica e gel de contacto, procurando captar o feto nos vários ângulos que proporcione uma completa “visualização ecográfica”. (Ponto 84. da BI)

- E o equipamento utilizado nas ecografias a que se referem os exames realizados pela A tem de ser, como foi, um equipamento certo e adequado. (Ponto 85. da BI)

- Sendo correcta a técnica adoptada de deitar a grávida na marquesa em posição de decúbito dorsal com o ventre totalmente descoberto, com colocação de gel de contacto e execução do exame através do deslizamento de uma sonda ecográfica sobre o gel e toda a cavidade abdominal, deixando a grávida em condições de conforto para si própria e, em consequência, para o próprio feto. (Ponto 86. da BI)

- Devendo ainda o exame ser realizado em local com condições de luminosidade ténue e utilizado monitor ecográfico de alta resolução. (Ponto 87. da BI)

- Os exames efectuados à A foram-no de acordo com os parâmetros atrás descritos. (Ponto 88. da BI)

- A imagem fetal às 19-20 semanas de gestação representa graficamente um organismo com escassos centímetros de comprimento, sendo o diâmetro biparietal entre 40 e 49mm, com um tamanho médio de 45mm. (Ponto 91. da BI)

- No exame ecográfico não há qualquer resultado de diagnóstico alcançável fora do contexto da intervenção do equipamento ecográfico, com a sua falibilidade intrínseca própria. (Ponto 92. da BI)

- A captação e visualização de imagens do feto pode captar/fotografar uma aparência que a progressão/evolução fetal dissipará, seja por factores genéticos de surgimento diferido, seja por factores medicamentosos ou outros. (Ponto 93. da BI)

- O relatório correspondente à “leitura” que o ecografista faz das imagens por si captadas destinam-se ao médico assistente da utente, cabendo a estes profissionais, e a outros que eventualmente intervenham no apoio assistencial à grávida, de novo o visionamento das imagens. (Ponto 94. da BI)

- A segunda A sofria de infecções urinárias de repetição e terá sido sistematicamente medicada a partir da realização das ecografias. (Ponto 95. da BI)

- A autora devia ter feito e fez a terceira ecografia e outras ulteriores, de forma a ser controlado o desenvolvimento e bem estar fetal do seu filho. (Ponto 96. da BI)

- Entre a 15ª semana de gestação e o parto pode haver interferências no desenvolvimento do feto, por efeitos tóxicos resultantes por exemplo de medicação, mas sem qualquer fenómeno semelhante tenha ocorrido na gravidez da autora. (Ponto 98. da BI)

1.Do contrato havido entre a Autora e os Réus.

Entre a Autora e os Réus foi celebrado um contrato de prestação de serviços, tal como o mesmo nos é definido pelo artigo 1154º do CCivil e através do qual a Ré Centro de Radiologia X, Lda, através do seu médico, o Réu M, se obrigaram para com aquela a realizar ecografias obstétricas, isto é, aceitaram os Réus em prestar à Autora a assistência médica requerida neste tipo de situação de gravidez, assumindo as obrigações daí advenientes e não se encontrando provado que o acordo tenha sido gisado e delineado, mediante o pagamento pela Autora àqueles Réus de uma retribuição pelos serviços, a remuneração, como é comummente aceite pela doutrina, não constitui sequer elemento essencial deste tipo contratual, cfr matéria assente nas alíneas A), B), D) e E), cfr neste ponto específico da retribuição vide Henriques Gaspar, A Responsabilidade Civil do Médico, in CJ Ano III, Tomo I, 1978, 341. 

Nessa sequência, a Autora procedeu à realização daqueles exames, assistida pelo Réu, o qual elaborou os relatórios atinentes às ecografias realizadas, tendo efectuado um primeiro exame em 4 de Junho de 2003 onde foi examinado o líquido amniótico e placenta e efectuada uma avaliação embrionária e um segundo exame em realizado em 17 de Julho de 2003 onde foram visualizados os membros, a coluna e a cabeça, ecografias estas correspondentes às indicadas pela Direcção Geral de Saúde para o seguimento da gravidez, isto é, às doze semanas e seis dias e às dezanove semanas e dois dias, cfr matéria assente nas alíneas F) e G) e resposta ao ponto 8. da base instrutória.

Este tipo de contrato de prestação de serviços médicos, em termos gerais, pode implicar para o respectivo executor uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado, não sendo indiferente a sua qualificação e a diferenciação que eventualmente daí advenha para efeitos de aplicação do preceituado no disposto no artigo 799º, nº1 do CCivil, em sede de ónus da prova e presunção de culpa no que tange à responsabilidade médica, questão esta de que se cura aqui.

A obrigação de meios pode ser definida como sendo aquela que existe quando o devedor apenas se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa actividade com vista á produção de um determinado efeito, mas sem se comprometer a que este se produza; ao passo que a obrigação de resultado se traduz no comprometimento por banda do devedor a garantir a produção de um determinado resultado em beneficio da contraparte ou de terceiro, cfr neste sentido Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, 431, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II volume, 5ª edição, 10, Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, I volume, 1980, 380, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol I, 4ª edição, 128/130.

A vexata quaestio em termos de dicotomia das aludidas obrigações é a de estabelecer, afinal das contas, qual o interesse prático jurídico da eventual diferenciação, posto que, para um sector da doutrina todas as obrigações são obrigações de resultado nas suas várias facetas, entendendo-se que o único interesse do credor estará nesse resultado, cfr Menezes Cordeiro e Menezes Leitão, ibidem, 358/359 e 128/30 e ainda Carlos Ferreira de Almeida, in Os contratos civis de prestação de serviço médico, in Direito da Saúde e Bioética, 1996, 110/112, sendo que este Autor sustenta a sua posição na circunstância de considerar, além do mais, que a sustentação da apontada diferenciação pode constituir um elemento perturbador face à presunção de culpa plasmada no normativo inserto no artigo 799º, nº1 do CCivil, tornando-se um factor de confusões que em termos de ordem jurídica seria de evitar.

Todavia, a maior parte da doutrina nacional subscreve a tese da diferenciação da natureza das sobreditas obrigações, embora divirja no que toca ao efectivo interesse da sua destrinça e a tendência jurisprudencial é, mutatis mutandis, a de completa aceitação do binómio obrigações de meios/obrigações de resultado, na doutrina cfr Manuel de Andrade, Teoria geral das obrigações, 1963, 2ª edição, 413/4215, Almeida Costa, ibidem, 971, Álvaro Dias, Breves considerações em torno da responsabilidade civil médica, RPDC, 1993, Ano II, nº3, 27/59, Ribeiro de Faria, Da prova na responsabilidade civil médica-Reflexões em torno do direito alemão, RFDUP, Ano I, 2004, 115/118, sendo que os dois primeiros Autores pugnam pela relevância da distinção em sede de impossibilidade superveniente da prestação não imputável ao devedor, pois tratando-se de obrigação de meios, quer a impossibilidade objectiva, quer a subjectiva, exonerarão o devedor, se se tratar de uma obrigação de resultado, apenas a impossibilidade objectiva terá esse efeito exoneratório; os dois últimos fazem retirar da diferença entre os dois tipos de obrigações as consequências ao nível da repartição do ónus da prova da culpa, existindo a presunção aludida no artigo 799º, nº1 do CCivil, na responsabilidade pelo não cumprimento das obrigações de resultado mas não na responsabilidade pelo não cumprimento das obrigações de meios, em que aquela presunção seria de afastar. Outros entendem que a distinção releva em sede de ónus da prova, apesar de aceitarem a aplicação da regra do artigo 799º, nº1 aos dois tipos de obrigações, estando neste caso Carneiro da Frada, in Contratos e deveres de protecção BFDUC, suplemento Vol XXXVIII, 1993, 335/337 e Pinto de Oliveira, in Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde: problemas d e ilicitude e de culpa, responsabilidade civil dos médicos, 2005, 245; na jurisprudência, cfr inter alia Ac STJ de 16 de Junho de 2001 (Relator Pinto Monteiro) [sendo aliás esta a única decisão jurisprudencial portuguesa proferida nesta precisa temática que nos ocupa], 5 de Julho de 2001 (Relator Ferreira de Almeida), 17 de Dezembro de 2002 (Relator Afonso de Melo), 11 de Julho de 2006 (Relator Nuno Cameira), 22 de Março de 2003 (Relator Sousa Leite), 18 de Setembro de 2007 (Relator Alves Velho), 27 de Novembro de 2007 (Relator Rui Maurício), 4 de Março de 2008 (Relator Fonseca Ramos), 16 de Junho de 2009 (Relator João Camilo), 15 de Outubro de 2009 (Relator Rodrigues dos Santos), 17 de Dezembro de 2009 (Relator Pires da Rosa), 1 de Julho de 2010 (Relator Serra Baptista), 7 de Outubro de 2010 (Relator Ferreira de Almeida), 24 de Maio de 2011 (Relator Hélder Roque), 13 de Setembro de 2011 (Relator João Camilo) e 15 de Novembro de 2011 (Relator Gregório Silva Jesus), in www.dgsi.pt e site STJ, link Jurisprudência Sumários de Acórdãos.

