Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14897/17.1T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA
GUARDA-FREIO
DEVER DE FIDELIDADE
Data do Acordão: 03/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO – CONTRATO DE TRABALHO / FORMAÇÃO DO CONTRATO / DIREITOS, DEVERES E GARANTIAS DAS PARTES / INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / PODER DISCIPLINAR / CESSAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO / DESPEDIMENTO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR / MODALIDADES DE DESPEDIMENTO / DESPEDIMENTO POR FACTO IMPUTÁVEL AO TRABALHADOR.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, p. 821;
- António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 16.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 199-201.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGOS 126.º, 128.º, 330.º, N.º 1 E 351.º, N.º 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 53.º.
Sumário :

I. O trabalhador que está investido nas funções de receber determinadas quantias que tem de entregar ao empregador, como é o caso de um guarda-freio, viola a relação de confiança subjacente a essa relação laboral ao proceder à revenda de dois bilhetes que já tinham sido emitidos para outros passageiros, não entregando o produto dessa venda ao empregador.

II. Para além do montante em causa, que nunca poderia ser muito elevado, dado o valor individual de cada bilhete, o que releva é mesmo a quebra da relação de confiança que está na base das funções desempenhadas pelo trabalhador.

III. A violação dessa relação de confiança (dever de fidelidade) é de tal maneira grave que torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, daí que a sanção disciplinar aplicada de despedimento com justa causa seja adequada e proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do trabalhador.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                           I

 Relatório:

 1. AA intentou a presente ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra Companhia ... S.A.

2. O Tribunal da 1.ª Instância declarou lícito o despedimento da trabalhadora e, em consequência, absolveu a empregadora do pedido.

3. Inconformada a autora interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido:

– Julgar parcialmente procedente o recurso da matéria de facto e alterar a resposta contida na alínea Y;

– Julgar procedente o recurso de direito, revogando a sentença recorrida e declarar ilícito o despedimento da autora, condenando a ré a reintegrá-la e a pagar-lhe os salários de tramitação que deixou de auferir, desde o despedimento até à reintegração efetiva, nos termos e com os limites do art.º 390, n.º 1 e 2, do Código do Trabalho.

 4. Inconformada com esta decisão, a ré interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

1- A sentença proferida em 1.ª instância que considerou lícito o despedimento da recorrida, não merece qualquer reparo, já que não era exigível que a recorrente a mantivesse ao seu serviço, por perda de confiança.

2- Não podia o acórdão em recurso considerar, como o faz, mesmo com a alteração da matéria da facto constante da alínea Y), que existiu revenda de dois bilhetes, mas que como essa revenda visava compensar o prejuízo de um troco dado em excesso, o despedimento não é lícito e é desproporcionado, situação com a qual a recorrente não se conforma.

3- O douto acórdão proferido para fundamentar a alteração da matéria de facto da alínea Y), considerou que a recorrida «quis usar o montante de EUR 7,40 de dois bilhetes vendidos uma segunda vez para pagar parte do montante que teria de restituir à R., de EUR 16 decorrente de um lapso que cometeu ao dar um troco em excesso».

4- Considerando o douto acórdão que a recorrida revendeu dois bilhetes e que com o valor da revenda de EUR 7,40, na fundamentação do acórdão sob censura, esse dinheiro iria servir para a recorrida pagar à recorrente um débito referente a um troco que tinha dado a mais e que devia à recorrente.

5- Ou seja, a recorrida quis usar em seu benefício a importância de EUR 7,40, decorrente da dupla venda que fez, para cobrir um erro seu ao dar um troco.

6- De forma estranha, considera o acórdão proferido que a recorrida não se quis apropriar de tal montante, o que não é correto, já que a recorrida quis fazer sua tal quantia, que não lhe pertencia, não encontrando a recorrente justificação para a desculpabilização que o acórdão sob censura faz da recorrida.

7- Antes pelo contrário, a recorrida utilizou um erro seu, alheio à recorrente, para se compensar com o valor de dois bilhetes que não entregou aos clientes e do qual recebeu EUR 7,40, que ficaram para si.

8- Da alínea x) dos factos resulta que a recorrida às 11:24 horas do dia 31.03.2017, recebeu o valor de EUR 7,40 referente a duas tarifas de bordo (bilhetes), e deu a esses clientes duas tarifas de bordo, emitidas às 10h19m34s e 10h19m38s, que por sua vez não as tinha entregue no momento da emissão a outros dois clientes, ficando para si com a importância de EUR 7,40, para compensar um erro que cometeu a dar trocos.

