Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
175/05.2TBALR.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PREÇO
PAGAMENTO
UNIÃO DE FACTO
MORTE
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / RESOLUÇÃO OU MODIFICAÇÃO DO CONTRATO POR ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 662.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 437.º, 473.º, N.ºS 1 E 2 E 474.º.
LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ), APROVADA PELA LEI Nº 62/2013, DE 24 DE OUTUBRO: - ARTIGO 46.º.
Jurisprudência Nacional:
ACORDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 04-02-2014, IN SUMÁRIOS, FEVEREIRO/2014;
-DE 17-12-2014,IN SUMÁRIOS, 2014;
-DE 21-11-2014, IN SUMÁRIOS, 2014, P. 639, TODOS IN WWW.STJ.PT.
Sumário :

I - O enriquecimento sem causa, previsto no art. 437.º do CC, tem por requisitos: (i) que alguém obtenha um enriquecimento, (ii) à custa de outro, e, (iii) sem causa justificativa.
II - Verificam-se tais requisitos na situação, provada, em que A paga o preço da aquisição de um imóvel; A falece a 23-10-2004; B, que com A viveu, durante anos, em “comunhão de mesa e habitação”, outorga a escritura de compra e venda do imóvel a 19-11-2004.


Decisão Texto Integral:                          

                Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I Relatório

1. AA e BB, intentaram ação declarativa, de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra CC, Lda. e DD, pedindo que:

- Seja declarada nula a escritura de compra e venda da fração autónoma, designada pela letra “A”, do prédio urbano, sito na ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo ...;

- Seja ordenado o averbamento da nulidade no respetivo livro de escrituras;

- Seja ordenado o cancelamento de quaisquer negócios efetuados com base na referida escritura, nomeadamente o registo de aquisição realizado a favor do segundo réu;

- Seja o segundo réu condenado a restituir à primeira ré a fração autónoma, designada pela letra “A”;

- Seja proferida decisão que substitua a declaração negocial da primeira ré, no sentido de ser vendido às autoras, na sua qualidade de herdeiras de EE, a aludida fração autónoma.

Caso assim se não entenda, pedem a condenação:

- da primeira ré a pagar às autoras, na sua referida qualidade sucessória, a quantia de €139 664,00, por incumprimento do contrato promessa aludido; ou

- do segundo réu a pagar às autoras, também na sua referida qualidade, a quantia de € 69 832,00, segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Alegam, em síntese, que:

- são as únicas e universais herdeiras de EE, falecida em .../2004, no estado de divorciada, que durante vários anos viveu com o segundo réu em comunhão de mesa e habitação, sendo que entre o ano de 1999 e junho de 2001, a falecida EE prometeu comprar à primeira ré e esta prometeu-lhe vender as frações autónomas designadas pelas letras “A” e “B” do prédio urbano, descrito na Conservatória de Registo Predial de Almeirim, sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o n.º ....

- no concernente à fração “A”, a falecida procedeu ao pagamento do preço ajustado de €69 832,00, mas a escritura de compra e venda não chegou a ser formalizada, sendo que o segundo réu, aproveitando-se do falecimento de EE e da circunstância de um dos sócios gerentes da primeira ré ser genro do segundo réu, solicitou à primeira ré que outorgasse a escritura de compra e venda da aludida fração autónoma, nela figurando como comprador o segundo réu e a primeira ré como vendedora, a qual foi celebrada em 19/11/2004, à revelia das autoras e sem que nenhum preço tenha sido pago pelo segundo réu à primeira ré.

2. Contestaram os Réus,

- A ré CC, Lda. –

 Arguindo a ilegitimidade das autoras para a presente ação e impugnando a restante matéria de facto alegada pelas mesmas, concluindo pela procedência da exceção e pela improcedência da ação.

            - O réu DD -

Alegando que não existe qualquer contrato promessa escrito entre a falecida EE e a primeira ré e que a fração “A”, em causa, foi por si paga e não pela falecida EE.

Conclui pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

3. As Autoras replicaram.

4. Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, e elaborado o despacho de seleção da matéria de facto assente e da que integrava a base instrutória.

5. Procedeu-se ao julgamento e foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente, por não provada, a ação e, em consequência, dela absolveu do pedido os réus DD e CC, Lda..

6. Não se conformando com a decisão, as Autoras interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora.

7. O Tribunal da Relação de Évora veio a julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmou a sentença recorrida.

8. Inconformadas com tal decisão, as Autoras vieram interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. O acórdão recorrido padece do vício de contradição insanável da sua fundamentação e entre a sua fundamentação e a decisão.

