Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28698/15.8YIPRT.G1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
INCUMPRIMENTO
RECURSO DE APELAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 639.º, N.º 3, 640.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E C), 662.º, N.º 2, ALÍNEA C) E 671.º, N.º 1.
Sumário :
I. Em termos de impugnação da matéria de facto, a lei consagra um importante ónus de alegação, tendo por finalidade fundamental permitir, por um lado, o exercício eficaz do contraditório e, por outro, o julgamento adequado e seguro da impugnação da matéria de facto pelo tribunal ad quem.

II. É insuficiente a referência meramente genérica dos factos.

III. O incumprimento deste ónus de alegação acarreta, sem mais, a rejeição do recurso da impugnação da matéria de facto.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA - Construções e Empreendimentos, Lda., iniciou, em 10 de abril de 2015, contra BB, Lda., procedimento de injunção, pedindo que a Requerida lhe pagasse a quantia de € 37 326,11, acrescida de juros de mora, no valor de € 3 428,41, resultante de contrato de empreitada, para a execução do “Lar da Terceira Idade da Associação de Solidariedade Social de S… – …”, cujo preço não foi pago na totalidade, na data do vencimento.

A Requerida deduziu oposição, por impugnação, e, deduzindo reconvenção, pediu ainda que a Requerente fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 16 074,25.

O processo foi, então, remetido ao Juízo de Competência Genérica da Instância Local de …, Comarca de Bragança, que determinou que se seguisse a forma de processo comum.

A Autora replicou, concluindo pela improcedência da reconvenção.

Depois do despacho saneador, da identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, foi realizada a audiência de discussão e julgamento e foi proferida a sentença, julgando-se a ação e a reconvenção improcedentes.

Em 17 de outubro de 2017, a Autora arguiu a nulidade da prova produzida em audiência, por deficiente gravação dos depoimentos realizada na audiência de julgamento, que, após a resposta da Ré, foi indeferida, por extemporânea.

Inconformada com a sentença e o despacho de indeferimento, a Autora apelou, em recursos autónomos, para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão, de 20 de março de 2018, confirmou as decisões recorridas.


Ainda inconformada, a Autora recorreu, em revista excecional, para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:


a) O art. 155.º, n.º s 3 e 4, do CPC, deve ser interpretado no sentido da falta ou deficiência da gravação dever ser invocada após a disponibilização efetiva à parte e não após o decurso do prazo do n.º 3, o que seria extremamente constrangedor para as partes e para a lide.

b) Incorreu-se num erro de interpretação e aplicação, bem como foi violado o direito da Recorrente à prova plena e à igualdade de armas, que nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 674.º do CPC é fundamento de revista.

c) Esta questão primordial é determinante para a apreciação das restantes questões, designadamente do incumprimento do ónus de impugnação previsto no art. 640.º do CPC.

d) A omissão da gravação impediu a Recorrente de dar cumprimento ao art. 640.º do CPC.

e) Ainda assim, indicou os concretos pontos de facto indevidamente julgados e os meios de prova a reapreciar.

f) Ainda que a Recorrente não tivesse cumprido in totum tal ónus de impugnação, a especificação da matéria não retirava à Relação o dever de, autonomamente, proceder à audição da prova, pois só assim poderia formar a sua convicção.

g) Contudo, nem poderia reapreciar a prova gravada, por a mesma não existir.

h) Por erro de interpretação, foram ainda violados os arts. 157.º, n.º 6, 195.º, n.º 1, e 413.º, todos do CPC.

i) Foi violado ostensivamente, ainda também, o direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva e a um processo justo e equitativo.

Pretende a Recorrente, com a revista, a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que declare a nulidade e o cumprimento dos requisitos legais da impugnação da matéria de facto.


Contra-alegou a Ré, no sentido da rejeição ou improcedência do recurso.


Por acórdão da Formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, do CPC, de 18 de setembro de 2018, foi determinada a “distribuição como revista normal”.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, está essencialmente em causa o incumprimento do ónus de alegação, na impugnação da decisão relativa à matéria de facto.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. Foram dados como provados os seguintes factos:


1. A A. dedica-se à indústria de construção civil e obras públicas, urbanização e propriedades, administração e gestão de obras e investimentos, gestão, promoção, compra e venda de bens imóveis.

