Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
172/17.5S7LSB.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
INCOMPETÊNCIA
MEDIDAS DE COACÇÃO
MEDIDAS DE COAÇÃO
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / DECISÕES QUE NÃO ADMITEM RECURSO / TRAMITAÇÃO / FUNDAMENTOS DO RECURSO.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA / VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
Doutrina:
- AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 132 E 330 ; Direito Penal, Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, p. 65 E 66;
- ANA MARIA BARATA DE BRITO, O crime de violência doméstica: notas sobre a prática judiciária, texto correspondente a uma conferência proferida em 1 de Dezembro de 2014, disponível em www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS;
- ANDRÉ LAMAS LEITE, A violência relacional íntima, Julgar, n.º 12, Set.-Dez. 2010;
- AUGUSTO SILVA DIAS, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª Edição, AAFDL, 2007, p. 110;
- CRISTINA AUGUSTA TEIXEIRA CARDOSO, A violência doméstica e as penas acessórias, UC, Porto, p. 16, in
- FERNANDO SILVA, Direito Penal Especial, Os crimes contra as pessoas, 4.ª Edição, Quid Juris, Sociedade Editora, Lisboa 1017, p. 310 e 311;
- FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, p. 227 e ss., 231, 342 a 344 ; O sistema sancionatório do Direito Penal Português, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, p. 815;
- HANS-HEINRICH JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, SA, p. 998 e 999;
- LAMAS LEITE, A violência relacional íntima, Revista Julgar, n.º 12, Set.-Dez, 2010;
- M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, Código Penal, Parte geral e especial, Com notas e comentários, 2015, 2.ª Edição, Almedina, p. 647;
- MAIA COSTA, in H. Gaspar, S. Cabral, M. Costa, O. Mendes, P. Madeira. P. da Graça, Código de Processo Penal Comentado, 2014, p. 886;
- MANUEL CAVALEIRO FERREIRA, Lições de Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Editorial Verbo, 1992, p. 546 e 547;
- MARIA ELISA FERREIRA, Crítica ao pseudo pressuposto da intensidade no tipo legal de violência doméstica, Julgar Online, Maio de 2017, in http://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/05/20170531-ARTIGO-JULGAR-Cr%C3%ADtica-ao-pressuposto-da-intensidade-no-tipo-legal-de-viol%C3%AAncia-dom%C3%A9stica-Maria-Elisabete-Ferreira.pdf;
- MARIA JOÃO ANTUNES, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 35 a 41 e 44;
- MARIA MANUELA VALADÃO E SILVEIRA, Sobre o crime de maus tratos conjugais, Revista de Direito Penal, Volume I, n.º 2, Ano 2002, ed. da UAL, p. 32, 33 e 42;
- MARIA TERESA FÉRIA DE ALMEIDA, O crime de Violência Doméstica: o antes e o depois da Convenção de Istambul, Combate à Violência de Género, Da Convenção de Istambul à nova legislação penal, Universidade Católica Editora, Porto, Fevereiro de 2016, p. 195 e 203;
- MOREIRA DAS NEVES, Violência doméstica, bem jurídico e boas práticas, Revista do CEJ, 1.° Semestre 2010, n.º 13, p. 53 e 54;
- NUNO BRANDÃO, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, n.º 12, Set.-Dez. 2010, p. 9 e ss., 14 e 19;
- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Universidade Católica Editora, p. 305, 356, 406 e 407;
- PEDRO MAIA GARCIA MARQUES, Ora, trabalha sofre e cala … ou não, Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Nuno José Espinosa Gomes da Silva, p. 332 a 334 e 337;
- PLÁCIDO CONDE FERNANDES, Violência doméstica, novo quadro penal e processual penal, Revista CEJ, 1.º Semestre 2008, número 8 (especial), p. 304 e 305;
- VICTOR SÁ PEREIRA e ALEXANDRE LAFAYETTE, Código Penal anotado e comentado, Quid Juris, Lisboa, 2008, p. 404;
http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/9686/1/Tese%20mestrado%20-%20A%20Viol%C3%AAncia%20dom%C3%A9stica%20e%20as%20penas%20acess%C3%B3rias.pdf.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALÍNEA E) E 410.º, N.º 2, ALÍNEAS A), B) E C).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 152.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO DO CONSELHO DA EUROPA PARA A PREVENÇÃO E O COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, ADOPTADA EM ISTAMBUL, A 11 DE MAIO DE 2011.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 18-02-2009, PROCESSO N.º 09P0102, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 25-06-2009, PROCESSO N.º 4262/06, IN SASTJ, SECÇÃO CRIMINAL, ANO DE 2009, WWW.STJ.PT;
- DE 06-10-2010, PROCESSO N.º 936/08.0JAPRT.P1.S1;
- DE 23-11-2011, PROCESSO N.º 56/06.2SRLSB.L1.S1;
- DE 06-02-2014, PROCESSO N.º 315/11.2JACBR.C1.S1;
- DE 14-05-2014, PROCESSO N.º 19/11.6IDSTB.L1.S1;
- DE 17-09-2014, PROCESSO N.º 1/11.3GHLSB.L1.S1;
- DE 01-10-2014, PROCESSO N.º 130/12.6PEALM.L1.S1;
- DE 12-11-2014, PROCESSO N.º 1287/08.6JDLSB.L1.S1;
- DE 03-12-2015, PROCESSO N.º 198/11.2GAPTB.G1.S1;
- DE 16-12-2015, PROCESSO N.º 59/14.3PQPRT.P1.S1;
- DE 14-01-2016, PROCESSO N.º 90/10.8PANZR.C1.S1;
- DE 17-03-2016, PROCESSO N.º 32/13.9JACBR.C1.51, IN SASTJ, SECÇÃO CRIMINAL, ANO DE 2015, WWW.STJ.PT;
- DE 09-02-2017, PROCESSO N.º 21/14.6GBVCT.G1.S1;
- DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 67/13.1GATVD.L1.S1;
- DE 09-11-2017, PROCESSO N.º 335/15.8PATVD.C1.S1, IN SASTJ, SECÇÃO CRIMINAL, ANO DE 2017, WWW.STJ.PT;
- DE 17-11-2017, PROCESSO N.º 187/12.0TRPRT.G1.S1;
- DE 07-02-2018, PROCESSO N.º 312/15.9POLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT;
– DE 28-02-2018, PROCESSO N.º 129/16.3GILRS.L1-B.S1;
- DE 05-12- 2012, PROCESSO N.º 11453/10.9TDLSB.LL.51.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 412/2015;
- ACÓRDÃO N.º 429/2016;
- ACÓRDÃO N.º 101/2018, DE 21-02-2018, IN WWW.TRIBUNAL CONSTITUCIONAL.PT.
Sumário :
I - O Tribunal da Relação é material e funcionalmente incompetente para aplicação oficiosa de medidas de coacção, sempre que esteja a funcionar enquanto Tribunal de recurso e sempre que o objecto de recurso não incida sobre medidas de coacção a aplicar ao arguido.
II - Na situação presente, a 1.ª instância absolveu o arguido da prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado e condenou-o em pena de 8 anos de prisão suspensa na sua execução pela prática de um crime de ameaça, ao passo que o Tribunal da Relação, por recurso interposto pelo Ministério Publico, alterou a matéria de facto, e nessa sequência, alterou a qualificação jurídica do crime, condenando o arguido pelo crime de violência doméstica e alterou a pena de prisão, para 2 anos e 6 meses de prisão efectiva.
III - Apesar do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, que determina a inadmissibilidade do recurso interposto de decisão do tribunal da relação que condene o arguido em pena de prisão não superior a 5 anos, ainda assim, seguindo a jurisprudência do TC nos acórdãos 412/2015 e 429/2016, considera-se admissível o recurso do arguido, por identidade de razões.
IV - O vício previsto pela al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.
V - Quanto ao vício previsto pela al. b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, verifica-se contradição insanável - a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum - da fundamentação - quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
VI - Quanto ao vício previsto pela al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.
VII - O crime de violência doméstica preenche-se mesmo que não haja reiteração quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos, ou seja, também se preenche pela prática de um acto isolado. Apenas nas circunstâncias do caso concreto podemos concluir pela violação do bem jurídico em causa. Assim, dependendo da imagem global do facto é que poderemos concluir se o desvalor da acção e do resultado são aptos para molestar o bem jurídico protegido, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
VIII - Integra a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), do CP, a reiteração dos comportamentos do arguido, que ameaçou a ofendida de “ficar sem pernas” enquanto ainda eram namorados, e que, quando já tinham terminado a relação de namoro, numa abordagem da ofendida (que estava grávida) junto ao local do trabalho da mesma, a humilhou ao dizer que “devias abortar, andas com vários homens, o filho não é meu, não estamos juntos, não o vou assumir nem sustentar”, perseguindo-a para dentro da estação de Metro, contra a vontade desta e que aí lhe apertou o pescoço por duas vezes, enviando posteriores mensagens durante vários meses a insistir que o filho não era do mesmo e que “a ofendida andava com outros”.
IX - Ponderando o grau de ilicitude dos factos na medida em que pese embora as agressões não tenha revestido grande intensidade, o arguido tinha plena consciência que a ofendida estava grávida e da inerente especial vulnerabilidade, assumindo a culpa do arguido a forma de dolo directo e ainda que o arguido já foi condenado duas vezes pela prática do mesmo crime, sendo a terceira condenação e praticou os factos em apreço, no decurso da suspensão da execução da pena de prisão de ambas as anteriores condenações (nas quais foi condenado em penas de 4 anos e 2 anos de prisão), bem como, as elevadas exigências de prevenção geral entende-se adequada a pena de 2 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido pelo Tribunal da Relação.
X - Desaconselha a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, a circunstância de que o arguido num espaço curto de tempo (entre 2012 a 2017) evidenciou um comportamento reiterado de desrespeito pela dignidade da pessoa humana - desrespeito pelas mulheres que com ele mantiveram uma relação amorosa - replicando o comportamento com três mulheres diferentes, fazendo tábua rasa das condenações em pena de prisão suspensa na sua execução a que foi sujeito.


Decisão Texto Integral:            

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I - RELATÓRIO

            1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, mediante sentença datada de 28-09-2017, proferida pelo Juízo Local de Criminal de Lisboa – Juiz 7, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi decidido:

           

       A) Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nº 1, do Código Penal, convolando tal crime na imputação ao arguido de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;

B) Condenar o arguido AA como autor material de um crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal na pena de 8 meses de prisão;

C) Suspender a execução da pena de oito meses de prisão aplicada ao arguido, pelo período de um ano, ficando tal suspensão sujeita à condição de o arguido prestar 240 horas de trabalho em favor da comunidade;

D) Julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Centro Hospitalar de ..., EPE, absolvendo o demandado do pedido.

2. Inconformado com a sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância, dela interpôs recurso o Ministério Público, vindo o Tribunal da Relação de Lisboa, mediante acórdão proferido a 8 de Fevereiro de 2018, a decidir:

1. - julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogar a decisão que absolveu o arguido BB da prática de um crime de violência doméstica p.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, proceder à alteração da matéria de facto dada como assente que passou a incluir os factos 2 a 6 dos factos não provados, julgar procedente por provada a acusação contra o arguido deduzida pela prática do referido crime de violência doméstica p.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e condenar o arguido na pena de 2 anos e 6 meses de prisão efectiva.

2. - mais julgar procedente, por provado, o pedido cível formulado pelo Centro Hospitalar ..., e se condena o arguido a pagar a quantia peticionada, acrescida de juros devidos desde o pedido até integral pagamento.

3. – Estatuto processual do arguido

Uma vez que o ilícito que deu causa aos presentes autos foi cometido durante o prazo de suspensão de pena anteriormente aplicada pelo mesmo tipo de ilícito, quando o arguido se encontrava em regime de prova, e que esta é a terceira condenação pela prática do mesmo tipo de ilícito num período que vem desde 2013, entendemos, para evitar qualquer reacção sobre a ofendida ou outra potencial vítima, que o arguido deve aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.

Passem-se de imediato mandados para que o arguido aguarde o trânsito deste acórdão em prisão preventiva.

3. Inconformado com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o condenou em prisão efectiva e em prisão preventiva, veio o arguido AA interpor dois recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões que integralmente se reproduzem:


1. Recurso da medida de coacção prisão preventiva

“III - CONCLUSÕES[1]
I- Da interpretação conjugada dos Artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal só serão recorríveis as decisões expressamente previstas como tal na Lei, concretamente no artigo 400.º e demais casos dispersos no Código de Processo Penal, doravante designado CPP.
II- O Supremo Tribunal de Justiça, justamente com base na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, tem vindo a não admitir a recorribilidade de “ de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.”, independentemente de haver ou não dupla conforme, por entender que é necessária uma leitura integrada do regime estabelecido na alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP.
III- Ora entende o Recorrente que tal interpretação normativa não encontra qualquer acolhimento no sentido possível das palavras da Lei, o que sempre se impunha atenta a vigência do princípio da legalidade em matéria criminal, previsto no artigo 29.º n.ºs 1 e 3 e artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP, no âmbito do Processo Penal.
IV- Esta interpretação normativa ao negar a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da Relação que apliquem pena de prisão efectiva não superior a cinco anos, quando o Tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa de liberdade, implica indubitavelmente, um enfraquecimento da posição processual do Recorrente e uma clara diminuição dos seus direitos processuais, nomeadamente o direito de defesa, na medida em que subtrai ao Recorrente um grau de recurso que por força do princípio geral da recorribilidade, previsto no artigo 339.º do CPP, lhe assiste.

V- Acompanhando Figueiredo Dias, é de concluir que, constituindo o princípio da legalidade a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado, não se vê porque não haja ele de estender-se, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, ao processo penal, cuja regulamentação pode a todo momento pôr em grave risco a liberdade das pessoas.”

VI- Vejam-se a este propósito os Acórdãos nº s 591/2012 e 324/2013 do Tribunal Constitucional que concluem que referida interpretação normativa “coloca o intérprete no âmbito da analogia constitucionalmente proibida, sendo indiferente que a norma encontrada fora da moldura semântica do texto seja constitucionalmente admissível e político-criminalmente defensável, uma vez que a liberdade dos cidadãos está acima das exigências do poder punitivo nas situações legalmente imprevistas”.
VII- Acórdãos esses que julgaram inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP segundo o qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa de liberdade não superior a 5 anos quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa de liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal nos termos dos artigos 293.º n.º 1 e 32.º n.º 1 da CRP.

VIII- Salvo melhor opinião, entende o Arguido ter fundamento para recorrer do douto acórdão condenatório e, ainda da medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada para aguardar ulteriores termos do processo.
IX- Proferido o Acórdão da Relação foi ordenada a substituição da medida de coacção a que o Arguido se encontrava sujeito – e que vinha cumprindo – pela medida de coacção de prisão preventiva.
X- Para o efeito, o Tribunal da Relação fundamentou a sua decisão no facto de a prisão preventiva ser a única forma de evitar qualquer reacção sobre a ofendida ou outra potencial vítima.
XI- Com o devido respeito, o Arguido não se conforma com essa decisão e daí o presente recurso.
XII- A questão que se coloca é a de saber se a medida de coacção a que o Arguido se encontrava sujeito pode ser agravada pelo facto de ter sido proferido Acórdão condenatório não transitado em julgado.
XIII- Salvo o devido respeito, entende o Arguido que a resposta deve ser negativa.

XIV- As medidas de coacção são escolhidas de acordo com o princípio de adequação e proporcionalidade e a necessidade de prevenir as cautelas do artigo 204.º do CPP.

XV- Dispõe o artigo 203.º do CPP que uma medida de coacção apenas pode ser substituída por outra mais grave em caso de violação das obrigações a que estava sujeito.

XVI- Nestes termos, atendendo ao princípio acima enunciado, ao plasmado nos art.os 27º e 28º da CRP e ainda ao disposto nos art.os 191.º a 193.º do CPP, o Arguido viu violado o seu direito fundamental à liberdade, por considerar que a prisão preventiva que lhe foi imposta é injusta, desadequada e desproporcional às circunstâncias do seu comportamento.

XVII- Ora, no caso concreto, o Arguido sempre cumpriu as obrigações a que estava sujeito ao abrigo do TIR que prestou, pelo que o seu estatuto processual não poderia ter sido alterado.

XVIII- O Arguido este sempre presente em todos os actos processuais para que foi convocado.

XIX- O Arguido não se eximiu à acção da Justiça bem como não ocorre perigo de continuidade da actividade criminosa.

XX- O Arguido não mais contactou a Ofendida pelo que inexistem os receios mencionado no douto Acórdão.

XXI- E ainda que se entendesse existir, efectivamente, perigo de continuidade da actividade criminosa, o que por mera hipótese académica se admite, a lei prevê outras medidas de coacção, mais favoráveis ao Arguido.

XXII- E acautelam, do mesmo modo a não produção do receio mencionado no douto Acórdão condenatório.

XXIII- Neste sentido, importa ressalvar que a prisão preventiva não visa uma punição antecipada uma vez que só excepcionalmente pode ser aplicada, desde que não possa ser substituída por outra medida de coacção mais favorável.

XXIV- Trata-se de uma medida cautelar e não repressiva!

XXV- Com efeito, tem sido jurisprudência assente que tal medida de coacção só deve ser aplicada em ultima ratio, precisamente em obediência ao vertido no n.º 2 do art.º 28.º da CRP.

XXVI- Com a privação da sua liberdade, ainda preventivamente, o Arguido sofrerá prejuízos irreparáveis.

XXVII- O Arguido tem um filho menor de doze anos de idade que todas as tardes fica a cargo deste e que tem exercido e encontra-se inserido social e profissionalmente.

XXVIII- Por tudo quanto antecede, e ainda perante o facto de o Arguido não mais ter contactado a Ofendida entende-se suficiente o TIR que já prestou.

XXIX- Importa, ademais, ter presente que a Constituição consagra nos primeiros artigos do catálogo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, o direito à liberdade e à segurança nos termos do artigo 27.º

XXX- Este reconhecimento constitucionalmente afirmado do caracter excepcional da prisão preventiva, nos termos do n.º 2 do artigo 28.º da CRP envolve a consideração, além do mais, de que todo o Arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença que o condene, de acordo com o artigo 32.º n.º 2 do mesmo diploma legal.

XXXI- Nestes termos, e porque a solenidade e a força dos preceitos da lei fundamental assim obrigam, a definição precisa e detalhada dos pressupostos da prisão preventiva impunha-se ao Código de Processo Penal, deve o Arguido aguardar ulteriores trâmites do processo em Liberdade.

Termina pedindo que o Recurso obtenha provimento: a) revogando-se a decisão de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao Arguido; b) Caso assim não se entenda, substituindo-se a medida de coacção de prisão preventiva pela medida de coacção de obrigação de permanência na habitação nos termos do artigo 201.º do CPP.”

2. Recurso sobre o acórdão condenatório

“III – CONCLUSÕES[2]

I. Da interpretação conjugada dos Artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal só serão recorríveis as decisões expressamente previstas como tal na Lei, concretamente no artigo 400.º e demais casos dispersos no Código de Processo Penal, doravante designado CPP.

II. O Supremo Tribunal de Justiça, justamente com base na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, tem vindo a não admitir a recorribilidade de “ de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.”, independentemente de haver ou não dupla conforme, por entender que é necessária uma leitura integrada do regime estabelecido na alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP.

III. Ora entende o Recorrente que tal interpretação normativa não encontra qualquer acolhimento no sentido possível das palavras da Lei, o que sempre se impunha atenta a vigência do princípio da legalidade em matéria criminal, previsto no artigo 29.º n.ºs 1 e 3 e artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP, no âmbito do Processo Penal.

IV. Esta interpretação normativa ao negar a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da Relação que apliquem pena de prisão efectiva não superior a cinco anos, quando o Tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa de liberdade, implica indubitavelmente, um enfraquecimento da posição processual do Recorrente e uma clara diminuição dos seus direitos processuais, nomeadamente o direito de defesa, na medida em que subtrai ao Recorrente um grau de recurso que por força do princípio geral da recorribilidade, previsto no artigo 339.º do CPP, lhe assiste.

V. Acompanhando Figueiredo Dias, é de concluir que, constituindo o princípio da legalidade a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado, não se vê porque não haja ele de estender-se, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, ao processo penal, cuja regulamentação pode a todo momento pôr em grave risco a liberdade das pessoas.”

VI. Vejam-se a este propósito os Acórdãos nºs 591/2012 e 324/2013 do Tribunal Constitucional que concluem que referida interpretação normativa “coloca o intérprete no âmbito da analogia constitucionalmente proibida, sendo indiferente que a norma encontrada fora da moldura semântica do texto seja constitucionalmente admissível e político-criminalmente defensável, uma vez que a liberdade dos cidadãos está acima das exigências do poder punitivo nas situações legalmente imprevistas”.

VII. Acórdãos esses que julgaram inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP segundo o qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa de liberdade não superior a 5 anos quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa de liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal nos termos dos artigos 293.º n.º 1 e 32.º n.º 1 da CRP.

VIII. Salvo melhor opinião, entende o Arguido ter fundamento para recorrer do douto acórdão condenatório.

IX. É manifestamente evidente que in casu não se encontram preenchidos os elementos que tipificam o crime de violência doméstica.

X. Os factos que resultaram provados em sede e audiência e julgamento não são suficientes para se qualificar o comportamento do Arguido como ofensivo da dignidade humana ou que o mesmo tenha colocado em risco, de modo relevante a saúde física e psíquica da vítima.

XI. A douta Sentença de 1.ª instância, reproduz vasta jurisprudência que fundamenta claramente a decisão que proferiu.

XII. Permitimo-nos salientar o acórdão de extrema relevância para esta temática e que cujo entendimento foi consagrado nas alterações introduzidas no artigo 152.º pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.