No caso sujeito, a Autora ao acordar com os Réus a efectivação dos exames neo-natais, consistentes nas duas ecografias estabelecidas como obrigatórias no protocolo da Direcção Geral de Saúde, tratou-se de uma obrigação de meios como consideraram as instâncias, pois tais exames destinavam-se, primacialmente, à identificação, determinação e informação de eventuais distúrbios e malformações do feto, sendo certo que sendo a obrigação principal assumida pelo médico a de tratamento e dividindo-se esta obrigação em outras quantas prestações diversas que passariam, ou poderiam passar, consoante o protocolo a seguir segundo o caso concreto, por actividades de mera observação, diagnóstico, terapêutica efectiva e vigilância, é a mesma de qualificar como obrigação de meios e não de resultado, cfr Henriques Gaspar, ibidem, 342, Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos, in Direito e Justiça, Vol XIV, Tomo III, Universidade Católica, 2005, 161/252, Moitinho de Almeida, A Responsabilidade Civil do Médico e o seu Seguro, in Scientia Iuridica, Tomo XXI, 1972, 329/336 e Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, A Responsabilidade Médica em Portugal, in BMJ, nº332, 21/79 e Responsabilidade Médica na Europa Ocidental – Considerações de lege ferenda, in Scientia Iuridica, Tomo XXXIII, 1984, 100/107. 

De harmonia com o preceituado no artigo 26º do Código Deontológico dos Médicos, aprovado em 23 de Fevereiro de 1985, publicado Revista da Ordem dos Médicos 3/85, aplicável no caso sujeito (entretanto alterado em 26 de Setembro de 2008) «O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se por esse facto à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a Saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade humana.».

Daqui deflui que os Réus assumiram perante a Autora o seu comprometimento no sentido de prestarem os seus serviços de acordo com as regras e os métodos da profissão, aí se incluindo os cuidados específicos e os conselhos, sempre seguindo as melhores técnicas da «leges artis», o que significa que o aporema daqui se reconduza, prima facie, à aferição de um eventual desrespeito daquelas artes, por via de comportamentos censuráveis, vg, a imprudência, imperícia, falta de cuidado dos Réus/Recorrentes aquando da feitura dos exames à Autora, por forma a poder-lhes ser imputada a culpa na produção do resultado danoso, cfr Pedro Romano Martinez, Responsabilidade Civil Por Acto Ou Omissão do Médico, in Estudos De Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, 468/472, Sinde Monteiro, Responsabilidade Civil, in Revista de Direito e Economia, Ano IV, nº1 Jan-Jun, 1978, 319 e Maria Paula Ribeiro de Faria, O Erro Em Medicina E O Direito Penal, in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 7. nº14, 2010, 21/24.

Tratou-se, sem dúvida de uma verdadeira obrigação de meios assumida pelos Réus perante a Autora, no sentido de serem utilizados os seus melhores recursos técnicos, desenvolvendo as suas melhores valências e competências necessárias à obtenção dos resultados neo-natais pretendidos e impostos pelas ecografias de feitura obrigatória em termos de plano nacional de saúde, para o acompanhamento da gestação do Autor, cfr quanto á problemática da dicotomia explanada, Ricardo Lucas Ribeiro, Obrigações De meios E Obrigações De Resultado, 1ª edição, 2010, 38/47.

1.1.Do incumprimento contratual por banda dos Réus.

Por uma questão de lógica, comecemos por abordar as questões suscitadas no recurso dos Réus, posto que, pondo-se as mesmas em sede de inexistência dos pressupostos de que depende a responsabilização contratual a que as instância os submeteram, a proceder a respectiva impugnação, inútil se tornará, segundo as regras processuais, o conhecimento do recurso dos Autores, tendo em atenção as disposições conjugadas dos artigos 710º, nº1 e 660, nº2, ex vi do preceituado no artigo 726º, todos do CPCivil.

1.1.1. Da impugnação da matéria de facto constante nos pontos 10., 89., 90. e 96. da base instrutória.

Em primeiro lugar os Réus voltam em sede de recurso de Revista a por em causa a matéria de facto já impugnada em sede de recurso de Apelação, nomeadamente as respostas que foram dadas aos pontos 10., 89., 90. e 96. da base instrutória.     

É às instâncias, e designadamente à Relação, que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo o Supremo Tribunal de Justiça, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada.

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de Revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no nº3 do artigo 722º do CPCivil, na redacção dada pelo DL 329-A/1995, de 12 de Dezembro aplicável in casu, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, cfr José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol 3º, tomo I, 2ª edição, 162/163 e inter alia os Ac STJ de 6 de Maio de 2004 (Relator Araújo de Barros), 7 de Abril de 2005 (Relator Salvador da Costa), 18 de Maio de 2011 (Relator Pereira Rodrigues), de 23 de Fevereiro de 2012 (Távora Victor), in www.dgsi.pt.

A Revista, no que tange à decisão da matéria de facto, só pode ter por objecto, em termos genéricos, aquelas situações excepcionais, ou seja  quando o Tribunal recorrido tenha dado como provado determinado facto sem que se tenha realizado a prova que, segundo a lei, seja indispensável para demonstrar a sua existência; o Tribunal recorrido tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no sistema jurídico; e ainda, quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, ou quando ocorrem contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, caso específico do normativo inserto no artigo 729º, nº3 do CPCivil.

Vejamos então.

No ponto 10. da base Instrutória perguntava-se: «O exame atrás referido é a denominada ecografía morfológica, que analisa toda a anatomia fetal e detecta a grande maioria das malformações graves?», tendo a resposta sido a de «Provado», devendo ser a de «Não provado», uma vez que no entendimento formulado pelos Réus nas suas conclusões é o de que a referida ecografia seria obstétrica e não morfológica.

No ponto 89. questionava-se se «Ascende a cerca de 45% a percentagem de erro na execução técnica dos exames ecográfícos, mesmo quando realizados pelos melhores especialistas médicos?», tendo a resposta do Tribunal sido a de «Não provado», pretendendo que o Tribunal tivesse concluído pela existência de uma percentagem significativa de erro neste tipo de exames.

 E no ponto 90. questionava-se ainda «Situando-se as taxas de detecção das mal formações músculo esqueléticas entre os 23 % e os 55%, consoante o segmento da morfologia fetal em causa?», o qual obteve igualmente a resposta de «Não provado», pretendendo uma resposta idêntica à pretendida ao ponto anterior.

 No ponto 96. perguntava-se se «A A. devia ter feito, no mínimo, a 3ª ecografia?», tendo a resposta obtida sido explicativa «Provado com o esclarecimento de que a autora devia ter feito e fez a terceira ecografia e outras ulteriores, de forma a ser controlado o desenvolvimento e bem estar fetal do seu filho.», sendo que, na tese dos Réus, o Tribunal deveria ter concluído que das ecografias realizadas pela Autora à volta das 28ª/32ª semanas de gestação, a designada ecografia do terceiro trimestre, nenhuma corresponde à ecografia morfológica recomendada pelo Serviço Nacional de Saúde.

Por último e ainda neste contexto factual, continuam a insistir com a existência de uma contradição entre a resposta a este ponto controvertido e a resposta dada ao ponto 20. do seguinte teor « Confiando no diagnóstico da Primeira e Segundo RR., a Segunda A. não repetiu o mesmo tipo de exame, nem adoptou quaisquer outros cuidados médicos especiais, não aconselhados na altura pelo relatório das ecografias.».

Decorre do disposto no artigo 655º do CPCivil que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do mesmo, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.

De acordo com este princípio, que se contrapõe ao princípio de prova legal, vinculada pois, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.

Mas o princípio da livre apreciação da prova cede em determinadas situações, perante o princípio da prova legal, designadamente no caso da prova por confissão, da prova por documentos autênticos e dos autenticados e particulares devidamente reconhecidos, cfr artigos 358º, 364º e 393º do CCivil.

Assim, enquanto segundo o princípio da prova livre o julgador tem plena liberdade de apreciação das provas, segundo o princípio da prova legal o julgador tem de sujeitar a apreciação das provas às regras ditadas pela lei que lhes designam o valor e a força probatória.

Ora, os poderes correctivos que competem ao Supremo Tribunal de Justiça quanto à decisão da matéria de facto circunscrevem-se em verificar se estes princípios legais foram, ou não, no caso concreto violados.

