Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
128/12.4TBSBG.C1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
USUCAPIÃO
OBRAS
JANELAS
TERRAÇOS
PRÉDIO CONFINANTE
RESERVA DA VIDA PRIVADA
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
Data do Acordão: 07/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / CONSTRUÇÕES E EDIFICAÇÕES / SERVIDÃO DE VISTAS.
Doutrina:
- Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 1967, 149, RLJ, 99. °, 239.
- Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 5.ª edição, 448.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado”, I Vol. I, Vol. III, 219.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 1305.º, 1362.º, 1360.º, N.ºS 1 E 2, 1362.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 527.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 19.11.1971, IN B.M.J., 211.°, 333.
Sumário :
1. Da conjugação dos artigos 1362º e 1360º, nºs 1 e 2, do Código Civil resulta que, mesmo que tenha sido construída “janela, porta, varanda, terraço eirado ou obra semelhante” em violação da lei, a existência de tais construções pode conduzir à aquisição por usucapião de servidão de vistas, e, se constituída, nascem para o dono do prédio vizinho restrições quanto a edifício ou outra construção que levante no seu prédio.

2. Existindo devassamento ou possibilidade dele, há intromissão ilegítima na reserva privada do vizinho, que é propiciada pela existência, nas obras elencadas no nº2 do art. 1360º do Código Civil (varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes), de parapeitos pois estes emprestam comodidade e segurança, permitindo que alguém se debruce e apoie os braços (normalmente os parapeitos das varandas e das janelas têm a altura de uma pessoa adulta de estatura normal) e, assim, possa devassar “comodamente” pela vista o que se passa no prédio contíguo.

3. Se na varanda construída, no primeiro andar do prédio dos Autores, não se provou que exista parapeito, porque não basta a existência de um espaço de onde se possa olhar para o prédio contíguo, antes pretendendo a lei evitar a possibilidade de intromissão abusiva, devassamento, e que objectos possam ser atirados para o prédio vizinho, não se constitui servidão de vistas sobre o prédio contíguo: a existência de parapeito na varanda é requisito essencial da constituição de tal servidão.

4. Tendo-se provado, apenas, que os AA. construíram na fachada do alçado principal uma varanda em toda a sua extensão – 16,90 metros – com 1,16 metros de largura e com uma abertura ao terreno dos Réus de cerca de 3 metros de altura, e que tal varanda deita “directamente para o terreno dos réus”, sem que tivessem alegado, como lhes competia – art. 342º, nº1, do Código Civil – a existência de parapeito nessa varanda desde a construção dela há mais de 20 anos, não se constituiu servidão de vistas a favor do seu prédio, pelo que os Réus podiam edificar, na linha divisória do seu prédio, sem a restrição do espaço mínimo de metro e meio em relação ao prédio dos AA. seus vizinhos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA (por sua morte as habilitadas BB e CC) e mulher BB – instauraram, 22.8.2012, na Comarca do Sabugal (actual Comarca da Guarda) acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus:

DD e marido EE.

Alegaram, em resumo:

- os Autores são proprietários de um prédio urbano (casa composta de rés-do-chão e 1º andar), inscrito na matriz sob o art. 2146, que confronta a nascente com um terreno dos Réus;

           

- quando da construção do 1º andar, em 1985, e conforme projecto apresentado na Câmara Municipal do …, os Autores construíram na fachada do alçado principal, voltada para a rua do …, uma varanda em toda a extensão da mesma (16,90 m) e com 1,50 m de largura, com uma abertura que deita directamente para o terreno dos Réus;

- esta construção foi feita sem oposição de quem quer que fosse, à vista de toda a gente, passando, desde então, os Autores a beneficiar de vistas privilegiadas, na convicção e exercer um direito de servidão, constituindo-se, por usucapião, uma servidão de vistas a favor do seu prédio e sobre o prédio dos Réus;

           

- em 2011, os Réus construíram no seu terreno uma casa de habitação tendo levantado uma parede de forma a tapar a varanda da casa dos Autores, sem respeitarem a distância legal, tanto de 1,50 m (art.1362º, nº2, do Código Civil), como a de 5 metros, de acordo com o PDM;

- esta situação causa danos não patrimoniais aos Autores que ficaram impossibilitados de desfrutar as vistas.