XIII. A 14 de Novembro de 1997, o Supremo Tribunal de Justiça afirmava que “ só as ofensas Corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade ou seja, traduzem crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente cabem na previsão do artigo 152.º do Código Penal (Colectânea de Jurisprudência - STJ, Tomo 3/1997, página 235).

XIV. Este acórdão proferido antes da actual redacção da norma introduzida pela lei n.º 59/200, de 4 de Setembro é duplamente relevante: (…) Por um lado quando salienta que não são assim todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aqueles que revistam de uma certa gravidade ou dito de outra maneia que fundamentem, traduzam crueldade, ou insensibilidade ou até vingança desnecessária., da parte do agente.” (negrito nosso).

XV. Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Abril de 2010 :

“ (…) não é suficiente  qualquer ofensa à saúde física psíquica, emocional ou moral da vítima para o preenchimento do tipo legal.  Bem jurídico enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes ou seja que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos (negrito nosso).

XVI. Ainda assim, o digníssimo Tribunal de 1.ª instância entendeu que a conduta do Arguido, “embora não integre o tipo objectivo do crime de violência doméstica, é susceptível de consubstanciar o crime de ameaça agravada previsto e punido no artigo 153.º,n,º 1, 155.º n.º1 a) e 144.º a) todos do Código Penal.

XVII. Reforçando a já aludida douta Sentença de 1.ª Instância, da matéria de facto provada, dúvidas não restam de que a conduta do Arguido preenche o tipo subjectivo de ilícito, porquanto o Arguido sabia que a sua actuação era adequada a causar receio na Ofendida, agindo assim com dolo directo.

XVIII. Ora é manifestamente evidente que não podia ser diverso o entendimento e convicção do Tribunal de 1.ª instância.

XIX. É o princípio da descoberta da verdade material que deve pautar a investigação, o que manifestamente aconteceu em primeira instância.

XX. Como devido respeito, vem o digníssimo Tribunal da Relação de Lisboa fazer tábua rasa de toda a prova testemunhal produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.

XXI. E face a tudo o exposto, com o devido respeito e salvo melhor opinião entende o Arguido estarmos na presença de contradição insanável entre factos provados / fundamentação de facto e de direito e no que concerne ao enquadramento jurídico dos mesmos.

XXII. Razão pela qual entende o Arguido, ora Recorrente, não haver qualquer indício para que se proceda à alteração da matéria de facto, condenação do Arguido pela prática de um crime de violência doméstica e de determinação da medida da pena, conforme entendeu o Tribunal da relação de Lisboa.

XXIII. A convicção do tribunal de 1.ª Instância fundou-se na valoração crítica e conjugada da totalidade dos elementos de prova produzidos, designadamente “no conjunto de formado pelas declarações do Arguido – que admitiu parcialmente os factos – e dos depoimentos das Testemunhas CC (Ofendida), DD e EE (ambos funcionários do ...), avaliados à luz das regras da experiência comum e valorados de acordo com o Principio da livre apreciação da prova.”

XXIV. O Arguido referiu que o encontro do dia 11 de Março de 2017 foi previamente combinado e que nunca se tratou de uma espera que o mesmo fez à Arguida com intuito de a ameaçar, contrariamente ao que vem descrito na douta Acusação.

XXV. Encontro esse que aconteceu que o Arguido promoveu com o intuito de perguntar a CC o motivo pelo qual, embora esta afirmasse que o filho que esperava era do Arguido, não respondia a nenhuma questão que o mesmo levantava sobre a referida gravidez.

XXVI. O Arguido confirmou, no que toca aos factos ocorridos dentro da estação de Metro, ter voltado a Ofendida para si, no momento em que esta lhe voltou as costas para entrar na plataforma do Metropolitano, justificando esse seu comportamento com o facto de pretender continuar a conversa que estavam a ter.

XXVII. Tendo negado sempre ter apertado o pescoço ou pretender agredir a Ofendida!

XXVIII. É aliás a própria CC quem esclarece que o Arguido não lhe apertou o pescoço! Conforme resulta do seu depoimento em sede de audiência de julgamento, na qualidade de Testemunha.

XXIX. E pese embora os inúmeros pedidos de esclarecimento acerca desta matéria, CC descreveu sempre os factos como, e nos termos da douta sentença “se de coisa ligeira se tivesse tratado”.

XXX. Por conseguinte, como bem concluí o Tribunal de 1.ª Instância; “ a descrição de CC é compatível com a intenção de segurar o pescoço e não de lhe apertar ou pressionar o pescoço”.

XXXI. Neste sentido, do conjunto formado pelas declarações de CC de onde resulta claramente que esta nunca menciona ter sido molestada no seu corpo ou saúde ou sequer que o Arguido a tenha tentado molestar - e do Arguido – julgou o tribunal como não provada a factualidade constante no ponto 3 dos factos não provados.

XXXII. Reitere-se que CC e o Arguido confessaram que, à data dos factos, se exaltaram quando o Arguido mencionou, uma vez mais, ter dúvidas quanto à paternidade!

XXXIII. DD e EE (ambos funcionários do Metropolitano de Lisboa), nos seus depoimentos (que se iniciaram às 10:54h e às 11:01h do dia 22 de Setembro, respectivamente.) que a douta sentença ora recorrida considerou “ isentos e desinteressados” referiram que “CC e o Arguido estavam ambos muito nervosos.”

XXXIV. Com o devido respeito e salvo melhor entendimento, pasme-se que o Tribunal da Relação de Lisboa venha invocar erro quanto à matéria de facto quando é evidente que de toda a cabal prova testemunhal produzida em Audiência de Julgamento, não há qualquer depoimento, nem mesmo o da Ofendida CC que possa fazer recair sobre o Arguido a prática dos factos considerados não provados.

XXXV. Pelo que, e com o devido respeito, entende o Recorrente que a sentença ora em crise proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa enferma de vício de erro notório na apreciação da prova nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

XXXVI. Nestes termos e porque o recurso relativo à matéria de facto constitui um remédio jurídico que se destina a despistar e a corrigir, cirurgicamente, eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova,

XXXVII. Entende o Recorrente que a apreciação da prova feita pelo Tribunal ora Recorrido é contrariada pelas regras da experiência comum e pela lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

XXXVIII. Devendo dar-se como não provados os factos de 1 a 5, que o douto acórdão condenatório considerou matéria de facto assente.»

Termina pedindo que o Recurso obtenha provimento: «a) Dando-se como não provados os factos de 1 a 6; b) Revogando-se, consequentemente, a decisão de condenar o Arguido pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 do CP na pena de dois anos e 6 meses de prisão efectiva; c) confirmando-se na íntegra a douta decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância».

4. O Tribunal da Relação de Lisboa, mediante despacho de fls. 418, por legal e tempestivo, admitiu os recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça, com efeito suspensivo das decisões recorridas.

5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Lisboa não respondeu ao recurso.

6. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, usando a faculdade prevista no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, emitiu parecer, em que concluiu:

“II – Questão prévia. Pena aplicada

2.1 – Tendo o arguido sido condenado em pena de prisão inferior a cinco anos de prisão, a decisão condenatória impugnada não é susceptível de recurso para o STJ. Trata-se, com efeito, de uma daquelas decisões que se enquadra no regime da irrecorribilidade consagrado no n.º 1, alínea e), do art. 400.º do C. P. Penal: aplicação, pelas relações, em recurso, de pena de prisão não superior a 5 anos.

3.2 – O despacho que admitiu o recurso, exarado a fls. 350, como é sabido e resulta do disposto o art. 414.º, n.º 3 do CPP, não vincula o tribunal superior.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional invocada pelo recorrente funda-se na violação do princípio da legalidade, face à anterior redacção da norma do art.º 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, prévia à alteração introduzida pela Lei n.º 20/13, de 21 de Fevereiro.

Não ignoramos que o Tribunal Constitucional se tem pronunciado sobre esta questão e que já declarou a inconstitucionalidade do disposto no art.º 400.º, n.º 1 al. e) do CPP, mas tal posição não tem força obrigatória geral e tem como pano de fundo situações em que o arguido é absolvido em primeira instância e condenado em pena de prisão em segunda instância (V. ac. 412/2015 e 429/2016). Tal entendimento sustenta-se na alteração radical da situação do arguido e, essencialmente, no facto de o Tribunal da Relação colocar uma questão nova, a da medida da pena, relativamente à qual deve haver um segundo grau de jurisdição.

Não é o caso dos autos. O recorrente foi condenado em primeira instância e, não obstante ter sido alterada a qualificação dos factos de que vinha acusado, o que levou à aplicação de uma pena de prisão efectiva, não se verificou uma alteração radical da sua situação, já que também a decisão recorrida era condenatória, e teve a oportunidade de se pronunciar sobre a matéria do recurso, quer quanto à alteração da matéria de facto, quer quanto à pena a aplicar. Foi por isso satisfeita a exigência constitucional de segundo grau de jurisdição.

Entendemos pelo exposto que quanto à pena aplicada ao arguido o recurso deve ser rejeitado.

III- Medida de coacção

Nova é a questão da alteração da medida de coacção, oficiosamente decidida, que nunca foi colocada no recurso interposto para o Tribunal da Relação, sendo por isso alheia ao respectivo objecto.

A decisão é recorrível nos termos do disposto no art.º 219.º do CPP e do recurso deve conhecer o STJ visto o preceituado no art.º 432.º, n.º 1 alíneas a) e b) do mesmo diploma.

E aqui julgamos que assiste razão ao recorrente porquanto:

Por um lado não foi ouvido, em violação do disposto no art.º 212.º, n.º 4 do C. P. Penal, o que constitui nulidade do art.º 120, n.º 2, alínea d) do mesmo diploma.

Por outro lado porque, entendendo-se embora que o juiz pode substituir a medida aplicada por outra mais grave quando se verificar um agravamento das exigências cautelares, se essas exigências se reforçarem[3].

A decisão, porém, não revela qualquer facto novo, posterior à imposição de TIR, que consubstancie tal agravamento, dado que as anteriores condenações do arguido estavam já documentadas nos autos quando o M.mo juiz do processo lhe fixou a medida de TIR, por proposta do Ministério Público – v. fls 218 e 219.

Também se não indica qualquer violação, por parte do recorrente, da medida anteriormente imposta.

Consideramos por isso que a decisão de alteração da medida de coacção deve ser revogada.

IV – Conclusão

4.1 – O Acórdão ora recorrido cabe no âmbito do disposto no art. 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP vigente, não sendo por isso passível de recurso para o STJ;

4.2 – Pelo que, por inadmissibilidade legal, nos termos dos arts. 400.º, n.º 1, al. e) e 420.º, n.º 1, alínea b), com referência ao art. 414.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP – [e tendo ainda em conta que, como decorre do n.º 3 deste último preceito (art. 414.º do CPP), a decisão que o admitiu não vincula o tribunal superior] –, deve o recurso interposto ser rejeitado.

4.3 - A decisão de alteração da medida de coacção imposta ao arguido deve ser revogada.»

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foram apresentadas respostas.

8. Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prosseguiu com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal, doravante CPP.

    9. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto:

1. Foi a seguinte a matéria de facto considerada provada e não provada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que modificou alguma da matéria de facto fixada pela 1.ª instância:
Factos provados
1. CC e o arguido mantiveram entre si uma relação de namoro entre o mês de Agosto de 2016 e o mês de Dezembro de 2016, mantendo alguns encontros de natureza sexual em Janeiro de 2017;
2. Em data não concretamente apurada, mas situada no hiato temporal acima referido, CC engravidou;
3. Em data não concretamente apurada, mas situada no hiato temporal acima referido, após uma troca de palavras entre ambos, o arguido afirmou que aquela ficaria sem pernas.
4. Em data não concretamente apurada, mas situada entre os meses de Janeiro a Março de 2017, quando CC referiu ao arguido que estava grávida daquele, o arguido disse-lhe para abortar;
5. No dia 11 de Março de 2017, pelas 16 horas e 50 minutos, o arguido deslocou-se para junto do local de trabalho de CC, junto da ..., em Lisboa;
6. De seguida abordou CC dizendo-lhe que a acompanhava até ..., ao que esta acedeu;
7. Durante o percurso o arguido afirmou a CC “devias abortar, andas com vários homens, o filho não é meu, não estamos juntos, não temos condições para ter uma criança, não o vou assumir nem sustentar”;
8. CC pediu ao arguido para a deixar seguir o seu caminho;
9. Quando chegaram junto de ..., CC desceu para a estação de metro, pois pensou que assim o arguido não iria atrás de si;
10. Todavia, o arguido seguiu atrás daquela afirmando, em tom de voz alto “onde vais?”.
11. CC disse “deixa-me em paz, vai-te embora.”;
12. Ao ver que CC se aproximava da cancela de validação de bilhetes, o arguido agarrou a alça da mochila daquela e virou-a para si;
13. Acto contínuo, colocou uma mão no pescoço de CC;
14. De seguida, agarrou o pulso esquerdo daquela;
15. Assustada CC parou de andar;
16. Nesse momento, DD abeirou-se do local e o arguido largou CC;
17. Alguns instantes depois, CC dirigiu-se novamente para as cancelas a fim de validar o bilhete, tendo o arguido agarrado aquela pelo braço e pelo pescoço;
18. O arguido exerceu pressão sobre o pescoço de CC;
19. O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar CC no seu corpo e na sua saúde, causando-lhe dores;
20. Como DD se dirigiu novamente ao arguido, CC conseguiu validar o bilhete e passar a cancela;
21. Assustada, CC sentou-se na escadaria de acesso à plataforma;
22. O arguido gritou o nome daquela várias vezes e, alguns momentos depois, saltou a cancela e sentou-se junto daquela pedindo desculpa;
23. Após, compareceram no local os Bombeiros e a PSP;
24. Alguns dias depois, o arguido contactou CC junto do local de trabalho daquela, informando-a de que queria acompanhar a gravidez;
25. Em datas não apuradas, mas situadas entre o dia 11 de Março de 2017 e 8 de Maio de 2017, o arguido afirmou a CC, pelo menos por três vezes, “o filho não é meu, andas com outros”;
26. Apesar de CC ter afirmado ao arguido que não mais a contactasse, entre Março de 2017 e Maio de 2017 o arguido enviou-lhe diversas mensagens através do “facebook”, insistindo que aquela teria um novo namorado;
27. Na referida rede social, entre os dias 11 e 14 de Março de 2017, o arguido escreveu que “quero dizer que tomei uma decisão eu sei que vou desiludir muita gente e que há gente que vai ficar feliz…eu não quero ficar mais neste mundo e vou desaparecer (…) não quero ser o peso morto na vida de ninguém (…)”;
28. Sabia que ao dirigir as expressões acima descritas a CC a ofendia na sua honra e consideração e actuou com esse propósito;
29. Visava o arguido criar permanente medo, perturbação e um clima de terror nocivo à estabilidade emocional de CC;
30. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente;
31. Ao dirigir a CC a expressão descrita no ponto 3, sabia que tal expressão lhe provocava medo e inquietação, actuando querendo isso mesmo;
32. Bem sabia que a sua conduta era punida por lei penal;
Do Pedido de indemnização civil formulado pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE
33. O demandante prestou a CC assistência médica com o custo de €112,07;
34. Os serviços médicos prestados pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, a CC foram prestados na sequência de lesões provocadas pelo demandado.

Mais se provou:

35. O arguido trabalha como servente de pedreiro, auferindo valor variável de cerca de €30 por dia de trabalho;
36. Vive com uma namorada, que trabalha no supermercado Lidl, em casa própria desta;
37. O arguido tem um filho com 12 anos de idade que vive com a respectiva mãe;
38. Estudou até ao 7.º ano;
39. Tem os seguintes antecedentes criminais registados:

- Condenação pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 4, do Código Penal, referente a factos praticados no dia 31.08.2012, por sentença proferida em 09.07.2013, transitada em julgado em 08.08.2013, no âmbito do processo n.º 788/12.6PMLSB, na pena de 4 anos de prisão suspensa por 4 anos e na pena acessória de proibição de contactos pelo período de 2 anos;

- Condenação pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, referente a factos praticados no dia 23.08.2013, por sentença proferida em 27.09.2016, transitada em julgado em 27.10.2016, no âmbito do processo n.º 701/13.3PMLSB, na pena de 2 anos de prisão suspensa por 2 anos e na pena acessória de proibição de contactos pelo período de 2 anos.

2. Factos não provados: nenhuns.»


2. Delimitação do objecto dos recursos

           Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, ou dito de outro modo, as razões de discordância com o decidido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os horizontes cognitivos do Tribunal Superior.

            Assim são as seguintes as questões a apreciar:

      A - Recurso da medida de coacção de prisão preventiva:

      - inexistência dos perigos a que alude o art. 204.º do CPP;

     - inadequação e desproporcionalidade da medida de prisão preventiva.

            B - Recurso do acórdão condenatório:

           - inexistência dos elementos típicos do crime de violência doméstica;

            - erro notório na apreciação da prova;

            - medida concreta da pena – suspensão da execução da pena

2.1. Do recurso da medida de coacção de prisão preventiva

Invoca o recorrente:

A inexistência dos perigos a que alude o art. 204.º do CPP, e

A inadequação e desproporcionalidade da medida de prisão preventiva.

  O Ministério Público junto deste STJ, por um lado, defendeu a existência de nulidade prevista pelo art. 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP pela não audição do arguido, em violação do disposto no art. 212.º, n.º 4 do CPP. E por outro lado, defendeu a revogação da decisão que procedeu à alteração da medida de coacção para prisão preventiva por não se ter verificado um agravamento das exigências cautelares e não houve qualquer violação da medida anteriormente imposta.

Cumpre decidir.

A questão axial que se coloca é a que respeita à competência do Tribunal da Relação de Lisboa para aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

Resulta dos autos que o Tribunal da Relação (oficiosamente) decretou a medida de coacção prisão preventiva, em sede de recurso, após a prolação de acórdão que condenou o arguido na pena de 2 anos e 6 meses de prisão efectiva (ainda não transitado em julgado), pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do CPP, tendo revogado a decisão da 1.ª instância que havia aplicado ao arguido a pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, sujeita a suspensão à condição do arguido prestar 240 horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 e artigo 155.º, n.º 1, alínea a), do CP.

Nem o Ministério Público nem o arguido foram ouvidos previamente a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e não foi suscitada qualquer questão, relativa a medidas de coacção/reexame do estatuto processual do arguido, no objecto de recurso para o Tribunal da Relação.

Constatamos assim que o arguido encontrava-se sujeito a termo de identidade e residência, e o Tribunal da Relação, em sede de recurso da sentença da 1.ª instância interposto pelo Ministério Público, decidiu oficiosamente, após prolação de acórdão condenatório (com prisão efectiva), aplicar ex novo a medida de coacção de prisão preventiva.

Em data relativamente recente – 28-02-2018 - este Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se em sede de Habeas Corpus, no processo n.º 129/16.3GILRS.L1-B.S1 – 5.ª Secção (Relator: Cons. Nuno Gomes da Silva) para uma situação idêntica à dos presentes autos. Isto é, aplicação oficiosa pelo Tribunal da Relação, em sede de recurso, da medida de coacção de prisão preventiva, após prolação de acórdão de condenação do arguido em prisão efectiva.

Pronunciou-se então o Supremo tribunal de Justiça no sentido de considerar material e funcionalmente incompetente o Tribunal da Relação para aplicação oficiosa de medidas de coacção, sempre que esteja a funcionar enquanto Tribunal de recurso e sempre que o objecto de recurso não incida sobre medidas de coacção a aplicar ao arguido. Nessa sequência, deferiu a providência de habeas corpus e determinou a libertação imediata do arguido que se encontrava em prisão preventiva.

Considerou-se naquele aresto que:

«5. Está claro na sistemática do Código de Processo Penal que o recurso é um «Dos modos de impugnação» da medida de coacção, a par do habeas corpus tal como está definido no Capítulo IV, do Título II (Medidas de coacção) do seu Livro IV (Das medidas de coacção e garantia patrimonial).

E, em abstracto, não seria a circunstância de a medida ter sido fixada no Tribunal da Relação que coarctaria essa possibilidade sabido corno é que o art. 32°, n" 1 CRP consagra corno garantia primeira de defesa o direito ao recurso.

Estando em causa a defesa do direito à liberdade e a interferência do princípio in dubio pro libertate de acordo com o qual na dúvida há-de reconhecer-se maior preponderância aos direitos fundamentais em confronto com as restrições só poderia ser adequada uma actividade interpretativa sistémica que possibilitasse o recurso para o tribunal superior da decisão que determinou a prisão preventiva.

Num tal quadro, o regime do art. 219° apresentar-se-ia como um regime específico ou especial relativamente ao regime geral dos recursos e designadamente no que toca ao determinado no art. 400°, n.º 1, al. c), segundo o qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso pelas relações que não conheçam a final do objecto do processo.

Seria isto assim não fosse a circunstância de o paradigma legislativo ter sido alterado a partir da reforma operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.

É sabido que o carácter algo transitório das leis processuais e a sua natureza instrumental fazem delas sujeito de constantes mudanças visando, espera-se, outros tantos aperfeiçoamentos.

Ora, ao art. 414° cuja epígrafe é «Admissão do recurso» foi, então, aditada uma disposição que passou a ser o seu n" 7 que reza assim: «Se o recurso subir nos próprios autos e houver arguidos privados da liberdade, o tribunal antes da remessa do processo para o tribunal superior, ordena a extracção de certidão das peças necessárias ao seu reexame».

Parece, pois, inquestionável que, com esta norma, certamente o acompanhamento mas também controle da privação da liberdade ao nível do estatuto coactivo cabe agora somente ao tribunal da 1.ª instância e não ao tribunal ad quem.