 9- E perante o controlador de tráfego (alínea V dos factos provados) a recorrida ao ser confrontada com a situação, afirmou que os passageiros não tinham qualquer responsabilidade no sucedido.

10- O comportamento da recorrida é voluntário e não acidental, pois quis ficar para si com a importância de EUR 7,40, que era pertença da recorrente, para se compensar de um troco que tinha dado em excesso.

11- Lidando a recorrida com dinheiro que era pertença da recorrente e tendo ficado com ele, não era e não é exigível que com esta conduta a recorrente mantivesse a recorrida ao seu serviço, já que foi perdida toda a confiança que a relação laboral pressupõe que exista entre as partes, por falta de idoneidade e boa-fé na execução das suas funções de guarda-freio.

12- Ocorrendo uma revenda com a dupla venda de dois bilhetes e ficando a recorrida para si com a importância de EUR 7,40 para, como diz, pagar parte do montante que teria de restituir à recorrente, em consequência de um erro seu, tal constitui infração grave e censurável, que pela gravidade e consequências, perda de confiança, torna impossível a subsistência da relação laboral.

13- E a sanção disciplinar de despedimento com justa causa aplicada pela recorrente à recorrida é proporcional e adequada ao seu comportamento e conduta, ao contrário do entendimento do acórdão sob censura.

14- Não pode o acórdão sob censura considerar desproporcionada a sanção aplicada, quando a recorrida diz a fls. 12 e 13 do processo disciplinar que ficou com o montante de EUR 7,40 para si da revenda «porque não queria ficar prejudicada nas contas, uma vez que... tinha-se enganado a fazer um troco», quando esse dinheiro era pertença da recorrente.

15- A recorrida recebe um subsídio para falhas de dinheiro, no montante mensal de EUR 5, conforme recibo de vencimento junto como doc. 2 ao articulado de motivação do despedimento e esse subsídio era dado à recorrida para suprir falhas de dinheiro.

16- O subsídio para falhas de dinheiro decorre da cláusula 38.ª n.º 3 do AE publicado no BTE, n.º 17, de 08.05.2009, que regulava a relação laboral entre as partes.

17- Não pode a recorrida receber o subsídio para falhas de dinheiro e quando tem um erro num troco não o assumir e proceder a uma revenda de dois bilhetes para ficar com o dinheiro para si, para pagar parte do valor do erro que comete, sendo que mesmo que não recebesse tal subsídio não podia proceder como o fez.

18- Sendo grave a sua conduta, os próprios representantes dos trabalhadores na comissão de disciplina propuseram a aplicação à recorrida da sanção disciplinar de 10 dias de suspensão sem vencimento, alínea G) dos factos provados, sendo esta a sanção a mais elevada na recorrente, para a conservação da relação laboral, conforme cláusula 50.ª do AE.

19- Mesmo com a alteração da matéria de facto constante da alínea Y), que em nada altera a gravidade da infração cometida pela recorrida, é lícito o seu despedimento com justa causa, dado que a base de confiança que deve existir ficou totalmente abalada, perdendo a recorrente toda a confiança na recorrida pela sua deslealdade.

20- Nenhuma censura merece a recorrente ao aplicar a sanção de despedimento à recorrida, uma vez que nenhuma outra sanção era adequada e proporcional para sanar a crise contratual, por terá recorrente perdido toda a confiança na recorrida.

21- E, ao contrário do entendimento do douto acórdão em recurso, existe proporcionalidade entre a conduta da recorrida e a sanção de despedimento com justa causa que lhe foi aplicada, face à sua conduta desleal e desonesta e a deslealdade, só por si, elimina a confiança que deve existir e sem essa confiança é impossível a subsistência da relação contratual.

 22- Assim sendo, merece censura o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, devendo o mesmo ser revogado, mantendo-se a decisão de 1.ª instância, já que errou na interpretação e aplicação do disposto na cláusula 38ª, nº 3 do AE publicado no BTE, nº 17, de 08.05.2009, art.º128, nº 1, alínea f), art.º 351, nº 1, 2 e 3, art.º 330, nº 1, art.º 389, nº 1, alínea a), art.º 390 nº 1 e 2 e art.º 389, nº 1, alínea b), todos do Código do Trabalho, devendo, face à matéria de facto, considerar que o despedimento da recorrida foi lícito e que não é desproporcional face aos factos praticados pela recorrida, que são graves e merecedores da sanção de despedimento com justa causa.