           

Pediram cumulativamente a condenação dos Réus:

a) A reconhecerem o direito de servidão de vistas dos Autores sobre o seu terreno voltado a nascente da sua varanda, constituído por usucapião, e absterem-se de praticar actos que limitem ou impeçam o exercício de tal direito.

b) A demolirem a construção levantada no ano de 2011 e 2012 de forma a respeitar o direito dos Autores, afastando a construção nova 5 metros do limite nascente da varanda ou pelo menos 1,5 metros, previstos no art.1362º, nº2, do Código Civil.

c) A indemnizarem os Autores na quantia de € 100,00 desde a propositura da acção e até à reposição integral dos direitos dos Autores.

d) A reembolsarem os Autores dos encargos que irão ter com o processo, a liquidar em execução de sentença.

Contestaram os Réus, alegando em síntese:

- os Autores não alegaram factos suficientes para a constituição de uma servidão legal de vistas;

- edificaram a casa de habitação que foi devidamente licenciada pela Câmara Municipal, no local e modo constante dos respectivos projectos, assistindo-lhe o direito de regresso sobre a edilidade pelos prejuízos decorrentes da eventual procedência da acção.

Concluíram pela improcedência da acção e requereram a intervenção acessória provocada da Câmara Municipal do ….

Por despacho de 28.11.2012 (fls. 60) decidiu-se deferir o incidente de intervenção acessória provocada do Município do ….

O Ministério Público, citado nos termos do art.332º, nº1, do Código de Processo Civil, impugnou (fls. 66) toda a matéria da petição inicial.

No despacho saneador (fls. 68) afirmou-se a validade e regularidade da instância, tendo sido fixado o valor da acção em € 50.000,00.

***

 Foi proferida, em 1.9.2014, sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu condenar os Réus:

-A reconhecerem o direito de servidão de vistas dos Autores sobre o terreno dos Réus voltado a nascente da varanda dos Autores, constituído por usucapião, e absterem-se de praticar actos que limitem ou impeçam o exercício de tal direito;

- A demolirem a construção levantada no ano de 2011 e 2012 de forma respeitar o direito dos Autores, afastando a construção nova um metro e meio.

***

 Inconformados, os Réus apelaram para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por Acórdão de 16.2.2016 – fls. 388 a 399 – julgou procedente as apelações e, em consequência:

a) Revogou o despacho de 28.11.2012 (fls. 60) que admitiu o incidente de intervenção acessória do Município do ...

           

b) Revogou a sentença de 1.9.2014 (fls. 268 e segs.) e absolveu os Réus dos pedidos.

***

Inconformados os AA. recorreram de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1ª. Para os termos e efeitos previstos no artigo 1360º, nºs l e 2, do Código Civil a inexistência de parapeito na varanda não impede a constituição do direito de servidão de vistas.

2ª. Todos os elementos objectivos e subjectivos do direito de servidão de vistas estão alegados e provados nos autos.

3ª. A responsabilidade pelas custas no incidente de intervenção provocada competem a quem deu causa ao incidente.

4ª. No caso, são os RR. responsáveis pelas custas no incidente, mesmo que a acção venha a ser julgada improcedente.

Entendem os recorrentes, assim, ter sido violada a norma prevista no artigo 1360º, nº2, do Código Civil no sentido dado pelo Douto Acórdão recorrido, e bem assim as normas previstas no artigo 527º e 528º do Código de Processo Civil.

Termos em que, e sempre com o Douto suprimento, se pugna pela procedência do presente Recurso, devendo manter-se a Douta sentença proferida pela 1ª Instância, ou quando assim se não entenda, sejam os RR. condenados pelas custas do incidente de intervenção provocada.