O que introduziu, crê-se, uma nota de coerência no sistema pois de outro modo a intromissão do tribunal de recurso nessa matéria acabaria por ser tomada para lá do thema que fora sujeito à sua apreciação 8salvo, é claro, se o recurso visasse, ele próprio, a alteração da medida coactiva) e transformaria o tribunal da relação, nesse estrito domínio, num tribunal a funcionar em 1.ª instância. Ora, a competência das relações como tribunal de 1.ª instância tem um âmbito muito preciso e delimitado como resulta das disposições conjugadas dos arts. 73° da Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto e 12°, n° 3.

Além disso, a ser possível o tribunal de recurso, por sua iniciativa, alterar as medidas de coacção isso implicaria a intervenção de uma instância superior para apreciar o recurso de tal decisão, intervenção essa que inevitavelmente teria de considerar-se cabida pelas razões já supra expostas.

Porém, sendo essa alteração levada a cabo num tribunal da relação seria obrigatória a intervenção do Supremo Tribunal desvirtuando aquele outro paradigma que vem desde a alteração legislativa da Lei n° 59/98, de 25 de Agosto: o de reservar a competência do STJ para o julgamento dos recursos dos casos mais graves e de maior relevância determinados pela gravidade dos crimes aferida esta pelo critério da pena primeiro aplicável e depois, mais restritivamente ainda, pela pena aplicada.

E se esse caminho de operar a alteração da medida de coacção viesse a ser trilhado pelo STJ sobraria a questão de saber qual seria a entidade ad quem pois a pertinência de um grau de recurso manter-se-ia face à imposição constitucional.

Esta orientação processual é, pois, a que melhor se coaduna com as atribuições dos tribunais superiores que têm como limite de intervenção o objecto dos recursos sujeitos à sua apreciação para além, naturalmente, das que visam a estrita regulação do processo.

Ver-se-á, em seguida, qual a consequência deste entendimento. (…)

7. - Mas há um aspecto de que importa tirar consequências, a partir do que se expôs, sobre a (in)competência para modificar as medidas de coacção.

(…) como já se referiu se considere que não é ao tribunal da relação que competente a modificação da medida de coacção também é certo que será de menos classificar esta situação "somente" como incompetência. Ela apresenta-se mais como uma "usurpação" da titularidade do processe" na parte em que este tem, para o tribunal da relação, uma reserva própria de intervenção delimitada pelo objecto do recurso.

Mas se a intervenção do tribunal da relação neste domínio pode considerar-se para além de uma incompetência funcional não pode também deixar de ser tida como contrária à lei, logo ilegal e a redundar, em concreto, porque se trata de uma intervenção que acaba por afectar o direito à liberdade, num abuso de poder porque exteriorizado «na existência de medidas restritivas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrárias ou gravosas".

O que, crê-se, tem como consequência o afastamento do n.º 3 do art. 33°, numa primeira análise aplicável, quando este determina: «As medidas de coacção ou de garantia patrimonial ordenadas pelo tribunal declarado incompetente conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência, mas devem no mais breve prazo, ser convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente».

Em primeiro lugar, porque quando esta norma alude ao «tribunal declarado incompetente» refere-se ao tribunal declarado incompetente para decidir o processo não ao que haja sido decidido sobre as medidas de coacção.

Mas em segundo lugar e decisivamente a conservação da eficácia da medida e a sua convalidação ou infirmação, mesmo que dependentes estas de reanálise no «mais breve prazo» - compreensível exigência porque uma medida de coacção é sempre uma constrição de direitos - não podem contender com uma situação limite que combina essa incompetência funcional e também material porque o tribunal decidiu para além do âmbito de cognição delimitado pelo objecto de recurso, e uma postergação de direitos com influência directa e manifesta na liberdade do requerente.

Aceitar, neste caso concreto, que a mera interposição do recurso da parte da decisão que determinou a prisão preventiva seria bastante era admitir que uma patente ilegalidade da decisão somente em sede de recurso poderia ser escrutinada o que equivaleria a esvaziar de conteúdo a providência, constitucionalmente imposta de habeas corpus.

Por isso se afigura que seria materialmente inconstitucional uma solução que privilegiasse a manutenção da prisão do requerente ainda que por «breve prazo» para convalidação ou informação da prisão preventiva pelo tribunal competente, o de l:ª instância, por violação do art. 27°, n.º 1, CRP.»

Perfilhamos o entendimento adoptado na citada decisão, sendo também nosso entendimento que o Tribunal da Relação apenas tem poderes de cognição, enquanto Tribunal de recurso, para (re)apreciar o decidido no Tribunal de 1.ª instância, tendo em atenção a natureza das questões que constituem o objecto do processo.

O Tribunal da Relação só intervém enquanto Tribunal de 1.ª instância nos casos expressamente previstos no artigo 73.º da LOSJ e artigo 12.º do CPP e aí, funcionando como tribunal de 1.ª instância, tem as competências e poderes de cognição deste tribunal, podendo apreciar/reexaminar o estatuto processual do arguido, após prolação da sentença/acórdão condenatório, nos termos do artigo 375.º, n.º 4, do CPP.

O artigo 375.º, n.º 4 do CPP, está inserido no título “Da sentença”. Neste título define-se essencialmente a forma de deliberação e votação da sentença, os requisitos da sentença, a leitura de sentença, e as situações de nulidade e correcção da sentença. Os artigos 365.º a 378.º do CPP, inseridos no título “Da sentença”, são normas aplicáveis ao processo que corre os seus termos no Tribunal de 1.ª instância, ou melhor dito, enquanto funcionamento de Tribunal de 1.ª instância.

Aos tribunais de recurso, quando funcionam enquanto tal, aplicam-se as normas constantes no Livro IX - Dos recursos –  artigos 399.º e segs..

De acordo com o artigo 424.º, do CPP no âmbito da deliberação em sede de tribunal de recurso, são correspondentemente aplicáveis as disposições sobre deliberação e votação em julgamento, tendo em atenção a natureza das questões que constituem o objecto do recurso.

E o artigo 425.º do CPP trata dos «requisitos» do acórdão a elaborar pelo relator e refere no seu n.º 4 que é correspondentemente aplicável aos acórdãos preferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º, sendo o acórdão nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento.

Desta feita, ao acórdão, proferido pelo tribunal de recurso, tem aplicação o artigo 379.º do CPP (causas de nulidade) que, por sua vez, remete para o artigo 374.º do CPP (requisitos da sentença). Todavia, o artigo 375.º (nomeadamente o seu n.º 4) do CPP já não tem aplicação remissiva para os acórdãos, proferidos pelo Tribunal de recurso.

O âmbito dos poderes de cognição do Tribunal de recurso, quando funciona como tal, e sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, está limitado à natureza das questões que constituem o objecto do recurso.

A decisão da 1.ª instância não se pronunciou sobre qualquer medida de coacção aplicável ao arguido, nem foi objecto de recurso para o Tribunal da Relação o estatuto coactivo do arguido.

O Tribunal da Relação aplicou oficiosamente e ex novo a medida de coacção de prisão preventiva. Ao fazê-lo, extravasou por completo o objecto do recurso, isto é, a matéria para a qual foi convocada conhecer e para a qual era competente. A aplicação oficiosa e ex novo da medida de coacção de prisão preventiva pelo Tribunal da Relação, nos moldes e na sede em que a fez, é ferida de invalidade por falta de competência material e funcional do Tribunal da Relação.

Pelo exposto, o Tribunal da Relação, em sede de recurso, não possuía competência material e funcional para aplicar ex novo medida de coacção de prisão preventiva.

De acordo com o artigo 32.º, n.º 1, do CPP, «A incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente (…) até ao trânsito em julgado da decisão final».

Sendo que, nos termos do artigo 119.º, alínea e), do CPP, constitui nulidade insanável a violação das regras da competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no artigo 32.º, n.º 2, do CPP.

Dispõe o artigo 33.º, n.º 3, do CPP:

«As medidas de coacção ou de garantia patrimonial ordenadas pelo Tribunal declarado incompetente conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência, mas devem, no mais breve prazo, ser convalidades ou infirmadas pelo tribunal competente».

Cumpre referir que a ratio desta norma de competência residual do tribunal declarado incompetente é a salvaguarda da eficácia de medidas de coacção que estão a ser executadas, na medida em que as mesmas visam acautelar/prevenir a existência de perigos concretos (previstos no artigo 204.º do CPP). O objectivo da manutenção de eficácia das medidas de coacção já ordenadas é permitir que a medida de coacção em curso mantenha a sua execução. Ou seja, é evitar que a medida de coacção cesse a sua execução e os perigos pretendidos acautelar voltem a surgir.

No caso, o arguido apesar da aplicação da medida de coacção prisão preventiva, foi atribuído efeito suspensivo ao recurso, pelo que o mesmo mantém-se em liberdade, não tendo sido executada a prisão preventiva.

Desta feita, entendemos que no caso concreto, não se impõe a manutenção de eficácia da medida de coacção ordenada pelo Tribunal da Relação, conforme permitido pelo n.º 3 do artigo 33.º do CPP, dado que a prisão preventiva não está a ser executada.

Se o Tribunal da Relação entender que se verifica em concreto algumas das situações previstas no artigo 204.º do CPP que apenas a detenção permita cautelar, poderá emitir mandados de detenção fora de flagrante delito nos termos dos artigos. 257.º, n.º. 1, alínea b) e artigo 254.º, n.º1, alínea a), ambos do CPP, para apresentação do arguido no prazo de 48 horas, ao tribunal competente para aplicação de medida de coacção.

Pelo exposto, declara-se o Tribunal da Relação incompetente em razão da matéria para decretar a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido AA, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 119.º, al. e) e art. 32.º, n.º 1, do CPP, e consequentemente, revoga-se o acórdão proferido na parte em que decretou a prisão preventiva.


2.2. Do recurso do acórdão condenatório

Tendo em conta a forma como se encontra configurado o presente recurso e face à ordem enunciada neste, são essencialmente as seguintes as questões controvertidas submetidas a apreciação do Supremo Tribunal de Justiça:

a) inexistência dos elementos típicos do crime de violência doméstica;

b) erro notório na apreciação da prova;

c) Medida concreta da pena – suspensão da execução da pena

Cumpre referir que não seguiremos a ordem enunciada pelo recorrente, por uma questão de precedência lógica das questões suscitadas, pois a eventual procedência de vício(s) da decisão recorrida, prejudica a apreciação da inexistência dos elementos objectivos do crime de violência doméstica.

Assim, iremos analisar primeiramente a questão dos vícios da decisão e, seguidamente, a subsunção jurídica ao crime de violência doméstica.

Antes de avançarmos para a apreciação destas questões controvertidas, há que conhecer da questão prévia de admissibilidade do recurso, suscitada pelo Senhor Procurador Geral-Adjunto, junto deste Supremo Tribunal..

2.2.1. - Questão prévia. Admissibilidade do recurso

           

Defende o Senhor Procurador Geral- Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça que o presente recurso penal é inadmissível nos termos conjugados dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e), 420.º, n.º 1, alínea b), com referência aos artigos 414.º, n.os. 2 e 3, todos do CPP.

A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP.

De uma forma directa, nas alíneas a), c) e d) do n.º 1; e de um modo indirecto na alínea b), decorrente da não irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelas relações, nos termos do artigo 400.º, nº 1 e respectivas alíneas, do mesmo Código.

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 432.º do CPP:

«1. Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1ª instância;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas elações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito;

e) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.»

E, nos termos do n.º 1 do artigo 400.º do CPP:

«1. Não é admissível recurso:

a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo;

d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, excepto no caso de decisão condenatória em 1ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

g) Nos demais casos previstos na lei.»

A referência essencial para a leitura integrada deste regime de recorribilidade acolhido nas disposições transcritas, «porque constitui a norma que define directamente as condições de admissibilidade do recurso para o STJ não pode deixar de ser, como é dito no acórdão deste Supremo Tribunal, de 18-02-2009, proferido no processo n.º 09P0102 - 3.ª Secção[4], a alínea c) do n.º 1 do artigo 432º do CPP, que fixa, em termos materiais, uma condição e um limiar material mínimo de recorribilidade - acórdãos finais, proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo, que apliquem pena de prisão superior a cinco anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito».

No caso vertente estamos perante acórdão do Tribunal da Relação proferido em recurso que revogou a decisão do tribunal singular da 1ª instância que absolvera o arguido da prática do crime de violência doméstica que vinha acusado e o condenara em pena de prisão suspensa na sua execução pela prática de um crime de ameaça agravada.

Ora, tendo sido aplicada ao arguido-recorrente pena de prisão não superior a cinco anos, numa primeira leitura seriamos tentados a afirmar que o acórdão do Tribunal da Relação impugnado é irrecorrível em conformidade com o disposto no citado artigo 400.º, n.º 1, alínea e) e art. 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do CPP.

O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado inadmissível o recurso de decisão da Relação que na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público, tenha decretado pena de prisão efectiva, revogando a pena de substituição da suspensão da sua execução aplicada na 1.ª instância ou que, inovatoriamente, tenha condenado o arguido, absolvido na 1.ª instância, em pena de prisão não superior a cinco anos.

Podem indicar-se, neste sentido, os acórdãos de 18-02-2009 (Proc, n.º 09P0102 - 3.ª Secção), de 23-11-2011 (Proc. n.º 56/06.2SRLSB.L1.S1 - 3.ª Secção), de 05-12- 2012 (Proc, n.º 11453/10.9TDLSB.Ll.51 - 3.ª Secção), de 06-02-2014 (Proc. n.º 315/11.2JACBR.C1.S1 - 3.ª Secção), de 14-05-2014 (Proc. n.º 19/11.6IDSTB.L1.S1 - 3.ª Secção), de 17-09-2014 (Proc. n.º 1/11.3GHLSB.L1.S1 - 3.ª Secção), de 01-10-2014 (Proc. n.º 130/12.6PEALM.L1.S1 - 3.ª Secção), de 12-11-2014 (Proc. n.º 1287/08.6JDLSB.L1.S1- 3.ª Secção), de 16-12-2015 (Proc, n.º 59/14.3PQPRT.P1.S1- 3ª Secção), podendo ainda mencionar-se as decisões sumárias de 03-12-2015 (Proc. n.º 198/11.2GAPTB.G1.S1 - 5.ª Secção), de 16-12-2015 (Proc. n.º 59/14.3PDPRT.Pl.S1 - 3.ª Secção), e de 14-01-2016 (Proc. n.º 90/10.8PANZR.C1.S1- 5.ª Secção).

Muito mais recentemente, os acórdãos de 13-07-2017 (Proc. n.º 67/13.1GATVD.L1.S1- 3.ª Secção) e de 17-11-2017 [Proc. n.º 187/12.0TRPRT.G1.S1 - 3.ª Secção), inéditos (Relator: Cons. Oliveira Mendes).

O Tribunal Constitucional tem afirmado que o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido não impõe um duplo grau de recurso, sendo que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.

Todavia o Tribunal Constitucional, revendo a posição enunciada quanto à conformidade com a Constituição do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, no sentido da irrecorribilidade da decisão condenatória de Tribunal da Relação que aplique pena de prisão efectiva não superior a cinco anos a arguido que fora absolvido na 1.ª instância, considerou, por maioria, no acórdão n.º 412/2015, inconstitucional aquela norma, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal (artigo 32,º n,º 1, da Constituição).

Este entendimento veio a ser reafirmado, também por maioria, no acórdão n.º 429/2016, de 13 de Julho de 2016, proferido em Plenário[5], em que se decidiu: «Julgar inconstitucional a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efectiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redacção da lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.»

E também na decisão sumária n.º 132/2018, proferida em 20-02-2018, o Tribunal Constitucional veio a reiterar a posição de julgar inconstitucional a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efectiva não superior a 5 anos, constante do art. 400.º, n.º 1, alínea e) do CP.

Temos consciência que estes acórdãos, proferidos ao abrigo do n.º 5 do artigo 79.º-D da Lei n.º 28/82, de 15-11 (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), não têm força obrigatória geral, mas apenas eficácia no processo em que foi proferido, nos termos do artigo 80.º, n.º 1, do mesmo diploma.

E também é certo que não estamos perante uma situação igual à vertida naqueles arestos do Tribunal Constitucional, na medida em que naqueles arestos estávamos perante uma absolvição do arguido no Tribunal da 1.ª instância e uma condenação em pena de prisão efectiva no Tribunal da Relação.

No presente caso, estamos perante uma condenação na 1.ª instância em pena de prisão suspensa na execução e condenação em prisão efectiva no Tribunal da Relação. Todavia por identidade das razões espelhada naqueles arestos do Tribunal Constitucional, entendemos que tal interpretação também se aplica ao caso sub judice.

Vejamos.

Consta daquele acórdão do Tribunal Constitucional n.º 429/2016, com relevância para o caso concreto, que:

«Nos casos em que existe uma absolvição da primeira instância revogada por decisão condenatória em pena de prisão da segunda instância, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime. Trata -se, pelo contrário, de uma decisão inovadora com consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade, relativamente à qual é negado o acesso a uma reapreciação por um tribunal superior.

Na verdade, uma situação em que a uma absolvição de primeira instância sucede a condenação em pena de prisão, no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova: o processo decisório concernente à determinação da medida da pena a aplicar. A decisão que define a pena de prisão é proferida pelo Tribunal da Relação sem que anteriormente, designadamente em primeira instância, haja qualquer apreciação sobre a pena a impor ao arguido. O arguido vê -se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo. Existem, portanto, nesta situação, dimensões do juízo condenatório que não são objecto de reapreciação. Pelo menos quanto a estas matérias, existe uma apreciação pela primeira vez apenas na instância de recurso, sem que exista a previsão legal de um segundo grau de jurisdição.

Neste contexto, aceitar a irrecorribilidade da decisão condenatória, em situações como a configurada pela norma em apreciação, seria admitir que o direito fundamental ao recurso, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, não garante sequer a reapreciação por uma segunda instância da decisão que define a pena de prisão efectiva. Esta seria, assim, uma decisão do juiz que se apresentaria como livre de qualquer controlo.

A ausência absoluta de controlo do processo decisório de escolha e determinação da medida da pena de prisão é, porém, inaceitável. É de há muito dado por adquirido na dogmática das consequências jurídicas do crime que a determinação judicial da pena concreta constitui «estruturalmente aplicação do direito», deixando «por toda a parte de ser considerado como uma questão relevando exclusiva ou predominantemente da subjectividade do julgador, da sua arte de julgar» (…)

20 - Num outro plano, tem o Tribunal igualmente reiteradamente afirmado que o exercício do «direito ao recurso implica, naturalmente, que o recorrente tenha a possibilidade de analisar e avaliar os fundamentos da decisão recorrida, com vista ao exercício consciente, fundado e eficaz do seu direito» (v. Acórdão n.º 148/2001, n.º 5). A tanto postula o direito de recurso, as garantias de defesa e o princípio do contraditório no âmbito do processo penal (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição): os destinatários de uma decisão jurisdicional devem ter ou poder ter conhecimento do seu conteúdo, nomeadamente para contra ela poderem reagir através dos meios processuais adequados […]

No caso da norma sob escrutínio, porém, o arguido só toma conhecimento do fundamento, tipo e quantum da pena em que vai condenado através do acórdão do Tribunal da Relação, que o condena. Apenas nesse momento está logicamente em condições para recorrer dessa decisão, já que antes ela nem sequer existe.

O direito do arguido ao recurso da sua condenação, neste caso, não se pode bastar com o exercício do contraditório no recurso interposto pelo Ministério Público da sua absolvição. O conteúdo típico do direito ao recurso abrange o efectivo poder de suscitar uma reapreciação da decisão jurisdicional desfavorável. Para tal, o arguido tem de poder ter acesso aos fundamentos dessa decisão que só são conhecidos no momento da sua prolação, não em momento anterior, nas alegações de recurso. A norma em apreciação implica uma compressão deste conteúdo desde logo porque a decisão condenatória integra, regra geral, matéria não abrangida pela decisão de primeira instância, designadamente no que respeita ao acervo factual relevante para a escolha e determinação da medida da pena aplicada. Mesmo que esse processo decisório se sustente apenas nos factos apurados em primeira instância, ele implicará necessariamente uma valoração assente num critério de doseamento da medida da pena que ao arguido só é revelado com a sua condenação. Ora, pelo menos quando está em causa a restrição ao direito à liberdade que implica a condenação a uma pena de prisão efectiva, uma ablação desta natureza do direito ao recurso é inadmissível. Neste caso, só após a decisão ser proferida pode existir verdadeiro exercício do direito de recurso quanto a essa decisão pois, caso contrário, o desconhecimento do critério/tipo de sanção - por a condenação em segunda instância ter sido antecedida de absolvição - não permite reagir contra a pena de prisão efectivamente imposta pelo tribunal. Trata -se de uma situação em que as garantias de defesa exigem o acesso a uma nova instância.

A tese do acórdão fundamento considera que o direito de defesa do arguido face a uma condenação a pena de prisão efectiva, na segunda instância, se encontra protegido pela simples possibilidade de contra -alegar no âmbito do recurso interposto da decisão absolutória de primeira instância. Uma vez que, em processo criminal, a dedução da acusação pressupõe sempre a possibilidade de ser proferida uma decisão de condenação, a substituição de uma sentença absolutória por uma sentença condenatória mais não representaria do que uma simples reversão do resultado decisório. Não é de aceitar esta tese. Se o “facto provado” ainda pode ter -se como o reverso do “facto não provado”, tal não dispensa, todavia, a motivação da convicção na prova produzida, e essa fundamentação não pode ser antecipada diante de um juízo de não culpabilidade como o que resultou afirmado pelo primeiro julgador. De todo o modo, para além da motivação, há sempre uma parte inteiramente nova na sentença condenatória da Relação que reverte a absolvição da primeira instância: a relativa à escolha da pena. E sendo assim, a tese do acórdão fundamento permite que elementos da condenação fiquem por sindicar, à margem de qualquer impugnação ou contraditório. Aceita -se que o arguido exerceu o seu direito de recurso face a uma decisão inovatória que o privou da liberdade, antes mesmo dessa decisão condenatória ter sido proferida e sem que, portanto, ele a pudesse conhecer.