Daí que a parte que pretenda, no recurso para o Supremo, censurar a decisão da matéria de facto feita nas instâncias só pode fazê-lo por referência à violação de tais regras e não também em relação à apreciação livre da prova, que não é sindicável por via de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Por outras palavras, e em termos práticos, pode dizer-se que o que o Supremo pode conhecer em matéria de facto é daqueles efectivos erros de direito cometidos pelo tribunal recorrido na fixação da prova realizada em juízo, sendo que nesta óptica, afinal, sempre se está no âmbito da competência própria Supremo Tribunal de Justiça.

O que compete a este tribunal é pronunciar-se, certamente mediante a iniciativa da parte, sobre a legalidade do apuramento dos factos, designadamente sobre a existência de qualquer obstáculo legal a que a convicção de prova formada nas instâncias se pudesse firmar no sentido acolhido.

Obviamente que dentro destes princípios não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar os depoimentos testemunhais, as perícias e/ou inquérito mesmo efectuados pelos melhores especialistas, a fim de aferir se eles provam, ou não, determinados factos, que não tenham sido objecto de outra prova de valor superior.

Como não cabe averiguar se a convicção firmada pelos julgadores nas instâncias em relação a determinado facto, em prova de livre apreciação, se fez no sentido mais adequado, tanto mais estando as instâncias, mormente a 1.ª, em melhores condições de julgamento, atento o princípio da imediação em que determinadas provas são produzidas.

Por último quanto á apontada contradição, a qual sempre poderia fazer actuar por banda deste Supremo Tribunal o preceituado no normativo inserto no artigo 729º, nº3 do CPCivil, isto é, a anulação do julgamento, a mesma não ocorre, aliás como se concluiu no segundo grau, posto que se apurou que a Autora não só fez a terceira ecografia como fez outras subsequentes (matéria decorrente do ponto 96.) e porque confiou no diagnóstico dos Réus, diagnóstico esse decorrente dos relatórios efectuados em resultado dos exames ecográficos realizados, não repetiu o mesmo tipo de exames, nem adaptou cuidados médicos especiais (matéria decorrente do ponto 20. da base instrutória).

Por aqui se vê a sem razão dos Réus no que tange à impugnação efectuada à matéria de facto uma vez que o sancionamento eventual daquelas respostas transcende a competência decisória deste Supremo Tribunal, limitado como está à apreciação da matéria de direito, posto que se não mostra violada qualquer disposição de direito probatório material, não tendo havido qualquer disposição expressa da Lei a exigir determinado meio de prova que não tenha sido considerado, nem qualquer contradição na matéria de facto que inviabilize a decisão jurídica do pleito, ibidem Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes.

Sempre se diz ex abundanti que a diferenciação entre uma ecografia morfológica ou obstétrica, no caso em análise se nos afigura despicienda.

Recorrendo á wikipédia podemos dela recolher o significado de ecografia como sendo «ultrassonografia (ou ecografia) é um método diagnóstico que aproveita o eco produzido pelo som para ver em tempo real as reflexões produzidas pelas estruturas e órgãos do organismo. Os aparelhos de ultrassom em geral utilizam uma frequência variada dependendo do tipo de transdutor, desde 2 até 14 MHz, emitindo através de uma fonte de cristal piezoelétrico que fica em contato com a pele e recebendo os ecos gerados, que são interpretados através da computação gráfica. Quanto maior a frequência maior a resolução obtida. Conforme a densidade e composição das estruturas a atenuação e mudança de fase dos sinais emitidos varia, sendo possível a tradução em uma escala de cinza, que formará a imagem dos órgãos internos. A ultrassonografia permite também, através do efeito doppler, se conhecer o sentido e a velocidade de fluxos sanguíneos. Por não utilizar radiação ionizante, como na radiografia e na tomografia computadorizada, é um método inócuo, barato e ideal para avaliar gestantes e mulheres em idade procriativa. A ultrassonografia é um dos métodos de diagnóstico por imagem mais versáteis e ubíquos, de aplicação relativamente simples e com baixo custo operacional. A partir dos últimos vinte anos do século XX, o desenvolvimento tecnológico transformou esse método em um instrumento poderoso de investigação médica dirigida, exigindo treinamento constante e uma conduta participativa do usuário.».

Do site fetalmed.net, podemos ver a diferenciação entre ecografia morfológica e ecografia obstétrica, sendo que aquela visa a avaliação pormenorizada da anatomia fetal e marcadores para doenças genéticas, biometria fetal complementar e descrição detalhada de toda morfologia fetal devendo ser feita por profissionais especializados em medicina fetal com conhecimentos profundos de obstetrícia, fisiopatologia materno-fetal, diagnóstico sindrômico fetal, infecções congênitas e teratogênese e com aparelhagem especifica, entre as 11 a 14 semanas e as 20 a 24 semanas, esta outra, a obstétrica tem como desiderato biometria fetal, localização de placenta, quantidade de líquido amniótico e crescimento fetal, poderá ser efectuada durante toda a gravidez, por um qualquer profissional com conhecimentos básicos de obstetrícia e ultrassonografia.

Sem embargo de se poder concluir desta diferenciação que a ecografia morfológica é mais precisa que a ecografia osbtétrica, ambas têm como objectivo a avaliação da anatomia do feto, de onde inequívoco se torna a irrelevância desta controvérsia factual, porque mesmo se se tivesse provado que a ecografia a efectuar no momento fosse a obstétrica e não a morfológica, como esgrimem os Recorrentes, certo é que da mesma resultava óbvio que o feto era portador de malformações graves e é neste plano da detecção dos problemas fetais que a acção está construída e não a jusante, quer dizer, se as ecografias efectuadas foram as adequadas e nestas se as adequadas eram as morfológicas ou as obstétricas, acrescendo ainda que tendo sido apurado no caso sujeito, que a ecografia efectuada foi a morfológica, esta até é a que maior rigor imagiológico nos fornece.

1.1.2.Dos pressupostos da responsabilização contratual dos Réus.

Insurgem-se os Réus, além do mais contra o Acórdão impugnado, uma vez que na sua tese, brevitatis causa, não estão estabelecidos válida e comprovadamente os pressupostos de que dependeria a responsabilização contratual do médico ecografista pela deficiente realização do exame ecográfico, e pela consequente não prestação da informação correcta à mulher grávida, a Autora, pelos danos patrimoniais inerentes ao agravamento das condições e necessidades de vida da mãe da criança deficiente, posto que a atitude contratual dos Réus se restringiu à (não) prestação de informação correcta, com afectação e perturbação da vontade da titular do direito à informação, não podendo ter sido interpretado, como foi, o artigo 142º do Código Penal, como se houvesse um direito subjectivo a interromper a gravidez.

Vejamos então.

Como resulta da factualidade assente, alíneas F), G) e J) e resposta ao ponto 12. da Base Instrutória, a Autora efectuou com os Réus as ecografias que se impunham fazer atento o estádio da sua gestação, sendo certo que os resultados que lhe foram transmitidos em termos dos relatórios elaborados pelo Réu foi de “gravidez com evolução favorável e compatível com 12 semanas e 6 dias de gestação, a controlar às 20/21 semanas”, cfr documentos de fls 110 a 112 e subsequentemente a propósito do segundo exame ecográfico realizado em 17 de Julho de 2003, constatou-se o seguinte: «Em todos os casos, o relatório do Segundo R. conclui que a gravidez é normal e com evolução favorável, referindo expressamente: - “anomalias morfofuncionais – não evidenciadas” – doc. de fls 112;- cabeça, coluna e membros – visualizados” – doc. de fls 113.».

Quer dizer, o Réu M, médico pertencente ao corpo clínico da Ré, pessoa com conhecimentos e capacidades acima da média, tendo sido nomeado membro da “Royal Society of Medicine” – organização inglesa de grande prestígio na área da medicina a nível mundial, sendo que aquela Ré possui um corpo clínico formado por profissionais competentes, actualizados permanentemente no campo da imagiologia, como resulta das alíneas L) e M) da matéria assente, estava nas melhores condições não só para no âmbito da especialidade que exerce, a radiologia, efectuar nas melhores condições os exames ecograficos à Autora, posto que o equipamento utilizado era o certo e adequado, como se concluiu no ponto 85. da Base Instrutória, acrescendo ainda a circunstância de ainda ter ficado apurado o seguinte: «A actuação clínica dos médicos ecografistas implica a manipulação cuidada da sonda ecográfica e gel de contacto, procurando captar o feto nos vários ângulos que proporcione uma completa “visualização ecográfica”. (Ponto 84. da BI); E o equipamento utilizado nas ecografias a que se referem os exames realizados pela A tem de ser, como foi, um equipamento certo e adequado - Sendo correcta a técnica adoptada de deitar a grávida na marquesa em posição de decúbito dorsal com o ventre totalmente descoberto, com colocação de gel de contacto e execução do exame através do deslizamento de uma sonda ecográfica sobre o gel e toda a cavidade abdominal, deixando a grávida em condições de conforto para si própria e, em consequência, para o próprio feto. (Ponto 86. da BI); Devendo ainda o exame ser realizado em local com condições de luminosidade ténue e utilizado monitor ecográfico de alta resolução. (Ponto 87. da BI); -Os exames efectuados à A foram-no de acordo com os parâmetros atrás descritos. (Ponto 88. da BI)»

Daqui deflui que os exames ecográficos foram efectuados nas melhores condições e por um dos melhores especialistas na sua área.

