Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19/20.5JBLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO PENAL
METADADOS
QUESTÃO NOVA
CASO JULGADO PARCIAL
CASO JULGADO FORMAL
IRRECORRIBILIDADE
DUPLA CONFORME
IN DUBIO PRO REO
DIREITO AO SILÊNCIO
CONFISSÃO
ARREPENDIMENTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 11/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I - Num processo de estrutura contraditória, como acontece com a fase de recurso no processo penal português, pressupõe-se que as questões postas em recurso tenham sido objeto de decisão e de prévia discussão.

II - Salvo os casos de conhecimento oficioso, o recurso não é o meio processual próprio para suscitar questão nova, relativamente à qual não discretearam os sujeitos processuais e que , por isso, não foi objeto de pronúncia pela decisão recorrida.

III – Os recursos destinam-se a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições, posto que, como remédios jurídicos que são, com eles não se visa o conhecimento de questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso.

IV – Em processo penal, o caso julgado formal atinge as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objeto do processo – constituindo um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão.

V – O in dúbio pro reo não é uma regra de apreciação da prova, aplica-se, posteriormente, quando depois de produzida e valorada toda a prova persiste uma dúvida inultrapassável, um non liquet. Em todos os casos de persistência de dúvida razoável após a produção e valoração da prova, o facto em dúvida deve ser decidido em sentido favorável ao arguido.

VI – O direito ao silêncio não tem só consagração legislativa ordinário sendo uma emanação do princípio do Estado de Direito. A confissão e o arrependimento são circunstâncias, quando se verificam, favoráveis ao arguido; não confessando o arguido, nem demostrando arrependimento, deixa de poder contar com essas circunstâncias favoráveis, mas isso não equivale a que se contabilize como agravantes a não confissão e não ter demonstrado arrependimento pela prática dos factos.

VII – Constitui erro na determinação da medida da pena considerar contra o arguido circunstâncias derivadas do exercício de um direito.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 19/20

Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. No Juízo Central Criminal ... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foram os arguidos AA, BB, CC e DD condenados, por acórdão de 24/11/2021, nos seguintes termos (transcrição parcial):

«AA, pela prática, em co-autoria, concurso efectivo e na forma consumada, de:

Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal, na pena de 20 anos de prisão;

Um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão;

Um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

Um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;

Um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea f), todos do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão.

Após cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 23 anos de prisão.

BB, pela prática, em co-autoria, concurso efectivo e na forma consumada, de:

Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal, na pena de 20 anos de prisão;

Um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão;

Um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

Um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;

Um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea f), todos do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão.

Após cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 23 anos de prisão.

CC, pela prática, em concurso efectivo e na forma consumada, de:

Um crime de homicídio qualificado, em co-autoria, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal, na pena de 20 anos de prisão;

Um crime de roubo agravado, em co-autoria, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão;

Um crime de sequestro, em co-autoria, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

Um crime de profanação de cadáver, em co-autoria, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;

Um crime de furto qualificado, em co-autoria, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea f), todos do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão.

Um crime, em autoria material, de detenção proibida de munições, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, alínea e), com referência ao artigo 2º, nº 3, alínea p), todos do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02, com a redação introduzida pela Lei nº 17/2009, de 06/05, pela Lei nº 12/2011, de 27/04, pela Lei nº 50/2013, de 24/07 e pela Lei nº 50/2019, de 24/07, na pena de 1 ano de prisão.

Após cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 23 anos e 3 meses de prisão.

DD, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.

Foram ainda condenados os arguidos/demandados AA, BB e CC, no pagamento à demandante/assistente EE da quantia de € 4.370,86, a título de indemnização por danos patrimoniais e da quantia total € 260.000, sendo € 80.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais próprios, € 100.000 a título de indemnização pelo dano morte e € 80.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da morte, acrescidas dos juros de mora vencidos desde a notificação a que alude o artigo 78º, do CPP e vincendos até integral recebimento, à taxa legal».

2. Inconformados com o decidido no acórdão da 1.ª instância recorreram os arguidos para o TRL que, por acórdão de 26 de abril de 2022, negou provimento aos recursos.

3. Ainda inconformados, recorrem os arguidos AA e BB, para este Supremo Tribunal, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

AA:

«1- A questão previa deve ser deferida e consequentemente considerar nula da a prova recolhida de forma ilegal com o recurso aos metadados fornecidos pelas Operadoras -sem mandado prévio de Juiz (para crimes específicos)

2- Por conterem elementos qualificados como prova obtidos de forma Ilegal devem de ser declarados Nulos para tais efeitos e destruídos os anexos Apensos I, IV e V referentes aos reportes de trafego de IP BT fornecidos pelas operadoras Altice e Nós

3- São prova proibida a transmissão de números de telemóvel dos arguidos obtidos com recurso aos metadados (nos termos do acórdão de 19 de Abril de 2022 do TC aplicável para casos futuros e processos em curso que ainda não transitaram em julgado.