Os RR. contra-alegaram, pugnando pela inadmissibilidade do recurso por inexistir contradição de Acórdãos. A assim não se entender, pugnam pela revogação do Acórdão recorrido, com a inerente repristinação da sentença apelada.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1. O falecido autor AA, enquanto vivo, casado no regime da comunhão geral de bens com BB, tinha inscrito a seu favor o prédio urbano, registado sob o n°…/…823, sito na Rua do …, no …, inscrito na matriz sob o n°…146, composto por casa de r/c, o andar para habitação e um logradouro, que confronta a Norte com FF, a Sul com Herdeiros de GG, a Nascente com Estrada e a Poente com via pública. (A)

2. Pela ap. 2 de 1989/08/23 foi inscrita a aquisição do prédio referido em 1. a favor e AA, casado no regime da comunhão geral de bens com BB, constado de tal inscrição que a aquisição se deu por usucapião. (B)

3. Na confrontação, a Nascente do prédio referido em 1., encontra­ se o prédio sito na Rua do …, com uma área total de 656 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do … sob o n°…/…210, inscrito a favor de DD e EE, composto por terreno para construção urbana, que confronta a Norte com terrenos da Câmara Municipal do …, a Sul com a Rua do …, a Nascente com HH. (C)

4. Pela Ap. 3958, de 2009/07/10 foi inscrita a aquisição do prédio referido em 3. a favor de DD e EE, constando de tal inscrição que a aquisição se deu por compra. (D)

5. Em 2011 os réus decidiram construir no terreno referido em 3. tendo iniciado a construção com a apresentação do projecto junto da Câmara Municipal do ... (E)

6. Numa reunião entre a Câmara Municipal do … e o coordenador dos projectos de construção, Eng. II, foi por este proposto que a localização da casa fosse centrada, mais ou menos, onde existia uma casa entretanto demolida, de forma a que a construção não fosse ao lado da casa dos autores atenta a existência de uma varanda na casa deste e atento o disposto no art. 41º do RPU do … relativo aos afastamentos de 5 metros. (F)

7. Porém, a Câmara Municipal do … invocou que, pelo facto de haver já uma construção existente e a fachada lateral dessa habitação estar situada no limite dos lotes e ser cega, conferia a esta um carácter de encosto, pelo que se estaria no âmbito do ponto 3 do art. 9º do PDM, que exigiria encostar a construção já existente, tendo essa fachada que ser cega. (G)

8. O coordenador dos projectos de construção informou os réus da posição da Câmara Municipal do ... os quais se mostraram contra a mesma. (H)

9. Numa outra reunião com a Câmara Municipal do ... (representada por duas arquitectas) o coordenador dos projectos de construção referiu que a exigência do encosto levava à privação da exposição solar a sul e que tal facto levava à perda dos ganhos térmicos e energéticos principais, que haveria risco de infiltração de águas pluviais e condensações, diminuindo a salubridade, exposição e ventilação, situação que afectaria tanto a casa dos réus como a casa do vizinho. (I)

10. Porquanto a Câmara Municipal do ... manteve a sua posição, os réus, por necessitarem de construção, aceitaram as exigências camarárias. (J)

11. Consequentemente, o coordenador dos projectos de construção apresentou os projectos de implantação e construção, que vieram a ser aprovados pela Câmara, sendo o alvará 21.12.2010 e tendo as obras começado em 15.02.2011. (L)

12. O rés-do-chão da casa de habitação referida em 1. foi construído em 1980 e o 1º andar em 1985, conforme projecto apresentado pela Câmara Municipal do .... (resposta ao quesito 1º)

13. Aquando da construção do 1º andar, em 1985, os autores construíram na fachada do alçado principal, voltada para a Rua do …, uma varanda em toda a extensão da mesma (16,90 m), com 1,16 metros de largura e com uma abertura ao terreno dos réus de cerca de 3 metros de altura. (r.q. 2º)