Todavia, não obstante as conclusões a que o Réu chegou nos relatórios elaborados e supra mencionados de que a gravidez da Autora era normal, apresentando uma evolução favorável, não se detectando quaisquer irregularidades, o que é certo é que no segundo dos referidos exames, foi efectuada avaliação fetal, econometria fetal, exame à anatomia fetal, à placenta e ao líquido amniótico, sendo tal exame denominado ecografia morfológica, que analisa toda a anatomia fetal e detecta a grande maioria das malformações graves, permitindo, além do mais, avaliar os marcadores ecográficos de anomalias cromossômicas e/ou genéticas, e uma análise sistemática e completa da morfologia fetais como: 1. crânio (forma e ossificação); 2. cérebro; 3. face (lábios, palato, globo ocular, cristalino, osso nasal, mandíbula, maxilar); 4. orelhas (implementação e formato); 5. coluna (cervical, toráxica, lombar); 6. nuca; 7. tórax; 8. coração; 9. abdómen; 10. rins; 11. bexiga; 12. estômago; 13. fígado e intestino; 14. membros (pernas, pés, braços, mãos e dedos); 15. genitais. (Ponto 11. da BI)

 Por outro lado e no que à economia da presente questão concerne, igualmente se apurou que:

«- A imagem fetal às 19-20 semanas de gestação representa graficamente um organismo com escassos centímetros de comprimento, sendo o diâmetro biparietal entre 40 e 49mm, com um tamanho médio de 45mm. (Ponto 91. da BI)

- No exame ecográfico não há qualquer resultado de diagnóstico alcançável fora do contexto da intervenção do equipamento ecográfico, com a sua falibilidade intrínseca própria. (Ponto 92. da BI)

- A captação e visualização de imagens do feto pode captar/fotografar uma aparência que a progressão/evolução fetal dissipará, seja por factores genéticos de surgimento diferido, seja por factores medicamentosos ou outros. (Ponto 93. da BI)

- O relatório correspondente à “leitura” que o ecografista faz das imagens por si captadas destinam-se ao médico assistente da utente, cabendo a estes profissionais, e a outros que eventualmente intervenham no apoio assistencial à grávida, de novo o visionamento das imagens. (Ponto 94. da BI)

- Agindo segundo as actuais exigências das leges artis, com os conhecimentos científicos existentes na época, e actuando de acordo com um dever objectivo de resultado, seria visualizável a um médico radiologista, pela análise das películas juntas de fls 110, 111, 113 e 114, as seguintes patologias:

1. agenesia de ambos os braços e antebraços;

2. membro inferior direito com pé boto e ausência de 2 dedos;

3. membro inferior esquerdo com sindactilia do 2º e 3º membros;

4. hipoplasia e hipoglossia da mandíbula;

5. nariz largo;

6. hipogenesia dos membros;

7. micropénis. (Ponto 15. da BI)

- Ou, pelo menos, seriam detectáveis indícios da mesmas, que deveriam constar dos relatórios efectuados, permitindo um diagnóstico definitivo através de novos exames. (Ponto 16. da BI)

- O mesmo diagnóstico se exigiria à Primeira e Segundo RR.. (Ponto 17. da BI)

- As referidas malformações eram definitivas e irreversíveis. (Ponto 18. da BI)».

De todo este complexo factual pode-se concluir sem qualquer margem para dúvidas que por parte dos Réus houve uma conduta ilícita e culposa, pois poderiam e deveriam ter agido de outro modo face à constatação inequívoca de malformações do feto, traduzindo-se a violação dever cuidado na preterição da leges artis na matéria de execução do diagnóstico porque este deveria ter conduzido à aferição das aludidas malformações, atentos os meios empregues em termos de equipamento e tendo em atenção a preparação privilegiada do Réu, o médico M, cujos conhecimentos científicos, como demonstrado ficou, estão acima da média, o que nos conduz à sua responsabilização contratual tal como decidido se encontra pelas instâncias, inexistindo qualquer circunstância susceptível de afastar a presunção de culpa que sobre os mesmos impende, de harmonia com o preceituado o no artigo 799º, nº1 do CCivil, cfr o apontado Ac STJ de 4 de Março de 2008 (Relator Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt.

Aliás, como constatado ficou nas instâncias, nem os Réus lograram demonstrar que tivesse ocorrido qualquer evento subsequente à segunda ecografia, originado por acção ou omissão da Autora que tivesse provocado, quiça, as anomalias do feto, mormente causadas pelas infecções urinárias de repetição de que aquela padeceu e para as quais foi devidamente medicada, como aliás deflui das respostas aos pontos 95. e 98. da Base Instrutória, pelo que podemos concluir que ao Réu, o médico M se exigia que tivesse actuado com aquele grau de competência e cuidado que seria razoável e expectável de um profissional do seu gabarito, agindo em situações semelhantes, cfr João Álvaro Dias, Culpa médica: algumas ideias força, in Revista Portuguesa Do Dano Corporal, Novembro 1995, Ano IV, nº5, pags 23 e 55, Pedro Romano Martinez, ibidem, 486.

Houve por banda dos Réus um erro médico, consistente numa falha profissional, não intencional, consistente numa deformada representação da realidade imagiológica decorrente das ecografias que foram efectuadas á Autora, cfr a propósito do erro em medicina, seu conceito e relevância Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, Responsabilidade Civil por erro médico: Esclarecimento/Consentimento do Doente, 5/27, in Data Venia, Revista Jurídica Digital, Ano 1, nº1, Julho-Dezembro 2012, disponível na internet.

Pretendem os Réus fazer afastar a sua responsabilidade através da «quebra» do pressuposto da causalidade adequada regulado na nossa lei civil como elemento objectivo do instituto da responsabilidade civil, densificada por factos, por situações e circunstâncias, não podendo sê-lo por declarações de vontade e por isso, uma vez que a Autora no caso sujeito poderia optar pela interrupção da gravidez.

A nossa Lei civil exige que a par do facto e do dano exista entre estes dois elementos uma ligação, isto é, no que á economia dos autos assiste, que o facto (no caso a leitura errada dos exames ecográficos efectuados à Autora) constitua causa do dano (o nascimento do Autor J com malformações irreversíveis), situação esta que resulta enunciada no artigo 483º, nº1 do CCivil quando estipula que a obrigação de indemnização está confinada aos danos resultantes da violação, isto é, aqueles danos que o facto ilícito tenha ocasionado, os que tenham sido produzidos pelo mesmo, de harmonia com o disposto no artigo 563º daquele mesmo diploma, cfr Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, 507.

Queremos nós dizer que o facto só deixará de ser causa adequada do dano, desde que se mostre, por sua natureza, de todo inadequado e tenha sido produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais, sendo que no caso o comportamento dos Autores foi determinante no plano jurídico, enquanto comportamento juridicamente censurável para desencadear o resultado danoso, cfr Almeida Costa, ibidem e a propósito desta temática da causalidade adequada o Ac STJ de 21 de Janeiro de 2010 (Relator Álvaro Rodrigues), in www.dgsi.pt.

Dúvidas não se suscitam que a conduta dos Réus ao fornecerem à Autora uma «falsa» representação da realidade fetal, através dos resultados dos exames ecográficos que lhe foram feitos, contribuíram e foram decisivos para que a mesma, de forma descansada e segura, pensando que tudo corria dentro da normalidade, levasse a sua gravidez até ao termo: estamos em sede de causalidade adequada, pois a conduta dos Réus foi decisiva para o resultado produzido, qual foi o de possibilitarem o nascimento do Autor com as malformações de que o mesmo era portador, o que não teria acontecido se aqueles mesmos Réus tivessem agido de forma diligente, com a elaboração dos relatórios concordantes com as imagens que os mesmos forneciam, isto é, com a representação das malformações de que padecia o Autor ainda em gestação, como deflui inequivocamente dos pontos 16. e 18. da base instrutória.

A circunstância de a Lei permitir à grávidas a interrupção da gravidez nesta situação, além do mais, não tem de per si a virtualidade de «interromper» o apontado nexo, fazendo antes parte do mesmo, porque sendo aquela solução uma opção das interessadas, desde que devidamente informadas com o rigor que se impõe neste tipo de ocorrências, impenderia sobre os Réus os mais elementares deveres de cuidado no que tange à elaboração do diagnóstico, o que de forma culposa omitiram, impedindo assim a Autora de utilizar o meio legal que lhe era oferecido, atento o tempo de gestação em curso (inferior às vinte quatro semanas), de não levar a termo a sua gravidez caso o entendesse, o que esta teria feito atentas as circunstâncias.