4- O arguido AA nunca foi possuidor ou utilizador dos telemóveis com os nº ...04 e ...95

5- O arguido AA não estabeleceu contato telefónico na madrugada do dia 14 e 15 de Março de 2020 com nenhum dos co arguidos

6- O arguido AA no período dos fatos não estabeleceu contato nem recebeu qualquer mensagem ou telefonema dos telemóveis nº ...51; ...47; ...95

7- Durante o mês de março de 2020 o arguido AA nunca esteve nas zonas da ..., .../...; ...; ... nem na ...

8- O arguido AA desde pelo menos o dia 01 e 16 de Março de 2022 a nunca contatou por telefone nem esteve a falar no interior da sua viatura com a testemunha FF sobre qualquer tipo de situações os fatos relativos aos presentes autos.

9- O Tribunal a quo não fez boa apreciação e utilização da prova produzida em audiência de julgamento e demais elementos de prova (utilizando prova obtida ilegalmente), valoráveis e constantes do processo, erro em que o Tribunal da Relação reincidiu ao apreciar o recurso interposto mesmo após já ter sido publicado o Acórdão do TC.

10- Tribunal da Relação manteve como provados atos que o arguido não cometeu e comportamentos que lhe não são imputáveis, designadamente os que tipificam a conduta punível nos termos da norma incriminadora pela qual o arguido foi punido (Homicídio Qualificado; Roubo; furto Qualificado; Sequestro; Profanação de Cadáver))

11 - A sua interpretação extrapola as regras do princípio da livre apreciação da prova sustentando-se em meras presunções, meios lógicos ou mentais sem suporte na prova disponível no processo, e colhida em audiência de julgamento.

12 - O arguido recorrente exerceu o direito ao silêncio, e o tribunal recorrido e mesmo a 1ª instância consideraram indiretamente que tal atitude seria negativa para o mesmo ou seja, com tal consideração mesmo que indireta, fez o tribunal a quo e a Relação confirmou; uma prognose ilegal de como deverá ser tratado tal direito constitucional.

13 - Violou além disso e entre outros o disposto nos artigos 127º, 340 nº1 do CPP integrando a previsão do disposto na alínea c) do nº2 do artigo 410º do mesmo diploma - erro notório na apreciação da prova - que é um dos fundamentos deste recurso.

14 - O processo não contém factos objetivos ou objetiváveis, que apoiem as singelas declarações           da testemunha duvidosamente reconhecida pela assistente e pelas demais testemunhas da acusação que com a mesma privaram

15 -O Processo está de tal forma eivado de depoimentos contraditórios e mantidos em sede de audiência de julgamento que deu origem aos vários requerimentos do MP (no sentido de se extraírem certidões para futuros procedimentos criminais por perjúrio contra as testemunhas por si apresentadas)

16 Inexistem nos autos elementos materiais de prova, ou perícias que permitam, concretamente e seriamente identificar o arguido AA como o autor coautor ou cúmplice de qualquer dos fatos de que está acusado e pronunciado nomeadamente os crimes de Homicídio Qualificado, Roubo, Furto Qualificado, Sequestro e Profanação de Cadáver

17 - Não existe nos autos qualquer tipo de prova que coloque o arguido na área do crime no dia e hora do mesmo nem no dia seguinte (14 e 15 de Março de 2020)

18 -Não existe nos atos qualquer tipo de prova que em algum momento dia ou hora o arguido AA tenha tido contato direto com a vítima GG em vida ou com este já cadáver

19 -Não existe nos autos qualquer prova seja qual for a sua natureza que o arguido tenha alguma vez entrado na casa da vítima sita na Avenida ... no ...

20- Os autos em relação ao arguido AA e recorrente estão feridos de nulidade por inexistência de corpo de delito (o que constitui violação dos princípios da tipicidade da Lei Penal – art. 1º nº1 do CP e art. 29º nº1 da Constituição da República Portuguesa -), nulidade invocada e sempre aflorada em sede do recurso da 1ª instância e aqui atendendo ao acordão do TC

21-O Tribunal A Quo e TRL ponderarem e decidiram sob a influência das redes social (Internet) e mass media (tv e jornais)

22- Se não houve investigação adequada e se mantiveram até final tais contradições deveriam as instâncias inferiores (tribunal a quo e relação) determinarem a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º nº2 alínea c) do CPP

23-A não ter revelado factos dos quais pudesse configurar-se a inocência do arguido perante os factos que lhe são imputados deveria o tribunal em apelo ao forte grau de incerteza da autoria dos mesmos pelo recorrente ter lançado mão do princípio do in dubio pro reo absolvendo; com base nele; o arguido (agiu assim com violação no art. 32º nº2 da CRP