2. No âmbito dessa atividade procedeu à execução do lar de terceira idade da Associação de Solidariedade Social de S… - …, serviço prestado e proveniente, entre o mais, da fatura n.º 1…4, de 31/10/2013, que discrimina o valor dos trabalhos desenvolvidos, de acordo com o auto de medição n.º 21, durante o período de 2 a 31 de outubro de 2013, da empreitada sita em …, no valor de € 42 738,49, e proveniente da fatura n.º 1…7, de 12/03/2014, que discrimina o valor dos trabalhos desenvolvidos, de acordo com o auto de medição da revisão de preços, da mesma empreitada, no valor de € 653,24.

3. A R. liquidou à A., por conta da fatura n.º 1…4, a quantia de € 5 412,38.

4. Em janeiro de 2012, foi celebrado entre a A. e a R. um contrato de subempreitada, para execução do lar da terceira idade da Associação de Solidariedade Social de S… - …, através do qual ficou acordado que, na qualidade de subempreiteira, o valor devido pela execução da obra seria o valor da empreitada já realizada, isto é, € 929 317,29, descontados 3,75 % desse valor, a título de custos de faturação e ainda as despesas com garantias da obra.

5. Apesar do acordado, a A. foi emitindo faturas, num total de € 921 334,27.

6. A R. foi procedendo ao pagamento das faturas à medida que as ia recebendo, através de transferências bancárias e/ou ao endosso a favor da A. de diversos cheques, que recebia de clientes.

7. E no final da obra seria feita o encontro de contas, o que não aconteceu.

8. A R. cedeu à A. o crédito que detinha sobre a Associação de Solidariedade Social S… – …, comprometendo-se esta a pagar, diretamente, à A. a quantia de € 124 448,50.


***



2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de redundâncias, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente do incumprimento do ónus de alegação na impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Antes de mais, importa clarificar que o objeto do recurso não se estende a questões diversas da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Na verdade, as questões do prazo para a alegação da deficiência da gravação da audiência e da nulidade processual inserem-se no âmbito da relação jurídico-processual, as quais, porém, não admitem recurso, em particular por efeito do disposto no art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).

Por isso, reiterando, o objeto da presente revista limita-se apenas à questão da impugnação da decisão relativa à matéria de facto e, em especial, ao incumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640.º do CPC.


O recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640.º, n.º 1, do CPC).

Na verdade, em termos de impugnação da matéria de facto, a lei consagra um importante ónus de alegação, tendo por finalidade fundamental permitir, por um lado, o exercício eficaz do contraditório e, por outro, o julgamento adequado e seguro da impugnação da matéria de facto pelo tribunal ad quem, dando-se assim aplicação prática aos princípios da cooperação, lealdade e boa fé processuais.

Neste contexto, devem ser especificados ou concretizados os factos provados ou não provados considerados incorretamente julgados, sendo insuficiente a referência meramente genérica, origem de dúvidas e incertezas e a que se quis obstar.

Depois, o recorrente deve também especificar os meios de prova constantes do processo, designadamente a gravação dos depoimentos realizada, com a particularidade de indicar, com exatidão, as passagens da gravação em que se funda o recurso da impugnação da matéria de facto destinado à correção do erro na apreciação das provas.

Para além disso, e como inovação do atual CPC, o recorrente deve também ainda especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Em suma, no âmbito da impugnação da matéria de facto, o recorrente está obrigatoriamente vinculado a discriminar os factos mal julgados, preenchendo as conclusões, e os meios de prova do processo determinantes de um julgamento diverso, assim como a indicar o julgamento correto de tais factos.

Trata-se, pois, de circunstâncias clarificadoras da alegação tendo por fim a obtenção de um julgamento justo, que corresponda à realidade material dos factos, numa coincidência entres estes e a verdade.

O incumprimento do ónus de alegação na impugnação da matéria de facto acarreta, sem mais, a rejeição do recurso, não sendo admissível o aperfeiçoamento da alegação, em caso de deficiência ou irregularidade, diferentemente do que sucede noutro âmbito do recurso (art. 639.º, n.º 3, do CPC).