14. Tal construção foi feita no seguimento de projecto aprovado pela Câmara Municipal do ..., sem oposição de quem quer que fosse, à vista de toda a gente sem exercer qualquer coacção sobre alguém. (r.q. 3º)

15. A varanda deita directamente para o terreno dos réus. ( r.q. 4º)

16. Sempre os autores e as pessoas que frequentavam a sua casa puderam aceder livremente à varanda, desfrutando do Sol matinal. ( r.q. 5º)

17. Com a obra referida em E) os réus procederam à construção de uma parede que encostaram à parede dos autores, tapando dessa forma a abertura feita em 1985 e a varanda construída. (r.q. 6º)

2.3. - Os factos não provados (descritos na sentença)

1. A situação descrita tem causado angústia aos autores (na verdade, apenas começaram a demonstrar angústia pela situação criada num momento muito posterior ao da instauração da acção resultando, ainda, que parece que assim que passaram a sentir tal angústia, intentaram a presente acção). (r.q. 7º)

2. Desde que os réus construíram a parede referida em 19., nunca mais os autores conseguiram voltar a sua casa, onde passavam várias temporadas, em especial no Verão, atenta a paixão que têm pelas festividades próprias da raia. (r.q. 8º).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se, em favor do prédio dos AA., se constituiu, por usucapião, uma servidão de vistas nos termos por si alegados, a implicar a demolição da construção erigida pelos RR. no seu prédio que priva aqueles de a usar e fruir.

Ainda saber se os Réus são responsáveis pela condenação nas custas relativas ao incidente de intervenção principal acessória da Câmara Municipal de ....

Antes, porém, importa dizer que não assiste razão aos Réus quando, nas contra-alegações, pugnam pela inadmissibilidade do recurso por alegada inexistência de contradição de Acórdãos.

Cremos, salvo o devido respeito, que a questão nem sequer tem razão de ser. A acção foi intentada em 2012 e o Acórdão foi proferido em 16.2.2016, estando em vigor o Código de Processo Civil de 2013.

           

A sentença apelada foi revogada pelo Acórdão recorrido, agora objecto de recurso de revista. A admissibilidade do recurso de revista apenas depende, desde logo, dos requisitos gerais de recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça, em vista do valor da acção, da alçada do Tribunal de que se recorre e da sucumbência – requisitos que ocorrem cumulativamente.    

Não existindo dupla conforme[2], por ser revogatória a decisão proferida pelo Tribunal de 2ª Instância, é esta recorrível, nos termos dos arts. 627º, 629º, nº1, 671º, nº1, e 674º, nº1 do Código de Processo Civil e 7º, nº1, da Lei nº41/2013, de 26.6.

A questão de mérito decidenda consiste em saber se, em favor do prédio dos AA., existe, constituída por usucapião, uma servidão de vistas sobre o prédio dos RR.

No prédio dos AA., destinado a habitação, foi construído em 1985, por ocasião da construção de um 1º andar (desde 1980 pré-existia apenas uma construção: rés-do-chão), uma varanda na fachada do alçado principal, voltada para a Rua do …, onde se localiza o prédio dos Réus, varanda essa que percorre toda a extensão do alçado – 16,90 metros – com 1,16 metros de largura e com uma abertura ao terreno dos Réus de cerca de 3 metros. 

Tal construção foi feita no seguimento de projecto aprovado pela Câmara Municipal do ..., sem oposição de quem quer que fosse, à vista de toda a gente sem exercer qualquer coacção sobre alguém.

             

A varanda deita directamente para o terreno dos réus. 

           

Sempre os autores e as pessoas que frequentavam a sua casa puderam aceder livremente à varanda, desfrutando do Sol matinal. Em 2011, os réus decidiram construir no seu terreno, (referido em 3. dos factos provados) tendo iniciado a construção com a apresentação do projecto junto da Câmara Municipal do ... que o veio a aprovar.