 5. A autora contra-alegou, tendo concluído:

1- O douto Acórdão da Relação de Lisboa, ora recorrido, da parte da Ré recorrente, não pode merecer qualquer reparo, por ter feito a correta aplicação do Direito aos factos provados.

2- Isto é declarou e bem, ilícito o despedimento promovido pela Ré, ora recorrente, condenando-a a reintegrar a Autora, ora recorrida, bem como a pagar-lhe os salários que deixou de auferir, desde o despedimento até à reintegração efetiva, por ter corretamente subsumido os factos provados às normas legais.

3- A decisão disciplinar de despedimento obriga à análise de duas dimensões distintas:

– O comportamento culposo do trabalhador (requisito subjetivo);

– Impossibilidade prática de manutenção da relação laboral entre o empregador e o seu trabalhador (elemento objetivo).

4- E para existir justa causa deve verificar-se, ainda, um nexo causal entre esse comportamento e a impossibilidade da subsistência da relação laboral.

5- Relativamente ao elemento subjetivo, vem-se entendendo que, quer a culpa quer a gravidade da infração disciplinar, hão de apurar-se, na falta de um critério legal, pelo entendimento de um bonus pater famílias, isto é, de um empregador normal, médio, colocado face ao caso concreto, utilizando critérios de objetividade e de razoabilidade, não podendo, pois, aferir-se em função do critério subjetivo do empregador.

6- Quanto ao elemento objetivo, considera-se que se verifica a impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais que ele importa sejam de forma a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição de empregador, ou seja, sempre que a continuidade do vínculo laboral represente uma incomportável e injusta imposição ao empregador.

7- Encontra-se, assim, a decisão disciplinar subordinada aos princípios da proporcionalidade, da adequação e, nomeadamente, à gravidade dos factos e à culpa do trabalhador - artigo 330.º do CT -, devendo, para esse efeito, serem ponderadas todas as circunstâncias atenuantes e agravantes, direta ou indiretamente relevantes (artigo 357.º, n.° 4, do Código do Trabalho), tais como o quadro organizativo da empresa, o grau de lesão dos interesses do empregador, o carácter das relações entre as partes, a antiguidade hierárquica, o grau de responsabilidade das funções desempenhadas, os antecedentes disciplinares, o grau de arrependimento demonstrado.

8- A justa causa visa, pois, sancionar situações laborais que, por razões imputáveis ao trabalhador, graves em si mesmas e nas suas consequências, tenham entrado de tal modo em crise, que não mais se possam manter.

9- A Ré, ora recorrente, neste sede, pretendeu provar, para justificar o despedimento, que a Autora, ora recorrida, tinha pretendido ficar com a importância de EUR 7,40, que pertenciam à ora recorrente, correspondente ao valor de duas tarifas de bordo que revendeu, querendo usar em seu benefício a dita importância.

10- Contudo, unicamente, o que ficou provado e que o Douto Acórdão muito bem confirmou foi que: «o que temos aqui é a revenda (dupla venda) de dois bilhetes. Não se provou que a A. se quis apropriar de tal quantia, e o benefício apurado, na sua materialidade, mais não é do que a intenção de usar tal quantia (EUR 7,40) para restituir à R, um valor (EUR 16) que saíra indevidamente da caixa por mero erro cálculo da trabalhadora ao efetuar um troco». Não constituindo o erro de cálculo matéria disciplinar, e não se provando a apropriação, ou, sequer, o intuito apropriativo daquela, fica objetivamente a revenda, quer dizer, a dupla venda, de dois bilhetes. Concluindo, ainda, que «a trabalhadora (que tem cerca de uma dúzia de anos de antiguidade) tem apenas um antecedente, que nada tem a ver com factos semelhantes (por um acidente de viação, aliás ocorrido há largos anos)».

11- Verificou-se, isso sim, e a recorrida disso não nega, uma infração disciplinar e que o seu comportamento, era merecedor de sanção disciplinar, mas nunca podia assumir gravidade bastante para ser sancionado com o respetivo despedimento.