2ª. Com efeito, não é lógico, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ter-se concluído ser compreensível que os recibos do pagamento do preço do imóvel escriturado pelo R. DD fossem emitidos em nome da falecida EE, caso fosse efectivamente o R. quem tivesse negociado o referido imóvel.

3ª. Na verdade, caso o R. DD houvesse negociado a aquisição, para si, do aludido imóvel e efectuasse o pagamento com dinheiro da falecida EE, seria totalmente ilógico que todos os recibos respeitantes aos pagamentos efectuados fossem passados em nome desta.

4ª. Pois que, na compra e venda de imóveis, a relação contratual estabelece-se, sempre, entre vendedor e comprador, sendo para aquele absolutamente indiferente a proveniência dos fundos utilizados por este para pagamento do preço acordado.

5ª. Assim, a decisão recorrida é, nessa parte, ilógica e contraditória com as regras da vida, da experiência comum e do comércio jurídico imobiliário.

6ª. As razões que levaram a instância recorrida a concluir que o pagamento foi realizado com dinheiro da EE, são as mesmas que deveriam, logicamente, conduzir à conclusão de que o negócio jurídico subjacente foi realizado com vista à aquisição do imóvel pela falecida.

7ª. Donde se conclui que o acórdão recorrido padece de contradição insanável na sua fundamentação, ao não ter considerado que o pagamento do preço da fracção em causa se destinava à sua aquisição pela EE.

8ª. O Tribunal recorrido incorreu, igualmente, em contradição insanável ao concluir que não foi demonstrada a inexistência de causa justificativa do enriquecimento do património do R. DD à custa do património da falecida EE, depois de ter considerado demonstrado que o R. DD declarou ter restituído a quantia que lhe foi disponibilizada pela falecida EE, não demonstrando tê-lo feito.

9ª. O vício de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão fere de nulidade o acórdão recorrido, de harmonia com a previsão do artº. 615.º n.º 1 al. c) do CPC.

10ª. O Tribunal (ia quo" também se equivocou ao concluir que a invocação do instituto do enriquecimento sem causa pelas AA. radica no facto de considerarem que foi a falecida EE quem negociou a compra da fracção em causa nos autos, com vista à sua aquisição para si e que foi o 2.º R. quem outorgou a escritura de compra e venda.

11ª. Pois que com tais factos, segundo o expressamente alegado na P.I., visava-se demonstrar a nulidade do negócio jurídico ou o incumprimento da promessa de compra e venda, sendo, de resto, essas as consequências lógicas de tais factos.

12ª. Entende-se ainda que a instância recorrida se equivocou ao admitir que tais factos (positivos) poderiam constituir fundamento da inexistência de causa justificativa do enriquecimento do R. DD (facto negativo), conforme se defende no aresto recorrido.

13ª. Tendo-se provado que o preço da aludida fracção foi pago pela falecida EE, com dinheiro seu, que disponibilizou ao R. DD, com a obrigação de o restituir, como o próprio admitiu, e ficando também demonstrado que este não o restituiu, tanto bastava para que se considerasse verificada a inexistência de causa justificativa do enriquecimento do património do R. DD à custa do empobrecimento do património da falecida EE.

14ª. Daí se concluindo que o Tribunal lia quo" procedeu a uma interpretação e aplicação incorretas do normativo cantante do art.v 473.9 n.9 1 do C. Civil.

           E concluem pelo provimento do recurso, “revogando-se a decisão recorrida e proferindo-se outra que, em sua substituição, julgue a presente acção procedente, por provada.”

9. Não foram apresentadas contra-alegações.

10. Tendo, entretanto, ocorrido o falecimento do R. DD, foi suspensa a instância para habilitação dos seus sucessores, o que veio a ocorrer por sentença de 06/04/2016, proferida no apenso “A”, onde se decidiu julgar FF, GG, HH e II, habilitados como herdeiros do primitivo R., para com eles como intervenientes prosseguir a demanda até final.

11. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pela recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela Autora/Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- a nulidade do Acórdão (contradição entre a fundamentação e a decisão);

- o enriquecimento sem causa.

               

III. Fundamentação.

1. As instâncias deram como provada a seguinte factualidade:

1.1. No dia 22 de novembro de 2004, no Cartório Notarial da ..., foi celebrada escritura pública de habilitação de herdeiros, na qual foi declarado que, no dia 23 de outubro de 2004, na freguesia de ..., concelho de ..., faleceu EE, natural da freguesia de ..., que teve a sua última residência na Rua ..., sem deixar descendentes, nem ascendentes vivos, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros, JJ, casada sob o regime de comunhão geral com LL, AA, casada sob o regime da comunhão geral com MM, e BB, casada sob o regime da comunhão de adquiridos com NN (Al. A)).