Os RR., ora recorrentes, com a obra referida em E) procederam à construção de uma parede que encostaram à parede dos autores, tapando dessa forma a abertura feita em 1985 e a varanda construída.

Os AA. pediram o reconhecimento de uma servidão de vistas nascida com a construção, em 1985, da varanda no 1º andar do seu prédio, com as referidas dimensões e características, sustentando que a construção feita pelos RR., em 2011, encostando uma parede à parede do prédio dos AA. tapando assim a abertura feita em 1985 e a varanda, viola essa servidão, tendo pedido a demolição dessa obra.

Do que se trata, pois, é saber se tal servidão de vistas existe constituída por usucapião e se a actuação dos RR. violou o direito que os AA. se arrogam.

Ambas as construções foram autorizadas pelo Câmara Municipal do ....

O direito de propriedade, reconhecido pela Lei Fundamental e pela lei infra constitucional, mormente pelo Código Civil, coenvolve os tradicionais poderes de uso, fruição e disposição da coisa sobre que incide, com as limitações impostas pela lei, como decorre do art. 1305º do Código Civil, que, não definindo expressis verbis tal direito, o faz através da indicação do seu conteúdo, ou seja, dos poderes inscritos nesse direito.

O direito de propriedade, salvo as excepções consagradas na lei, é um direito absoluto compreendendo os clássicos poderes de utendi, fruendi e abutendi, atenta a caracterização do direito romano.

Oliveira Ascensão – “Direitos Reais”, 5ª edição, pág. 448, define a propriedade como “O direito real que outorga a universalidade de poderes que à coisa se podem referir, poderes esses que são atribuíveis individualmente, “uti singuli” e globalmente, “uti universi”.

O art. 1305º do citado diploma, consigna: “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.”

Tais restrições podem ser de direito público ou de direito privado. Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, I Volume, em anotação ao citado normativo:

“As restrições de direito privado são as que resultam das relações de vizinhança. Têm elas em vista regular os conflitos de interesses, que surgem entre vizinhos, em consequência da solidariedade dos seus direitos, ou seja, em virtude da impossibilidade de os direitos do proprietário serem exercidos plenamente sem afectação dos direitos dos vizinhos.

A generalidade destas restrições encontra-se prevista e regulada no capítulo relativo à propriedade dos imóveis (arts. 1344.° e segs.).

Deve entender-se que, além de estar sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe (dever de abstenção), o proprietário tem a obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem (dever de prevenção do perigo).”

O objecto das restrições é evitar que sobre os prédios vizinhos se façam despejos e, sobretudo, que sejam devassados com a vista – Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 1967, 149, RLJ, 99. °-239.

A questão nodal está em saber se a construção da varanda, no prédio dos AA., não tendo eles alegado que está provida de parapeito, mesmo a verificarem-se os requisitos de publicidade e pacificidade e o decurso de mais de 20 anos, conduziu à aquisição de uma servidão de vistas em favor do seu prédio, agora estorvada, ilegalmente, pela construção erigida pelos RR.: uma parede que encosta ao prédio daqueles e impede a vista a partir de tal varanda.

O artigo 1360º do Código Civil (abertura de janelas, varandas e obras semelhantes) estabelece:

1. O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.

2. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.

3. Se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente levantado; mas, se a obliquidade for além de quarenta e cinco graus, não tem aplicação a restrição imposta ao proprietário.”

Na obra citada, em anotação, a este normativo, os Ilustres civilistas observam:

“ […] O art. 2235º do Código de 1867 referia-se não só às portas e janelas como às varandas e eirados; o novo texto (nº 2) refere-se ainda aos terraços e às obras semelhantes, que podem ser mirantes, sacadas, balões, etc…E o mesmo se diga (referem-se a obras de devassamento) de uma varanda que ocupe a fachada de um edifício, com vista directa para a via pública, mas que, lateralmente, possibilite vistas sobre os prédios vizinhos, em termos praticamente idênticos aos de uma janela…há uma inovação importante sob um outro.