[…]

No caso de uma condenação em pena de prisão definida pelo tribunal de segunda instância, após absolvição em primeira instância, impedir o arguido de rebater, com argumentos próprios, os fundamentos da medida da privação da sua liberdade, que pode estender -se até cinco anos, consubstancia uma ablação total daquele direito que é inadmissível pois atinge as suas garantias essenciais de defesa ao inviabilizar a possibilidade de contraditar os critérios de escolha e determinação da medida da pena. A norma objecto do presente processo, ao determinar a irrecorribilidade do acórdão da segunda instância que, em recurso de decisão absolutória, condena em pena de prisão efectiva, constante do artigo 400. º, n.º 1, alínea e), do CPP, procede a uma restrição do direito do recurso do arguido que leva à sua total ablação, por não lhe permitir sindicar a condenação proferida na Relação, depois de lhe ser compreensivamente vedado, desde logo por falta de interesse ou legitimidade, recorrer da decisão de primeira instância. Ao resolver contra o arguido a situação de contradição entre a decisão de primeira e segunda instâncias, recusando -lhe a possibilidade de reacção a uma condenação em pena de prisão efectiva, esta norma viola concretamente o seu direito ao recurso, levando à sua total ablação. Estando em causa uma pena de privação da liberdade, essa solução é manifestamente excessiva. Nesse sentido, é inconstitucional por violar o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição».

No caso sub judice temos uma situação com identidade de razões, na medida em que a 1.ª instância absolveu o arguido da prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado e condenou-o em pena de prisão suspensa na sua execução pela prática de um crime de ameaça. Por sua vez, o Tribunal da Relação, por recurso interposto pelo Ministério Publico, alterou a matéria de facto, e nessa sequência, alterou a qualificação jurídica do crime, condenando o arguido pelo crime de violência doméstica e alterou a pena de prisão, para efectiva

Ou seja, o arguido, em sede de recurso interposto pelo Ministério Público, teve que se defender quanto à matéria de facto (não abrangida pela condenação em 1.ª instância), quanto à qualificação jurídica (não abrangida pela condenação em 1.ª instância) e por fim quanto à pena (não abrangida pela condenação da 1.ª instância). Por esse motivo defendemos a identidade de razões quanto ao referido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 429/2016, na medida em que o arguido pese embora no recurso tenha antecipado argumentos, o mesmo só se consegue defender, de forma efectiva e segura, quanto à decisão desfavorável de condenação em pena privativa da liberdade, quando a condenação ocorre, porque só nesse momento é que é definido e conhecido todo o processo decisório que o Tribunal da Relação se socorreu para chegar àquele acervo factual, qualificação jurídica e por fim, nesse novo quadro jurídico, quanto à determinação da medida da pena aplicada.

É verdade que o arguido AA já havia sido condenado em 1.ª instância em pena de prisão suspensa na sua execução. Todavia, com o Acórdão da Relação viu toda uma inovatória condenação, baseada num novo acervo factual, numa nova “roupagem jurídica”, que implicou uma moldura abstracta totalmente distinta daquela que havia sido condenado, e consequentemente numa valoração assente num critério de doseamento da medida da pena que ao arguido só foi revelado com a sua condenação[6].

É nosso entendimento que o direito ao recurso previsto no artigo 32.º da Constituição da República sofrerá forte compressão se não for possível a reapreciação desta decisão da Relação por uma instância superior, designadamente na parte em que a integração de nova facticidade provada, levou à qualificação num tipo legal mais grave, tendo como efeito directo e imediato a imposição ao arguido de uma pena efectiva de prisão, o que acarreta um maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido.

Em conformidade com esta posição que aqui defendemos, também alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a inverter a sua posição, admitindo conhecer de recursos de acórdão da Relação que condenaram em pena de prisão (efectiva) inferior a 5 anos, alterando a condenação da 1.ª instância.

Veja-se neste sentido o acórdão de 09-02-2017, Proc. n.º 21/14.6GBVCT.G1.S1 - 5.ª Secção (Relatora: Cons. Isabel São Marcos), em cujo sumário se lê:

«I - Considerando a última jurisprudência do TC (acórdãos 412/2015, de 29-09, da Secção e 429/2016, de 13-07, tirado em Plenário), que sufragamos, a respeito da interpretação da al. e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP – convocada pelo recorrente e pelo MP para, de acordo com a interpretação que cada qual faz, sustentar, respectivamente, a recorribilidade e a irrecorribilidade da decisão sob impugnação no segmento atinente ao crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, por cuja prática aquele foi condenado, em recurso, pela relação na pena de 5 anos de prisão – é de admitir o presente recurso interposto pelo arguido (nomeadamente no que concerne às questões atinentes à qualificação jurídica, e à medida da pena parcelar de 5 anos de prisão imposta pelo tribunal recorrido que, em cúmulo jurídico, lhe aplicou a pena única de 5 anos e 4 meses de prisão efectiva) apesar de os seus contornos específicos não serem exactamente idênticos ao do caso apreciado nos citados acórdãos do TC.

II - Enquanto que, na situação subjacente ao decidido naqueles arestos do TC, a relação, em recurso, alterando a matéria de facto, condenou os arguidos, pela prática de 2 crimes de que haviam sido absolvidos em 1.ª instância, em penas parcelares de medida não superior a 5 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, em penas conjuntas de prisão efectiva, de medida também inferior a 5 anos. No presente recurso, sem alterar a matéria de facto, a relação, dando parcial provimento ao recurso do MP, alterou a qualificação jurídica e condenou o arguido, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes (de que o mesmo havia sido absolvido em 1.ª instância, mas que havia sido condenado pela prática de um crime de trafico de estupefacientes de menor gravidade, em pena de prisão suspensa na sua execução), na pena parcelar de 5 anos de prisão e, em cúmulo jurídico com outra pena parcelar de 1 ano e 4 meses de prisão, na pena única de 5 anos e 4 meses de prisão.

III - Não obstante estas particularidades, o que é certo é que, também no caso em apreço, o direito ao recurso, consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP, sofrerá forte compressão se não for viabilizada a possibilidade de a decisão em causa ser reapreciada por uma outra instância, designadamente na parte em que, a integração da facticidade provada num tipo legal mais grave, tendo como efeito directo e imediato a imposição ao arguido de uma pena efectiva de prisão, acarreta um maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido.

IV - É certo que, em obediência ao princípio do contraditório, o arguido dispôs do direito de responder ao recurso interposto pelo MP. Porém, tal não basta para garantir de forma efectiva o direito que, gozando o arguido de recorrer da sua condenação, lhe garante a possibilidade de obter a reapreciação da decisão que lhe resulta desfavorável, maxime na parte em que o condene em pena privativa da liberdade, tenha ela sido alicerçada apenas no acervo factual apurado em 1.ª instância, ou não.

V - Por outro lado, apesar de, num caso como o que se encontra aqui em análise, a decisão da 1.ª instância, revogada pela relação, em recurso, no segmento atinente à integração jurídica do facto ilícito não se trate, na acepção no art. 376.º, do CPP, de uma verdadeira e própria sentença absolutória, nas consequências decorrentes da nova integração ela não poderá, porém, deixar de equiparar-se-lhe».

E bem assim acórdão de 09-11-2017, Proc. n.º 335/15.8PATVD.C1.S1 - 5.ª Secção (Relatora: Cons. Helena Moniz)[7]:

«I - Apesar do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, que determina a inadmissibilidade do recurso interposto de decisão do tribunal da relação que condene o arguido em pena de prisão não superior a 5 anos, ainda assim, e seguindo a jurisprudência mais recente do TC, considera-se admissível o recurso apenas na parte nova da decisão (nova em relação ao decidido na 1.ª instância) – na medida em que alterou a qualificação jurídica dos crimes que o arguido havia sido condenado em 1.ªinstância (6 ofensas à integridade física simples), para 6 crimes de ofensa da integridade física qualificada.

II - Neste sentido, o acórdão do STJ de 09-02-2017, proferido no processo n.º 21/14.6GBVCT.G1.S1, já considerou também admissível o recurso interposto de uma decisão da relação que condenou o arguido por crime mais grave do que aquele por que tinha sido condenado o arguido em 1.ª instância, apesar de ter sido aplicada ao crime em questão uma pena de prisão inferior a 5 anos».

Pese embora não seja a situação decalque em análise nos acórdãos do Tribunal Constitucional, pelas razões atrás expendidas, entendemos que a situação tem identidade de razões e, nesse sentido, impõe-se no caso sub judice efectuar uma interpretação conforme à jurisprudência constitucional adoptada naqueles acórdãos do Tribunal Constitucional.

Dito de outro modo, a diferença existente entre a situação constante nos arestos do Tribunal Constitucional e o caso em apreço não conduz, contudo, a leitura diversa da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.

Por tudo o que atrás expusemos, entendemos que o presente recurso é admissível.

Posto isto, passemos à análise das questões suscitadas pelo arguido, ainda que não conforme a ordem pelo mesmo enunciada, face à precedência lógica das questões.

2.2.2. Invoca o arguido erro notório na apreciação da prova no acórdão do Tribunal da Relação - conclusões XX a XXXIX

O recorrente invocou ainda contradição insanável entre factos provados/fundamentação de facto e de direito na conclusão XXI, mas o certo é que nada diz em que consistiu a mesma.

O arguido veio invocar que o acórdão recorrido padece de erro na apreciação da prova produzida nos autos, considerando que o Tribunal da Relação efectuou uma errada reapreciação da prova, com violação das regras da experiência comum.

Importa, antes do mais, tecer breves considerações sobre os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça e os vícios do artigo 410º, n.os 2 e 3 do CPP.

O Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, conforme dispõe o artigo 434.º do CPP, somente reaprecia matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento (oficioso) dos vícios previstos no artigo 410.º, n.os 2, als. a) a c), e 3, do CPP.

Desta feita, ao STJ está-lhe vedado proceder à análise crítica da prova testemunhal ou documental produzida nos autos, substituindo-se às instâncias na valoração dos meios de prova e na fixação da matéria de facto provada e não provada. Veja-se neste sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2006, Proc. n.º 4356/06 - 5.ª Secção:

«I. Tendo os recorrentes ao seu dispor a Relação para discutir a decisão de facto do tribunal colectivo, vedado lhes ficará pedir ao Supremo Tribunal a reapreciação da decisão de facto tomada pela Relação. II. E isso porque a competência das Relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se no STJ pretensões pertinentes à decisão de facto que lhe são estranhas, pois se hão-de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido».

Como repetidamente este Supremo Tribunal tem afirmado, e aqui se reitera, decidido o recurso pela Relação, ficam esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, tornando-se esta definitivamente adquirida, salvo se ocorrer algum dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, de que o Supremo Tribunal de Justiça deva conhecer oficiosamente.

Constituindo jurisprudência sedimentada e pacífica deste Supremo Tribunal que os vícios previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º do CPP não podem constituir objecto do recurso de revista a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça e que este tribunal deles somente conhece ex oficio, quando constatar que a decisão recorrida, devido aos vícios que denota ao nível da matéria de facto, inviabiliza a correcta aplicação do direito ao caso sub judice[8].

Posto isto, não é admissível um recurso interposto de um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação para este tribunal, na parte em que convoca a reapreciação da decisão proferida sobre matéria de facto, quer em termos amplos, por erro de julgamento (erro na apreciação da prova), quer no quadro dos vícios do art. 410.º do CPP (erro-vício).

Assim quanto à impugnação da matéria de facto, estando em causa erro-vício há-de cingir-se ao texto da decisão recorrida, eventualmente em conjugação com as regras de experiência comum, por sua vez o erro-julgamento é quanto há erro na apreciação da prova com base em elementos externos ao texto da decisão, como é o caso de confronto da prova testemunhal ouvida em audiência de julgamento.

O arguido-recorrente, se atentarmos às conclusões do recurso que apresentou, pretende uma reapreciação da matéria de facto, colocando em causa a forma como a Relação valorou a prova. Percorrido o texto da motivação ínsita nas conclusões do recurso, verifica-se sistematicamente alusão a elementos externos ao texto da decisão recorrida, relacionados com a produção da prova (confronto das declarações do arguido, da ofendida e das testemunhas, prestadas em audiência de julgamento), imputando-se errada valoração da prova.

Inclusive na conclusão XXXVII acaba por dizer que se trata de um recurso da matéria de facto que constitui um remédio que se destina a despistar e a corrigir, cirurgicamente, eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova e na conclusão XXXIX conclui que se deve dar como não provados os factos 1 a 5 que o acórdão condenatório considerou matéria de facto assente.

O recorrente esgrime argumentos alegando errada valoração da prova, na sua perspectiva, com base nas declarações prestadas (v.g. conclusão XX, XIV a XXXI) chamando à colação as declarações prestadas em audiência de julgamento, como se de um recurso sobre a matéria de facto se tratasse.

Concluiu-se assim que no recurso interposto pelo arguido, o que o mesmo pretende é impugnar a matéria de facto dado como assente pelo Tribunal da Relação, não aceitando a mesma e pretendendo que o STJ altere a matéria de facto dada como provada.

Na medida em que a reapreciação da matéria de facto, seja em termos amplos (erro-julgamento) seja no âmbito dos vícios do artigo 410.º do CPP (erro-vício), não pode servir de fundamento ao recurso interposto para o STJ, impõe-se rejeitar, por inadmissível, nessa parte, o recurso interposto pelo arguido, nos termos conjugados dos artigos 420.º, n.º 2, alínea b), 414.º, n.º 2 e 434.º, todos do CPP[9].

Impõe-se apenas conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.os 2 e 3, do CPP, porque o conhecimento destes vícios não constitui mais do que uma válvula de segurança a utilizar naquelas situações em que não seja possível tomar uma decisão (ou uma decisão correcta e rigorosa) sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, por se fundar em manifesto erro de apreciação ou ainda por assentar em premissas que se mostram contraditórias e por fim quanto se verifiquem nulidades que não se devam considerar sanadas.

Desta feita e no seguimento do entendimento supra vertido, impõe-se oficiosamente verificar se a decisão recorrida padece dos vícios do artigo 410º, n.os 2 e 3, do CPP.

Como decorre expressamente deste normativo, os vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Em particular:

Quanto ao vício previsto pela alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o mesmo só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.

Assim o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto; ocorre quando da factualidade vertida na decisão se verifica faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou absolvição. Insuficiência em termos quantitativos, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.

Quanto ao vício previsto pela alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação – quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.

Quanto ao vício previsto pela alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.

Revertendo para o acórdão recorrido, entendemos que o mesmo não padece dos vícios previstos nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

No que respeita ao vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP de modo algum podemos concluir que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada. Cumpre referir que este vício não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, questão do âmbito da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP), subtraída aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

Também não se pode confundir este vício com o eventual erro de qualificação jurídica dos factos. Isto é, quando o Tribunal entende que aqueles factos não são integradores do crime que vem imputado. Só estamos perante o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando o tribunal, podendo, não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.

A matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido é suficiente para fundamentar a decisão de condenação do arguido, conforme resulta do texto da decisão recorrida que, a título exemplificativo, fez constar que:

«Os comportamentos atribuídos ao arguido consistiram em ameaçar a ofendida, ir esperá-la ao local do trabalho sem avisar e num contexto de desentendimento, após termino da relação de namoro que haviam mantido, constrange-la a ouvir expressões ofensivas por si proferidas, obrigar a ofendida a desviar-se do seu trajecto e a refugiar-se na estação de metro, agredir a ofendida, limitar a arguida na sua liberdade de movimentos, ofendê-la, pelo menos 3 vezes, com as expressões descritas nos pontos 22 e 23 dos factos provados. Como refere o MP recorrente na bem elaborada motivação, citando Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, …”o crime de violência doméstica está numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, como os de ameaças simples ou agravadas, com o de coacção simples, com o de sequestro simples, com o de coacção sexual e com outros crimes contra a honra.” E com a publicação da lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ficou consagrado o entendimento jurisprudencial que defendia que a reiteração dos comportamentos não era elemento essencial do tipo de crime. No caso vertente, as condutas do arguido surgem já finalizada a relação de namoro, traduzem-se em impor à ofendida comportamento ofensivos da sua saúde física e psíquica com total insensibilidade pela sua condição de grávida e desrespeito pela sua vontade de não tratar com o arguido, de o ouvir, de com ele privar e de não ser insultada por ele. E analisados os factos não pode deixar de se concluir pela intenção do arguido. Como refere o MP recorrente …”não só agradei fisicamente a ofendida pois, duas vezes, agarrou-a pelo pescoço,…, limitou-a na sua liberdade de movimentos (11.03.2017), ameaçou-a (entre Agosto e Dezembro de 2016), proferiu várias expressões que atentaram contra a sua honra (11.03.2017 e 08.05.2017) e que a perturbaram (Março a Maio de 2017), causando-lhe sofrimento físico e psicológico…”, demonstrando total insensibilidade para com o facto de a mesma se encontrar grávida.»

Da decisão recorrida consegue-se entender o raciocínio lógico e coerente que levou o tribunal recorrido, face à factualidade dada como provada, a decidir pela condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica.

Pelo exposto, consideramos que a factualidade dada como provada afigura-se suficiente e adequada para fundamentar a solução de direito encontrada no acórdão recorrido. Questão distinta deste erro-vício é saber se se concorda com a solução de direito encontrada, que mais à frente nos pronunciaremos.

Quanto ao vício a que alude alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, temos como certo que também não se verifica.

Conforme bem esclarece o acórdão deste Supremo Tribunal de 12-03-2015, proferido no processo n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção (Relator: Cons. Oliveira Mendes):

 «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».

Inexiste qualquer contradição na medida em que através de um raciocínio lógico e racional consegue-se, pelo texto da decisão recorrida, apreender o motivo devido ao qual se chega à factualidade dada como provada (bem como não provada), sendo esta factualidade conjugável e consentânea entre si e também com a respectiva decisão de condenação do arguido.

Rectificação:

Cumpre apenas rectificar o seguinte:

Consta no texto da decisão recorrida[10] que inexistem factos não provados.

Também do texto do acórdão recorrido verificamos que se manteve como não provado o facto não provado n.º 1 que já advinha da 1.ª instância «Nas circunstâncias descritas no ponto 3 dos factos provados o arguido disse a CC que a matava».

Se atentarmos à «Motivação quanto à matéria de facto» do acórdão recorrido[11], verificamos que consta ali que «Considerando que a testemunha CC não referiu qualquer expressão utilizada pelo arguido, naquele contexto, com o sentido de promessa de a matar, e nenhum outra prova foi produzida a este respeito, deu o tribunal como não provada a factualidade constante do ponto 1 dos factos não provados».

Assim sendo, é inequívoco que é compreensível dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, que aquele facto continuou a ser dado como não provado pelo Tribunal da Relação, sendo que inclusive, e como é óbvio, não consta dos factos provados.

Trata-se de um lapso cuja correcção não implica qualquer modificação essencial no decidido.

De acordo com o artigo 380.º do Código de Processo Penal:

«1. O Tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando: b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial” 2. “Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso».

Pelo exposto, trata-se apenas de um mero erro ou lapso - revelado no próprio contexto da decisão - ter-se feito constar no acórdão recorrido que inexistem factos não provados - quando da motivação da matéria de facto do acórdão recorrido se conclui claramente que se deu como não provado que «Nas circunstâncias descritas no ponto 3 dos factos provados o arguido disse a CC que a matava».

Trata-se de um lapso/erro que não implica, como já se disse, qualquer modificação essencial no decidido, pelo que importa oficiosamente corrigir[12].

Em face do exposto, nos termos do coitado artigo 380.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do CPP procede-se oficiosamente à correcção do acórdão recorrido e onde se lê na pág. 35 do acórdão recorrido «2. Factos não provados: nenhuns», deve ler-se: «2. Factos não provados: «Nas circunstâncias descritas no ponto 3 dos factos provados o arguido disse a CC que a matava».

Apenas estamos perante uma contradição insanável entre os factos e a decisão quando no texto da decisão as posições sejam antagónicas ou inconciliáveis e não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, o que não é presente caso.

Com efeito, inexiste qualquer contradição insanável entre a fundamentação de facto, entre a factualidade provada e não provada, entre a motivação e a factualidade e, por fim entre estas e a decisão.

Quanto ao vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP:

O erro notório na apreciação da prova, trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. Para ocorrer este vício, as provas evidenciadas pela simples leitura do texto da decisão têm que revelar claramente um sentido e a decisão recorrida extrair ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.

É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o mesmo cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou com a decisão tomada.

Se a discordância do recorrente for apenas quanto à forma, isto é, como o tribunal valorou a prova e decidiu a matéria de facto, tal traduz-se em impugnação de matéria de facto apurada - que se integra em objecto de recurso sobre a matéria de facto - e que os recorrentes exerceram no recurso interposto para a Relação, e por isso não podem vir novamente repristinar, ainda que em crítica ao acórdão recorrido - o da Relação - por extravasar os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 434.º do CPP), conforme acima já fizemos referência.