1.2. Mais foi declarado na aludida escritura que as referidas habilitantes são as únicas herdeiras da falecida EE, não havendo quem lhes prefira ou com elas concorra à sucessão (Al. B)).

1.3. Por escritura pública outorgada no dia 21 de Janeiro de 2005, no Cartório Notarial da ..., foi declarado por JJ e LL que repudiam a herança de sua irmã e cunhada EE (Al. C)).

1.4. ...viveu, durante anos, na companhia do segundo réu, em comunhão de mesa e habitação (Al. D)).

1.5. A aquisição da fracção “B”, do prédio urbano, sito na Av. Dr. ...... lote.., Almeirim, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 0000000, inscrito na matriz sob o art.º 7370, encontra-se registada a favor de ... por compra a CC, Lda., pela cota G-1, Ap. 04/060600 (Al. E)).

1.6. Por escritura pública outorgada no dia 19 de Novembro de 2004, no Cartório Notarial de Almeirim, lavrada a fls. 91 a 93 do livro 613 - D, CC, Lda., representada pelos seus sócios, ... e ..., vendeu a DD, pelo preço de € 69.832,00, a fracção autónoma, designada pela letra “A”, rés-do-chão direito, destinado a comércio, com entrada independente pela Av. Dr. ...e Rua Projectada à Rua da Fé, descrita na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o n.º 03775 - A, inscrita na matriz sob o art.º 7370 - A (Al. F)).

1.7. A aquisição da fracção “A”, do prédio urbano, sito na Av. Dr. Mário Soares, lote C, Almeirim, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 03775/220494, inscrito na matriz sob o art.º 7370, encontra-se registada a favor de DD por compra a CC, Lda., pela cota G -1, Ap. 12/041130 (Al. G)).

1.8. ... pagou a quantia de €69 832,00 referente à compra do imóvel mencionado no ponto 6 dos factos provados (4.°) – facto dado como provado pelo Tribunal da Relação em sede de reapreciação da matéria de facto.

1.9. A escritura pública referida em F) dos factos assentes foi outorgada sem o conhecimento e consentimento das autoras (6.°).

1.10. Pelo menos o réu ... e o sócio da ré CC, Lda., ..., sabiam que ... havia deixado como únicos e universais sucessores as ora autoras (9.°).

2. Do mérito do recurso

2.1. Da nulidade do Acórdão – contradição entre a fundamentação e a decisão

2.1.1. Enquadramento preliminar

A violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (artigos 607º a 609º do Código de Processo Civil), a elaboração da sentença - do acórdão - (por força do nº 2 do artigo 663º e 679º), enquanto ato processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (aplicáveis aos acórdãos ex vi nº 1 do artigo 666º e artigo 679º do Código de Processo Civil).

No caso em presença, convocam as Recorrentes a nulidade típica prevista na alínea c) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

Prescreve esta disposição legal que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

Assim, verifica-se a nulidade invocada (oposição entre os fundamentos e a decisão) quando a construção da sentença se mostra viciosa, pois os fundamentos invocados pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto, isto é, verifica-se quando os respetivos fundamentos estejam em oposição com a decisão: trata-se da deficiência em que o silogismo em que se analisa a decisão, contém fundamentos que levam logicamente a um juízo em determinado sentido, mas em que a decisão efetivamente adotada é a de sentido oposto

- Acórdão do STJ, de 4/02/2014, in Sumários, Fevereiro/2014, consultável em www.stj.pt

Ou, no dizer do Acórdão do STJ, de 17/12/2014 (in Sumários, 2014, consultável em www.stj.pt), a contradição entre os fundamentos e a decisão existe quando a fundamentação aponta para um sentido, que lógica e formalmente não é comportado pela decisão, estando com ela em frontal colisão.

2.1.2. O caso concreto.

Após esta sumária indagação e interpretação das normas jurídicas relevantes, importa agora reverter ao caso concreto.

As Recorrentes referem, nas suas alegações, que ocorre a nulidade do Acórdão por contradição insanável da sua fundamentação e entre esta e a decisão.

Ora, analisando as suas alegações verifica-se que as Recorrentes o que colocam em crise é a fundamentação da matéria de facto (no âmbito da reapreciação da matéria de facto), bem como um erro de aplicação das normas legais aplicáveis.

Assim não indicam, verdadeiramente, qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.

As Recorrentes vieram discordar da fundamentação do Acórdão, isto é, da fundamentação dos factos dados como provados pelo Tribunal.