12- Mas esta conclusão da desproporcionalidade sobre a aplicação do despedimento, não só é mantida pela ora Recorrida e pelo constante do Douto Acórdão da Relação de Lisboa, como foi também, de forma inequívoca, o Parecer do Senhor Procurador Geral Adjunto, quando referiu nos seus pontos:

«2.1 A sentença recorrida adotou, salvo o devido respeito, uma formulação factualmente imperfeita e normativamente insuficiente para sustentar a sanção aplicada.

Não delimitou, com o necessário rigor, os contornos da conduta a punir. Na verdade, não é possível saber, a partir dos factos provados, se a autora/recorrente limitou-se a formular a mera intenção de vir a apoderar-se da quantia em causa ou se chegou a praticar atos de execução com vista à concretização de tal intento.

2.2 Assim e não obstante se poder dar como certo que a autora/recorrente terá desrespeitado as normas internas fixadas pela empregadora no tocante ao processamento dos títulos de transporte, o certo é que os factos provados não configuram infração disciplinar que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, requisito necessário, como é sabido para a verificação do conceito de justa causa - cfr. Art. 351°, n° 1 do Código do Trabalho.

2.3 A sanção de despedimento aplicada pela é, a nosso ver, manifestamente desproporcional face à gravidade [...] da autora/recorrente tal como a mesma ficou delineada pela decisão recorrida — cfr. Art.º  330.º, n.º 1 do Código do Trabalho.»

Mais claro e cristalino para comprovar a desproporcionalidade do despedimento da ora Recorrida, constante neste Parecer era impossível!

13- Acresce, ainda, que ao tempo do despedimento, a Trabalhadora, ora recorrida, tinha tido apenas um antecedente, que nada tinha a ver com factos semelhantes (acidente de viação, aliás ocorrido há largos anos), tendo cerca de uma dúzia de anos de antiguidade, como é aludido no Acórdão da Relação.

14- Tudo devidamente provado e ponderado, o Tribunal da Relação de Lisboa, aplicou corretamente o direito, declarando ilícito o despedimento promovido pelo ora recorrente, declarando provado e procedente a impugnação judicial do despedimento intentado pela ora recorrida, por «não ter vislumbrado proporcionalidade entre a conduta da A. e a sanção decretada, nos termos do disposto da primeira parte do n.º 1 do art.° 330.° do CT, “a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator (...)". Não sendo esse o caso, é forçoso concluir pela ilicitude do despedimento».

15- Conclui-se, pois, que o despedimento aplicado é desproporcional, não tendo os factos gravidade suficiente para o suportarem e, consequentemente, deve ser considerado ilícito, pois quando uma trabalhadora, ora Autora e recorrida apenas com um antecedente disciplinar por acidente de viação, revende dois bilhetes, sem que se prove que se queria apropriar do valor correspondente, antes visando compensar o prejuízo decorrente de um troco em excesso, não se poderá chegar, salvo melhor opinião, a outra conclusão que não esta!

 6. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que não deve ser concedida a revista.

7. Nas suas conclusões, a recorrente sustenta que a factualidade dada como provada integra justa causa, daí a licitude do despedimento, sendo pois esta a única questão que este tribunal tem de solucionar.

                                                           II

A) Fundamentação de facto:

A factualidade fixada pelo Tribunal da Relação com interesse para solucionar a questão equacionada na revista é a seguinte:

1. A trabalhadora foi admitida ao serviço da empregadora no dia 21/08/2006, para exercer as funções de Guarda-Freio, sendo que atualmente desempenhava essas funções na Estação de ….

2. Em 22/05/2017, a trabalhadora foi notificada da nota de culpa, datada de 15/05/2017, bem como da sua suspensão preventiva.

3. Em 12/06/2017, pela empregadora foi proferida a decisão que aplicou à trabalhadora a sanção disciplinar de despedimento, alegando justa causa.

4. No dia 31/03/2017, a trabalhadora exerceu as suas funções de Guarda-Freio no serviço nº. ..., entre as 07.00 e as 14.30 horas, no Ascensor ..., ao serviço do Público e em regime de agente único.

5. No desempenho das suas funções incumbia à trabalhadora, além de conduzir o veículo, proceder à venda de bilhetes aos passageiros que os solicitassem, no valor unitário de EUR 3.70, os quais são válidos para duas viagens no ascensor.