Conforme se elucida no acórdão do STJ de 12-03-2015, proferido no processo n.º 724/01.5SWLSB.L1.S1 - 3.ª Secção (Relator: Cons. Pires da Graça):

«O erro notório na apreciação da prova só ocorre quando se retira de um facto dado como provado, algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou, quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, notoriamente violadora das regras da experiência comum e da lógica, que ressalta à vista de qualquer pessoa de formação média, perante a simples leitura da decisão recorrida. O recorrente impugna a convicção do tribunal, com a valoração feita das provas, mas tal desiderato não se confunde com os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, que têm de resultar do texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos exteriores à decisão. Erro de julgamento sobre valoração das provas só em recurso da matéria de facto pode ser questionado. Sendo que o tribunal competente para a apreciação do facto é exclusivamente o Tribunal da Relação, como resulta do disposto no art. 428.º do CPP.»

Seguimos a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, que defende que o vício de erro notório na apreciação da prova, tem que resultar do texto da decisão recorrida, sem usar elementos externos à própria decisão[13] - a não ser factos contraditados por documentos que façam prova plena – documentos autênticos – cfr. defendido, entre outros, nos acórdãos do STJ de 25-06-2009 (Proc. n.º 4262/06 - 3.ª Secção)[14], e  de 06-10-2010, Proc. n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1 - 3.ª Secção, que assume que:

«Os vícios da matéria de facto que integram as categorias das alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, não obstante a diversidade de elementos, revertem todos a inconsistências no domínio da prova, ou mais precisamente, no processo lógico e racional de formação da convicção sobre a prova.

O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas e apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”. Em síntese de definição, estes são os elementos que hão-de conformar a apreciação, em cada caso, sobre a ocorrência do mencionado vício.

O vício tem de resultar, como se salientou, do texto da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena), não sendo, por isso, admissível recorrer a declarações ou a quaisquer outros elementos que eventualmente constem do processo ou até da audiência.

Para avaliar da não arbitrariedade (ou impressionismo) e da racionalidade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.»

Vejamos pois se do texto da decisão recorrida e apenas deste, em conjugação com as regras da experiência comum, se extrai algum erro notório da apreciação da prova.

A versão dos factos acolhida pelo Tribunal da Relação de Lisboa mostra-se compatível com as regras da experiência comum, pois da leitura da motivação da matéria de facto e da apreciação da prova retratada pelo acórdão recorrido não corresponde a algo que, de facto, não possa ter ocorrido ou, dito por outras palavras, que, na perspectiva do padrão do denominado homem comum ou homem médio, surja como um evento inacreditável, inverosímil, completamente desconforme com a realidade da vida.

Com efeito, de acordo com as regras da experiência comum, não se afigura desconforme com a realidade da vida ou como uma conclusão inverosímil, todos os factos que o Tribunal da Relação alterou (em relação à decisão da 1.ª instância) e deu como provados.

Sublinhamos, uma coisa é a existência de erro notório na apreciação da prova e outra coisa é a valoração da prova que conduziu à matéria de facto fixada nas instâncias: o recorrente, ao invocar tal vício, afinal está a impugnar a formação da convicção do tribunal recorrido na valoração da prova produzida e examinada, pondo em causa a livre apreciação da prova, sendo que tal não se coaduna com a apreciação dos vícios do artigo 410.º do CPP.

O que o recorrente pretende, sob a capa da invocação do vício do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, é afirmar que a decisão recorrida deveria ter extraído da prova produzida uma conclusão diferente daquela que consta da decisão – veja-se exemplo de tal as conclusões XXIV. a XXXV., do recurso apresentado.

Estamos, assim, perante impugnação da matéria de facto, que se encontra excluída do conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça, como impõe o artigo 432.º do CPP.

No âmbito da apreciação oficiosa do erro notório da apreciação da prova, o STJ apenas analisa se a apreciação da prova e consequente decisão da matéria de facto (dada como provada e não provada) plasmada no acórdão recorrido, colocado na perspectiva do homem médio (atenta as regras da experiência comum) é plausível e possível. Não cabe sindicar se o Tribunal da Relação andou bem ou mal na apreciação da prova.

Vejamos então, a título exemplificativo, alguns trechos do acórdão recorrido de onde se retira com plausibilidade e razoabilidade o raciocínio seguido pelo Tribunal da Relação para dar como provada a factualidade constante no acórdão[15].

«Entende o recorrente/MºPº que os factos dados como não provados em2.3.4.5. e 6., deviam ter sido dados como provados face à prova produzida em audiência conjugada com a prova documental.
E tem razão.
As declarações prestadas pela ofendida na audiência de 22.09.2017, documentadas em acta de fls. 244, gravadas no sistema integrado de gravação digital Habilus Media Studio, das 10.31 horas às 10.47 horas, designadamente, minuto 03.20, 08.33, 08.43, 09.36, 10.16, 10.23, 10.32, 10.50, 11.28, 11.36, 11.50, 12.34, conjugados com o teor do documento de fls. 192 dos autos, impõem que se considere provada a agressão.
Com efeito, não é aceitável que no decorrer de uma conversa que se tem como normal, ainda que em estado de nervosismo, dado o assunto a tratar, (gravidez, e consequente paternidade, ou não, de alguém) se ponha as mãos, ou a mão, no pescoço de alguém e se exerça, ou não pressão.
E se esse gesto ocorre num contexto de desentendimento que leva à intervenção de terceiros não pode deixar de ser considerado um gesto de agressão, no sentido em que se está a atingir terceiro fisicamente com o intuito de através do acto de magoar (ao exercer pressão numa zona sensível como é a do pescoço) conseguir intimidar a pessoa sobre quem essa agressão e essa pressão são exercidas.
Se se considerar ainda que a arguida se encontrava grávida e o arguido sabia desse facto, (progenitor ou não do feto) não pode deixar de se entender como sendo de agressão a actuação do arguido, agressão essa de natureza física e psicológica.
Mesmo considerando que a situação de gravidez da arguida possa ter contribuído para o estado de exaltação do arguido, que entendia que não podia ser o Pai e que tinha já entrado noutra relação, terminada a relação com a assistente, o certo é que esse facto não justifica a atitude de insensibilidade que teve ao por as mãos no pescoço da arguida, pressionando o mesmo, e magoando-a.
O arguido nega a intenção de ofender a assistente, e diz que a sua intenção era a de a impedir de entrar na composição de metro porque pretendia acabar a conversa, mas quem pretende que alguém que lhe virou as costas por não querer continuar a conversa volte para trás não se dirige ao pescoço da outra pessoa.
Assiste inteira razão ao MºPº recorrente na análise que efectuou e que se transcreve:
…”o arguido agarrou o pescoço da ofendida por duas vezes, fazendo pressão no mesmo, ou seja, pressionando com a clara intenção de molestar fisicamente….,
…”admitamos que o arguido queria segurar aa ofendida e impedi-la de seguir para o interior do metro e ao agarrá-la pela alça da mochila, segurou-a e virou-a para si.

Aqui sim, não estamos num cenário de ofensa à integridade física.
Porém, partindo do facto de que a ofendida estava virada de frente para o arguido, e dando como provado no ponto 13 que o arguido colocou uma mão no pescoço da ofendia, como se pode fazê-lo sem concluir que fosse para molestar fisicamente?
A ofendida já estava manietada e virada para a frente pelo arguido, pelo que o arguido ao colocar uma mão no pescoço da mesma, fazendo pressão, não quis outra coisa senão molestar fisicamente a CC.
Segundo as regras da experiência comum, uma pessoa para falar com outra não a “segura” pelo pescoço, principalmente quando a pessoa já está virada de frente para si.”…
O mesmo sucede com as expressões proferidas pelo arguido dadas como provadas no ponto 7 dos factos provados, “andas com vários homens, o filho não é meu”, que não foram entendidas na decisão recorrida como ofensivas da honra da CC.
Estas expressões proferidas nas circunstâncias descritas, em voz alta, em sítio público, são necessariamente ofensivas da honra da pessoa a quem se destinam, mesmo que correspondessem à verdade, caso em que ainda configurariam outro tipo de ilícito.»

E ainda:
«A convicção do Tribunal fundou-se na valoração crítica e conjugada da totalidade dos elementos de prova produzidos, designadamente, no conjunto formado pelas declarações do arguido – que admitiu parcialmente os factos – e dos depoimentos das testemunhas CC (ofendida); DD e EE (ambos funcionários do ...), avaliados à luz das regras da experiência comum e valorados de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
Assim, antes de mais, tiveram-se em consideração as declarações prestadas pelo arguido, que confirmou a existência de um relacionamento com CC, nas datas descritas na acusação, bem como a circunstância de esta lhe ter comunicado que estava grávida, assumindo o arguido ter dúvidas sobre a paternidade da criança e ter manifestado tais dúvidas a CC e, bem assim, a vontade de que esta abortasse.
Admitiu ainda que, no dia 11 de Março de 2017, encontrou-se com CC – encontro antecipadamente acordado entre ambos – confirmando tê-la acompanhado até Santa Apolónia e ter-lhe dirigido expressões com conteúdo equivalente ao descrito no ponto 8 da acusação, tendo tal comportamento sido por si justificado com a circunstância de ter dúvidas sobre a paternidade do filho de que CC está à espera.
No que se refere aos factos ocorridos nesse dia, dentro da estação de Metro, o arguido admitiu ter puxado CC para si, no momento em que esta lhe voltou as costas para se dirigir à plataforma do metropolitano, referindo, no entanto, que apenas o fez por querer continuar a conversa que estavam a ter e que não lhe apertou o pescoço, nem pretendeu agredi-la.
No mais, admitiu os factos descritos nos pontos 25 a 27 da acusação, insistindo que CC terá engravidado numa altura em que já não estavam juntos.
Atendeu-se ainda ao depoimento prestado por CC, que, não se ignorando o seu interesse nos presentes autos, depôs de uma forma que nos pareceu sincera, espontânea e verdadeira, tendo a testemunha, com ligeiras excepções, narrado os factos tal como vêm descritos na acusação.
Aliás, como resulta da súmula das declarações prestadas pelo arguido, as versões apresentadas são genericamente coincidentes, com excepção daquela parte que se pretende com as intenções subjacentes aos actos praticados pelo arguido.
No que respeita ao episódio descrito no ponto 3 da acusação – não admitido pelo arguido – a convicção do tribunal formou-se com base no depoimento de CC que, descrevendo o contexto subjacente aos factos (que, segundo a testemunha, se insere numa discussão motivada pelo facto de, enquanto ainda mantinham a relação de namoro, CC se ter recusado a dizer ao arguido onde é que esta tinha estado) referiu que quando se encontravam na zona de Santa Apolónia, o arguido disse-lhe, em jeito de ameaça, que “ia ficar sem as duas pernas”.
Considerando que a testemunha não referiu qualquer expressão utilizada pelo arguido, naquele contexto, com o sentido de promessa de a matar, e nenhuma outra prova foi produzida a este respeito, deu o tribunal como não provada a factualidade constante do ponto 1 dos factos não provados.
Relevou ainda o depoimento isento e desinteressado que foi prestado pelas testemunhas DD e EE (funcionários do ...) sendo que ambas as testemunhas referiram ter visto o arguido deitar a mão ao pescoço de CC, explicando ainda que esta e o arguido estavam ambos muito nervosos.
Os pontos da matéria de facto alterados, como se disse já resultam da conjugação dos depoimentos de CC, dos dois funcionários do ..., do documento junto aos autos sobre o tratamento hospitalar recebido, do facto de se ter dado como provado que a arguida se encontrava grávida e que no local compareceram os Bombeiros e a PSP, o que conjugado com as regras da experiência comum, permite concluir que depois de um incidente desta natureza, tendo sido chamados, quer os Bombeiros quer a PSP conduziriam sempre a ofendida ao Hospital.
Aliás, sendo esse o seu estado físico, sempre se imporia que fosse vista pelo médico após episódio deste género, até para verificar se o feto não teria sido afectado pelo stress sofrido pela Mãe.
No que respeita aos factos referentes às condições sociais e económicas do arguido, a convicção do tribunal foi formulada com base nas declarações por este prestadas que, atenta a forma espontânea e aparentemente sincera como foram proferidas, aliadas ao facto de não terem sido contrariadas por qualquer outro elemento de prova, mereceram a credibilidade do tribunal.
A convicção do tribunal no que concerne aos antecedentes criminais do arguido, assentou no respectivo Certificado do Registo Criminal.»

Verifica-se assim que o Tribunal recorrido explica o seu raciocínio e o mesmo apresenta-se lógico e razoável, à luz das regras da experiência comum, para dar como provado que o arguido exerceu pressão no pescoço da ofendida, magoando-a e porque é  que considerou tal acto um gesto de agressão de natureza física e psicológica sobre a mesma, bem como porquê que considerou que relativamente às expressões proferidas pelo arguido as mesmas eram ofensivas da honra da CC e lhe causou perturbação e instabilidade emocional. Inclusive, fundamenta o motivo devido ao qual entende que as declarações do arguido (quanto a negar a intenção de ofender a assistente) não convencem.

Não cabe nesta sede, conforme por diversas vezes já referimos, efectuar valorações ou reapreciar as declarações prestadas, cabe apenas e tão só verificar se a motivação da matéria de facto da decisão recorrida apresenta um raciocínio plausível e razoável à luz do homem médio para dar como provados e não provados os factos.

O que o recorrente pretendia é que este Tribunal se substituísse (agora) ao Tribunal da Relação e apreciasse (ouvisse as gravações) e valorasse as declarações do arguido, da ofendida e inclusive dos funcionários do ... (DD e EE) e chegasse a uma valoração diferente e, nessa medida, desse como não provado: que tivesse ocorrido agressão (apertado o pescoço) e que o arguido tivesse intenção de agredir e ofender a honra e consideração da CC. Contudo, esta argumentação é impugnação da matéria de facto e esta nova valoração pretendida (em alternativa ao decidido pelo Tribunal da Relação), está completamente subtraída aos poderes de cognição deste Supremo Tribunal, que só conhece matéria de direito.

Esta reapreciação da prova pretendida pelo recorrente, em nada se confunde com o vício de erro notório na apreciação da prova, resultante do texto da decisão recorrida.

Em suma, em todo o recurso apresentado, o recorrente sindica a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido, não concordando com a mesma, e sob a alegada capa do vício de erro na apreciação da prova, pretende que o Supremo Tribunal de Justiça altere a decisão da matéria de facto, mantendo a versão original do Tribunal da 1.ª instância.

Não cabe nos poderes do STJ reapreciar a prova (confrontando elementos extrínsecos ao próprio texto da decisão recorrida – v.g. fotografias dos autos, ver videogramas, e ouvir os depoimentos das testemunhas) para sindicar a valoração que o tribunal recorrido fez das mesmas, nomeadamente dizendo se andou bem ou mal na valoração que fez. Estaria o STJ a funcionar como segunda instância de recurso sobre a matéria de facto, em clara violação do disposto no art. 434.º e 428.º, ambos do CPP.

Pode o recorrente não aceitar a convicção assumida pelo Tribunal da Relação quanto aos factos dados como provados e a mesma ser discutível, contudo a mesma é uma posição razoável e plausível e apresenta um raciocínio lógico e coerente e, nessa medida, não existe qualquer erro na apreciação da prova, decorrente do texto do acórdão recorrido.

O erro notório na apreciação da prova para além de ter de decorrer do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, tem que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio e não configura um erro claro e patente o entendimento que possa traduzir-se numa leitura possível, aceitável, razoável, da prova produzida. E o certo é que entendemos que as justificações apresentadas, na apreciação das várias provas, constantes do texto da decisão recorrida, são plausíveis e verossímeis, e coerentes com a factualidade dada como provada.

Se analisarmos a decisão recorrida, está-se longe de se conseguir afirmar, como pretende suscitar o recorrente, que o acórdão recorrido procedeu à modificação da matéria de facto sem apresentar adequada e plausível justificação para o efeito, com juízos desprovidos de lógica.

Na fundamentação da matéria de facto e de direito, impõe-se que o tribunal recorrido explique o caminho e percurso seguido para chegar àquela decisão de facto e de direito.

Face ao exposto, resulta do texto do acórdão recorrido, que o mesmo se encontra suficientemente fundamentado seja quanto à decisão de modificação da matéria de facto, seja quanto à matéria de direito, coerente com a factualidade dada como provada, não padecendo de qualquer vício a que alude o n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

2.2.3. Inexistência dos elementos típicos do crime de violência doméstica – qualificação jurídica dos factos

           Defende o recorrente que não se encontram preenchidos os elementos que tipificam o crime de violência doméstica, porquanto os factos que ficaram provados não são suficientes para qualificar o comportamento do arguido como ofensivo da dignidade humana ou que o mesmo tenha colocado em risco, de modo relevante/grave, a saúde física e psíquica da vítima.

O acórdão recorrido condenou o arguido pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

           

            Dispõe o artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal:


«Violência doméstica

         1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
         […];
         b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
         […];
         é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.»

           A criminalização de violência a crianças e de sobrecarga de menores e de subordinados e, no que a estes autos diz respeito, também de cônjuge, foi enunciada, embora de forma tímida, pela primeira vez, no Anteprojecto do Código Penal de 1966 (artigos 166.º e 167.º) considerando o Autor que tais artigos «correspondem à necessidade de punir com dignidade penal os casos mais chocantes de maus tratos a crianças e de sobrecarga de menores e subordinados»[16].   

            Na redacção definitiva do Código Penal – de 1982 – o artigo 153º, correspondendo, no essencial, aos artigos 166º e 167º do Anteprojecto, estendeu a protecção ao cônjuge no seu nº 3.

A neocriminalização dos maus tratos de menores, de incapazes, de subordinados «foi o resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados, onde o direito penal tinha de se abster de intervir[17].

           A reforma penal de 1995 (Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março) introduziu algumas importantes alterações. Assim, foi eliminada a referência à malvadez ou egoísmo, como motivos de conduta, foi estendida a protecção a pessoas idosas ou doentes, foram previstos, ao lado dos maus tratos físicos os maus tratos psíquicos e as penas foram substancialmente agravadas.

           No que toca ao cônjuge, depois de se ter discutido se a manutenção da protecção do mesmo ainda corresponderia ao nosso quadro sociológico[18] foi decidida a manutenção da protecção ao cônjuge e a pessoa que com o agente conviva em condições análogas às do cônjuge, com dependência de queixa, em vez da natureza pública anterior – artigo 152.º, nº 2 do C. Penal.

           Posteriormente, o nº 2 do citado preceito legal veio a sofrer alterações introduzidas pelas Leis n.os 65/98, de 02 de Setembro e 07/2000, de 02 de Maio, no âmbito das questões de procedibilidade.

            Aquela manteve a natureza semi-pública do crime mas consagrou a possibilidade de o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser e não houver oposição do ofendido; esta última restaurou, em pleno, a natureza pública do crime previsto no nº 2 do artigo. 152º do Código Penal.

O diploma de 2000, mantendo embora a epígrafe de 1998, alargou a qualidade de sujeito passivo deste tipo criminal ao progenitor de descendente comum em 1.º grau, e introduz uma pena acessória de proibição de contactos com a vítima, incluindo o afastamento da residência da vítima, por um período máximo de 2 anos.

Finalmente, a modificação mais relevante respeita, uma vez mais, à natureza do crime, a que é de novo atribuído o carácter público.

A Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, que introduziu várias alterações ao Código Penal, também modificou a previsão e punição deste crime.

Começou por modificar a epígrafe do artigo para "Violência Doméstica" e procedeu ao "desdobramento" do artigo 152.° do Código Penal, ficando o artigo 152.°, apenas a prever os casos de maus-tratos infligidos no âmbito familiar e doméstico, no artigo 152.º-A, os cometidos no âmbito de uma relação de cuidado, guarda ou responsabilidade pela direcção, educação ou trabalho, e no artigo 152.º-B, as violações das regras de segurança.

Também o elenco das potenciais vítimas do crime foi aumentado para as pessoas de um mesmo sexo que vivem em relações análogas às dos cônjuges e aquelas que forem particularmente indefesas em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, e que coabitem com o agente do crime.

Em 2009, foi publicada a Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, tendo já entretanto sido revista pela Lei n.º 129/2015 de 03 de Setembro, pela Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro e pela Lei n.º 24/2017, de 24 de Maio.

Este regime jurídico, que teve na sua origem imposições de normas europeias (directivas) relativas à protecção das vítimas de crime, estabelece um conjunto alargado de normas de salvaguarda das vítimas do crime de violência doméstica, tanto a nível processual como a nível material, mormente com a atribuição de um "estatuto da vítima", e regula formas de apoio social às mesmas.

Conforme refere MARIA TERESA FÉRIA DE ALMEIDA:

«Em 2013, a Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro veio introduzir uma alteração de relevo na tipificação do crime de Violência Doméstica e na definição das penas acessórias.

Assim, a al. b), do n.º 1, do artigo 152.° passou a contemplar de uma forma explícita o namoro, e a relação dele adveniente, como integrando o elenco das relações afectivas, homo ou heterossexuais, abrangidas pela norma punitiva geral.

E, do mesmo ensejo, explicitou o conceito de pessoa particularmente indefesa introduzindo o advérbio "nomeadamente" antes da indicação constante da al. d) do n.º 1, assim dando à enumeração dela constante um carácter abertamente exemplificativo.

Já no n.º 5 deste normativo substituiu o verbo "poder" pelo verbo "dever" na descrição do conteúdo da pena acessória de proibição de contacto com a vítima»[19].

Em 1 de agosto de 2014, entrou em vigor a Convenção de Istambul[20], que foi regularmente assinada e ratificada por Portugal e o seu texto publicado no Diário da República I série de 21 de Janeiro de 2013 - Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21-01 - pelo que, nos termos do disposto nos artigos 8.°, n.º 2, e 119.°, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da Constituição da República, o Estado Português encontra-se vinculado ao seu cumprimento.

No seu artigo 2.°, n.º 1, integra a violência doméstica no conceito de violência contra as mulheres.