 Daqui decorre a consequente responsabilização dos Réus, recaindo sobre os mesmos o dever de indemnizar, estando, assim, as conclusões, neste particular, condenadas ao insucesso.

Aqui chegados, vejamos então em que termos se irá traduzir o dever de ressarcimento dos danos advenientes do comportamento culposo daqueles, o que nos leva à análise do seu pedido recursivo subsidiário.

1.3. Da indemnização arbitrada à Autora a título de danos morais e danos patrimoniais a liquidar.

Insurgem-se os Réus contra o Acórdão recorrido na parte em que o mesmo procedeu ao arbitramento da indemnização sem atender à diminuição da intensidade da culpa médica que resulta da utilização de equipamentos para a produção do acto médico de diagnóstico.

Do que percebemos ser o raciocínio dos Réus/Recorrentes, neste preciso conspectu, o facto de o diagnóstico – errado, é certo – ter de ser obrigatoriamente obtido através de um equipamento radiológico, atenuará, a se, a culpa de quem o manuseia e de quem interpreta os resultados que o mesmo produz. Quer dizer, na tese dos Réus, a culpa, embora existente e não escamoteada, terá de ser diminuída por via da interposição da máquina entre o médico e a paciente.

Só que, in casu, para podermos quiçá chegar a uma tal conclusão, necessário se tornaria que tivesse havido erro de julgamento e/ou de apreciação do diagnóstico e não já, como aconteceu na espécie, a falta de prudência e de diligência no apuramento desse mesmo diagnóstico, pois na situação concreta, qualquer especialista com os conhecimentos científicos existentes na época (falamos de 2003) visualizaria as malformações do feto e que as mesmas eram definitivas e irreversíveis o que se constata das respostas aos pontos 17. e 18. da Base Instrutória (o que afasta qualquer ideia de que as imagens visualizadas pudessem ter sido alteradas por efeito de algum mau funcionamento da aparelhagem utilizada, questão esta que nunca se pôs aliás durante o processo), cfr Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, Responsabilidade Médica Em Direito Penal, Estudo Dos Pressupostos Sistemáticos, 2007, 53/59.

E, se é certo não existir um «autêntico direito a interromper a gravidez», como aduzem os Réus nas suas conclusões de recurso, certo também se torna que a lei concede a possibilidade da interrupção da gravidez em determinados casos limite, tais como os prevenidos no artigo 142º do CPenal, onde além do mais se equaciona a chamada perda de chance de se não vir a padecer dos sofrimentos derivados de um nascimento indevido (wongful birth actions), cfr Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil Do Médico reflexões Sobre A Noção Da Perda De Chance E A Tutela Do Doente Lesado, in FDUC Centro De Direito Biomédico, 15, 272/277.

Como deflui inequivocamente do preceituado na alínea c) do artigo 142º do CPenal, a Lei não pune a interrupção da gravidez nos casos em que há «seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez», constituindo aquela solução o único meio de tutela de interesses juridicamente protegidos, isto é, um meio sem alternativa, exigindo-se que sobre o caso haja um juízo de previsão fundada em motivos seguros, integrada por conseguinte pela certeza de que o nascituro sofre já da doença e/ou malformação, conduzindo desta sorte ao aborto por indicação embriopática ou fetopática, cfr José de Faria Costa, em Redor Da Noção De Acto Médico, in RLJ, Ano 138º, nº3954, 135.

Ora, decorre dos autos (ponto 22. da Base Instrutória) que se a Autora tivesse tido conhecimento atempado das malformações de que padecia o feto, aquando da gestação do Autor, teria optado pela sua interrupção dentro daquele período legal, dentro das primeiras vinte e quatro semanas de gravidez, o que lhe era perfeitamente licito fazer, tendo ao invés levado a mesma até ao termo no desconhecimento de que o J iria nascer com profundas patologias morfológicas, cfr ponto 20. da Base Instrutória.

Torna-se assim, inequívoca, a sem razão dos Réus, não só no que tange ao direito que assistia à Autora de interromper a gravidez, atentas as malformações irreversíveis do feto, bem como no que tange à pretensão formulada de diminuição da indemnização arbitrada àquela a título de danos morais.

Por outro lado, insurgem-se ainda os Réus contra o Acórdão recorrido uma vez que na sua tese o dano limite a indemnizar não se poderia deixar de conter na própria informação/noticia não prestada e nunca pelos danos subsequentes associados, directa ou indirectamente com as próprias malformações de que padece a criança, atacando, assim, nesta parte, a condenação ena indemnização por danos patrimoniais a liquidar ulteriormente.

Estes danos patrimoniais a liquidar ulteriormente, que foram arbitrados a titulo despesas que a Autora terá que suportar com o acompanhamento clínico permanente de que o J necessita e continuará a necessitar, bem como o tratamento e acompanhamento técnico de que aquela não tem conhecimentos para assegurar, as próteses de que o J necessitar, a educação e instrução especial de que o J houver de ter em razão da deficiência, com a contratação de professores, técnicos, e material de ensino especialmente direccionados ao seu estado clínico, constituem custos adicionais  resultantes da deficiência causados aos pais e consequentemente à criança nascida, mas que aqueles terão de suportar integrando-se assim dentro dos parâmetros da obrigação de indemnizar, cfr neste sentido Fernando Dias Simões, Vida Indevida, As acções por wrongful life e a dignidade da vida humana, in Revista de Estudos Politécnicos, Polytechnical Studies Revuew, 2010, Vol VIII, nº13, 187/203 .

Improcedem in totum as conclusões dos Réus.

2. Do recurso dos Autores.

Insurgem-se os Autores contra o Acórdão recorrido, na parte em que o mesmo negou ao Autor o direito a ser indemnizado, plasmando a sua discordância no facto de não ser a vida, em si mesma, que consubstancia o dano do recorrente, mas sim a vida com deficiência, pois a causa de pedir que o recorrente alega não contende com a indisponibilidade da vida humana, sendo justamente o respeito pela dignidade da vida humana a impor a atribuição de uma indemnização que lhe assegure uma vida com um mínimo de condições, já que a questão que se coloca não é a de saber se o ordenamento jurídico contém um “direito à não existência” e uma indemnização pela sua violação, sendo certo que nesta temática é usual o recurso a um “vocabulário dos direitos”, sendo invocada frequentemente a inexistência de um “direito a não nascer”.

Quid inde?

O melindre e a perplexidade desta temática, tendo em atenção o caso em que nos movemos para a analisar, leva-nos a fazer um sobrevoo sobre a questão da obtenção de uma indemnização nos chamados casos de vida indevida ou «wrongful life».

Esta expressão, «wrongful life», foi utilizada pela primeira vez nos EUA, por um Tribunal do Estado do Illinois, no caso Zepeda versus Zepeda, tendo-se generalizado por contraposição à expressão «wrongful death», enquanto nestas acções o pedido tinha por base a vida que deveria ter continuado e à qual foi posto termo, naqueloutras, o pedido encontra a sua fundamentação numa vida que continua quando deveria ter terminado, ou melhor dizendo que nunca deveria ter tido início, sendo que neste tipo de acções, levadas a cabo pela própria criança, através dos seus representantes legais, invocando como danos os emergentes do seu próprio nascimento, a qual não existiria caso o médico tivesse agido com a diligência que sobre si impendia, cfr Mark Cohen, Park v. Chessin: the continuing judicial development of the theory of «wrongful life», in American Journal of Law & Medicine, 1978, vol 4, nº2, 211/232, Fernando Dias Simões, Vida Indevida, As acções por wrongful life e a dignidade da vida humana, ibidem, 187/203 e Carneiro da Frada, A própria vida como dano? Dimensões civis e constitucionais de uma questão limite, in Revista da Ordem dos Advogados, 2008, I, 215/253.

A grande discussão desta temática surgiu-nos com o famoso arrêt Perruche, da Cour de Cassation francesa de 17 de Novembro de 2000: Nicolas Perruche nasceu a 14 de Janeiro de 1983, o qual vem a apresentar um ano mais tarde malformações do síndrome de Gregg (também conhecido pelo síndrome da rubéola congénita, embriopatia rubeólica e agente etiológico), por força de rubéola contraída por sua mãe durante a gravidez, tendo aquele Tribunal decidido m sessão plenária que a criança tinha direito a uma indemnização porque as faltas cometidas pelo médico e pelo laboratório tinham impedido a possibilidade da mãe interromper a gravidez e assim evitar o seu próprio nascimento, de onde pela primeira vez na história judiciária um Tribunal Superior concedeu uma indemnização a uma criança pelo facto de ela ter nascido e a polémica instalou-se, não só na sociedade francesa, à qual o assunto dizia, na altura, directamente respeito, bem como a nível europeu, tendo o legislador francês vindo a aprovar a Lei 2002-303, de 4 de Março de 2002, sobre os direitos dos doentes e qualidade dos serviços de saúde, se estabelece:

«I. - Nul ne peut se prévaloir d'un préjudice du seul fait de sa naissance. La personne née avec un handicap dû à une faute médicale peut obtenir la réparation de son préjudice lorsque l'acte fautif a provoqué directement le handicap ou l'a aggravé, ou n'a pas permis de prendre les mesures susceptibles de l'atténuer.