6. Na viagem que efetuou com partida de … às 11,24 horas, com destino aos Restauradores, ao chegar a este terminal, os agentes de fiscalização BB, CC, DD e EE, entraram no ascensor tripulado pela trabalhadora, a fim de procederem à fiscalização dos títulos de transporte dos passageiros que aí se transportavam.

7. No decorrer dessa ação de fiscalização foram detetados dois passageiros de nacionalidade estrangeira, que tinham em sua posse as tarifas de bordo n.ºs … e …, cuja hora de emissão era, respetivamente, 10h19m34s e 10h19m38s, com o valor unitário de EUR 3,70.

8. Inquiridos os passageiros, pelo controlador de tráfego, BB, no sentido de aferir se aquela era a segunda viagem que estavam a fazer, estes referiram que estavam a fazer a primeira viagem e que tinham adquirido aquelas tarifas de bordo à trabalhadora, no início daquela viagem, tendo-lhe pago o valor de EUR 7.40.

9. De seguida o controlador de tráfego, BB, dirigiu-se à trabalhadora, para esclarecer a situação, confrontando-a com a versão dos passageiros, tendo esta, nesse momento, se limitado a afirmar que os passageiros não tinham qualquer responsabilidade no sucedido.

10. A trabalhadora entregou aquelas tarifas de bordo, emitidas às 10h19m34s e às 10h19m38s, que não tinha entregado no momento da impressão, aos dois passageiros que às 11h25m foram abordados pela equipa de fiscalização no terminal dos ….

11. A trabalhadora, às 11h24m daquele dia, recebeu dos dois passageiros a quantia de EUR 7,40, correspondentes ao pagamento de dois bilhetes, tendo-lhes entregue as tarifas n.ºs … e …, que tinham sido emitidas às 10h19m34s e às 10h19m38s, respetivamente, que por sua vez não as tinha entregado no momento da impressão.

12. A trabalhadora quis usar o montante de EUR 7,40 de dois bilhetes vendidos uma segunda vez para pagar parte do montante que teria de restituir à ré, de EUR 16,00, decorrente de um lapso que cometera ao dar um troco em excesso.

13. A trabalhadora já tinha sido objeto de uma sanção disciplinar de dois dias de suspensão sem vencimento, no âmbito do processo disciplinar nº. ..., por responsabilidade em acidente de viação.

14. A trabalhadora presta o seu trabalho a pessoas das mais variadas nacionalidades.

15. À data do despedimento, a trabalhadora auferia ao serviço da empregadora a remuneração base mensal de EUR 722,03, acrescida de subsídio de agente único no montante mensal de EUR 137,47 e diuturnidades no montante de EUR 33, 34.

B) Fundamentação de Direito:

B1) Os presentes autos respeitam a ação declarativa de condenação instaurada em 2017, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 19 de dezembro de 2018.

Assim sendo, o regime processual aplicável é o seguinte:

- O Código de Processo do Trabalho, na versão atual.

 - O Código de Processo Civil, na versão atual.

 

B2) Como já se referiu a recorrente sustenta que a factualidade dada como provada integra justa causa, daí a licitude do despedimento, razão pela qual pugna pela revogação do acórdão recorrido e pela repristinação da sentença da 1ª instância.

O tribunal da 1.ª instância sustentou a licitude do despedimento com base na seguinte argumentação:

«É que, no caso concreto, a base de confiança entre as partes, que suporta qualquer vínculo laboral, é particularmente exigente.

Desde logo pelas funções concretas desempenhadas pela trabalhadora, descritas nos factos provados.

Sendo certo que, lidando a trabalhadora com dinheiro que é pertença da empregadora, na prestação contratada há uma particular exigência da componente fiduciária nela pressuposta, domínio em que a “confiança”, mais que mero “suporte psicológico” de uma relação jurídica interpessoal duradoura, se traduz afinal no exercício de uma “função de confiança”, essencial na organização técnico-laboral criada e mantida pela empregadora.

Nestes casos, exige-se dos trabalhadores uma postura de inequívoca transparência, insuspeita lealdade de cooperação, idoneidade e boa-fé na execução das suas funções, respeitando escrupulosamente as regras do contrato.