No seu artigo 3, sob a epígrafe «definições» na sua alínea a) define o conceito de «Violência contra as mulheres» como constituindo «uma violação dos direitos humanos e é uma forma de discriminação contra as mulheres, abrangendo todos os actos de violência de género que resultem, ou possam resultar, em danos ou sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos para as mulheres, incluindo a ameaça de tais actos, a coacção ou a privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na vida privada»; e na alínea b) define o conceito de violência doméstica como abrangendo «todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima».

Impõe-se efectuar uma interpretação da conceptualização de maus-tratos físicos e psíquicos, ínsito no n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal, à luz destes normativos da Convenção do Conselho da Europa de Istambul.

           Como é referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-02-2018, proferido no processo n.º 312/15.9POLSB.S1- 3.ª Secção[21] (Relator: Cons. Maia Costa):

           «O crime de violência doméstica é um caso paradigmático de neocriminalização fundamentada, revelando a preocupação do legislador em recorrer à via repressiva para erradicar tanto quanto possível esta forma de violência, muito disseminada na sociedade, onde ainda persistem resquícios de uma mentalidade patriarcal hoje completamente anacrónica, sendo embora certo que o fenómeno é transversal a toda a sociedade, e não específico de certos estratos sociais, que geralmente incide sobre as mulheres, e que até há pouco tempo não merecia uma censura social correspondente à sua danosidade e à sua reprovabilidade.

           Este tipo de violência é com efeito de enorme gravidade: praticada geralmente na sombra do lar, sem testemunhas, dirigida contra pessoas indefesas, quer pela fragilidade física, quer pela idade (menoridade ou idade avançada), quer pela “hierarquia” de posições (no caso de o ofendido ser filho), quer pela relação de domínio psíquico que o agressor consegue, pela violência ou pela astúcia, estabelecer sobre a vítima, acabando na grande maioria das vezes por reduzi-la a um ser sem vontade própria, sem capacidade de afirmação pessoal, muito menos de reacção perante qualquer agressão, inclusivamente sem capacidade de denúncia junto das autoridades, ou mesmo de familiares ou confidentes, das violências sofridas.

           Na última década e meia assistiu-se porém a uma tomada de consciência generalizada da grande dimensão e da extrema gravidade deste tipo de violência. A esta tomada de consciência social vem correspondendo a acção do Estado, que se desdobra em diversas vertentes, traduzidas em sucessivos planos plurianuais de prevenção e combate à violência doméstica (o último dos quais abrangendo o período de 2014-2017), abrangendo a definição de estratégias no sentido de prevenção do fenómeno, de intervenção junto dos agressores, de protecção das vítimas, de qualificação de profissionais envolvidos na assistência às vítimas e de reforço das estruturas de apoio e atendimento das mesmas, sem que no entanto, como adiante veremos, o fenómeno da violência doméstica tenha perdido intensidade.

           A intervenção penal, pelas suas características de “ultima ratio”, não pode alvejar erradicar o fenómeno, mas também não pode desistir da sua função de prevenção geral, enquanto finalidade central da aplicação das penas, sem porém ceder a tentações populistas, também muito em voga na sociedade de hoje.»

           Sistematicamente integrado, no Código, no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, especificamente, no capítulo dos crimes contra a integridade física, a teleologia do tipo assenta na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, punindo aquelas condutas que lesam esta dignidade, quer na vertente física como psíquica.

           Acompanhando-se o recente acórdão deste Supremo Tribunal de 27-06-2018, proferido no processo n.º 131/17.8JAPRT.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Gabriel Catarino), ainda inédito, que o agora relator subscreveu como adjunto:

           «Com a alteração operada pela Reforma de 2007 – que autonomizou o crime de violência doméstica do de maus-tratos, estando aquele numa relação de especialidade em face deste; cfr. Prof. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do C. Penal, 406 e 407 – e como referido pela doutrina (v.g., Plácido Conde Fernandes – in Revista do CEJ, 1.º Semestre de 2008, Número Especial, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal), deixou de constituir elemento típico o carácter de reiteração.

            Pese embora a redacção típica não mencione a intensidade dos maus tratos – ao contrário do anteprojecto, que falava em reiteração ou intensidade – deve entender-se (Plácido Conde Fernandes, loc. cit.) que para que um único acto ofensivo – sem reiteração – possa ser considerado maus-tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua a reclamar-se uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana”.

           Quanto à conduta em causa, continua a exigir-se que sejam infligidos a outra pessoa maus-tratos físicos ou psíquicos.

            Trata-se de um crime de execução não vinculada, podendo os maus-tratos físicos ou psíquicos consistir, como se disse, nas mais variadas acções ou omissões, com ênfase para os maus-tratos físicos (as ofensas corporais simples) e os maus-tratos psíquicos (ameaças, provocações, molestações, injúrias).

           Por isso que nesses casos tem-se entendido que ocorre uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143.º, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181.º), a difamação (artigo 180.º, nº 1), a coacção (artigo 154.º), o sequestro simples (artigo 158.º, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192.º, nº 1. al. b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199.º, nº 2, al b)] – acórdão Tribunal da Relação de Évora de 8-01-2013 (dgsi) – as ameaças simples ou agravadas – Catarina Sá Gomes, “O crime de maus tratos físicos e psíquicos infligido ao cônjuge ou a convivente em condições análogas às do cônjuges, pág. 59, AAFDL, 2002.

           No que concerne ao tipo subjectivo, o normativo em apreço prevê um tipo doloso, exigindo-se o dolo genérico, em qualquer uma das suas modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.»

           Estamos, tem sido afirmado, perante um crime de relação: o cônjuge ou ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação … No caso presente, a ofendida com quem o arguido manteve uma relação de namoro ou relação análoga à dos cônjuges.

            M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO dão nota dessa característica associada a este tipo de ilícito – crime de relação – em que releva, dizem, «mais exactamente, um certo grau de proximidade ao lado de uma estreita comunidade de vida, realidades que instituem normas de conduta cuja violação fundamenta ou agrava a ilicitude do facto – a especial relação que intercede entre os sujeitos activo e passivo da conduta criminosa. Estará em causa a protecção da dignidade e da integridade da pessoa enquanto membro de uma relação conjugal, ou enquanto participante de uma realidade familiar ou “análoga”»[22].

           Como salienta ANA MARIA BARATA DE BRITO, identifica-se aqui «uma especial relação entre agente e ofendido, relação que “é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (actual ou anterior) de afectos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pro-activa, porquanto em várias hipóteses do art. 152º são divisáveis deveres legais de garante”[[23]]. Essa especial relação – actual ou passada – fundamenta a ilicitude e justifica a punição do agente»[24].

           A ratio do tipo não reside, pois, prossegue a autora, na protecção da família, da comunidade familiar ou conjugal, mas na protecção da pessoa individual na família, da pessoa que integra a comunidade familiar ou conjugal, na tutela da integridade humana.

A propósito do bem jurídico protegido pelo artigo 152.° do Código Penal, considera MARIA TERESA FÉRIA DE ALMEIDA:

«Qual é o Bem Jurídico protegido pelo artigo 152.° do C. Penal? Uma vez que face ao ordenamento constitucional vigente, designadamente face ao disposto no artigo 18.º da Constituição da República, a intervenção do Direito Penal não é legítima como meio de realização ou imposição de determinados valores inerentes à sociedade num dado momento histórico, mas apenas e tão-só como meio de tutela dos direitos e interesses individuais e sociais, é indispensável determinar com clareza que os direitos e interesses individuais e sociais são tutelados pelo tipo previsto no artigo 152.° do C. Penal. Pois que só esta operação nos permitirá estabelecer qual o fundamento ético-jurídico desta incriminação e consequentemente aferir da sua integração na ordem jurídica constitucional.

Se atentarmos na inserção sistemática no artigo 152.° no catálogo geral, isto é, no Código Penal, verificamos que ele se encontra no capítulo dos crimes contra a integridade física, no âmbito do título relativo aos crimes contra as pessoas. Que tal inclusão não significa que o bem jurídico protegido se cinge à integridade física é hoje questão pacífica, não apenas pela interpretação literal da norma em questão, que se reporta não só aos maus-tratos físicos mas também aos maus-tratos psíquicos, mas sobretudo porque estas são as duas faces em que se desdobra o direito à integridade pessoal, cuja inviolabilidade se encontra constitucionalmente consagrada - artigo 25.°, n.º 1, da Lei Fundamental.

Acresce que o critério da inserção sistemática não é absoluto mas apenas formal, não sendo sempre absolutamente idênticos os bens jurídicos dos crimes elencados num mesmo capítulo.

Atente-se, aliás, que a Constituição da República consagra o direito à integridade pessoal como um direito fundamental da pessoa humana, impondo o comando constitucional, no seu n.º 2, a proibição absoluta da sujeição de uma pessoa a "tratos (…) cruéis, degradantes ou desumanos". O direito à integridade pessoal insere-se, juntamente com a vida, a liberdade, a segurança, num núcleo de direitos fundamentais, sendo que a violação destes direitos denega, desde logo, a própria dignidade essencial da pessoa humana, que é o primeiro princípio em que se funda Portugal".

As posições doutrinárias que defendem que o bem jurídico tutelado pela incriminação dos maus-tratos conjugais se confina à protecção jurídico-penal da integridade física ou psíquica, ou mesmo da saúde, física ou psíquica, carecem, pois, de suficiente suporte constitucional.

A grande diversidade das condutas que podem integrar este crime é muitas vezes apontada como um factor que obsta à correta identificação do bem jurídico tutelado neste tipo criminal.

Contudo, o facto que unifica estas condutas traduz-se justamente na inflicção de um tratamento ofensivo da integridade e dignidade pessoal, com a consequente impossibilidade de desenvolvimento da personalidade, direito fundamental igualmente reconhecido na Constituição da República - artigo 26.°, n.º 1.

Assim, a ilicitude dos factos em causa radica no exercício desmedido de um poder de facto que atenta contra a integridade, a dignidade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade, violando a regra da igualdade de todos os seres humanos.

E não se reconduz de todo à antijuridicidade de uma agressão física ou psíquica que ofenda apenas a saúde física ou psíquica. E muito menos ainda, como entende alguma jurisprudência, se confina a um ilícito comum de ofensas à integridade física agravado pela especial qualidade da vítima, ou melhor, agravado pela especial relação com o agressor.

Antes, o bem jurídico tutelado pela incriminação dos "maus-tratos" plural e complexo, respeitando à defesa da integridade pessoal individual por referência à protecção da dignidade humana e ao livre desenvolvimento da personalidade.

É importante ter em conta que a diferença significativa entre estas duas concepções sobre qual o bem jurídico tutelado por esta norma - a saúde (física e/ou psíquica) ou a integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade, nos termos acima expostos - releva no que respeita à natureza do crime, designadamente no que toca à questão de saber como e quando se consuma este crime.

Assim, se se entender - como o faz a Doutrina e a Jurisprudência dominante - que o bem jurídico tutelado é a saúde, então o tipo realiza-se apenas quando é produzido um facto que a lese, ou seja quando é infligido um dano que viole esse bem, pelo que esta incriminação revestirá a natureza de um crime de dano, e logo é necessário fazer prova que a conduta do agente teve um resultado lesivo para a saúde da vítima, provocou-lhe um certo e determinado dano.

Se, pelo contrário, se entender que o bem jurídico é a integridade pessoal e o correlativo livre desenvolvimento da personalidade, a consumação do crime ocorre logo que, e desde que, exista um ato, uma conduta, um facto que a coloque em perigo, independentemente do dano efectivamente produzido.

(…) Assim, para além da agressão física, mais ou menos violenta, utilizando-se ou não quaisquer instrumentos, existe a agressão sexual, que se pode traduzir na prática forçada, ou da sua ausência, de qualquer tipo de ato sexual, a agressão psicológica ou psíquica - que se pode traduzir em qualquer sorte de humilhações ou vexames, ou em coagir a vítima a praticar actos que vão contra as suas convicções religiosas, morais ou cívicas, ou ainda no impedimento do seu livre relacionamento com a sua família, amigas/os ou colegas - e a agressão económica, impedindo-se o livre acesso ou gestão de dinheiro ou do património. É multíplice, pois, não só a estrutura naturalística deste tipo de condutas, como também o é a sua forma de comissão, pois podem implicar uma acção, ou traduzir-se numa omissão, por exemplo a não prestação de cuidados médicos ou assistenciais,

Mas o seu fio condutor é sempre o da afirmação de um poder sobre a vida, a liberdade, a segurança, a honra ou o património da vítima. Sendo este facto - a afirmação de um poder - aquilo que verdadeiramente caracteriza, identifica e distingue este crime, e que se afere pelo estado de tensão e medo suportado e vivido pela vítima. Na integração da conduta típica entronca uma velha e despropositada querela, que respeita à questão de saber se a conduta tem ou não de ser reiterada. Um largo sector da Doutrina e da Jurisprudência considerou sempre que o elemento típico objectivo só estaria completo quando se verificasse uma prática reiterada deste tipo de condutas. A actual redacção do normativo pôs fim a esta controvérsia.

Aquela interpretação assentava, essencialmente, numa confusão terminológica entre o conceito psicológico e sociológico e o conceito jurídico de maus-tratos e também numa posição ideológica que se veio a revelar ser de todo desconforme com os valores e objectivos assumidos pela Convenção de Istambul. De facto, do ponto de vista da psicologia e da sociologia, a inflicção de maus-tratos apresenta-se como um processo evolutivo, no qual o ato de agressão pode variar de grau e natureza ao longo de um determinado período de tempo, enquanto que do ponto de vista jurídico o ato de agressão se consuma logo que, e desde que, seja ofendido um bem jurídico. No caso, e como atrás se viu, a integridade pessoal e a dignidade humana, a qual pode ser lesada por apenas um ato naturalístico, que tenha suficiente relevância para a afectar. A exigência legal de uma prática reiterada para a tipificação de uma conduta não pode assentar exclusivamente na análise semântica da locução adverbial "maus-tratos': que remete para um evento não único mas desdobrado no tempo, por ser contrária às regras legais de interpretação da lei»[25].

Para MOREIRA DAS NEVES:

«O tipo objectivo do ilícito de violência doméstica, que tem por referência a inflicção de maus tratos ao cônjuge ou pessoa equiparada, inclui as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.

No que concerne ao bem jurídico tutelado pela incriminação o Comentário Conimbricence do Código Penal, pela pena de Taipa de Carvalho, (se bem que respeitando à redacção do preceito anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) sustenta que é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental-v. Parece-me, contudo, uma conclusão que ficará aquém da dimensão que a Constituição dá aos direitos que aquele tipo de ilícito visa tutelar. Aliás, se bem se vir, a própria descrição típica dimensiona um feixe de tutela de direitos que vai muito além do espartilho da inserção sistemática do tipo de ilícito em causa (o crime de violência doméstica está inserido no capítulo do Código Penal dedicado aos crimes contra a integridade física), bem assim como da dimensão mais ampla que possa ter a saúde individual. Abrange expressis verbis as limitações à liberdade e a liberdade sexual e tutela igualmente a reserva da vida privada e a honra, como veremos.

Os bens jurídicos são, como ensina Figueiredo Dias, uma combinação de valores fundamentais, por referência à axiologia constitucional. São os entes que visam o bom funcionamento da sociedade e as suas valorações éticas, sociais e culturais. Em registo de sintonia, para Roxin, os bens jurídicos são «realidades ou fins úteis para o desenvolvimento individual e para o livre desenvolvimento da sua personalidade, como parte de um sistema orientado para esse objectivo ou para o funcionamento do próprio sistema» Ora, a integridade pessoal e física das pessoas, mais que um direito organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, constitui um valor umbilicalmente relacionado com a sua dignidade. O princípio da dignidade da pessoa humana constitui a base de todos os direitos constitucionalmente consagrados. «Os direitos fundamentais não têm sentido nem valem apenas pela vontade (...) que historicamente os impõe. A integridade pessoal aparece assim erigida em bem jurídico autónomo, pluriofensivo, arrimado ao artigo 25.º da Constituição'. Será por isso redutor considerar que a criminalização do maltrato do cônjuge ou pessoa equiparada se reconduz, afinal, como acontece em França, a uma mera qualificação de outros ilícitos típicos que tutelam outros bens jurídicos, em razão da qualidade da vítima. Quer-me parecer, ao invés, que esta incriminação visará punir condutas violentas (de violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual), dirigidas a uma pessoa especialmente vulnerável em razão de uma dada relação (conjugal ou equiparada), que se manifestam num exercício ilegítimo de poder (de domínio) sobre a vida, a integridade física, a liberdade, a honra, etc. do outro, caracterizado as mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima (sendo esta bastas vezes reduzida a uma mera «coisa»)

Assim, quando, por exemplo, o comportamento ilícito se quedar em «meras» injúrias, ainda que numa única injúria e, digamos, uma injúria «leve», mas que indubitavelmente afecte a honra (sem o que não haveria, sequer, crime), se a vítima for o cônjuge ou figura equiparada (als. b) e c) do n.º 1 do artigo 152.º) será ainda necessário aquilatar se a actuação ilícita o foi com tal intensidade ou em circunstâncias tais que permitem concluir ter sido atingido o núcleo da integridade pessoal do ofendido, a sua dignidade ou o livre desenvolvimento da sua personalidade. Nessa tarefa, o inciso vocabular inserto no n. º 1 do actual artigo 152.º «de modo reiterado ou não», reportando-se ao comportamento ilícito, mais do que turvar o intérprete, poderá servir de alerta para lembrar que a autonomia do crime de violência doméstica sobre o cônjuge (ou figura análoga) não se funda apenas na qualidade da vítima, mas na autonomia do bem jurídico tutelado. Como assim, haverá casos em que uma agressão física ou meramente verbal de um cônjuge (ou pessoa equiparada) ao outro não vá além do crime de ofensa à integridade física, do crime de ameaça ou do crime de injúria. Será sempre o conjunto das circunstâncias de facto que demonstrará, havendo ou não reiteração, se ocorreu ofensa à integridade pessoal, isto é, se os factos, apreciados à luz da especial relação entre agressor e vítima, colocam esta numa situação que se deva considerar incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal ou equiparado (presente ou passado). Ou, dizendo de outro modo, se se atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade, se com tal actuação o agressor procurou reduzir a vítima a uma mera “coisa”»[26].

Como considera CONDE FERNANDES:

«Enquadrar a violência doméstica, na realidade sócio-cultural actual, implica ainda considerar factos que podem integrar a prática de tipos-legais de crime - em concurso efectivo ou aparente - como a ofensa à integridade física, ameaça, sequestro, coacção, injúria, difamação, devassa da vida privada, violação de correspondência, gravações e fotografias ilícitas, dano, coacção sexual, violação, abuso sexual de menores, homicídio na forma tentada ou consumada.

Importa considerar, ainda, a nova redacção do tipo-legal, previsto no n.º 1 desse artigo, que integra nas suas alíneas uma multiplicidade de possíveis sujeitos passivos do crime, filiados numa relação, presente ou pretérita, de conjugalidade ou união de facto, mesmo sem coabitação, ou numa relação de mera coabitação latu sensu, com pessoa particularmente indefesa.

Seguindo o entendimento maioritário na jurisprudência e de acordo com a noção proposta por Taipa de Carvalho, a tutela funda-se no princípio da igual dignidade da pessoa humana, proclamado no artigo 1.º da Constituição da República.

Trata-se de eliminar desigualdades que, atingindo níveis insuportáveis, têm vindo a ser corrigidas também pela intervenção do direito penal.

A que acresce a garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, consagrada no artigo 25.° da Constituição da República, que constitui o "núcleo de protecção absoluta do direito fundamental à liberdade pessoal.

Não se vê, assim, razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico com­ plexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral.

A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos.

A tutela do bem jurídico é projectada numa relação de afectividade ou coabitação, que pode materializar-se em casamento ou relação análoga, com ou sem coabitação, ou em mera coabitação quando a vítima seja pessoa particularmente indefesa. Sempre pressupondo um nexo relacional, presente ou pretérito, de vida em comum, numa acepção ampla do termo, sendo em certos casos para tutela do seu património afectivo comum. É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.

(…) Em suma, pese embora a supressão da distinção entre maus-tratos reiterados e intensos operada em processo legislativo, entende-se que um único acto ofensivo – sem reiteração – para poder ser considerado maus tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua, na redacção vigente, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do, resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido - mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana. A intensidade da ofensa exigida para a verificação típica, respeitando um parâmetro objectivo, dependerá das circunstâncias do caso concreto. Embora facilmente se conceba que nas situações previstas na alínea d) do n.º 1, do artigo sub judice, por estarem em causa vítimas especialmente vulneráveis, a intensidade objectivamente exigida será, neste caso, menor» [27].

