Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
381-2002.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ACÇÃO CÍVEL EMERGENTE DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS
DANO NÃO PATRIMONIAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO À REVISTA DO AUTOR E CONCEDIDO PARCIALMENTE PROVIMENTO A REVISTA À RÉ
Sumário :
1. Radicando a culpa de ambos os condutores, intervenientes no acidente, na violação de normas estradais, legais e regulamentares, constitui «questão de direito» o apuramento, face à matéria de facto fixada, dos comportamentos culposos, concausais do acidente, bem como a graduação do relevo das respectivas culpas na fixação dos montantes indemnizatórios a arbitrar, nos termos do nº1 do art. 570º do CC.

2. É sobre a ré seguradora - que alegou a velocidade «excessiva» do lesado como causa do acidente - que recai o respectivo ónus probatório, tendo de resolver-se em seu desfavor a dúvida resultante de, perante a matéria de facto apurada, ocorrer uma grande margem de indeterminação sobre a velocidade a que efectivamente circulava o lesado.

3. A indemnização a arbitrar como compensação dos danos futuros previsíveis, decorrentes da IPP do lesado, deve corresponder ao capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinga no termo do período provável da sua vida – quantificado, em primeira linha, através das tabelas financeiras a que a jurisprudência recorre, de modo a alcançar um «minus» indemnizatório, a corrigir e adequar às circunstâncias do caso através de juízos de equidade, que permitam a ponderação de variáveis não contidas nas referidas tabelas.

4. Tal juízo de equidade das instâncias, assente numa ponderação , prudencial e casuística das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.

5. Em aplicação de tais critérios, não há fundamento bastante para censurar o juízo, formulado pela Relação com apelo à equidade, que arbitrou a um lesado com 26 anos de idade, afectado por uma IPP de 60%, envolvendo total incapacidade para o exercício das funções que desempenhava, auferindo rendimento mensal de €1.058, cujo aumento era previsível, que conduziu a um valor indemnizatório de €300.000.

6. Não é excessiva uma indemnização de €40.000, arbitrada como compensação de danos não patrimoniais, decorrentes de lesões físicas dolorosas ,que implicaram internamento por tempo considerável e ditaram sequelas irremediáveis e gravosas para a qualidade de vida do lesado, impossibilitado de realizar tarefas que requeiram o uso do braço direito e afectado por um grau de incapacidade de 60%.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA intentou, no Tribunal Judicial de Montemor-O-Novo, acção, com processo ordinário, contra a Companhia de Seguros Tranquilidade,S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe , a título de indemnização dos danos emergentes de acidente culposamente causado por veículo conduzido pelo respectivo segurado, a quantia de €593.966,19, acrescida de quantitativo a liquidar em execução de sentença, e respectivos juros legais
A ré contestou, imputando a culpa na produção do acidente também ao próprio lesado - o Autor - e impugnando o valor indemnizatório pretendido.
Saneados e condensados os autos, procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, por se entender ter havido culpas concorrentes na eclosão do acidente e, em consequência, condenando-se a ré a pagar ao lesado a quantia de €176.718,90, acrescida dos respectivos juros, bem como 75% das quantias que se liquidarem em execução de sentença, referentes aos custos com tratamentos, exames e medicamentos de que o lesado, no futuro, venha a necessitar como decorrência das lesões causadas.
Apelaram ambas as partes, questionando o decidido em 1ª instância, quer quanto à repartição das culpas, quer quanto ao montante indemnizatório arbitrado, tendo a Relação de Évora:
-revogado a sentença recorrida na parte em que decidira haver concorrência de culpas na produção do acidente, imputando-as exclusivamente ao condutor do veículo automóvel seguro na ré;
concedido provimento ao recurso do Autor, na parte relativa aos danos futuros consubstanciados na perda de ganhos, decorrentes da incapacidade parcial permanente de 60%,fixando o valor indemnizatório em €300.000, a que acresce o valor de 15.625,19, arbitrado a título de outros danos patrimoniais;
mantido o valor de €40.000, arbitrado a título de compensação de danos não patrimoniais.