Assim, apesar de não se ter provado em juízo que a trabalhadora tenha ficado com a importância de EUR 7,40, correspondente ao valor das duas tarifas de bordo que revendeu, perante o facto de a mesma trabalhadora querer usar em seu benefício a dita importância, que ilustra uma ação voluntária e não acidental da trabalhadora, não era exigível à empregadora que a mantivesse ao seu serviço.

Conclui-se, deste modo, que nenhuma censura merece a atuação da entidade empregadora ao decidir o despedimento da trabalhadora, sendo o mesmo lícito.»

 Por seu turno, o Tribunal da Relação entendeu que a sanção aplicada de despedimento foi desproporcional, tendo, em defesa de tal tese, desenvolvido a seguinte argumentação:

«Ora, o que temos aqui é a revenda (dupla venda) de dois bilhetes. Não se provou que a A. se quis apropriar de tal quantia, e o benefício apurado, na sua materialidade, mais não é do que a intenção de usar tal quantia (EUR 7,40) para restituir à R. um valor (EUR 16,00) que saíra indevidamente da caixa por mero erro de cálculo da trabalhadora ao efetuar um troco. Não constituindo o erro de cálculo matéria disciplinar, e não se provando a apropriação, ou, sequer, o intuito apropriativo daquela, fica objetivamente a revenda, quer dizer, a dupla venda, de dois bilhetes.

Neste ponto afigura-se-nos adequada a conclusão do Sr. Procurador-Geral Adjunto: sendo certo que a trabalhadora “terá desrespeitado as normas internas fixadas pela empregadora no tocante ao processamento dos títulos de transporte” (o que, só por si, acrescentaremos, bem justifica a aplicação de uma sanção disciplinar, não sendo o dito comportamento forma correta e aceitável de prestar a sua atividade profissional), “os factos provados não configuram infração disciplinar que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”. Repare-se ainda que a trabalhadora (que tem cerca de uma dúzia de anos de antiguidade) tem apenas um antecedente, que nada tem a ver com factos semelhantes (por um acidente de viação, aliás ocorrido há largos anos). 

Posto isto, não vislumbramos proporcionalidade entre a conduta da A. e a sanção decretada. Nos termos do disposto da primeira parte do n.º 1 do art.º 330.º do CT, “a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator (…)”. Não sendo esse o caso, é forçoso concluir pela ilicitude do despedimento.»

A Constituição da República Portuguesa, no seu art.º 53.º, garante aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.

O art.º 351.º, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12/2, sob a epígrafe «Noção de justa causa de despedimento» estatui que «Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho».

  O art.º 126.º, do mesmo diploma legal, estatui que as partes numa relação laboral devem pautar a sua conduta com observância pelo princípio da boa-fé, referindo:

1 - O empregador e o trabalhador devem proceder de boa-fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respetivas obrigações.

2 - Na execução do contrato de trabalho, as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador.

Por seu turno, o art.º 128.º, do Código do Trabalho, sob a epígrafe “Deveres do Trabalhador” dispõe:

1 - Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve:

f) Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios.

Como refere António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 16.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 199-201), «em geral, o dever de fidelidade, de lealdade ou de “execução leal” tem o sentido de garantir que a atividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que, autonomamente, determinem situações de “perigo”(–) para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa(–)», sendo que «o dever geral de lealdade tem uma faceta subjetiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)» e que, encarado de um outro ângulo, «apresenta também uma faceta objetiva, que se reconduz à necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa fé no cumprimento das obrigações», sendo o que resulta do art.º 126.º/1 CT,  «donde promana, no que especialmente respeita ao trabalhador, o imperativo de uma certa adequação funcional – razão pela qual se lhe atribui um cariz marcadamente objetivo – da sua conduta à realização do interesse do empregador, na medida em que esse interesse esteja “no contrato”, isto é, tenha a sua satisfação dependente do cumprimento (e do modo do cumprimento) da obrigação assumida pela contraparte».

O conceito de justa causa integra, segundo o entendimento generalizado tanto na doutrina, como na jurisprudência, três elementos: a) um elemento subjetivo, traduzido num comportamento culposo do trabalhador, por ação ou omissão; b) um elemento objetivo, traduzido na impossibilidade da subsistência da relação de trabalho; c) o nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.

O referido conceito carece, em concreto, de ser preenchido com valorações. Esses valores derivam da própria norma e da ordem jurídica em geral. O legislador, no n.º 2, do art.º 351.º, do Código do Trabalho, complementou o conceito com uma enumeração de comportamentos suscetíveis de integrarem justa causa de despedimento.