24-Não tendo o recorrente praticado os factos pelos quais foi condenado como resulta da inexistencia de prova “obtida legalmente” nos autos; e por todas as demais conclusões antecedentes impõe-se de acordo com a prova produzida ou pela ausência dela a absolvição do recorrente e quando assim se não entender o que só por mera hipótese académica se admite, então

25-O tribunal recorrido não ponderou nem considerou a inexistência de agravantes para através delas e por interpretação à contrário segundo o princípio do tratamento mais favorável ao arguido, par e caso entende-se pela condenação aplicar-lhe o mínimo legal do único crime que se entende o mesmo tenha praticado com cúmplice: RECETAÇÃO dos objetos vendidos por um terceiro, testemunha destes autos (HH)

26-O tribunal não relevou factos que deu como provados para a demonstração da reintegração social do arguido, as suas condições de vida, hábitos regulares de trabalho; violou desta forma na determinação da medida da pena o art 40º nº1 e 2º CP

27-O tribunal na linha da violação do acima mencionado art 40º.

28º-Finalmente, o Tribunal da Relação ao ser chamado a decidir manteve a decisão do tribunal A Quo (sem prejuízo de nessa data) saber da existência do Acordão de 19 de Abril do TC quanto à prova ilegal (METADADOS)

2º-Pelo que este acórdão deverá ser revogado com as necessárias consequências para a decisão anterior considerando a pertinência das questões legalidade da prova o arguido requer que proferida em audiência a serem apreciadas quanto à a decisão deste Tribunal seja Neste Estado de Direito nos termos da Lei Fundamental deve o arguido AA Ser absolvido atendendo ao principio do in dubio pro reo. Assim Julgando, farão Vossas Excelências JUSTIÇA».

BB:

«Emerge o presente recurso da discordância em relação ao acórdão que condenou o recorrente na pena única de 23 anos de prisão em cúmulo jurídico das penas parcelares pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo artigo 131º e 132º, n.º 1 e 2 al. h) do Código Penal (na pena de 20 anos de prisão); um crime de roubo agravado, previsto e punido pelo artigo 210º, n.º 1 e 2 alínea b) com referência ao artigo 204º, n.º 2 alínea a) todos do Código Penal (na pena de 7 anos de prisão) um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158º, n.º 1 do Código Penal (na pena de 1 ano de prisão), um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254º, n.º 1 alínea a) do Código Penal (na pena de 1 ano de prisão); um crime de furto qualificado previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2 alínea e) com referência ao artigo 202º, alínea f) todos do Código Penal (na pena de 4 anos de prisão).

As razões de discordância com a decisão são, simultaneamente, de facto e de direito:

I. Desde logo, por seu entender, haver insuficiência da matéria de facto, dada como provada para a condenação do recorrente - alínea a) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P.

II. Por outro lado, há contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão a propósito dos factos provados sob o artigo 1º a 68º dos factos provados, por um lado, e o facto a) e ab) dos factos não provados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P; há também contradição insanável na fundamentação entre os factos supra indicados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P.

III. Acresce que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência quanto à matéria de facto tendente à formação da convicção de que o recorrente era o utilizador do número de telemóvel ...47 e que praticou em co-autoria os crimes de que foi condenado, mostrando-se erradamente julgados a propósito os factos provados provados sob o artigo 1º a 68º.

IV. Por outro lado, o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação relativamente à matéria dada como assente provados sob o artigo 1º a 68º dos factos provados, existindo mesmo contradição insanável na fundamentação expendida a propósito da subsunção da matéria de facto ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crimes de que foi condenado.

V. Adicionalmente, independentemente disso, o acórdão em crise enferma ainda do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada sob o artigo 1º a 68º, quanto ao nexo de causalidade entre os factos dados como provados e a respectiva dinâmica e a identificação do recorrente como um dos alegados autores, existindo erro de julgamento dos referidos factos.

g) Existe clara nulidade da prova e de todo o processado posterior resultante da pesquisa ao telemóvel com o número SIM ...43, utilizado pela cidadã II, por violação do disposto na alínea b) do n.º 4 e 6 do artigo 15º da Lei do Cibercrime conjugado com os artigos 253º e 126º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

VI. Existe clara violação dos direitos de defesa do recorrente em virtude da ausência da junção da prova documental (registo das localizações celulares do telemóvel do recorrente indicado a fls. 257 dos autos) o que constitui uma nulidade, nos termos do artigo 120º, n.º 2, alínea d) do C.P.P. uma vez que implica uma verdadeira omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade sendo inconstitucional, por violação das garantias de defesa consagradas no artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, que desde já se argui a inconstitucionalidade.