2. Inconformadas com o decidido, recorreram ambas as partes para este STJ, encerrando os recursos de revista interpostos com as seguintes conclusões que, como é sabido, delimitam o elenco das questões a apreciar:

No recurso interposto pela seguradora:

1. O motociclo conduzido pelo recorrido seguia com velocidade excessiva para o local.
2. Os factos assentes, em especial a distância a que oram projectados o motociclo e o condutor, conjugados com o desvio lateral e a rotação de 140° sofrida pelo veículo embatido na lateral pelo referido motociclo, tendo em conta as regras de experiência, apontam seguramente para uma velocidade bastante superior a 50 kms/hora por parte do Autor.
3. É evidente a violação, por parte do recorrido, do disposto nos artigos 24° n°l e 3; 25° n° 1, alíneas c) f) e h), e artigo 27° n° 1 e 3 do Código da Estrada.
4. Não existe na nossa lei um direito de prioridade absoluto.
5. O recorrido, embora se apresente pela direita no momento em que o condutor do veículo seguro na recorrente mudou de direcção para a Esquerda, para ingressar na Rua Nova do Arneiro, não estava dispensado de cumprir as regras de trânsito.
6. O direito de prioridade de passagem está subordinado ao princípio de condução prudente.
7. Principio e regra estradai que o recorrido não respeitou ao circular com velocidade superior a 50 kms/hora, dentro de uma povoação, onde existe o limite legal máximo de 50 kms/hora, conforme o Disposto no artigo 27° n° 1 do Código da Estrada aprovado pelo Dec-Lei n° 114/94, de 3 de Maio.
8. Velocidade que era excessiva em termos absolutos e em termos relativos, por circular junto de um entroncamento e com o tempo chuvoso.
9. O condutor do motociclo ...-...-NS foi culpado pela produção do acidente.
10. A velocidade excessiva a que transitava o condutor do motociclo NS contribuiu para o agravamento dos danos sofridos pelo recorrido.
11. Deve considerar-se igual a culpa do condutor do motociclo NS e a culpa do segurado da recorrente, na indemnização a arbitrar.
12. A indemnização pelos danos decorrentes da IPP não deverá ultrapassar a quantia de € 150.000,00.
13. O montante a atribuir pelos danos não patrimoniais, salvo sempre melhor opinião, e tendo em conta o que é normalmente atribuído pela perda do direito à vida, não deverá ultrapassar o montante de € 30.000,00.
14. O douto Acórdão recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 483° n° 1, 487° n° 2, 505° e 570° n° 1, do Código Civil e o disposto nos artigos n°s. 25° n° 1, alíneas c) e f) e 27° n° 1 e 3 do Código da Estrada.
15. Por tal motivo deve ser revogado e substituído por Acórdão que atribua ao recorrido culpa na eclosão do evento em percentagem não inferior ao do segurado da recorrente, com reflexo directo e proporcional nas indemnizações a atribuir ao Autor, incluindo as quantias que se liquidarem em execução de sentença referidas na douta sentença proferida na primeira instância.

No recurso interposto pelo Autor:

a) - Ao A. foi atribuída a indemnização de 300 000 Euros a título de danos patrimoniais futuros.

b) - No entanto, atendendo aos critérios que a Sentença e Acórdão recorrido elegeram, aos factos provados e ao tempo provável de vida activa (_65 anos -26 anos = 39 anos ) diremos que, ao A., por uma questão de equidade, é devida a indemnização a título de danos patrimoniais futuros, ou perda de ganhos, no quantitativo de € 495 144.00 € : (Rend. Mensais X 12 meses X39 anos X 75% = 1 058,00 €X 12 meses X 39 anos = 495 144,00 €).

c) - Também o quantitativo atribuído a título de danos não patrimoniais é extremamente reduzido.