Lorsque la responsabilité d'un professionnel ou d'un établissement de santé est engagée vis-à-vis des parents d'un enfant né avec un handicap non décelé pendant la grossesse à la suite d'une faute caractérisée, les parents peuvent demander une indemnité au titre de leur seul préjudice. Ce préjudice ne saurait inclure les charges particulières découlant, tout au long de la vie de l'enfant, de ce handicap. La compensation de ce dernier relève de la solidarité nationale.

Les dispositions du présent I sont applicables aux instances en cours, à l'exception de celles où il a été irrévocablement statué sur le principe de l'indemnisation.

II. - Toute personne handicapée a droit, quelle que soit la cause de sa déficience, à la solidarité de l'ensemble de la collectivité nationale.

III. - Le Conseil national consultatif des personnes handicapées est chargé, dans des conditions fixées par décret, d'évaluer la situation matérielle, financière et morale des personnes handicapées en France et des personnes handicapées de nationalité française établies hors de France prises en charge au titre de la solidarité nationale, et de présenter toutes les propositions jugées nécessaires au Parlement et au Gouvernement, visant à assurer, par une programmation pluriannuelle continue, la prise en charge de ces personnes.», in L'arrêt PERRUCHE et ses suites (naissance d'un enfant handicapé) Rédigé par Me DURRIEU-DIEBOLT, Avocat à la Cour, disponível na internet, cfr ainda www.courdecassation.fr e www.legifrance.gouv.fr.

Quer dizer, o ponto I estabelece como regra base a de que ninguém poderá tirar partido de um prejuízo pelo facto de ter nascido, acrescentando que caso a pessoa tenha nascido com um defeito devido a um erro do médico, pode obter a reparação do seu dano, quando aquele provocou directamente o defeito ou o agravou e/ou não permitiu a tomada de medidas para a atenuação do problema: passou-se a fazer a distinção entre o chamado dano pré-natal, o qual merece a tutela jurisdicional, do ressarcimento do dano da vida indevida, situação esta agora definitivamente afastada em termos legais.

De uma maneira geral a doutrina e jurisprudência europeia e norte americana admite as acções de wrongful birth, no caso sujeito a que se mostra intentada pela Autora, mãe do Autor, com vista a ser ressarcida pelos danos decorrentes da gravidez, bem como aqueles que decorrem das necessidades especiais da criança, tal como decidido foi pelo segundo grau, vg: a) acompanhamento clínico permanente de que o J necessita e continuará a necessitar, tratamento e acompanhamento técnico de que a Autora não tem conhecimentos para assegurar; b) próteses de que o J necessitar; c) educação e instrução especial de que o J houver de ter em razão da deficiência, com a contratação de professores, técnicos, e material de ensino especialmente direccionados ao seu estado clínico.   

   Todavia, aquelas mesmas correntes, nos casos em que a par da wrongful birth action se cumula uma wrongful life action, esta é rejeitada in limine por se considerar inadmissível o ressarcimento do dano pessoal de se ter nascido (para além igualmente das questões suscitadas a nível da quantificação do valor da vida – quanto vale a vida? pode uma vida valer mais do que outra? uma vida com deficiência é menos valiosa que uma vida sem deficiência? quais os critérios de valoração? etc - caso tal indemnização fosse possível), sendo que esta questão nos coloca perplexidades várias, passando pelas filosóficas, morais, religiosas, politicas, para além, obviamente, das jurídicas, cfr Dias Pereira, O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil, 2004, 378/391, António Pinto Monteiro, Direito à não existência, direito a não nascer, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Vol II, A parte geral do código e a teoria geral do direito civil, 131/138 e o mesmo Autor, em anotação ao Ac STJ de 19 de Junho de 2001, in RLJ, ano 134, nº3933, 377/384.

A única decisão em caso análogo nos Tribunais Portugueses é precisamente a supra referida, de 19 de Junho de 2001, em que foi Relator Pinto Monteiro, a qual recusou a indemnização ao Autor (filho representado por seus pais na acção, porque menor), com a seguinte fundamentação, em síntese: o que o Autor pôs em causa na acção foi o direito à sua própria não existência; não há conformidade entre o pedido e a causa de pedir se o Autor pretende que os Réus - médico e clínica privada - sejam condenados a pagar-lhe uma indemnização pelos danos que lhe advêm do facto de ter nascido com malformações nas duas pernas e na mão direita, com fundamento na conduta negligente daqueles, por não terem detectado, durante a gravidez, tais anomalias, motivo pelo qual os pais não puderam optar entre a interrupção da gravidez ou o prosseguimento da mesma - o pedido de indemnização deveria ter sido formulado pelos pais e não pelo filho, já que o direito ou faculdade alegadamente violado se encontra na esfera jurídica dos primeiros; o direito à vida, integrado no direito geral de personalidade, exige que o próprio titular do direito o respeite, não lhe reconhecendo a ordem jurídica qualquer direito dirigido à eliminação da sua vida; o direito à não existência não encontra consagração na nossa lei e, mesmo que tal direito existisse, não poderia ser exercido pelos pais em nome do filho menor, ver a decisão em texto integral in www.dgsi.pt.

Sem entrarmos nas questões processuais colocadas naquele Aresto, apenas podemos concluir, em uníssono com a conclusão ali plasmada que, efectivamente, qualquer solução em contrário violaria, prima facie o preceituado nos artigos 1º, 24º e 25º da CRPortuguesa, no que tange à protecção da dignidade, inviolabilidade e integridade da vida humana, quer na vertente do «ser», quer na vertente do «não ser».

Por outra banda, tendo em atenção a formulação petitória em causa, verifica-se uma completa inexistência de ilicitude, culpa e nexo de causalidade entre a actividade dos Réus e as malformações do Autor, pois estas não foram devidas a qualquer acção ou omissão daqueles, o que se prova é que o Autor nasceria sempre com tais maleitas, não tendo havido qualquer acto ou omissão dos Réus a provocá-las, sendo o seu comportamento negligente e censurável por via contratual e por violação da leges artis, como já se analisou supra, mas apenas em relação à Autora, mãe daquele.

Daqui decorre a falência de qualquer acção por wrongful life, por que lhe falham os pressupostos da responsabilidade civil conducentes ao dever de indemnizar, aqui em sede extra contratual, pois a sua pretensão indemnizatória apenas se poderia arrimar no preceituado no artigo 483º do CCivil, pois o Autor não foi parte no contrato havido entre os Réus e a Autora sua mãe e daí nem sequer se poder analisar a problemática por via, eventualmente, da titularidade de direitos por banda dos nascituros (embora em casos pontualmente identificados na Lei civil, cfr 952º, 2033º, nº1, 1854º, 1855º, 1878º e 2240º, os quais desde logo nos afastam do caso sujeito e o anulam), na medida em que o ilícito praticado pelos Réus perante os pais do Autor, não é o mesmo que a este atingiu.

Daí não se poder de forma alguma transpor, soit disant, a responsabilidade do acto praticado perante os pais, para a responsabilização dos Réus, nessa mesma circunstância, perante o Autor. Tal significaria a criação de uma ficção jurídica responsabilizante a titulo, quiça, humanitário, permitindo ao Autor uma indemnização que lhe permitisse levar uma existência na medida do possível de acordo com a dignidade humana, cfr decisão do chamado caso «baby Kelly Molenaar», pelo Hoge Raad holandês, citado além do mais por Paulo Mota Pinto, Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de «vida indevida” (“wrongful birth” e“wrongful life”), in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 4, nº7, 2007, 5/27, ao qual os Autores fazem apelo nas suas conclusões.