Descrito o sentido normativo do ónus de alegação na impugnação da matéria de facto, vejamos se, no caso, a Recorrente incorreu no seu incumprimento, como se concluiu no acórdão recorrido.

Neste âmbito, afirma-se que a Recorrente não indicou, nas conclusões, os concretos pontos de facto incorretamente julgados, assim como a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, pelo que não cumprira os requisitos consagrados nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC.

Na verdade, a Recorrente não especificou, nas conclusões, que delimitam o objeto do recurso, os factos incorretamente julgados, sendo aquelas completamente omissas nessa referência. Não basta a especificação dos factos na alegação propriamente dita, é necessário que venha a integrar as conclusões, que definem o objeto do recurso e sintetizam as razões que justificam a alteração da decisão recorrida. No essencial, a Recorrente, depois de aludir ao erro na apreciação das provas produzidas na audiência, limita-se a enumerar os factos que, em seu entender, devem ser considerados assentes na ação, independentemente da sua impugnação, com “todos os demais alegados pelas partes e vertidos nos articulados” a serem tidos como não estando provados.

Mais genérica que esta alegação é difícil encontrar-se, contrastando com a especificação normativamente exigível.

Por outro lado, a especificação dos factos, para a sua inteira compreensão, deve ter tendencialmente por referência a decisão proferida sobre a matéria de facto, quer quanto aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, como é prática reiterada no quotidiano judiciário.

De resto, a referência à decisão sobre a matéria de facto permite ainda ajuizar da ponderação feita sobre todos os factos relevantes para a decisão da causa e alegados nos articulados. Com efeito, caso viesse a ocorrer uma situação negativa, seria então indispensável proceder à ampliação da matéria de facto, com todas as consequências daí resultantes (art.662.º, n.º 2, alínea c), do CPC).

Nestas circunstâncias, não pode deixar de se concluir que a Recorrente não cumpriu o ónus de alegação previsto no art. 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC.


Por outro lado, decorrente da falta de especificação dos factos (ou pontos de facto) incorretamente julgados, a Recorrente acabou também por não especificar a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

É certo que a Recorrente enumerou os factos, por si, considerados provados e referiu, genericamente, os restantes vertidos nos articulados como não estando provados.

Esta alegação, porém, não cumpre o ónus que recaía sobre a Recorrente. Com efeito, deixou incompleta a especificação exigível, nomeadamente quanto aos factos considerados como não estando provados. A especificação referida deve ser completa, para poder satisfazer a finalidade a que foi adstrita.

Neste contexto, é patente que a Recorrente não cumpriu o ónus de alegação consagrado na alínea c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC.

Sendo os requisitos do ónus de alegação da impugnação da matéria de facto de verificação cumulativa, conclui-se que a Recorrente incorreu no seu incumprimento, ao omitir as especificações referidas nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC. De resto, a própria Recorrente o admite expressamente nas alegações, ao afirmar que a omissão da gravação a impediu de “dar cumprimento ao artigo 640.º do CPC”.

Nesta conformidade, verificou-se fundamento legal para a rejeição do recurso de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, nos termos do disposto no art. 640.º, n.º 1, do CPC.


Com a rejeição do recurso, tornou-se inútil qualquer pronúncia sobre a decisão da matéria de facto proferida pela primeira instância, sendo difícil até de a compreender sem que se manifeste ter procedido à audição da gravação da audiência, como sugere o acórdão recorrido.


Assim, não relevando as conclusões da revista, nega-se o provimento ao recurso interposto.


2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. Em termos de impugnação da matéria de facto, a lei consagra um importante ónus de alegação, tendo por finalidade fundamental permitir, por um lado, o exercício eficaz do contraditório e, por outro, o julgamento adequado e seguro da impugnação da matéria de facto pelo tribunal ad quem.

II. É insuficiente a referência meramente genérica dos factos.

III. O incumprimento deste ónus de alegação acarreta, sem mais, a rejeição do recurso da impugnação da matéria de facto.



2.4. A Recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.


2) Condenar a Recorrente (Autora) no pagamento das custas.


Lisboa, 25 de outubro de 2018


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

José Sousa Lameira