d) - Dada a intensidade do sofrimento de que o A. padece, agora e no futuro o qual se prevê, pelo menos, até os 75 anos de idade, portanto, um sofrimento de mais 49 anos ( 75-26 = 49 anos ), é adequada uma indemnização de pelo menos 100 000,00 Euros ( e não os 40 000 mil Euros atribuídos ), pois de outro modo, não só o Acórdão recorrido é injusto como ainda não especifica razoavelmente os fundamentos que, nesta parte, o poderiam justificar.

e) - Ao assim não proceder, violaram-se as normas contidas nos artigos 668° n° 7 b) do C.P.C, e artigos 496°, 564° n° 1 e n° 2 e 566° n° 3, todos do C. Civil, as quais deveriam ter sido interpretados não como o foram, mas sim de forma a atenderem as pretensões que o A. aqui alega, o que não foi feito correctamente.

Termos em que.
e com os fundamentos supra, deverão proceder todas as conclusões do recurso e, em consequência, deverá ao mesmo ser dado provimento, com todas as legais consequências daí advindas, nomeadamente, substituindo-se o douto Acórdão recorrida por um outro que acolha as pretensões do Recorrente/Lesado, com o que se fará .JUSTIÇA !


A seguradora apresentou ainda contra-alegação, como recorrida, impugnando a pretensão do recorrente/ lesado de ver aumentado o valor indemnizatório que lhe fora arbitrado pela Relação.


3.É a seguinte a matéria de facto fixada pelas instâncias:


1) - Em 21 de Outubro de 2001, pelas 22 horas e 40 minutos, ocorreu um acidente de viação que envolveu o autor e BB, segurado da ré (A dos Factos Assentes).

2) - O autor conduzia um motociclo de matrícula ...-...-NS registado a seu favor (B dos Factos Assentes).

3) - BB seguia na altura no veículo automóvel de passageiros de matrícula ...-...-BG (C dos Factos Assentes).

4) - O autor circulava na Rua Almirante Gago Coutinho no sentido Poente/Nascente (D dos Factos Assentes).

5) - O autor circulava a velocidade superior a 50Km/hora, mas inferior a 100 Km/hora (51 da Base Instrutória).

6) - BB circulava na mesma rua no sentido nascente/poente (E dos Factos Assentes).

7) - A Rua Almirante Gago Coutinho tem de largura no local do acidente 6,54 m e mostrava-se preenchida de veículos estacionados em fila indiana, circunstância que reduz aquela largura em não menos de 2,2 metros (N dos Factos Assentes).

8) - BB mudou de direcção para a esquerda na Rua Nova do Arneiro (2 da Base Instrutória).

9) - O veículo do autor embateu na parte lateral direita do veículo conduzido pelo BB (5 da Base Instrutória).

10) - Após o acidente o BG embatido, rodou sobre si mesmo a 140° 150° e foi atirado para 4,35 metros do local de embate (O dos Factos Assentes).

11) - Enquanto o motociclo e o autor foram projectados a 24, 10 e 29, 70 metros, respectivamente (P dos Factos Assentes).

12) - Havia boa visibilidade e o local era iluminado (8 da Base Instrutória).

13) - No momento do acidente o tempo era chuvoso e o asfalto era bom (L dos Factos Assentes).

14) - Como consequência do embate o autor foi projectado no chão tendo ficado ferido (7 da Base Instrutória).

15) - Ao autor foi diagnosticado um traumatismo de plexo braquial tipo inferior à direita e fractura do úmero direito (F dos Factos Assentes).

16) - Passou depois em regime ambulatório a ser seguido pelo Instituto de Cirurgia reconstrutiva em Coimbra (G dos Factos Assentes).

17) - Foi operado em 18-1-2002 ao braço direito nesse Instituto (H dos Factos Assentes).

18) - Após o acidente o autor foi levado para o Hospital de São José (9 da Base Instrutória).

19) - Tendo sido transferido para o hospital de Évora em 23-10-2001 (10 da Base Instrutória).

20) - Onde ficou internado até 10-12-2001 (11 da Base Instrutória).