Só que, o problema com o qual nos deparamos, neste particular é o de saber se a atribuição de uma indemnização nestas circunstâncias específicas, o nascimento deficiente do Autor, constitui um dano juridicamente reparável atento o nosso ordenamento jurídico, o que não nos parece ser enquadrável em termos normativos, antes se nos afigurando a sua impossibilidade e nos levaria a questionar outras situações paralelas tais como a eutanásia e o suicídio, as quais passariam a ter leituras diversas, chegando-se então à conclusão que afinal poderá existir um “direito à não vida” (embora no que tange ao suicídio sempre se possa argumentar que o mesmo não é punido, embora este argumento seja falacioso posto que, sendo o autor do pretenso «facto crime» o «objecto» do mesmo, como é sabido a morte do arguido é um facto extintivo da responsabilidade penal, nos termos do artigo 127º, nº1 do CPenal, constituindo tipos legais de crime, pp por aquele mesmo compêndio normativo, quer o homicídio a pedido da vitima, quer o incitamento ou a ajuda ao suicido, respectivamente artigos 134º e 135º), Pinto Monteiro, l.c. 387, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, 331, Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral De personalidade, 205/206, João Álvaro Dias, Dano Corporal, 503/504, Carneiro da Frada, ibidem, Marta de Sousa Nunes Vicente, Algumas Reflexões sobre as acções de “wrongful life”), in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 6, nº11, 2009, 117/141 e a jurisprudência norte americana, decisão do caso Gleitman v. Cosgrove, em que o Tribunal declarou «(…)  even if [such] damages were cognisable…a claim for them would be precluded by the countervailing public policy supporting the preciousness of human life. (…)», in Harvey Teff, The Action for Wrongful Life in England and the United States, in International and Comparative Law Quaterly, nº34, Issue 3, Julho 1985, 423/441, cfr também “wrongful Birth» “wrongful life” y “wrongful pregnancy, Analisis de la jurisprudencia nortamericana. Reseña de jurisprudência francesa, por Graciela Medina y Carolina Winograd, disponível na internet no site biblioteca jurídica virtual.

Por outra banda, como equaciona Pinto Monteiro na anotação ao Ac STJ de 19 de Junho de 2001, se no caso de se reconhecer à criança o direito a ser indemnizada pelos médicos que não informaram os pais das deficiências de que ela padecia, «(…) quid juris se essa informação tiver sido prestada, mas os pais, devidamente esclarecidos, optarem por não abortar e a criança vier a nascer com graves malformações? Serão os pais responsáveis perante a criança?! Poderá o filho, quando maior, pedir essa indemnização aos pais?! Teriam estes, afinal, a obrigação de interromper a gravidez em tais situações?! (…)».

Todas estas interrogações nos deixam em estado de profunda reflexão sobre as incongruências que se criariam caso se optasse pela atribuição de uma indemnização ao Autor cuja vida se encontra eivada de malformações irreversíveis, desamparados, como se viu, em qualquer instituto jurídico e apenas porque, talvez, por razões de ordem social se afigura chocante que uma pessoa assim nascida, não seja merecedora de uma indemnização, por esse facto, originador de dor e sofrimento.

Mas se é indubitável que estes sentimentos se não põem em causa, por nem sequer serem susceptíveis de serem postos em causa, não podem os mesmos terem-se como relevantes, neste conspectu, devido a óbices de jure constituto, sem prejuízo de se poder enveredar por uma outra solução, embora política, fazendo impender sobre o Estado o cumprimento efectivo dos deveres decorrentes do preceituado no artigo 71º, nº2 da CRPortuguesa, maxime através não só do tratamento dos cidadãos portadores de deficiência, mas também do apoio, igualmente aí consagrado, às respectivas famílias, cfr Carneiro da Frada, A própria vida como dano, ibidem.

Por último, porque alguns Autores parecem defender que sempre se poderia seguir pela chamada «terceira via» da responsabilidade civil, através do enquadramento neste instituto do contrato com eficácia de protecção para terceiro, um tertium genus, o que possibilitaria, portanto, abarcar as situações de violação de deveres específicos de protecção e cuidado emergentes daquele acordo e para com terceiros, talvez, alvitramos nós, inspirados no caso baby Kelly Molinaar objecto de decisão pelo Hoge Raad holandês acima já referenciado, em que os Autores se arrimam para sustentar a sua pretensão na parte respeitante ao Autor, onde aquele Órgão reconheceu à criança o direito a uma indemnização por danos próprios por ter considerado que  Kelly Molinaar era parte da relação contratual estabelecida entre seus pais e os médicos, pelo que sobre estes impendiam deveres para com aquela, na sua qualidade de nascitura, deveres esses que foram violados ao negarem à mãe a efectivação de um exame pré-natal por esta requerido e através do qual a alteração genética do feto seria perfeitamente identificável, sustentando os médicos visados tal recusa no facto de tal exame ser apenas indicado para mulheres que tivessem sofrido anteriormente três abortos e no caso da mãe da Kelly a mesma havia sofrido apenas dois.

Todavia, a nossa grande dificuldade, nesta possível construção jurídica, consiste na impossibilidade de se considerar como «terceiro» o feto, porque salvo o devido respeito que é muito pelos defensores desta teoria, não se pode aceitar, de todo em todo que a criança, inexistente enquanto ser humano – em gestação apenas – face ao preceituado no normativo inserto no artigo 66º, nº1 do CCivil, que prescreve que a personalidade se adquire «(…) no momento do nascimento completo e com vida.», acrescentando o seu nº2 que «Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.», possa ser tida como parte interessada num contrato havido entre aqueles que a conceberam, sendo a mesma na altura um nascituro e por isso carecida de personalidade jurídica,  sem prejuízo da Lei lhe atribuir alguns direitos, os quais são apenas e tão só os que decorrem dos normativos indicados supra: 952º, no que tange às doações a nascituros; 2033º, nº1, quanto à sua capacidade sucessória; 1878º, no que tange às responsabilidades parentais; 1854º e 1855º quanto à perfilhação de nascituro; e 2240º a propósito da administração de herança ou legado a favor de nascituro, cfr sobre a condição jurídica de nascituros e concepturos, João de Castro Mendes, Teoria Gral do Direito Civil, Volume I, 1978, 103/109.

Nenhum outro direito se afigura concretizável com o nascimento do nascituro, maxime, o decorrente de um pretenso contrato com eficácia de protecção de terceiro (terceiro este apenas nascituro, falho da qualidade jurídica de terceiro para efeitos obrigacionais, por ausência de personalidade jurídica), a quem a Lei não concede qualquer protecção por via da celebração daqueloutro contrato de prestação de serviços médicos, a não ser a protecção directa do mesmo, ou seja, a decorrente de uma actuação do médico dirigida especificamente ao feto e por isso causadora das suas eventuais malformações, o que não se mostra ter ocorrido no caso sub judice, como já se disse e repetiu

A defesa de uma aplicação analógica das regras de protecção de terceiros, em sede estritamente obrigacional, à situação que nos ocupa, de acção por wrongful life, baseadas na tese expendida no processo Kelly Molinaar é no mínimo paradoxal, pelo menos em casos flagrantes, como o que apreciamos, em que as partes não conceberam tal hipótese como abrangida no plano negocial previamente estabelecido, nem o «terceiro», no caso o então nascituro J, podia interagir com os contraentes, porque terceiro ainda não era para os sobreditos efeitos, cfr a propósito desta variante, mas não em sede de responsabilidade médica, Menezes Leitão, A Responsabilidade do gestor perante o dono do negócio no Direito Civil português, 2005, 340, Carlos Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 423 e Menezes Cordeiro, da Boa Fé no Direito Civil, 1984, vol II, 684; cfr também, a propósito do eventual direito ao ressarcimento da criança, nesta tipo de acções, Paulo Mota Pinto, ibidem, embora não se perceba onde este Autor faz assentar aquele direito, presumindo-se, se calhar em excesso, mas por via do raciocínio aí desenvolvido, com apelo a todas estas regras gerais de direito das obrigações e ainda Guilherme de Oliveira, O fim da arte silenciosa – O dever de informação dos médicos, in RLJ, ano 128º, 1995/1996, 70/104, igualmente sem grandes desenvolvimentos em termos de jure constituto, fundamentando antes a posição assumida no chamado «(…) dever de respeitar um direito autónomo do doente à livre determinação em matéria de saúde, qualquer que seja o quadro clínico e, principalmente, qualquer que tenha sido o resultado técnico da intervenção médica.(…)», ideia esta preciosa em termos de jure constituendo.

Acresce ainda a circunstância de se não poder descurar que por um lado a Lei permite que os pais possam usar do seu direito a ver interrompida a gravidez por indicação embriopática ou fetopática, posto que o Autor iria de qualquer forma nascer com malformações irreversíveis, como se provou, o que a Autora assume que teria feito se lhe tivesse sido dada a informação correcta sobre o estado da sua gestação, o que já se viu que não aconteceu por via da incúria dos Réus e por outro lado, admitir-se que afinal das contas o Autor existe, mas porque não deveria existir, assim desta forma deficiente, tem direito a ser ressarcido: não pode ser, porque a tal se opõe, além do mais, o direito, cfr Marta de Sousa Nunes, ibidem.

As conclusões estão, assim, condenadas ao insucesso.