VII. Existe nulidade da análise aos metadados efectuados aos números de telemóveis indicados nos autos - objecto de análise por parte da investigação -por força da aplicação do acórdão n.º 268/2022, do Tribunal Constitucional.

a) Com efeito, da matéria dada com assente sob os artigo 1º a 68º dos factos provados no acórdão em crise, não se pode concluir, de acordo com as regras de experiência comum e de acordo com o princípio do homem médio, que o recorrente tenha praticado os factos nos locais de ... (...), ... e ... quando no período temporal compreendido entre o dia 13 de Março de 2020 e o dia 15 de Março de 2020, até às 09H45 o recorrente esteve com a namorada deste, JJ, na residência desta sita na ..., a largos quilómetros dos locais onde ocorreram os factos.

b) Consequentemente não foi dada como provada matéria fáctica que demonstre a clareza, a notoriedade e a censurabilidade exigidas para que o recorrente fosse condenado pela prática dos crimes que foi condenado assente em presunções que foram contrariadas em audiência e que exigiam a aplicação do princípio da presunção de inocência atente a existência de dúvidas razoáveis sobre a alegada intervenção do recorrente nos factos na perspetiva da acusação.

c) Assim, neste particular, existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, n.º 2, al. a) do C.P.P.) já que não estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crimes em que o recorrente foi condenado (disso sendo exemplo o caso do crime de sequestro; de furto qualificado, de roubo agravado, de profanação de cadáver e de homicídio qualificado).

Das contradições insanáveis – al. b) do nº 2 do artº 410º, do C.P.P.

d) Há contradição insanável entre os factos provados no artigo 1º a 68º dos factos provados e os factos a) a ab) dos factos não provados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P

e) Com efeito, do confronto dos mesmos fica-se com a clara perceção de que tanto a testemunha FF como a co-arguida DD nas declarações que prestaram nas diferentes fases processuais referiram-se ao arguido como alguém que não conhecem, que não sabem se esteve presente nos dias e horas; se fez o que o co-arguido AA afirmou ter feito e, bem assim e mais importante, se aquilo que diz ter feito se o fez e em caso afirmativo de que modo e com quem. São manifestamente depoimentos indirectos que não podem ser valorados pelo Tribunal como meios de prova o que desde já se argui.

f) No entanto, em face da matéria dada como não provada facto a) a ab) dos factos não provados apresenta-se absolutamente contraditório com o artigo 1º a 68º dos factos provados de difícil compatibilização designadamente em face da prova documental junta aos autos nomeadamente a de fls. 257.

g) Por outro lado, há também contradição insanável na fundamentação entre os factos provados nos artigos 1º a 68º com os factos a) a ab), dos factos não provados e entre estes.

h) Com efeito as contradições insanáveis são inúmeras, quer entre a matéria de facto provada, quer entre esta e a não provada referida.

i) Como melhor se alcança do local próprio no corpo da presente motivação, por mais que uma vez se dá como assente uma coisa e o contrário a propósito do recorrente ter alegadamente entrado na casa da testemunha KK no dia dos alegados factos - quando é a mesma a dizer que não sabe quando ocorreu mas que sabe que foram três dias após aparecerem as notícias nas redes sociais sobre o desaparecimento do ofendido - e/ou o facto da testemunha não ter visto sangue nas roupas do recorrente; de não ter visto trocar de roupa; não ter sequer assistido a qualquer afirmação por parte do arguido e/ou de ter constatado que o recorrente estava ferido num dedo.

j) Estas contradições são um amontoado de factos redundantes, sem nexo, onde tudo foi dado como assente e o seu contrário também.

k) Em face delas, pese embora inexista qualquer prova segura de que o recorrente tenha agredido a vítima e de que forma, não tendo o Tribunal forma de resolver as preditas contradições, outro caminho se não lobriga que não seja o de determinar a anulação do julgamento e o consequente reenvio do processo para novo julgamento quanto às questões fácticas mencionadas - cf. al. c) do n.º 2 do artigo 410º, 426º e 426ºA todos do C.P.P.

Do erro de julgamento – factos provados sob o artigo 1º a 68º dos factos provados:

K) O tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência quanto à matéria de facto tendente à formação da convicção de que o recorrente praticou factos materiais e instrumentais com vista à apropriação de bens pertencentes do ofendido e, bem assim, de atentar contra a sua liberdade ambulatória, integridade física ou contra vida.

L) Com efeito, para além das contradições insanáveis já assinaladas a propósito, a verdade é que do depoimento dos arguidos e das testemunhas supra indicadas resulta claramente que o arguido não praticou os factos porque não se encontrava no local uma vez que nesse dia e a essa hora estava com a namorada JJ em casa desta.

N) A melhor apreciação da prova produzida, mormente do depoimento prestado pelas testemunhas infra, cotejam e confirmam o depoimento do arguido, ora recorrente, o que impõem diferente resposta quanto aos referidos factos.

Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação e da contradição insanável da mesma a propósito do facto provado sob o artigo 1º a 68 dos factos provados e da subsunção dos provados à inexistência dos elementos objectivo e subjectivo dos tipos de crime de homicídio qualificado; de sequestro; de roubo agravado; de furto qualificado; de profanação de cadáver.

O) O acórdão é nulo por falta de fundamentação relativamente à matéria dada como assente sob o artigo 1º a 68 dos factos provados, pois não deixa transparecer suficientemente os motivos que fundamentam a mesma, nulidade que aqui se argui nos termos do disposto no artigo 374º, n.º 2, ex - vi al. a) do n.º 1 do artigo 379º, ambos do C.P.P.

P) Sendo certo que na tentativa de fundamentar a decisão tomada quanto ao preenchimento do elemento objectivo e subjectivo dos tipos de crimes em que o recorrente foi condenado o Tribunal a quo deixa-se enredar-se na apreciação que faz de uma e outra circunstância, concluindo que o número de telemóvel ...47 era utilizado pelo recorrente - quando não existe nenhuma prova directa ou indirecta desta alegação e quando em tribunal é referido, expressamente, que o referido número de telemóvel pertencia a uma cidadã do sexo feminino que nada tem a haver com o aqui arguido.

Q) Não obstante, apesar disso, numa clara contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, o tribunal entendeu dever condenar, erradamente, o recorrente.

Da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de condenar o recorrente pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crimes de homicídio qualificado, de roubo agravado, de furto qualificado, de sequestro, de profanação de cadáver.

R) Acresce que a matéria dada como provada a propósito, designadamente o artigo artigo 1º a 68º dos factos provados é claramente insuficiente para a decisão de condenar o recorrente, vício que deve ser declarado (al. a) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P.)

S) Existindo também erro de julgamento do mesmo, desde logo em face à prova documental junta aos autos e às imagens de videovigilância, assim como os documentos/pareceres técnicos juntos aos autos que põem em crise o relatório pericial efectuado pela Polícia Judiciária quanto à atribuição unilateral do número de telemóvel ...47 ao arguido BB e, bem assim, à total inexistência de prova testemunhal, documental e pericial que comprove a alegada intervenção do recorrente nos factos descritos nos artigos 1º a 68º da matéria dada como provada.

O acórdão recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nas disposições legais supracitadas.

Considera incorretamente julgados os factos provados sob os n.º 1º a 68, e toda a matéria de facto tendente à formação da convicção de que o recorrente teve qualquer participação nos factos. O arguido não os praticou, não sabe quem os cometeu nem o móbil de tal actuação. À data dos mesmos estava em casa com a namorada JJ a larga distância de ...; de ...; ou de ....

Impõem solução diversa:

- uma melhor apreciação do conjunto da prova produzida, designadamente:

- Toda prova documental junta aos autos, em especial o documento de fls 257 (registo de pedido de passaporte junto do SEF Aeroporto ...) e consequente prova documental.

- A prova pericial - relatório de autópsia

- Filmagens e fotogramas recolhidos do sistema de videovigilância do ... do dia 15 de Março de 2020.

- E uma correcta apreciação daqueles elementos no cotejo com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas FF (..., 00:01 a 35:02) , KK (... 00:51:06) e JJ (..., 00:46:08) ...)

- A correcta apreciação do conjunto da prova levará necessariamente a uma diferente resposta aos factos em crise, com as legais consequências, como é de justiça.

Requer:

- a realização de audiência para debate da matéria referida nas motivações, o que faz nos termos e para os efeitos do n.º 5 do artigo 411º do C.P.P.

Em suma:

-há insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de condenar o recorrente, assim como pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crimes de homicídio qualificado; de roubo agravado; de sequestro; de profanação de cadáver e de furto qualificado.

- Há contradição insanável na fundamentação, entre os factos assentes e entre esses e a decisão (artigo 410º, n.º 2, alínea a) do C.P.P.)

- Há errada valoração do conjunto da prova produzida e, consequente, erro de julgamento quanto aos factos tendentes à formação da convicção de que o recorrente foi co-autor dos factos n.º 1º a 68º da matéria dada como provada.

- Deve ser declarada nula a prova que foi determinante para a condenação do recorrente recolhida através da análise dos metadados (geo-localização celular) efetuada pela Polícia Judiciária e cuja recolha foi já considerada inconstitucional pelo acórdão com força obrigatória geral n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional.

- Em qualquer circunstância, deve revogar-se o acórdão recorrido e substituí-lo por outro que, fazendo correcta apreciação e valoração da prova produzida, o absolva da prática de todos os crimes em que foi condenado ou, quanto muito, condene o recorrente, apenas e somente, pelo crime de furto qualificado (ou que proceda à comunicação de alteração da qualificação jurídica de eventual prática de um crime de recetação) numa pena de prisão inferior a 5 anos sendo esta pena suspensa na execução mediante o cumprimento de injunções.

Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso com as legais consequências, assim, se fazendo

JUSTIÇA!

4. O Ministério Público no Tribunal da Relação, na parte que aqui releva, respondeu (transcrição):

«2 - Com o presente recurso, os Recorrentes vêm apresentar perante o Supremo Tribunal de Justiça motivação e conclusões praticamente idênticas às que apresentara perante o TRL, no recurso que interpôs do acórdão proferido pela 1ª Instância.

3 – Com o que os Arguidos/Recorrentes não vêm suscitar ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça quaisquer questões que não tenha já colocado e sido objeto de conhecimento e decisão no Tribunal da Relação, o que integra “falta” de motivação conducente à rejeição do recurso, nos termos do disposto nos arts. 412º n.º 1, 414º n.º 2 e 420º n.º 1 al. b), todos do C. de Processo Penal.

4 – Com os presentes recursos, os Recorrentes vêm impugnar perante o Venerando Supremo Tribunal de Justiça a decisão do tribunal sobre a matéria de facto provada, invocando que o acórdão proferido pelo TRL padece do vício do erro notório (erro esse que não se verifica e que o Recorrente nem sequer concretizou).

5 – Ora, conforme dispõe o art. 434º do C. de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça conhece apenas matéria de direito, sendo as questões de facto decididas definitivamente pelo Tribunal da Relação.

6 – Assim, não pode constituir fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a aludida invocação dos Recorrentes de que o acórdão proferido pelo TRL se encontra inquinado de vício de erro notório, o que constitui causa de rejeição da respetiva apreciação, nos termos dos arts. 414º n.º 2, primeira parte, e 420º n.º 1 al. b), do C. de Processo Penal.

7 – Relativamente à alegada nulidade da prova obtida através da análise dos metadados (geo-localização celular) efetuada pela Polícia Judiciária a que faz referência o acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 268/2022, remetemos para a declaração de voto de vencido do ilustre conselheiro Lino José Ribeiro, cujo teor, damos aqui por reproduzido.

8 - Os Arguidos Recorrentes vêm pugnar pela absolvição dos crimes pelos quais foram condenados por falta de fundamentação da decisão.

9 – Não têm, porém, razão, pois no acórdão recorrido fez-se correta subsunção dos factos provados ao Direito, nenhuma censura merecendo a condenação dos Recorrentes pela prática dos crimes por que foram condenados, nos precisos termos em que o foi, máxime quanto ao crime de homicídio qualificado.

10– Na verdade, e como se vê da respetiva fundamentação, que é clara, congruente e abundante, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou, com ponderação e bom senso, todas as circunstâncias suscetíveis de interferir na determinação da medida da pena, tendo valorado, na determinação da medida da pena, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depunham a favor e contra os arguidos, tendo considerado os factos e a personalidade dos agentes.

11 – As penas aplicadas (penas parcelares e pena única) mostram-se adequadas, justas e proporcionais, não deixando transparecer a violação de qualquer norma atinente à determinação da medida da pena, nem de qualquer princípio jurídico aplicável.

12 – Deve, pois, ser mantido o douto acórdão proferido pelo TRL.

13 - Em face de todo o exposto, o presente recurso deve ser rejeitado; a não se entender assim, deverá ser julgado improcedente, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

Porém, Vossas Excelências apreciarão e decidirão como for de JUSTIÇA!

5. Na audiência realizada neste Supremo Tribunal de Justiça os sujeitos processuais mantiveram no essencial as posições constantes dos articulados de recurso e resposta ao recurso. Nada obsta a que se conheça de mérito.

II

A

Factos provados (transcrição):

1. Em data não concretamente apurada, mas, pelo menos, nas semanas que antecederam o dia 14 de março de 2020, os arguidos AA, BB, CC e DD formularam o propósito de se apropriarem, mediante o uso de arma de fogo, da superioridade numérica e da força física, dos bens e objetos em ouro de GG, e bem assim das quantias monetárias que este tivesse na sua posse e/ou na respetiva residência.

2. Na execução desse plano, a arguida DD aproximou-se de GG e estreitou a sua relação com o mesmo, adquirindo a sua confiança e tornando-se mais próxima dele.

3. Tendo os arguidos acertado que o seu plano seria concretizado no dia 14 de março de 2020, a arguida DD contactou GG, combinando um encontro com o mesmo para esse mesmo dia.

4. Mais ficou acordado que assim que o GG fosse abordado pelos arguidos BB e CC, no seguimento do plano que todos engendraram, a arguida DD de imediato abandonaria as imediações da casa do primeiro, através de transporte – ... – providenciado pelo arguido AA junto de LL.