21) - Passou a ser seguido depois em regime ambulatório (12 da Base Instrutória).

22) - Recebeu alta hospitalar a 20-1-2002 (I dos Factos Assentes).

23) - Em consequência do acidente, o autor sofreu diversos traumatismos nas pernas, braço direito, mão direita e dedos e hematomas por todo o corpo (13 da Base Instrutória).

24) - Após os factos referidos em h) e i) o autor passou a ser seguido em regime

25) ambulatório (14 da Base Instrutória).

26) - E acamado devido às dores que sentia (15 da Base Instrutória).

27) - Necessitou de fazer fisioterapia até ao dia 4 de Outubro de 2002 (16 da Base Instrutória).

28) - O autor não vai recuperar movimentos no braço e na mão direitos (17 da Base Instrutória).

29) - O braço direito do autor não tem músculo (18 da Base Instrutória).

30) - O autor não mexe os dedos da mão direita (19 da Base Instrutória).

31) - Não tem sensibilidade em todo o braço direito (20 da Base Instrutória).

32) - Não consegue com ele fazer qualquer força nem suportar peso (21 da Base Instrutória).

33) - Sente dores no braço e em especial do punho para baixo, 24 horas por dia (22 da Base Instrutória).

34) - Os médicos receitaram-lhe morfina com único calmante eficaz (23 da Base Instrutória).

35) - Foi atribuída ao autor uma incapacidade de 60% (24 da Base Instrutória).

36) - O autor tinha 26 anos à data do acidente (25 da Base Instrutória).

37) - Trabalhava por conta própria como agricultor e conduzindo uma retro-escavadora (26 da Base Instrutória).

38) - O autor ficou incapacitado para o resto da vida para exercer tais funções a 100 % (27 da Base Instrutória).

39) - Bem como para o desempenho de qualquer actividade profissional que requeira o uso do braço direito (28 da Base Instrutória).

40) - A data do acidente o autor auferia em média um rendimento mensal de 1058 euros (29 da Base Instrutória).

41) - Era previsível aumentar esse rendimento (30 da Base Instrutória).

42) - O autor pagou em consequência do acidente a quantia de 5 220, 63 pela cirurgia a que foi submetido (31 da Base Instrutória).

43) - Gastou em sessões de fisioterapia a quantia de 3 517,60 euros (32 da Base Instrutória).

44) - Teve de pagar a quantia de 1 584, 53 euros referente a despesas de deslocação a Coimbra (33 da Base Instrutória).

45) - Pagou 83,74 euros em consultas (34 da Base Instrutória).

46) - E 107,69 em medicamentos (35 da Base Instrutória).

47) - A data do acidente o autor era robusto e saudável (36 da Base Instrutória).

48) - O autor sofreu muito durante a recuperação (37 da Base Instrutória).

49) - Ainda sofre e chora (38 da Base Instrutória).

50) - Sente-se infeliz por não poder desenvolver a sua actividade profissional (39 da Base Instrutória).

51) - Sentindo-se um inútil por não poder fazer certas tarefas sem ajuda de terceiros, nomeadamente a sua própria higiene (40 da Base Instrutória).

52) - O autor é destro (41 da Base Instrutória).

53) - Jamais poderá voltar a conduzir um motociclo, coisa que lhe dava imenso prazer (42 da Base Instrutória).

54) - Vai padecer de dores para o resto da sua vida (43 da Base Instrutória).

55) - Por causa do acidente é um homem triste e sem vontade de viver (44 da Base Instrutória).

56) - Raramente saindo de casa (45 da Base Instrutória).

57) - Vai continuar a necessitar de tratamentos, exames e medicamentos em consequência da incapacidade e dores que padece (46 da Base Instrutória).

58) - Em 21-10-2001 BB havia transferido a responsabilidade civil da circulação da viatura ...-...-BG para a ré nos termos da apólice .... (J dos Factos Assentes).