De qualquer forma, verificado qualquer desses comportamentos, que constam na enumeração exemplificativa, haverá sempre que apreciá-los à luz do conceito de justa causa, para determinar se a sua gravidade e consequências são de molde a inviabilizar a continuação da relação laboral.

Apesar de a lei não fazer referência expressa ao conceito de ilicitude o mesmo está subjacente à noção legal, pois só é possível falar de culpa após um juízo prévio de ilicitude.

Nesta linha, António Menezes Cordeiro (Manual de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, pág. 821), citando fonte jurisprudencial, que subscreve, refere que a justa causa postula sempre uma infração, ou seja, uma violação, por ação ou por omissão, de deveres legais ou contratuais.

Assim, decompondo a noção legal de justa causa, temos sempre um comportamento ilícito, censurável em termos de culpa e com consequências gravosas na relação laboral de forma a inviabilizar a mesma.

O art.º 351.º, n.º 3, do Código do Trabalho estabelece que «Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao caráter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes».

Por seu turno, o artigo 330.º, n.º 1, do Código do Trabalho, com a epígrafe «Critério de decisão e aplicação de sanção disciplinar» introduz o conceito de proporcionalidade ao estatuir que a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator.

A ponderação da proporcionalidade permite-nos ainda determinar a razoabilidade da decisão perante os interesses em litígio.

No caso concreto, a autora, dadas as funções que desempenhava de Guarda-Freio, para além de conduzir o veículo procedia à venda de bilhetes aos passageiros que os solicitassem.

A autora tinha assim de arrecadar o produto da venda dos bilhetes para entregar ao seu empregador, o que correspondia à contrapartida do serviço prestado aos utentes.

No que diz respeito à relação com os utentes a autora tinha o dever de lhes entregar os bilhetes, nomeadamente, para em caso de fiscalização os poderem apresentar e para os puderem utilizar numa segunda viagem.

Sublinhe-se que, no caso concreto, os utentes foram inquiridos pelo controlador de tráfego no sentido de aferir se aquela era a segunda viagem que estavam a fazer, tendo aqueles referido que era a primeira e que tinham adquirido aquelas tarifas de bordo à trabalhadora, no início daquela viagem, tendo-lhe pago o valor de EUR 7.40.

A autora ao receber, no dia referido, dos dois passageiros a quantia de EUR 7,40, correspondentes ao pagamento de dois bilhetes, tendo-lhes entregue as tarifas n.ºs … e …, que tinham sido emitidas anteriormente e que não tinha entregado a outros passageiros no momento da impressão, violou uma relação de confiança crucial nesta concreta relação laboral (dever de fidelidade), em que o trabalhador está investido das funções de receber determinadas quantias que tem de entregar ao empregador.

Considerando que essas quantias são a contrapartida de um serviço prestado aos utentes e fonte de rendimento do empregador o seu desvio lesa patrimonialmente a empresa.

O facto de se ter provado que a trabalhadora quis usar o montante de EUR 7,40 de dois bilhetes vendidos uma segunda vez para pagar parte do montante que teria de restituir à ré, de EUR 16, decorrente de um lapso que cometera ao dar um troco em excesso (a alínea Y acrescentada pelo Tribunal da Relação e atual ponto 12 da enumeração supra dos factos provados) nada adianta no que concerne à violação da relação de confiança, pois a ser assim a trabalhadora sempre iria colmatar o prejuízo que teve com o seu alegado lapso com dinheiro pertencente ao empregador.

Neste caso concreto, para além do montante em causa, que nunca poderia ser muito elevado, dado o valor individual de cada venda, o que releva é mesmo a quebra da relação de confiança subjacente à natureza desta relação laboral.

Estamos pois perante uma infração disciplinar grave, cujas consequências determinam a perda da confiança do empregador no trabalhador, o que torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, daí que a sanção disciplinar aplicada de despedimento com justa causa seja adequada e proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do trabalhador.

 

                                                           III

           

Decisão:

            Face ao exposto acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença proferida pelo Tribunal da 1.ª instância.

Custas no Tribunal da Relação e neste Supremo Tribunal de Justiça a cargo da autora.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 6 de março de 2019.

Chambel Mourisco (Relator)

Pinto Hespanhol

António Leones Dantas