É que as varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes só estão sujeitos à restrição do artigo quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.

Traduz esta disposição uma nova orientação, que é a de facilitar as relações de vizinhança, não impedindo aqueles actos que não afectam gravemente os interesses do vizinho e que, pelo seu exercício continuado, poderiam conduzir à constituição de servidões.

Não pode dizer-se que a existência de um simples terraço ou eirado, a um nível superior ao do prédio vizinho, afecte mais gravemente este do que a simples contiguidade à superfície. Praticamente, a devassa é a mesma.

Tanto vale estar no terraço como no solo, para poder ver o que se passa no terreno vizinho.

Começam somente os prejuízos a ser atendíveis, se existir um parapeito, porque, neste caso, tal como numa janela, a pessoa pode debruçar-se, ocupando parcialmente o prédio alheio, e arremessar com facilidade objectos para dentro deste. A devassa começa a tomar aspectos mais graves.

“Isto quer dizer, escreve-se na Revista de Legislação e de Jurisprudência (ano 99º, pág. 240), que não são propriamente as vistas que interessam, mas o devassamento, ou melhor, a possível ocupação do terreno vizinho.

Basta que, no parapeito duma janela ou dum terraço, a pessoa se debruce, numa atitude natural, ou estenda um braço, para que haja violação do direito de propriedade alheia, e é isso o que importa evitar”.

“ […] O nosso Código, para além do parapeito, fixou a altura que ele deve ter para evitar que se discuta, como tem sucedido em Itália, esse problema (vide Tabet e Ottolenghi, ob. Cit., nº555).

Não pode, porém, esquecer-se, mesmo na nossa lei, que é exigido um parapeito, e que não pode considerar-se como tal uma parede divisória de alguns centímetros ou mesmo decímetros de altura. Ele deve ter as dimensões suficientes para que possa servir de apoio à pessoa, para que esta possa debruçar-se, apoiando-se nele, sobre o terreno do vizinho.

O parapeito deve ser construído na linha limite do terraço ou tão perto dela que permita a devassa que se pretende evitar.” (destaque nosso)

Dispõe o art. 1362º (servidão de vistas) do Código Civil:

1. A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião.

2. Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.°1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.”

               

Da conjugação deste normativo com o art. 1360º, nºs 1 e 2, do Código Civil resulta que, mesmo que tenha sido construída “janela, porta, varanda, terraço eirado ou obra semelhante”[3] em violação da lei, a existência de tais construções pode conduzir à aquisição por usucapião de servidão de vistas, e, se constituída, nascem para o dono do prédio vizinho restrições quanto a edifício ou outra construção que levante no seu prédio.

Em anotação a este normativo, no “Código Civil Anotado”, Vol. III, pág. 219, os seus Autores, comentam: “ […] A designação de servidão de vistas não é impecável, e já se tem prestado a equívocos. O objecto da restrição não é propriamente a visita sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda, do terraço, do eirado ou de obra semelhante, que deite sobre o prédio nas condições previstas no artigo 1360.°. Não se exerce a servidão com o facto de se desfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho. Pode a janela ou a porta estar fechada, desde que o não seja, definitivamente, com pedra e cal, que a servidão não deixa de ser exercida.”

Na varanda construída, no primeiro andar do prédio dos Autores, não se provou que exista parapeito (de referir que, ao invés do que é usual), a instrução da acção não foi feita com qualquer prova documental fotográfica, nem com prova pericial, constando apenas esboços e plantas das construções). Nunca alegaram os demandantes, sequer, que a extensa varanda tenha parapeito.

A existência de parapeito é de crucial importância como doutamente realçam os Ilustres Professores Pires de Lima e Antunes Varela.

É que não basta a existência de um espaço de onde se possa olhar para o prédio contíguo: o que a lei pretende é evitar a intromissão abusiva, o devassamento, e que objectos possam ser atirados para o prédio vizinho.