59) - À data do acidente o motociclo de matrícula ...-...-NS valia 5.111 euros (M dos Factos Assentes).

60) - O autor recusou-se a ser operado (54 da Base Instrutória).

61) - E a retirar o material de osteosíntese (55 da Base Instrutória).

4.A primeira questão suscitada prende-se com o apuramento da existência e repartição de culpas na produção do acidente.
A 1ª instância tinha entendido que se verificara uma situação de concorrência de culpas entre lesante e lesado, já que o automobilista teria infringido as regras estradais que regulam a manobra de mudança de direcção e a prioridade de passagem (arts.44º,29ºe 30º do CE) e o motociclista teria violado as que definem os limites de velocidade nas localidades (arts. 24º, 25º e 27º do CE), graduando as culpas concorrentes em 75% para o primeiro e 25% para o segundo.
Entendimento diverso teve a Relação, atribuindo a culpa exclusiva na produção do acidente ao automobilista, com base na violação das regras estradais que condicionam a manobra de mudança de direcção ( arts. 35º e 44º), tendo por inaplicáveis ao caso as regras sobre «prioridade de passagem»e considerando insuficientemente demonstrado, face à matéria de facto fixada, o «excesso de velocidade»do lesado, dada a grande margem de indeterminação no estabelecimento da velocidade concreta a que o mesmo seguiria ( compreendida entre 50 e 90 km horários).

No caso dos autos, a culpa de ambos os condutores, intervenientes no acidente, radica na violação de normas legais e regulamentares, constituindo, deste modo, o seu apuramento e eventual graduação uma «questão de direito», susceptível de apreciação no âmbito de um recurso de revista - mas tendo naturalmente o Supremo, na realização de tal tarefa, de se cingir aos factos fixados definitivamente pelas instâncias ( não sendo, deste modo, manifestamente viável reduzir, mediante presunções naturais, a margem de indeterminação quanto à velocidade concreta a que seguia o lesado).Na verdade, e como é notório, têm significados completamente diversos na explicação do acidente – e no juízo de censura a formular quanto aos comportamentos imputados aos respectivos intervenientes - a adopção pelo motociclista de uma velocidade de 51 km horários ou de 99 km horários dentro da localidade onde se verificou a colisão…
Os resultados de tão amplíssima indeterminação quanto a um facto essencial para a correcta decisão da causa terão de ser valorados perante as regras que regulam o ónus probatório, incidindo sobre a ré seguradora - que alegou o «excesso de velocidade» do lesado – o ónus de demonstrar e provar cabalmente os factos em que o mesmo se teria consubstanciado. Não o tendo conseguido, de forma satisfatória e cabal, a «dúvida» acerca dos respectivos e precisos factos terá naturalmente de ser decidida em seu desfavor, o que nos conduz a considerar que o motociclista lesado circulava, no momento e nas concretas condições em que se verificou o acidente, a velocidade tangencialmente superior ao limite máximo consentido dentro das localidades pelo art. 27º do CE.
Não pode, por outro lado, olvidar-se que, perante circunstâncias concretas desfavoráveis ou «hostis»à segurança da circulação rodoviária, o referido limite máximo de velocidade instantânea, em abstracto possível, terá de ser especialmente reduzido, face ao estipulado nos arts. 24º e 25º do CE – como efectivamente sucedia no caso dos autos, em consequência de se circular durante a noite (embora num local iluminado), com tempo chuvoso, numa rua cuja largura não excedia 2,2 metros, por se encontrar pejada de carros estacionados, aproximando-se o lesado de um cruzamento ou entroncamento.
Sendo, deste modo, inquestionável a responsabilidade principal do condutor segurado na ré na eclosão do acidente, por violação do estipulado nos arts. 35º e 44º do CE, não pode excluir-se a existência de uma parcela de responsabilidade a cargo do lesado, decorrente de circular, no momento do acidente, a velocidade, pelo menos, tangencialmente superior ao limite máximo consentido pelo art. 27º do CE – quando a ocorrência de condições desfavoráveis à segurança da circulação impunham que tal velocidade devesse ser especialmente moderada, nos termos das regras estradais que decorrem dos arts. 24º e 25º.
E tal comportamento negligente do lesado, embora de gravidade manifestamente menor da que se deve atribuir ao comportamento negligente do automobilista segurado na ré, não pode deixar de se configurar como concausal do acidente, ao dificultar a detecção atempada da aproximação do motociclo e a realização de qualquer manobra que poderia ainda ter evitado a colisão ou minorado a sua violência.
A concorrência de culpas que daqui decorre não poderá, porém, face às circunstâncias concretas atrás elencadas, conduzir ao estabelecimento de percentagem superior a 10% quanto ao lesado, recaindo sobre o
automobilista segurado na ré os restantes 90% da culpa na produção do acidente – repercutindo-se naturalmente este juízo sobre a repartição de culpas dos intervenientes no acidente no valor da indemnização arbitrada ao A.