De qualquer forma, sempre acrescentamos «ex abundanti», que a indemnização atribuída à Autora a título de danos patrimoniais futuros, consistente nas despesas relativas ao acompanhamento clínico permanente de que o J necessita e continuará a necessitar, tratamento e acompanhamento técnico de que a Autora não tem conhecimentos para assegurar; próteses de que o J necessitar; e educação e instrução especial de que o J houver de ter em razão da deficiência, com a contratação de professores, técnicos, e material de ensino especialmente direccionados ao seu estado clínico, que se quantificar em oportuna liquidação, em boa verdade, corresponde a parte da indemnização atribuída no caso baby Kelly Molinaar, em que os Autores encontraram arrimo para sustentar a sua pretensão na parte respeitante ao Autor.

III Destarte, negam-se ambas as Revistas, mantendo-se a decisão ínsita no Acórdão sob recurso.

Custas das Revistas, pelos Recorrentes e nas instâncias nos termos decididos, a propósito, pelo Tribunal recorrido.

Lisboa, 17 de Janeiro de 2013

(Ana Paula Boularot)

(Pires da Rosa , vencido em parte, de acordo com a declaração que junto)

(Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, com declaração)

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                                            ( Vencido na parte respeitante ao recurso interposto pelos autores. Concederia parcialmente a revista, atribuindo ao autor J a indemnização pedida por danos não patrimoniais ( e não também por danos patrimoniais, como direi mais à frente ).

Mesmo sem fazer apelo a um denominado direito à não existência

que todavia, em tese, admito desde que a lei portuguesa reconheceu, nos termos previstos no art.142º do CPenal, a não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, colocando a vida, nesses precisos casos nas mãos dos homens, mais especificamente da mulher/mãe  e até, mais recentemente, abriu as portas ao testamento vital, com a Lei nº25/2012, de 16 de Julho –

                        o que importa é acentuar que houve, por parte dos RR, uma clara violação contratual, quer a obrigação do médico ecografista seja a chamada obrigação de meios, quer seja - como penso que é, ao contrário do que vem sustentado no vencimento do acórdão – uma obrigação de resultado. Porque o médico que faz a ecografia assegura o resultado, nem que esse resultado seja a afirmação de que a ecografia não permite ver o que quer que seja.

Ora, o réu M – aliás médico especialmente qualificado, o que só agrava a sua conduta – leu mal as ecografias e não deu conhecimento à autora/mãe das irreversíveis lesões que o seu feto já suportava e suportaria para sempre.

Ora bem:

as ecografias foram efectuadas no âmbito de um contrato celebrado entre uma clínica radiográfica e uma mulher – não uma qualquer mulher, mas uma mulher pejada, grávida, que só porque está grávida se sujeita e contratualiza tais exames, o que é do conhecimento integral da clínica.

Então é essa a mulher que é protegida no contrato, uma mulher pejada, ela e o seu feto, que não tem personalidade jurídica enquanto … não nascer com vida – art.66º, nº1 do CCivil.

A mãe ( e o seu feto – porque o feto é ainda mãe, enquanto não nascer com vida ) foi(foram) atingida(os) no seu direito a poderem optar pelo não nascimento, por uma mesma e única violação contratual – essa, a dos RR.

Que o direito resultante dessa violação contratual, na parte em que atingiu o feto, se autonomize no património do J quando ele nasce, permitindo e exigindo que seja ele mesmo, e só ele, seu titular único, a solicitar a indemnização para essa violação, não tem nada de estranho – é o processo completo de autonomização. Na pessoa e nos direitos de que é exclusivo dono e suporte.

Dir-se-á que o direito violado no património da autora/mãe é a faculdade de optar pelo não nascimento do filho e que o direito do filho que nasceu era um outro direito e esse só existiria a partir da sua existência com personalidade jurídica.

Mas não é possível pensar assim, sob pena de se estar a proscrever erradamente o direito do J.

Esse é um direito que tem um tempo de nascimento e morte, e um tempo muito limitado – no caso, o definido na alínea c ) do nº1 do art.142º do CPenal, seja o de 24 semanas de gravidez, para o exercício da faculdade de interromper a gravidez Ou se coloca nas mãos da mãe o direito de o exercer em representação do seu filho … que é ainda um feto, ou se subtrai por completo esse direito ao filho, em nome de cuja dignidade é exercido.

Não é possível deixar para o tempo da capacidade do filho um direito que só existe enquanto o filho é ainda … feto. Alguém tem que ter a capacidade do exercício do direito no tempo em que o direito pode ser vivido.

E em ninguém mais, a não ser na mãe, pode radicar esse direito num tempo em que o filho que há-de ( poder ) ser é – ainda – mãe.

Nem se diga que indemnizar o filho, no caso, o J, é atingir a dignidade da sua pessoa, diminuindo-o na sua condição humana. Indignidade será, a meu ver, não lhe possibilitar pela via indemnizatória uma quantia que lhe permita suportar o enormíssimo encargo da sua condição, de uma forma mais … digna.

A terminar direi que, dentro dos condicionalismos do disposto no art.142º do CPenal, apenas sobre a vontade livre e consciente do J há-de repousar o direito de saber até onde poderia suportar as doenças ou malformações que o atingem. Só assim se respeita o seu indeclinável direito à liberdade. E que esse seja exercido pela mãe, em sua representação, é algo que tem absoluta justificação porquanto está provado que o J não é, nem nunca será, autónomo.

Em conclusão: concederia em parte a revista pretendida pelos autores, concedendo ao autor J a quantia pretendida a título de danos não patrimoniais. E só destes, porque a completa ausência de autonomia actual e futura fez recair na autora sua mãe a necessidade de patrimonializar por completo em si própria a indemnização de que, por toda a vida, necessitará para garantir a dignidade mínima da vida de seu filho. Devendo ficar bem claro que a quantia que vier a receber a esse título será, em absoluto, constrangida às necessidades do J).

Pires da Rosa

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1. Votei a improcedência de ambas as revistas. Tenho todavia algumas observações em relação a certos pontos da fundamentação. Refiro, muito sucintamente, as mais relevantes:
– A prova feita no processo torna dispensável a opção pela qualificação da obrigação assumida como uma obrigação de meios ou de resultado, porque, vista numa ou noutra perspectiva, está provado o incumprimento; e dispensa igualmente a referência ao ónus da prova da culpa, que ficou positivamente demonstrada (cfr. a lista de factos provados e, em especial, as respostas aos pontos 11, 14, 15 e 16 da base instrutória);
– Embora não tenha sido questionada a condenação solidária de ambos os réus, suponho que a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil de uma e de outro justificariam uma referência ao fundamento da responsabilidade da ré Clínica de Radiologia, a meu ver radicada no artigo 800º do Código Civil;
– Suponho também que, estando verificado, no caso, o circunstancialismo que afasta a punibilidade da intervenção voluntária da gravidez, até às 24 semanas, nos termos previstos na al. c) do nº 1 do artigo 142º do Código Penal, o direito ilicitamente violado foi, em rigor, o direito (da autora) de opção por essa interrupção, dentro daquelas 24 semanas; o que, aliás, no contexto desta acção, torna inútil discutir se, em momento posterior, deveria ou não a autora ter realizado outros exames, nomeadamente ecográficos;
– A razão que me levou a votar a improcedência do recurso, no que toca ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais formulado pelo autor, foi a de pensar que qualquer fundamentação que a sustentasse implicaria necessariamente o reconhecimento da titularidade de um direito à não existência, o que se me afigura rejeitado pela ordem jurídica. Mas não acompanho o afastamento definitivo da ponderação das potencialidades da figura do contrato com âmbito de protecção para terceiros, nem a exclusão categórica dos pressupostos da “ilicitude, culpa e nexo de causalidade”, já que não é em relação às malformações verificadas que deveriam ser analisados; e afigura-se-me falível o argumento de que a procedência do pedido conduziria ao reconhecimento do dever de interromper a gravidez, ou da possibilidade de o filho vir a pedir aos pais uma indemnização por não ter ocorrido essa interrupção, por faltar, desde logo um acto ilícito que a sustente (a decisão de manter a gravidez não é, seguramente, ilícita).

2. Quanto à condenação no que vier a liquidar-se, determinada pela Relação e mantida pelo acórdão, penso que poderia ser ensaiada uma solução mais adequada às circunstâncias do caso, autonomizando a indemnização em relação ao património da autora e consignando-a à satisfação das necessidades do autor ou, pelo menos em parte, dando-lhe a forma de renda. Considero particularmente importante resguardá-la, tanto quanto possível, do alcance de eventuais credores, titulares de créditos estranhos a despesas realizadas no interesse do autor, e protegê-lo na eventualidade de morte da autora.
Fundamentada embora na lesão de um direito da autora, a indemnização tem como objectivo cobrir as despesas acrescidas que decorrem das especiais necessidades do autor, e que, como a autora afirma, não tem condições de suportar.
Tal eventualidade, no entanto, não foi objecto de discussão neste processo, o que impede a sua consideração neste momento; suponho, todavia, que será possível realizá-la no âmbito da liquidação, se as partes assim o entenderem.


(Maria dos Prazeres Pizarro Beleza)