5. À data dos factos, os arguidos utilizavam, pelo menos, os seguintes contactos telefónicos:

5.1. O arguido AA, o número ...04;

5.2. O arguido BB, o número ...47;

5.3. O arguido CC, o número ...51; e

5.4. A arguida DD, o número ...95.

6. Nesse mesmo dia 14 de março de 2020, quando o arguido AA almoçava com FF no interior do seu veículo automóvel da marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-ZS-.., efetuou uma chamada telefónica para o arguido BB, pelas 14h33m29s, com a duração de 1m55s, em que lhe disse, entre o mais, “hoje é um bom dia para apanharmos o nosso menino!”.

7. No seguimento do referido plano, o arguido AA encontrou-se com a arguida DD, junto à casa desta, na zona da ..., após as 22 horas do dia 14 de março de 2020, combinando os últimos pormenores relativos ao plano que executariam de seguida.

8. Por sua vez, e em circunstâncias não concretamente apuradas, a arguida DD e GG acertaram que o local do encontro seria junto à Escola ..., em ....

9. Nessa mesma noite, GG encontrava-se na sua habitação, sita na Avenida ..., em ..., aí se encontrando igualmente a sua mãe, EE, a sua irmã MM e o seu amigo NN.

10. Cerca das 23h30m, GG deixou a referida residência na companhia de NN, para levá-lo a casa e ir ao encontro da arguida DD, na senda do plano traçado por esta e pelos arguidos AA, BB e CC, deslocando-se, para o efeito, no seu veículo da marca Mercedes Benz, modelo ..., com a matrícula ..-NS-...

11. Depois de deixar o amigo na paragem de autocarro junto da residência do mesmo, o GG dirigiu-se à Escola ..., em ..., para se encontrar com a arguida DD.

12. Por seu turno, a arguida DD, depois de se ter encontrado com o arguido AA, conforme descrito em 7), cerca das 23h14m21s minutos, dirigiu-se para ..., na companhia da amiga OO, que a transportou no seu veículo automóvel.

13. Tal como combinado com o arguido AA, a arguida DD enviou-lhe, a essa mesma hora, uma mensagem de texto, enviando ainda, às 23h14m38s, 23h14m41s e 23h14m41s, três mensagens de texto para o número ...84, utilizado por LL, que habitualmente prestava serviços de transporte ... ao primeiro, com o teor: “E o AA”, “liga p este nr” e “...84”.

14. Mais enviou a arguida DD, pelas 23h21m22s e pelas 00h36m10s, duas novas mensagens de texto para o arguido AA.

15. Às 00h41m46s, uma vez que ainda não havia sido contactado por LL, como era expectável na sequência das mensagens enviadas pela arguida DD, conforme referido em 13), o arguido AA contactou LL para tentar obter um transporte para a arguida DD

16. GG chegou ao local combinado com a arguida DD pelas 1h05m29s do dia 15 de março de 2020, onde esta o aguardava.

17. Daí, GG e a arguida DD seguiram até ao estabelecimento comercial denominado M..., sito no ..., em ..., e daí seguiram para casa de GG.

18. Após ter aparcado a viatura, GG e a arguida DD entraram no prédio onde o primeiro residia e dirigiram-se para os elevadores.

19. Os arguidos AA, BB e CC já se encontravam nas proximidades da casa de GG, pelo menos desde as 00h17m54s do dia 15 de março de 2020.

20. O arguido AA ficou no carro, a controlar a chegada de GG e da arguida DD a casa daquele, e os arguidos BB e CC deslocaram-se para o interior do prédio, onde aguardaram, escondidos, a sua chegada.

21. Quando GG e a arguida DD se encontravam no hall de entrada do prédio, de acordo com o plano gizado, foram abordados pelos arguidos BB e CC, empunhando um deles, de acordo com o que os quatro arguidos haviam previamente acordado, uma arma de fogo, que apontou à arguida DD, a quem ordenou “sai daqui”, o que esta, igualmente de acordo com o que havia sido previamente combinado, fez.

22. Ato contínuo, os arguidos BB e CC desferiram murros que atingiram o GG no rosto.

23. Perante a resistência oferecida pela vítima, que se tentava soltar e defender, os arguidos BB e CC deixaram o edifício e levaram GG consigo, deslocando-se na direção de um túnel existente em frente ao prédio em questão.

24. No referido túnel, os arguidos BB e CC, e também o arguido AA, que aí se havia igualmente dirigido, desferiram, repetidamente, vários murros e pontapés que atingiram GG na cabeça, no rosto e no corpo, atingindo-o ainda com a arma de fogo que empunhavam, provocando-lhe vários ferimentos, bem como abundante sangramento.

25. Após, os arguidos AA, BB e CC levaram GG para o veículo em que se faziam transportar, e que não foi possível concretamente identificar, tendo-lhe, em circunstâncias não concretamente apuradas, amarrado as pernas com fita adesiva e colocado na bagageira.