5.A segunda questão suscitada pelos recorrentes prende-se com o valor atribuído à indemnização pelos danos não patrimoniais futuros resultantes da substancial redução da capacidade aquisitiva do lesado, decorrente de uma IPP de 60%.Na verdade, tendo a Relação fixado o valor indemnizatório correspondente a tais danos em €300.000, ambas as partes questionam esse valor, pretendendo o lesado que a respectiva indemnização seja fixada em €495.144 e sustentando a seguradora que o valor indemnizatório alcançado pela 2ª instância se configura como excessivo.

Sendo inquestionável que o dever de indemnizar que recai sobre o lesante compreende os danos futuros, desde que previsíveis, quer se traduzam em danos emergentes ou em lucros cessantes, nos termos do art. 564º do CC, está fundamentalmente em causa o método de cálculo que deve ser adoptado para o cômputo da respectiva indemnização, cumprindo reconhecer que tal matéria suscita problemas particularmente delicados nos casos, como o dos autos, em que a taxa de incapacidade permanente é elevada e o lesado se encontrava ainda numa fase próxima do início da sua carreira profissional, fortemente prejudicada pelas gravosas e irremediáveis sequelas das lesões físicas sofridas – envolvendo a necessidade de realizar previsões que abrangem muito longos períodos temporais.
Constitui entendimento jurisprudencial reiterado que a indemnização a arbitrar por tais danos futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional activa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma): adere-se inteiramente a este entendimento, já que as necessidades básicas do lesado não cessam obviamente no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma, sendo manifesto que será nesse período temporal da sua vida que as suas limitações e situações de dependência, ligadas às sequelas permanentes das lesões sofridas , com toda a probabilidade mais se acentuarão; além de que, como é evidente, as limitações substanciais às capacidades laborais do lesado não deixarão de ter fortes reflexos negativos na respectiva carreira contributiva para a segurança social, repercutindo-se no valor da pensão de reforma a que venha a ter direito.
Para evitar um total subjectivismo – que, em última análise, poderia afectar a segurança do direito e o princípio da igualdade – o montante indemnizatório deve começar por ser procurado com recurso a processos objectivos, através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas, com vista a calcular o referido capital produtor de um rendimento vitalício para o lesado, recebendo aplicação frequente a tabela descrita na Ac.de 4/12/07(p.07A3836), assente numa taxa de juro de 3%.
Porém, e como vem sendo uniformemente reconhecido, o valor estático alcançado através da automática aplicação de tal tabela «objectiva» - e que apenas permitirá alcançar um «minus »indemnizatório - terá de ser temperado através do recurso à equidade – que naturalmente desempenha um papel corrector e de adequação do montante indemnizatório às circunstâncias específicas do caso, permitindo ainda a ponderação de variantes dinâmicas que escapam, em absoluto, ao referido cálculo objectivo: evolução provável na situação profissional do lesado, aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível e melhoria expectável das condições de vida, inflação provável ao longo do extensíssimo período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização ( e que, ao menos em parte, poderão ser mitigadas ou compensadas pelo «benefício da antecipação», decorrente do imediato recebimento e disponibilidade de valores pecuniários que normalmente apenas seriam recebidos faseadamente ao longo de anos, com a consequente possibilidade de rentabilização em termos financeiros).
Finalmente – e no nosso entendimento – não poderá deixar de ter-se em consideração que tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá , em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial, dos critérios que generalizadamente vêm sendo adoptados, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e , em última análise, o princípio da igualdade.