Por outro lado, analisando-se o Acórdão recorrido o mesmo não enferma da nulidade arguida, porquanto os fundamentos invocados pelo Tribunal da Relação no Acórdão sob recurso conduzem à conclusão extraída, isto é, a fundamentação aponta para um sentido, que lógica e formalmente é comportado pela decisão: o Acórdão recorrido, na parte que agora interessa (a questão do enriquecimento sem causa, única questão que as Recorrentes deixam em aberto), afirma que para se verificar o instituto do enriquecimento sem causa eram necessários determinados pressupostos, sendo que um deles era a falta justificativa para o enriquecimento do Réu, e como dos factos provados não era possível conhecer os contornos do negócio acordado com a Ré com vista à aquisição da fração em causa e nem sequer se apurou se a falecida interveio nas negociações, concluiu que não estava provado o enriquecimento sem causa.

Assim, verifica-se que o raciocínio é lógico, sendo que a fundamentação conduz necessariamente à conclusão (mas não se pretende afirmar que não possa ter ocorrido erro de julgamento).

Contudo, o erro de julgamento não se confunde com a nulidade arguida.

Deste modo, não se verifica a nulidade arguida.

            Como se referiu atrás, o que as Recorrentes pretendem colocar em causa é a apreciação da matéria de facto realizada pelo Tribunal da Relação.

Consabido é que o Supremo Tribunal de Justiça, não "julga de facto" mas tão-só "de direito". Ou seja: por regra, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (cfr. artigo 46º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, LOSJ, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 24 de outubro).

Nessa conformidade:

- Em regra, ao Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, compete somente a aplicação, em definitivo, do regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (cfr. nº 1 do artigo 682º do Código de Processo Civil);

- À Relação comete-se o dever de modificar a decisão sobre a matéria de facto, sempre que os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil.

                - Assim, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto (nos termos do artigo 640º do Código de Processo Civil), em decorrência do que dispõe este nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil, a Relação pode e deve formar e formular a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.

                Ou seja, face a esta autonomia decisória, a Relação há-de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação de provas, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, pelo que, neste particular, soçobra, desde logo, a argumentação recursória expendida na 1ª parte da conclusão 13ª.

                Por sua vez, o nº 2 do mesmo artigo 662º do Código de Processo Civil impõe o dever à Relação de, mesmo oficiosamente:

                a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

                b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

                c) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

                d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

Todavia, excecionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça:

 i) Pode corrigir qualquer "erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa" se houver ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (prova tarifada ou legal), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 682º, nº 2, e 674º, nº 3, ambos do Código de Processo Civil;

 ii) Intervém na decisão sobre a matéria de facto, quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, nos termos do nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil;

 iii) Tem intervenção na decisão sobre a matéria de facto se considerar que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, nos termos do referido nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil.

Em síntese:

- Às instâncias compete apurar a factualidade relevante;

- Com carácter residual, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça destina-se a averiguar da observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

Ora, no caso concreto, o Tribunal da Relação de Évora procedeu à reapreciação da matéria de facto, reportando-se essencialmente à prova testemunhal e de depoimento de parte das Rés, bem como a apreciação de documentos particulares.

Tais meios de prova são de livre apreciação do Tribunal, pelo que não pode o Supremo Tribunal de Justiça censurar a forma como o Tribunal da Relação de Évora procedeu à reapreciação da matéria de facto, não se verificando qualquer das situações (atrás apontadas) que permitam a intervenção do STJ.

2.2. Do enriquecimento sem causa

As Autoras/Recorrentes, na qualidade de herdeiras de ..., invocaram, subsidiariamente, o instituto de enriquecimento sem causa, pretendendo que o Réu fosse condenado a pagar-lhes a quantia de €69 832,00.

O Acórdão recorrido julgou improcedente esta pretensão, por ter entendido que as Autoras não demonstraram o requisito da falta justificativa para o enriquecimento do Réu.

Vejamos.

Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou (nº1 do artigo 473º do Código Civil).

A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (nº2 do artigo 473º do Código Civil)

Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento (artigo 474º do Código Civil).

Como resulta do disposto no artigo 473º do Código Civil, e vem sendo apresentados pela doutrina e pela jurisprudência, são requisitos do enriquecimento sem causa: que alguém obtenha um enriquecimento; que o obtenha à custa de outro; e que o enriquecimento não tenha causa justificativa.

Por outro lado, a falta de causa terá de ser alegada e provada, nos termos estabelecidos no artigo 342º do Código Civil, por quem pede a restituição.

O enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que o direito não o aprove ou consinta, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida, isto é, que legitime o enriquecimento, devendo o enriquecimento injusto ser sempre apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados.

Ou, como se escreve no Acórdão do STJ, de 21 de novembro de 2014, “o eixo directriz da definição da ausência de causa justificativa da deslocação patrimonial tem a ver com a correta ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema jurídico, de modo que, de acordo com a mesma, se o enriquecimento deve pertencer a outra pessoa, carece de causa justificativa.”

(in Sumários, 2014, pág.639, consultável em www.stj.pt)

No caso presente, não se discute o carácter subsidiário do enriquecimento sem causa (artigo 474º do Código Civil), nem o empobrecimento da falecida ... nem o enriquecimento do Réu.

O que está em causa é de saber se as Autoras/Recorrentes provaram que não havia causa justificativa na deslocação patrimonial.

No Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Évora respondeu negativamente, o que as Recorrentes vêm, pelo presente recurso, impugnar.

Ora, encontra-se provado:

            1.6. Por escritura pública outorgada no dia 19 de novembro de 2004, no Cartório Notarial de Almeirim, lavrada a fls. 91 a 93 do livro 613 - D, CC, Lda., representada pelos seus sócios, ... e ..., vendeu a DD, pelo preço de € 69 832,00, a fracção autónoma, designada pela letra “A”, rés-do-chão direito, destinado a comércio, com entrada independente pela Av. Dr. ...e Rua Projectada à Rua da Fé, descrita na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o n.º 03775 - A, inscrita na matriz sob o art.º 7370 - A (Al. F)).

1.7. A aquisição da fracção “A”, do prédio urbano, sito na Av. Dr. Mário Soares, lote C, Almeirim, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 03775/220494, inscrito na matriz sob o art.º 7370, encontra-se registada a favor de DD por compra a CC, Lda., pela cota G -1, Ap. 12/041130 (Al. G)).

1.8. ... pagou a quantia de €69 832,00 referente à compra do imóvel mencionado no ponto 6 dos factos provados (4.°) – facto dado como provado pelo Tribunal da Relação em sede de reapreciação da matéria de facto.

            Encontra-se ainda provado que ... faleceu no dia 23 de outubro de 2004 (cfr. documento de fls.7/10, na qual se refere que está arquivada a certidão de óbito) e que viveu, durante anos, na companhia do Réu, em comunhão de mesa e habitação (facto provado e identificado supra sob o nº.1.4).

            Assim, dos factos provados se pode concluir, com segurança, que não existiu causa justificativa para o enriquecimento do Réu e o empobrecimento da falecida ..., porquanto foi a ... quem pagou a quantia de €69 832,00 referente à compra do imóvel (expressão constante do facto dado como provado pelo Tribunal da Relação de Évora na reapreciação da prova que efetuou), sendo que este é o valor que consta da escritura pública de compra e venda outorgada entre os Réus, sendo que o referido valor é a soma dos valores constantes dos documentos, emitidos pela Ré, constantes de fls.296/302, e nos quais se refere que os valores eram entregues “p/ aquisi. da fracção “A” do Edif. Sito na Av. Dr. ...lote C Almeirim”

            Tendo presente que, no facto dado como provado pelo Tribunal da Relação de Évora, ... pagou a quantia de €69 832,00 referente à compra do imóvel, bem como o que consta dos referidos documentos de fls.296/302, que ao outorgar a escritura de compra e venda o Réu não procedeu a qualquer outro pagamento, temos de concluir que a ... estava a adquirir para si o imóvel e que este, por aquela ter pago o preço, entrou no património do Réu, que celebrou a escritura pública de compra e venda em menos de um mês após a morte de ..., com quem vivia “em comunhão de mesa e habitação”.

Desta forma, não havia causa justificativa para o enriquecimento do Réu, não se justificando a deslocação patrimonial.

            Deste modo, o recurso terá de proceder.

            - Em face do falecimento do Réu e o incidente de habilitação, a herança terá de suportar o pagamento da quantia da condenação, sendo a responsabilidade dos herdeiros correspondente ao recebido da herança -

           
IV. Decisão
Posto o que precede, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o Acórdão recorrido, e, consequentemente, condena-se o Réu (com a precisão atrás referida) a pagar às Autoras a quantia de €69 832,00 (sessenta e nove mil, oitocentos e trinta e dois euros)


As custas ficarão a cargo do Recorrido.

Lisboa, 3 de maio de 2018

(Processado e integralmente revisto pelo relator, que assina e rubrica as demais folhas)

 (António Pedro de Lima Gonçalves)


             


 (João Cabral Tavares)

            


 (Fátima Gomes)