Existindo devassamento ou possibilidade dele, há intromissão ilegítima na reserva privada do vizinho, que é propiciada pela existência, nas obras elencadas no nº2 do art. 1360º do Código Civil (varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes), de parapeitos pois estes emprestam comodidade e segurança, permitindo que alguém se debruce e apoie os braços (normalmente os parapeitos das varandas e das janelas têm a altura de uma pessoa adulta de estatura normal) e, assim, possa devassar “comodamente” pela vista o que se passa no prédio contíguo.

Como pertinentemente observam os citados Mestres “não se exerce a servidão com o facto de se desfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho”. Esse sinal visível e permanente, revelador da possibilidade e efectividade do devassamento, é o parapeito existente, in casu, na varanda.

Tendo-se provado, apenas, que os AA. construíram na fachada do alçado principal uma varanda em toda a sua extensão – 16,90 metros – com 1,16 metros de largura e com uma abertura ao terreno dos Réus de cerca de 3 metros de altura, e que tal varanda deita “directamente para o terreno dos réus”, sem que tivessem alegado, como lhes competia – art. 342º, nº1, do Código Civil – a existência de parapeito nessa varanda, desde a construção dela há mais de 20 anos, não se constituiu uma servidão de vistas a favor do seu prédio, pelo que os Réus podiam edificar, na linha divisória do seu prédio, sem a restrição do espaço mínimo de metro e meio em relação ao prédio dos AA. seus vizinhos.

Com a referida varanda pode o prédio dos AA. ter adquirido um direito real de servidão, quiçá de luz e ar, mas não uma servidão de vistas.

Finalmente, sustentam os AA./recorrentes que não deviam ter sido condenados nas custas do incidente de intervenção principal acessória requerido pelos RR., admitido pela decisão da 1ª Instância fazendo ingressar na lide o Município do ..., decisão que foi revogada no Tribunal da Relação pelo Acórdão sob censura, que condenou os AA. nas custas “em ambas as instâncias”, também no que se refere ao incidente.

           

Nos termos do art. 527º do Código de Processo Civil – “1. A decisão que julgue a acção  ou algum dos seus incidentes ou recursos  condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito. 2. Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. 3. No caso de condenação por obrigação solidária, a solidariedade estende-se às custas”.

           

A parte vencida no incidente foi quem o requereu, no caso os Réus, que viram tal pretensão naufragar em termos definitivos pelo Acórdão recorrido.

Assim, atento o regime-regra da sucumbência, as custas desse incidente na 1ª Instância e no Tribunal da Relação são da responsabilidade dos Réus requerentes incidentais, tendo sido recorrente o Município do ... que obteve procedência da sua apelação.

Sumário – art. 663º, nº7, do Código de Processo Civil

Decisão:

Nestes termos, concede-se parcialmente a revista, revogando-se o Acórdão recorrido, apenas no que respeita à condenação em custas pelo incidente da intervenção principal provocada acessória, colocando o seu pagamento a cargo dos RR.

           

No mais confirma-se o Acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes, aqui e nas Instâncias, excepto as referentes ao incidente referido que ficam a cargo dos Réus.

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de julho de 2016

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

           

_______________________________________________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] Não é, por isso, pertinente a alusão que os Réus recorrentes fazem ao art. 672º, nº1, c) do Código de Processo Civil, preceito que contém um dos requisitos de admissibilidade do recurso de revista excepcional. Este recurso pressupõe a existência de duas decisões conformes sequenciais – nº3 do art. 671º.
[3] A expressão “janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho” — art. 1360°, n.°1, do Código Civil — não consente o entendimento de que uma varanda que ocupe a fachada de uma casa, com vista directa para a rua, embora lateralmente se divise o prédio vizinho, pode importar a constituição de servidão de vistas, nos termos do n.°1 do art. 1362.° do mesmo Código – Acórdão da Relação de Coimbra, de 19.11.1971, in BMJ, 211.°-333.