MARIA ELISA FERREIRA considera que «a interpretação literal que pugna pela inexigibilidade da intensidade da ofensa, que subscrevemos, salvaguarda de forma mais adequada a tutela do princípio da legalidade penal, por contraponto à posição doutrinal e jurisprudencial dominante, uma vez que vislumbramos aqui uma tentativa de interpretação correctiva ou pelo menos, a adesão a uma interpretação que faz perigar as exigências de determinação que procedem da vertente de lege praecisa, constitutiva do princípio da legalidade penal, ao atingir-se por via interpretativa o resultado de que o tipo legal do artigo 152.º exige que os maus tratos sejam reiterados ou intensos, resultado esse que não decorre directamente da letra da lei. É indubitável que, pelo menos do ponto de vista formal, as condutas típicas ínsitas na previsão do artigo 152.º do Código Penal são os maus tratos físicos e psíquicos, incluindo os castigos corporais, as privações da liberdade e as ofensas sexuais, comportamentos que, à partida, pressupõem reiteração. Quando estas acções ou omissões não forem reiteradas, entendemos que o que ditará o seu enquadramento no artigo 152.º, com o consequente afastamento dos tipos legais simples respectivos, será não apenas a gravidade intrínseca da conduta praticada, e bem assim, o resultado produzido, na perspectiva das consequências materiais para a saúde da vítima, mas também o juízo que, em concreto, se venha a fazer, sobre se aquela conduta se traduziu, ou não, na colocação em causa da pacífica convivência familiar ou doméstica. Defendemos, por isso, que o bem jurídico protegido pelo artigo 152º é um bem jurídico complexo que tutela, ainda que de forma reflexa ou secundária, esta dimensão relacional característica de uma relação de convivência, ainda digna de crítica ao pseudo pressuposto da intensidade no tipo legal de violência doméstica Uma conduta isolada, que até nem assuma especial intensidade do ponto de vista material da saúde da vítima, pode comprometer a pacífica convivência familiar ou doméstica, pode corromper toda a relação de confiança pré-existente e, logo, ser enquadrável no artigo 152.º. (…) Para admitirmos que, no âmbito do artigo 152.º do Código Penal, o legislador quis tutelar algo mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, valorizamos o argumento, que consideramos decisivo, de que se o legislador decidiu punir as violências exercidas no âmbito familiar e similares, e não noutras situações, de forma mais grave, o que nos leva a concluir que o bem jurídico a proteger terá que conectar-se com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. (…) Teremos, qualquer que seja o entendimento adoptado quanto à relação que subsiste entre o artigo 143º ou 145º e o artigo 152º, uma situação de concurso aparente. Mas parece-nos acertada a classificação desta relação como tratando-se de uma relação de especialidade. Na verdade, existe uma coincidência parcial na descrição da conduta típica, sendo o tipo legal ínsito no artigo 152º mais abrangente que os artigos 143º ou 145º. O problema essencial residirá na delimitação da aplicação entre o artigo 145º e o artigo 152º, na medida em que, por remissão para o artigo 132º, os dois artigos reproduzem, no essencial, para o que aqui releva, o mesmo elenco de vítimas. O que os distingue? O que levará o aplicador do direito, no caso concreto, perante o aparente preenchimento dos dois tipos legais, a optar por um deles? A resposta passará pelo reconhecimento da regra elementar de interpretação no direito de que a norma especial derroga a norma geral. No caso, dado como assente que o artigo 152º é uma lex specialis em relação ao artigo 145º, o plus que esta norma acrescenta e que levará à sua aplicação primordial, com preferência sobre o artigo 145º, terá que encontrar-se no reconhecimento da tutela de um bem jurídico pluriofensivo, que protege reflexamente uma especial relação de confiança e/ou de convivência posta em perigo ou efectivamente lesada com a prática da conduta típica. (…) Em síntese, podemos afirmar que, a nosso ver, é claro que o artigo 152.º do Código Penal não exige que a conduta a subsumir a este tipo legal se revista de particular intensidade. A inserção da conduta no artigo 152.º ou nos tipos legais simples, como o artigo 143.º ou o artigo 181.º, dependerá do juízo que fizermos sobre se a conduta material em causa representou, em concreto, uma violação do bem jurídico protegido pelo tipo legal, que é um bem jurídico complexo, que compreende, reflexamente, a convivência familiar, para-familiar ou doméstica, uma confiança relacional. Tal determina que, uma conduta materialmente não grave (não intensa, na terminologia adoptada pela jurisprudência) poderá afrontar o bem jurídico protegido, porque poderá abalar as bases de confiança em que se funda aquela relação familiar ou a convivência doméstica, mas também porque uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não doméstico. Deste modo, será forçoso concluir que a corrente interpretativa perfilhada pelo Acórdão em crise, no sentido de considerar a intensidade como requisito constitutivo do tipo objectivo de ilícito não encontra a mínima adesão na letra da lei ou na teleologia da norma. Também será de rejeitar a tese da exigência de uma especial intenção do agente, para além do requisito geral do dolo, para encontrarmos preenchido o tipo subjectivo de ilícito, por apelo à verificação de uma particular intenção do agente de domínio sobre a vítima, mais de trinta anos volvidos sobre a criminalização dos maus tratos no âmbito doméstico e familiar. Interpretações do tipo legal ínsito no artigo 152.º do Código Penal como as que aqui reproduzimos colocam em causa a integridade do edifício legislativo de protecção efectiva da vítima de violência doméstica” [28].

           O sumário do acórdão do STJ de 02-07-2008, proferido no processo n.º 07P3861 (Relator: Cons. Raul Borges) oferece-nos, uma síntese, que importa reter, sobre os entendimentos expressos na doutrina sobre o bem jurídico protegido por esta norma incriminadora.

            Assim, lê-se em tal aresto:

          «Segundo Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 132), a ratio do art. 152.º do CP não está “na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”, indo muito mais além “dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas”, acrescentando que “o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental”.

            […] Para Augusto Silva Dias (Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, pág. 110), bens jurídicos protegidos pelo tipo incriminador do art. 152.° são a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (no caso das als. b) e c) do n.º 1) em contextos de subordinação existencial (n.º l), coabitação conjugal ou análoga (n.º 2), estreita relação de vida (n.º 3) e relação laboral (n.º 4).

            […] Segundo Maria Manuela Valadão e Silveira (Sobre o crime de maus tratos conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, ed. da UAL, págs. 32-33 e 42), “o n.º 2 do art. 152.º do CP protege em primeira linha a integridade, a saúde, nas suas dimensões física e psíquica. Contribui, desta forma e em uníssono, com os outros tipos incriminadores do capítulo, para densificar o valor constitucional da integridade, que se analisa no n.º 1 do art. 25.º da Constituição, em integridade moral e física”. E adianta que “a ‘mais valia’ que o tipo incriminador trouxe à sociedade portuguesa, a partir de 1982, foi o reconhecimento ou, até, o aviso expresso de que o bem jurídico integridade pessoal é tutelado penalmente, mesmo quando as denegações desse bem jurídico ocorram intra muros de uma sociedade conjugal. Ou seja, a integridade pessoal mantém o seu valor, apesar da família”.

          […] No mesmo sentido se pronunciaram diversos arestos deste Supremo Tribunal, de que é exemplo o acórdão, de 30-10-2003, proferido no Proc. n.º 3252/03 -5.ª (CJSTJ, 2003, tomo 3, págs. 208 e ss.), no qual se considerou que “O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar”.

          […] Afirma Plácido Conde Fernandes (Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305) que não se vê “razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos”».

           Mais recentemente, o acórdão deste Supremo Tribunal de 20-04-2017, proferido no processo n.º 2263/15.8JAPRT. P1.S1 – 5.ª Secção (Relator: Cons. Nuno Gomes da Silva), retomou a questão do bem jurídico garantido pelo artigo 152.º do Código Penal, referindo-se a tal propósito que:

            «Tem sido notada na doutrina [[29]] alguma flutuação doutrinal e jurisprudencial sobre a identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica.

           Generalizadamente, porém, se aponta como carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa [[30]]-[[31]] entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa porém, como também já foi salientado, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada[[32]].

           A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto.

            Frise-se que a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.

            Mas a violência doméstica pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura»[[33]] que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc.

            Serão estes, porventura, os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.

            Assumindo que a violência doméstica é essa agressão levada a cabo de modo variado à autodeterminação da vítima que fica afectada pelos vários comportamentos tipificados não parece intransponível que esse ataque possa ser tido como dirigido à dignidade da pessoa e que seja esse um dos âmbitos de tutela que se visa assegurar[[34]]».

            No âmbito da descrição do elemento objecto do tipo em análise, os maus-tratos físicos podem envolver, segundo FERNANDO SILVA, «várias formas de lesão na integridade física, desde agressões a sobrecargas físicas. Os maus-tratos psíquicos podem resultar das mais diversas formas que envolvam situações de ameaça, coacção, ofensas à honra ou qualquer outra que envolva sentimento de medo, de pressão psicológica, que impeçam a pessoa de viver livre deste tipo de acção. Normalmente mais silenciosos, menos visíveis, traduzem comportamentos insidiosos que se arrastam no tempo e que comprometem o bem-estar emocional da pessoa»[35].

            Observa-se aqui, para o autor que se vem de citar, um «evidente objectivo de responsabilizar qualquer tipo de abuso sobre a pessoa do outro, que implique o desrespeito pela sua pessoa, pela sua vontade ou pela sua dignidade e de conter um conceito de maus-tratos suficientemente abrangente para poder nele integrar todas as formas de actuação sobre a vítima»[36].

           A relação existente, ou que existiu, entre o agente e a vítima determina uma valoração mais desvaliosa do acto agressivo (maior grau de ilicitude), implicando igualmente um juízo agravado de culpa decorrente do facto, como bem salienta o autor citado, do cônjuge «vencer as contra-motivações éticas por força da relação de intimidade e proximidade que os une [ou que os uniu] e que, ao agir deste modo, o agente contraria»[37].

           Ainda no âmbito da caracterização do crime de violência doméstica, dir-se-á, como observa ANDRÉ LAMAS LEITE, que «será difícil apontar um tipo legal em cuja base se encontre um bem jurídico tão multímodo como o da violência doméstica», sustentando que a doutrina e a jurisprudência se devem concentrar na busca de um «bem jurídico suficientemente amplo e operativo»   [38].

            Como pondera este autor, «o fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo», sendo o bem jurídico assim identificado, uma «concretização do direito fundamental da integridade pessoal (art. 25º CRP), do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26º CRP), ambos emanações directas do princípio da dignidade da pessoa humana»[39].

           Trata-se, enfim, da protecção da dignidade de quem vive (ou viveu) em relação íntima com outrem.

           Como exemplos de agressões que entram na esfera dos maus-tratos físicos, e que podem ser excluídas das ofensas corporais, aponta NUNO BRANDÃO, os «empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos» E como exemplos de maus-tratos psíquicos «os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, certas ameaças, as privações de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras»[40].

Posto isto, consideramos que efectivamente o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é plural e complexo, na medida em que integra a saúde (física e/ou psíquica), mas também a integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade, respeitando à defesa da integridade pessoal individual por referência à protecção da dignidade humana.

Dito de outra forma, o bem jurídico protegido pela norma é, em geral, o da dignidade humana e, em particular o da saúde que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que ora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade e integridade pessoal do cônjuge ou da pessoa que com o agente conviva ou conviveu em condições análogas às dos cônjuges ou em relação de namoro e, nessa medida, seja susceptível de colocar em causa o supra referido bem estar.

O crime de violência doméstica é um crime de execução não vinculada, podendo as condutas típicas revestirem várias espécies. «Maus tratos» significa o exercício de violência física, psíquica, económica, espiritual e estrutural, ou seja, uma realidade plural, que afecta a saúde da vítima e a sua dignidade de pessoa humana.

Entre a multiplicidade de comportamentos que podem ser tidos como «maus tratos físicos» encontram-se aqueles que visam directamente o corpo da vítima e que por norma integram o crime de ofensa à integridade física simples, como murros, bofetadas, pontapés, puxões de cabelos, apertões, empurrões ou pancadas com objectos[41].

Como exemplos de «maus tratos psíquicos» temos os insultos, as humilhações, as provocações, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórias, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as privações de liberdade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou o acesso a certas zonas da habitação comum, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras[42].

De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime as condutas que integram o tipo-de-ilícito não são individualmente consideradas, enquanto, eventualmente, integradoras de um tipo de crime, para serem atomisticamente perseguidas criminalmente mas, antes, são valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido ou isolado que signifique violência sobre o cônjuge ou equiparado.

Ou seja, daqui se extrai que entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física simples; ameaça; injúria e difamação – que o podem integrar – estabelece-se uma relação de concurso aparente, só se aplicando a pena estabelecida pelo artigo 152º, n.os 1 e 2 e deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os crimes que o podem integrar.

A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime.

O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é apelidado por realização repetida do tipo[43].

Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19.º, n.º 2 do Código Penal mas que constituem um único crime; inexiste pluralidade de crimes mas antes pluralidade no modo de execução do mesmo, ou seja, a execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constituirá o evento do crime único.

A nível do tipo subjectivo de ilícito, exige-se o dolo (em qualquer uma das suas modalidades – art. 14.º do CP dolo directo, necessário e eventual). O factor intelectual deste crime consiste no conhecimento dos seus elementos objectivos, isto é, no facto de o agente do crime ter conhecimento da relação que o une à vítima e de que a sua conduta, traduzida numa acção ou omissão, ofender a integridade/dignidade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade da vítima. A componente volitiva do dolo traduz-se no acto de querer a conduta típica[44].

O crime em causa também se preenche mesmo que não haja reiteração quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos, ou seja, também se preenche pela prática de um acto isolado.

Relativamente à intensidade das ofensas, o certo é que no ante­projecto e da proposta de lei constava, a alternativa de «modo intenso ou reiterado» e a opção legislativa – com a Lei n.º 52/2007, de 04-09 - ficou de modo reiterado ou não, caindo «o modo intenso», pelo que não se pode de antemão e de forma cega, assumir que a intensidade do acto praticado e/ou «assumir carácter violento» é exigida para a verificação típica[45].

Entendemos que efectivamente apenas nas circunstâncias do caso concreto podemos concluir pela violação do bem jurídico em causa. Assim, dependendo da imagem global do facto é que poderemos concluir se o desvalor da acção e do resultado são aptos para molestar o bem jurídico protegido, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.

Revertendo ao caso concreto.

Vejamos o que foi dito no acórdão recorrido quanto à integração dos factos no crime de violência doméstica em apreço:
«Os comportamentos atribuídos ao arguido consistiram em ameaçar a ofendida, ir esperá-la ao local de trabalho sem avisar e num contexto de desentendimento, após término da relação de namoro que haviam mantido, constrange-la a ouvir expressões ofensivas por si proferidas, obrigar a ofendida a desviar-se do seu trajecto e a refugiar-se na estação de metro, agredir a ofendida, limitar a arguida na sua liberdade de movimentos, ofendê-la, pelo menos 3 vezes, com as expressões descritas nos pontos 22 e 23 dos factos provados.
Como refere o MºPº recorrente na bem elaborada motivação, citando Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, …”o crime de violência doméstica está numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, com os de ameaças simples ou agravadas, com o de coacção simples, com o de sequestro simples, com o de coacção sexual e com outros crimes contra a honra.”
E com a publicação de lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ficou consagrado o entendimento jurisprudencial que defendia que a reiteração dos comportamentos não era elemento essencial do tipo de crime.
No caso vertente, as condutas do arguido surgem já finalizada a relação de namoro, traduzem-se em impor à ofendida comportamentos ofensivos da sua saúde física e psíquica com total insensibilidade pela sua condição de grávida e desrespeito pela sua vontade de não tratar com o arguido, de o ouvir, de com ele não privar e de não ser insultada por ele.
E analisados os factos não pode deixar de se concluir pela intenção do arguido.
Como refere o MºPº recorrente…” não só agrediu fisicamente a ofendida pois, por duas vezes, agarrou-a pelo pescoço, …, limitou-a na sua liberdade de movimentos (11.03.2017), ameaçou-a (entre Agosto e Dezembro de 2016) proferiu várias expressões que atentaram contra a sua honra /11.03.17 e 08-05-17) e que a perturbaram (Março a Maio de 2017), causando-lhe sofrimento físico e psicológico…”, demonstrando total insensibilidade para com o facto de a mesma se encontrar grávida.»

Consideramos que efectivamente o acórdão recorrido efectuou uma correcta e ponderada qualificação jurídica dos factos em causa.

No caso em apreço, e sem mais delongas, diremos que resultou provado, à saciedade que a situação objecto dos presentes autos constitui um comportamento por banda do arguido que preenche, inequivocamente, atenta a factualidade vertida nos factos 1. a 26. os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime ora em apreço, pelo que, forçoso é que se conclua que o arguido incorreu na prática de um crime de violência doméstica – seja na sua vertente de maus tratos físicos seja na sua vertente de maus tratos psíquicos, evidenciando uma total insensibilidade para com o facto de a ofendida se encontrar grávida.

O arguido infligiu maus tratos físicos à ofendida (sua ex-namorada) na medida em que ofendeu à integridade física da ofendida CC no dia 11-03-2017 apertando-lhe o pescoço por duas vezes, agindo com o propósito concretizado de molestar CC no seu corpo e na sua saúde, causando-lhe dores, tendo inclusive sido assistida no Hospital.

Mas não se bastou com estes actos, por sua vez o arguido infligiu maus tratos psíquicos à ofendida (ex-namorada) - humilhou-a, achincalhou-a, atingindo a honra desta - ao afirmar em 11-03-2017 «devias abortar, andas com vários homens, o filho não é meu, não estamos juntos, não temos condições para ter uma criança, não o vou assumir nem sustentar»; quando entre 11-03-2017 e 08-05-2017 afirmou à ofendida pelo menos por 3 vezes «O filho não é meu, andas com outros» e mensagens de facebook entre Março e Maio de 2017 insistindo que aquela teria um novo namorado, desrespeitando a vontade da mesma em não tratar com o arguido, de não falar com ele, e de não ser insultada - e praticou acção ameaçadora – entre Agosto de 2016 e o mês de Dezembro de 2016 (no período onde ainda mantinham a relação de namoro) afirmando que aquela ficaria sem pernas, a que acresce a vergonha e humilhação da agressão numa estação do metropolitano (local público) e na presença de terceiros.

Conforme bem refere MOREIRA DAS NEVES, «Será sempre o conjunto das circunstâncias de facto que demonstrará se ocorreu ofensa à integridade pessoal, isto é, se os factos, apreciados à luz da especial relação entre agressor e vítima, colocam esta numa situação que se deva considerar incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal ou equiparado (presente ou passado). Ou, dizendo de outro modo, se se atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade».

A reiteração dos comportamentos do arguido, começando com a ameaça (ficar sem pernas) à ofendida enquanto ainda eram namorados, seja quando já tinham terminado a relação de namoro, na abordagem da ofendida no dia 11-03-2017 junto ao local do trabalho da mesma, sendo que durante o percurso, bastante longo, diga-se, a humilhou ao dizer que «devias abortar, andas com vários homens, o filho não é meu, não estamos juntos, não o vou assumir nem sustentar», perseguindo-a para dentro da estação de Metro, contra a vontade desta, sendo que aí lhe apertou o pescoço por duas vezes, actos assistidos por terceiros (sendo que foi chamado ao local a PSP e os bombeiros) e foi assistida em Centro Hospitalar, e as posteriores mensagens durante vários meses a insistir que o filho não era do mesmo e que a ofendida andava com outros, são actos de enxovalho e perseguição, visando minimizá-la e desconsiderá-la, querendo, criar-lhe perturbação e clima de terror nocivo à estabilidade emocional, bem sabendo que esta estava grávida e obviamente que nesse estado encontrava-se mais vulnerável – são actos que conjugados entre si têm repercussões inequívocas e inevitáveis no bem-estar físico e psíquico da mesma.

Ou seja, são factos que apreciados à luz da especial relação entre agressor e vítima, colocam esta numa situação que se deve considerar incompatível com a sua dignidade e liberdade individual – visando minimizá-la e desconsidera-la, criando medo, perturbação e um clima nocivo à estabilidade emocional de CC - integrando assim plenamente o aludido ilícito criminal de violência doméstica que vinha imputado.

Mostram-se pois reunidos todos os elementos do tipo de ilícito de violência doméstica, e uma vez que não existem causas que excluam a ilicitude ou dirimam a responsabilidade do arguido, bem andou o Tribunal da Relação na condenação do arguido AA, como autor material e na forma consumada, pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto

2.2.4. Medida da pena

Em conformidade com o disposto no artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, a conduta do arguido é abstractamente punida com pena de 1 ano a 5 anos de prisão.

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, a medida da pena é determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o artigo 40.º, n.º 2, do mesmo Código.

Na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (artigo 71.°, n. ° 2, do Código Penal).

Sobre a determinação da pena, em razão da culpa do agente e das exigências de prevenção, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15-12-2011, proferido no processo n.º 706/10.6PHLSB.Sl – 5.ª Secção (Relator: Cons. Rodrigues da Costa), convocado, mais recentemente no acórdão de 27-05-2015, proferido no processo n.º 445/12.3PBEVR.E1.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. João Silva Miguel):

«Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP).

Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.

Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, pp. 227 e ss.).

Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível ( ... ) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, oh. cit., p. 231).

Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.° do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do principio da proibição da dupla valoração.»

Como também se lê no acórdão deste Supremo Tribunal, de 03-07-2014, proferido no processo n.º 1081/11.7PAMGR.C1.S1 - 3.ª Secção (Relator: Cons. Oliveira Mendes)), «a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização».

Como justamente refere MARIA JOÃO ANTUNES, «[s]e a medida da pena é a protecção de bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na sociedade, e se a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (artigo 40.°, n.ºs 1 e 2, do CP), então a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, sem ultrapassar a medida da culpa, actuando os pontos de vista de prevenção especial de socialização entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de tutela de tais bens»[46].

A medida da pena, considera a mesma autora, «há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida»[47].

Nos termos do artigo 71.° do Código Penal, a medida concreta da pena é fixada em função da culpa e das exigências da prevenção, devendo atender, nomeadamente, à ilicitude do facto, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados na prática do crime e à sua motivação, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior aos factos, à sua falta de preparação para manter conduta licita.

Na realização dos fins das penas - protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.°, n.º 1 do Código Penal) - as exigências de prevenção geral constituem, uma finalidade de primordial importância.

Essa finalidade de prevenção geral pretende acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial.

Relembrando asserções já tecidas, e convocando o ensinamento de FIGUEIREDO DIAS, «A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida»[48].

Como já se consignou, citando-se MARIA JOÃO ANTUNES, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida.