Aplicando estas considerações ao caso dos autos, verifica-se que:


-o lesado tinha 26 anos à data do acidente, tendo, pois, uma esperança média de vida não inferior a 50 anos;
- foi-lhe atribuída uma IPP de 60%, ficando irremediavelmente impossibilitado de exercer, para o resto da vida, a actividade profissional que desenvolvia, bem como qualquer outra actividade profissional que requeira o uso do braço direito;
-auferia um rendimento mensal médio de €1.058, sendo previsível que o pudesse aumentar.

Tendo em conta tais circunstâncias fácticas e os critérios e valores jurisprudencialmente alcançados em situações análogas – salientando-se que, no caso dos autos, relevam decisivamente, quer o elevado grau de incapacidade sofrido, quer o montante dos rendimentos auferidos pelo lesado, excedendo substancialmente o valor do salário mínimo e estando expressamente demonstrada a possibilidade de , no futuro, os incrementar, (cfr. v. g. os Acs. de 25/6/09 (p.08B3234) e de 23/10/08(p.08B2318)- considera-se que não há fundamento para pôr em causa o valor fixado equitativamente para tal tipo de danos na 2ª instância.
Relativamente à argumentação desenvolvida no recurso interposto pelo lesado, salienta-se que o cômputo da indemnização não envolve a soma ou acumulação material de todos os rendimentos provavelmente recebidos ao longo da sua vida activa, mas – como atrás se salientou – um fenómeno de «capitalização»,que não pode naturalmente olvidar as possibilidades de obtenção de uma adequada rentabilização financeira do capital recebido.


6. A terceira questão suscitada pelos recorrentes prende-se com o cômputo dos danos não patrimoniais, associados às sequelas das gravosas lesões físicas sofridas pelo sinistrado.
Considera-se que inexiste fundamento para pôr em crise o juízo equitativo formulado pela Relação para quantificar a indemnização compensatória de tal tipo de danos, já que o critério adoptado se conforma inteiramente com os critérios que, numa jurisprudência actualista, vêm sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis – em que estamos confrontados com gravosas incapacidades que afectam, de forma profunda e irremediável, a qualidade de vida dos lesados ainda jovens no momento do acidente (veja-se, relativamente a situação equiparável ao caso dos autos, o Ac. proferido por este Supremo em 25/6/09, no p.08B3234).Adere-se, por outro lado, inteiramente ao entendimento subjacente ao Ac. de 23/10/08 proferido no p:08B2318, segundo o qual, em situações limite de numerosas lesões físicas, de elevada gravidade e sofrimento para o lesado, acarretando profundas sequelas, o valor indemnizatório arbitrado como compensação dos danos não patrimoniais não tem necessariamente como limite as quantias geralmente arbitradas a título de compensação da lesão do direito à vida (arbitrando-se, no caso, indemnização no montante de €180.000).


7.Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento à revista do Autor e , procedendo, em parte a revista da Ré, condena-se esta, nos termos do nº1 do art. 570º do CC, no pagamento da quantia de €320.062,68, bem como de 90% das quantias que se liquidarem em execução de sentença, referentes aos custos com tratamentos, exames e medicamentos de que o Autor venha a carecer como consequência do acidente sofrido.
Custas na proporção do decaimento, sem que esta condenação implique naturalmente preclusão do benefício de apoio judiciário outorgado ao lesado.


Supremo Tribunal de Justiça, 5 de Novembro de 2009

Lopes do Rego (Relator)
Pires da Rosa
Custódio Montes