Significando a prevenção geral positiva ou de integração, sublinha-o AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, que a pena é um meio de interpelar a sociedade e cada um dos seus membros para a relevância social e individual do respectivo bem jurídico tutelado penalmente.

A prevenção geral positiva tem ainda, considera o mesmo autor, a dimensão ou objectivo da pacificação social ou, por outras palavras, do restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva ou individual. Esta mensagem de confiança e de pacificação social é dada, especialmente, através da condenação penal, enquanto reafirmação efectiva da importância do bem jurídico lesado[49].

Mas a pena tem também uma função de prevenção geral negativa ou de dissuasão da prática de futuros crimes.

Nesta perspectiva, como justamente é lembrado no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15-05-2013, proferido no processo n.º 154/12.3JDLSB.L1.S1- 3.ª Secção (Relator: Cons. Santos Cabral):

«[O] ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação. Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial.

Por consequência a pena deve ponderar, também, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido e de não prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável. Esta exigência está plasmada na fórmula de Koblrausch sobre a prevenção especial "Na individualização da pena o tribunal deve considerar os meios necessários para reconduzir o arguido a uma vida ordenada e ajustada à lei".

Salienta Jeschek que, na prevenção especial, se contem a protecção da comunidade face ao delinquente perigoso o que é, frequentemente, esquecido.

Por fim a prevenção geral é um fim indispensável da pena pois que esta deve ser ponderada por forma a neutralizar os efeitos do delito como exemplo negativo para a comunidade e deve contribuir, simultaneamente, para fortalecer a sua consciência jurídica assim como a satisfazer o pedido de justiça por parte do círculo de pessoas afectadas pelo delito e pelas suas consequências (confirmação da ordem jurídica).

Estamos em crer que é nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena. Na verdade, as normas deveriam "ser reafirmadas na sua própria existência como um fim em si mesmas" enquanto o agente, pelo contrário, tem direito a esperar, e espera, sobretudo uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção.

Sem embargo, a culpa e a prevenção residem em planos distintos. A culpa responde á pergunta de saber se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção. Aqui há que decidir qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico.

A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente a finalidade da mesma.

Em termos dogmáticos é fundamento da individualização da pena a importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo.»

Revertendo ao caso concreto:

São, evidentes e prementes as exigências de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de crimes que põem em causa valores nucleares da sociedade.

Consequentemente, em termos de prevenção geral, tanto positiva, como intimidatória, as necessidades de endurecimento da reacção penal fazem-se sentir de forma elevada, perante a revolta gerada junto da população em geral pelo tipo de criminalidade ora em apreço – violência doméstica - que infelizmente surge com frequência, por vezes com consequências graves para as vítimas, perturbando os princípios fundamentais de vivência em sociedade e causando insegurança na comunidade.

Veja-se, neste sentido, o já citado acórdão deste Supremo Tribunal de 07-02-2018:

 «A nível da prevenção geral, as exigências são fortíssimas, atendendo à persistência e à disseminação do fenómeno da violência doméstica, que não dá mostras de retrocesso, mau grado todas as medidas de ordem preventiva e repressiva adoptadas. As últimas estatísticas conhecidas, relativas ao ano de 2016, confrontadas com as de 2015, revelam a grande dimensão a nível nacional e a persistência (inclusivamente a expansão) deste fenómeno criminal.»

Também no acórdão deste Supremo Tribunal de 10-11-2016 (Proc. n.º 163/14.8GBSTC.S1 - 5.ª Secção) se frisam as exigências de prevenção geral positiva ou de integração muito elevadas no âmbito da violência doméstica, «desde logo dada a incidência deste tipo de criminalidade na sociedade portuguesa actual».

No caso presente, é elevado o grau de ilicitude dos factos na medida em que pese embora as agressões não tenha revestido grande intensidade, o arguido tinha plena consciência que a ofendida estava grávida e da inerente especial vulnerabilidade, assumindo a culpa do arguido a forma de dolo directo.

O arguido encontra-se inserido social e profissionalmente, todavia, não existem circunstâncias atenuantes que devam ser tidas em consideração.

O arguido já foi condenado duas vezes pela prática do mesmo crime, sendo a terceira condenação e praticou os factos em apreço, no decurso da suspensão da execução da pena de prisão de ambas as anteriores condenações (nas quais foi condenado em penas de 4 anos e 2 anos de prisão) e trata-se da terceira vítima.

Assim reafirmamos que, no que concerne às exigências de prevenção geral, as mesmas se fixam num grau muito elevado, exigindo a comunidade uma repressão eficaz destas condutas delituosas com o fim de prevenir a sua renovação.

E também concluímos que são muito fortes e intensas as exigências de prevenção especial face aos antecedentes criminais do arguido, observando-se aqui uma personalidade mal formada, propensa à prática de ilícitos da mesma natureza, tudo a exigir uma forte ressocialização.

À luz dos critérios que se enunciaram e das considerações expendidas acentuando-se as exigências de prevenção geral que assumem aqui uma especial intensidade, julgamos justa e adequada a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido pelo Tribunal da Relação.

2.2.5. Suspensão da execução da pena de prisão

O artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal estabelece que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente aa finalidades da punição.

Pressuposto formal de aplicação da suspensão da pena de prisão é que a medida da pena não seja superior a cinco anos. Para além deste pressuposto formal, impõe-se o preenchimento do pressuposto material, isto é, a opção pela suspensão da execução da pena depende de um juízo de prognose favorável que não dispensa a compreensão da pessoa do arguido a induzir o seu comportamento futuro.

«Pressuposto material de aplicação do Instituto - considera FIGUEIREDO DIAS - é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta - «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade», acrescentando que «para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto»[50].

Por outro lado, há que ter em conta que a lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.

Acompanhando o mesmo autor, «a finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer "correcção", "melhora" ou - ainda menos - "metanoia" das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de "legalidade" e não de "moralidade" que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o "conteúdo mínimo" da ideia de socialização, traduzida na "prevenção da reincidência"».

Ainda segundo o Mestre que vimos citando, «apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime», pois «estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise»[51].

Também MARIA JOAO ANTUNES salienta que «[s]ão finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial, que justificam e impõem a preferência por uma pena não privativa da liberdade, sem perder de vista que a finalidade primordial é a de protecção de bens jurídicos»[52].

Como este Supremo Tribunal tem referido, como, de entre outros, no acórdão de 21-01-2015, proferido no processo n.º 12/09.9GDODM.Sl - 3.ª Secção[53], invocado no acórdão de 17-03-2016 (Proc. n.º 32/13.9JACBR.C1.51- 3.ª Secção) - esta medida tem na sua base «uma prognose social favorável ao arguido, a esperança fundada e não uma certeza - assumida sem ausência de risco - de que a socialização em liberdade se consiga realizar, que o condenado sentirá a sua condenação como uma advertência séria e solene e que em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito», medida que se insere «num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos».

Acompanhando-se o acórdão deste Supremo Tribunal, de 18-06-2015, proferido no processo n.º 270/09.9GBVVD. 5.ª Secção (Relator: Cons. Souto de Moura):

«É sabido que só se deve optar pela suspensão da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro. A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.

Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjectiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso (Cfr. Figueiredo Dias, in "Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime", pag. 344).

De um lado, cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição, Numa perspectiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado.

Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal. Acresce que a aposta que a opção pela suspensão, sempre pressupõe, há-de fundar-se num conjunto de indicadores que a própria lei adianta. Personalidade do agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias deste.»

O pressuposto material da suspendo da execução da pena, salienta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «é o da adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão às necessidades preventivas do caso, sejam elas de prevenção geral, sejam de prevenção especial»[54].

A suspensão da execução da pena assenta, pois, na formulacão de um juízo de prognose, referido ao momento da sentença (e não ao momento da prática do crime), favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, na formulação de um Juízo de que ele não praticará novos crimes.

De acordo com a matéria fáctica assente, o arguido-recorrente regista condenações anteriores pela prática dos mesmos crimes pelo qual foi condenado, por duas vezes em penas de prisão suspensas na sua execução:

Assim, foi condenado:

- Por decisão de 09-07-2013 (transitada em 08-08-2013), pela prática em 31-08-2012, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, als. b) e c) e n.º 4 do CP, na pena de 4 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período e na pena acessória de proibição de contactos pelo período de 2 anos;

- Por decisão de 27-09-2016 (transitada em 27-10-2016) pela prática em 23-08-2013 de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b) do CP, na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período e na pena acessória de proibição de contactos pelo período de 2 anos;

Como resulta dos seus antecedentes criminais, com a presente condenação o arguido é a terceira vez que é condenado pela prática do crime de violência doméstica. A segunda condenação é praticada no período da suspensão da execução da pena da primeira condenação (cerca de 20 dias depois do trânsito em julgado da primeira condenação) e por sua vez os factos em causa nesta (terceira) condenação são praticados no decurso da suspensão da execução da pena das duas condenações anteriores. Este conjunto de condenações e este sucessivo comportamento do arguido revelam uma assinalável indiferença relativamente às mensagens corporizadas nas correspondentes condenações.

Resulta das certidões das sentenças das duas condenações anteriores, que em cada uma das condenações, as vítimas são diferentes. Isto é, esta terceira condenação por crime de violência doméstica, corresponde à terceira vítima.

Nestas condenações, assume relevo, a reiteração do comportamento. O arguido num espaço curto de tempo (entre 2012 a 2017) evidenciou um comportamento reiterado de desrespeito pela dignidade da pessoa humana – desrespeito pelas mulheres que com ele mantiveram uma relação amorosa - replicando o comportamento com três mulheres diferentes, fazendo tábua rasa das condenações em pena de prisão suspensa na sua execução a que foi sujeito.

Ora, não obstante a medida concreta da pena aplicada o permitir, no caso consideramos não se justificar a suspensão da pena de prisão uma vez que tal se não afigura adequado e suficiente para assegurar as finalidades da punição, muito em particular, as que se referem à prevenção do cometimento de futuros crimes.

Importa que o arguido ganhe consciência do dever-ser da vida em sociedade e do respeito pelos bens jurídicos legalmente protegidos.

A reiteração da conduta do arguido, ora recorrente, revelada nas condenações já sofridas indica a ausência de um juízo critico sério, e gerando grande incerteza quanto ao seu posicionamento futuro perante a vida em sociedade e as suas normas de conduta.

Conforme acima fizemos referência as exigências de prevenção geral são muito elevadas - face ao elevado número de casos de violência doméstica e das consequências dos mesmos para as vítimas - e as exigências de prevenção especial também o são, dado o comportamento evidenciado pelo arguido de total desrespeito pelas condenações anteriores e pelas penas aplicadas. Pois o arguido possui duas condenações por crimes da mesma natureza e praticou os factos ora em causa no decurso do período da suspensão da execução da pena de prisão de ambas as condenações.

Ou seja, verifica-se que a suspensão da execução das penas anteriormente aplicadas ao arguido não foram suficientes para o arguido não voltar a praticar o crime.

Desta feita, pese embora o arguido esteja inserido social e profissionalmente, não existem elementos que nos permitam concluir que o peso da pena de prisão suspensa na sua execução, faça o arguido voltar a não delinquir, dado que o mesmo não aproveitou as oportunidades que lhe foram consecutivamente dadas pelo Tribunal, nas penas de prisão suspensas na sua execução, e voltou a praticar o mesmo crime (o dos presentes autos), nem 6 meses depois da última condenação.

Perante o exposto, não obstante estar verificado o pressuposto formal conducente à aplicação da pena substitutiva da suspensão da execução da pena, por a condenação não ser superior a 5 anos de prisão, as necessidades de prevenção geral e de prevenção especial, por forma a demover a reincidência, face ao tipo dos ilícitos praticados, desaconselham a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão.

Nestes termos, consideramos não se mostrar suficientemente garantido que a suspensão da execução da pena de prisão realize de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, como se estabelece no artigo 50.º do Código Penal.

Improcede, assim, o pedido de suspensão da execução da pena de prisão formulado pelo recorrente.

III - DECISÃO

Nos termos acima expostos, acordam, em conferência, na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:


a) Revogar o acórdão proferido na parte em que decretou a prisão preventiva ao arguido AA por incompetência em razão da matéria do Tribunal da Relação, que se declara;
b) Corrigir um lapso no acórdão recorrido, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do CPP, e em consequência onde consta na página 35[55] do acórdão recorrido «2. Factos não provados: nenhuns», deve constar: «2. Factos não provados: “Nas circunstâncias descritas no ponto 3 dos factos provados o arguido disse a CC que a matava»;
c) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA no que ao acórdão condenatório diz respeito, mantendo-se integralmente o decidido pelo Tribunal da Relação quanto à condenação do arguido na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.

            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC´s, nos termos dos artigos 374.º, n.º 4, 513.º, n.os 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do CPP e do artigo 8.º, n.º 9, e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais, quanto ao recurso do acórdão condenatório.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Julho de 2018

(Texto elaborado e revisto pelo relator - artigo 94.º, n.º 2, do CPP)

Manuel Augusto de Matos (relator)
Lopes da Mota

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[1]    Mantêm-se os trechos destacados, frisados e sublinhados do original..
[2]     Mantêm-se igualmente os trechos destacados no original.

[3]   Maia Costa in H. Gaspar, S. Cabral, M. Costa, O. Mendes, P. Madeira. P. da Graça, Código de Processo Penal Comentado, 2014, pag. 886.
[4]  Os acórdãos citados sem outra indicação encontram-se acessíveis nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.
[5]    Diário da República, 2.ª série - N.º 192, de 06-10-2016, pp. 29918 e segs. e em www.tribunalconstitucional.pt.
[6]    Sendo que não tem qualquer paralelo com o decidido, entre outros, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2018, de 21-02-2018, acessível em www.tribunal constitucional.pt.
[7]   Sumário acessível em www.stj.pt/jurisprudencia/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2017.
[8]              Neste sentido, vide, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 13-11-2014, Proc. n.º 249/11.0PECBR.C1.S1; de 07-05-2014, Proc. n.º 250/12.7JABRG.G1.S1; de 18-06-2014, Proc. n.º 659/06.5GACSC.L1.S1; de 02-10-2014, Proc. n.º 87/12.3SGLSB.L1.S1; bem como os acórdãos, acessíveis in www.stj./jurisprudencia/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2014, de 13-02-2014, Proc. n.º 160/13.0TCLSB.L1.S1; de 27-02-2014, Proc. n.º 1572/11.0JAPRT.P1.S2; de 10-04-2014, Proc. n.º 431/10.8GAPRD.P1.S1; de 14-05-2014, Proc. n.º 42/11.0JALRA.C1.S1; de 18-09-2014, Proc. n.º 1299/09.2PBLRA.C1.S1; de 25-09-2014, Proc. n.º 384/12.8TATVD.L1.S1.
[9]   Cfr., entre outros, decidido no acórdão deste STJ de 22-03-2018, no Proc. n.º 1419/16.0JAPRT.P1.S2 - 5.ª Secção, ainda inédito.
[10]             Página 35, corresponde a fls. 356 dos autos.
[11]             Página 37, corresponde a fls. 358 dos autos.
[12]   Cfr acórdão do STJ de 25-01-2017, proferido no Proc. n.º 519/10.5JDLSB.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo agora relator:
  «I - As correcções da sentença reportam-se a elementos não essenciais do juízo decisório, devendo permanecer íntegro o conteúdo ou o mérito da decisão, apenas expurgado, não só de erros e lapsos ostensivos - como tal os que são perceptíveis por qualquer pessoa de medianos conhecimentos -, bem como de elementos geradores de obscuridade, que a tornam ininteligível, ou de ambiguidade, prestando-a diferentes interpretações. II - A correcção para que a lei aponta e que o art. 380.º, do CPP, autoriza só pode ser ditada por erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade evidentes, já que de outro modo estaria aberta a passagem a um ínvio caminho conducente à alteração do decidido quando o poder jurisdicional se encontrasse esgotado, com risco para a segurança das decisões».
 E ainda o Acórdão do STJ de 20-12-2017, Proc. n.º 1323/17.5YRLSB.S1 - 3.ª Secção (Relator: Cons. Vinício Ribeiro):
      «II - O direito consagrado no art. 380.º do CPP, não se destina a pôr em causa a decisão de fundo ou de mérito da questão, mas antes a permitir a correcção de algum lapso ou obscuridade de que enferme a mesma e que não importe modificação essencial».
[13] Neste sentido, entre outros, Acs. STJ de 19-05-2010, Proc. n.º 459/05.0GAFLG.G1.S1 - 3.ª Secção; e de 04-12-2003, Proc. n.º 3188/03- 5.ª Secção, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[14] Acessível in www.stj.pt/jurisprudência/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2009.
[15]             Na parte transcrita, reproduzem-se os trechos destacados no original.
[16]    Cfr. Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal – Parte Especial.          
[17]    Neste sentido cfr. AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricenese do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 330.
[18]    Cfr. “Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Rei dos Livros, pp. 230 e 231.
[19]    “O crime de Violência Doméstica: o antes e o depois da Convenção de Istambul”, in Combate à Violência de Género, Da Convenção de Istambul à nova legislação penal, Universidade Católica Editora, Porto, Fevereiro de 2016, p. 195.
[20]   Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adoptada em Istambul, a 11 de Maio de 2011.
[21]  Disponível nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt, como os demais que se citarem sem outra indicação.
[22]  Código Penal – Parte geral e especial, Com notas e comentários, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, p. 647.
[23] Cita-se LAMAS LEITE, “A violência relacional íntima”, Revista Julgar, n.º 12, Set.-Dez. 2010.
[24] “O crime de violência doméstica: notas sobre a prática judiciária”, texto correspondente a uma conferência proferida em 1 de Dezembro de 2014, disponível em www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS.
[25]             Ob. cit.

[26]             “Violência doméstica – bem jurídico e boas práticas”, Revista do CEJ, 1.° Semestre 2010, n.º 13, pp. 53/54.

[27]  “Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista CEJ, 1.º Semestre 2008, número 8 (especial), pp. 304-305.
[28]             “Crítica ao pseudo pressuposto da intensidade no tipo legal de violência doméstica”, in Julgar Online, Maio de 2017, acessível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/05/20170531-ARTIGO-JULGAR-Cr%C3%ADtica-ao-pressuposto-da-intensidade-no-tipo-legal-de-viol%C3%AAncia-dom%C3%A9stica-Maria-Elisabete-Ferreira.pdf.
[29]   Cfr Nuno Brandão, «A tutela penal especial reforçada da violência doméstica» in “Julgar”, nº 12, pags 9 e ss.
[30]   Cfr, v.g. Plácido Conde Fernandes, «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal» in “Revista do CEJ, nº 8 (especial), pags 304-305, que refere a este propósito a existência de um «entendimento sedimentado».
No mesmo sentido Augusto Silva Dias «Crimes contra a vida e a integridade física», 2ª ed. aafdl, pag. 110.
[31]   Sem embargo de haver oposição a que seja erigida a específico bem jurídico protegido a dignidade humana. Cfr a este respeito Nuno Brandão, ob cit, pag 14.
[32]   Cfr para uma resenha das posições doutrinais, Cristina Augusta Teixeira Cardoso, «A violência doméstica e as penas acessórias» UC, Porto, pag. 16 consultável em
 http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/9686/1/Tese%20mestrado%20-%20A%20Viol%C3%AAncia%20dom%C3%A9stica%20e%20as%20penas%20acess%C3%B3rias.pdf
[33]             ] Cfr. Pedro Maia Garcia Marques, «Ora, trabalha sofre e cala … ou não» in “Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Nuno José Espinosa Gomes da Silva”, pags 332-333.
[34] Parece ser este o entendimento do autor citado na nota anterior. Cfr ob cit. pags 334 e 337.
[35]             Direito Penal Especial – Os crimes contra as pessoas, 4.ª Edição, Quid Juris – Sociedade Editora, Lisboa 1017, p. 310.
[36]             Idem, ibidem.
[37]             Ob. cit., p. 311.
[38]             “A violência relacional íntima”, Julgar, n.º 12, Set.-Dez. 2010.
[39]             Ob. cit.
[40]             “A tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, n.º 12, Set.-Dez. 2010.
[41]             NUNO BRANDÃO, já citado, e MARIA TERESA FÉRIA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 201.
[42]             Neste sentido, TAIPA DE CARVALHO, anotação ao artigo 152º, §8, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, e NUNO BRANDÃO, in ob. cit. p. 19.
[43]  Cfr., designadamente, HANS-HEINRICH JESCHECK, Tratado de Derecho Penal – Parte Geral, vol. II, Bosch, Casa Editorial, SA, pp. 998-999 e MANUEL CAVALEIRO FERREIRA, Lições de Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Editorial Verbo, 1992, págs. 546- 547.
[44]             Cfr. MARIA TERESA FÉRIA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 203.
[45]   Com efeito, como salientam VICTOR SÁ PEREIRA e ALEXANDRE LAFAYETTE, Código Penal anotado e comentado, Quid Juris, Lisboa, 2008, p. 404, o elemento redutor constante da Proposta de Lei nº 98/X, de 7.9.2006 (onde se exigia que “os maus tratos ocorressem «de modo intenso e reiterado»), que por certo iria dar causa a alguma arbitrariedade, não passou para a Lei.
[46]             Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, pág. 44.
[47]             Idem, ibidem.
[48]            "O sistema sancionatório do Direito Penal Português", Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, p. 815.

[49]             Direito Penal - Parte Geral, 2,ª Edição, Coimbra Editora, pp. 65-66.

[50]             Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, pp. 342-343
[51]             Ob. cit., pp. 343-344.
[52]             As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, pp. 41-35
[53]             Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais, Ano de 2015
[54]   Comentário do Código Penal, 3.ª Edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 305.
[55] Fls. 356 dos autos.