26. Entretanto, e enquanto o arguido AA se manteve no veículo, os arguidos BB e CC dirigiram-se novamente ao prédio onde morava o GG, com vista a subirem à residência do mesmo, no seguimento do plano concertado, e dali retirarem os bens e as quantias monetárias que encontrassem.

27. Não tendo os arguidos BB e CC conseguido subir até à casa de GG, face à presença, no local, de PP e QQ, regressaram ao veículo automóvel, onde se mantinha o arguido AA, e aí entraram, fugindo do local em direção a ..., com a vítima na respetiva bagageira.

28. Entre as 1h53m08s e as 2h06m09s, os arguidos AA e BB trocaram catorze comunicações, três delas de voz, a última das quais com a duração de 4 segundos, tendo igualmente trocado SMS e efetuado chamadas de voz pelas 2h08m36s, 2h10m05s, 2h16m54s e 2h19m05s.

29. Logo após a factualidade descrita em 21), e porque LL não se disponibilizou a providenciar transporte para a arguida DD, como tentado pelo arguido AA, esta pediu ajuda a OO para a transportar do local, acabando, no entanto, por ser transportada pela ..., a pedido do seu namorado RR.

30. No hall de entrada do prédio foram encontrados, deixados pelos arguidos BB e CC, os seguintes bens, pertença da vítima: um telemóvel da marca Apple, modelo IPhone, com o IMEI ...46, um chapéu da marca Nike, de cor preta, com uma chapa metálica com os dizeres “...”, e um par de chinelos da marca Nike, de cores azul e branca.

31. Mais retiraram os arguidos AA, BB e CC outros objetos que o GG trazia consigo, designadamente, três anéis em ouro, que fizeram seus.

32. Dali, os arguidos AA, BB e CC dirigiram-se para a residência de KK, sita na ..., em ..., onde o primeiro se encontrava, à data, a pernoitar, e onde os dois primeiros rapidamente entraram, apresentando-se ambos com um comportamento bastante alterado, nervosos e sobressaltados, e com as roupas ensanguentadas.

33. O arguido BB apresentava um ferimento num dedo.

34. Cerca de pouco tempo depois, os arguidos AA e BB saíram do local.

35. Quando entraram na residência de KK, o arguido AA disse, repetidamente, “merda, merda!”.

36. Dali, os arguidos AA, BB e CC seguiram para as proximidades da casa do arguido BB, onde estiveram, pelo menos, entre as 3h16m19s e as 3h16m22s,

37. Após, dirigiram-se novamente os arguidos AA, BB e CC para as proximidades da residência de GG, onde estiveram, pelo menos, entre as 4h46m25s e as 5h04m53s, tendo regressado à zona envolvente à casa do arguido BB, onde estiveram, pelo menos, pelas 5h41m35s.

38. Deste local, viajaram até ... – localidade que o arguido AA bem conhecia, tendo tido casa de férias na zona –, para se desfazerem do corpo de GG que continuava na bagageira do veículo.

39. Já em ..., entre as 6h23m56s e as 6h56m30s, chegados a um local de mato nas proximidades da Estrada ..., ..., os arguidos AA, BB e CC retiraram o corpo de GG, sem vida, da bagageira do veículo.

40. Após, transportaram o corpo de GG até cerca de cinco metros de distância da estrada em terra batida situada a cerca de 160 metros da referida estrada ..., onde o depositaram no chão, por entre a vegetação densa, local onde as respetivas ossadas vieram a ser encontradas, em avançado estado de decomposição, no dia 18 de maio de 2020, e abandonaram o local em fuga, regressando a ....

41. Nessa mesma madrugada do dia 15 de março de 2020, o arguido AA contactou FF, dizendo-lhe que precisava de falar pessoalmente com a mesma.

42. Na senda do plano traçado entre, pelo menos, os arguidos AA, BB e CC, entre as 9h29m17s e as 9h53m55s do mesmo dia 15 de março de 2020, os mesmos, fazendo-se transportar na viatura da marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-ZS-.., propriedade do primeiro, e na posse das respetivas chaves, que haviam retirado à vítima GG, aproveitando a ausência dos familiares (mãe e irmã), que se encontravam em diligências na Polícia Judiciária, em ..., dirigiram-se à residência deste último, logrando aceder ao seu interior.

43. Dali retiraram diversas peças de ouro, um relógio da marca Guess, no valor de € 200, e ainda quantia indeterminada em numerário, após o que abandonaram o local, levando consigo tais objetos e fazendo-os seus, aos quais deram o destino que entenderam.

44. Mais tarde no mesmo dia, pelas 11h10m, os arguidos AA, BB e CC, fazendo-se transportar na viatura do primeiro, da marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-ZS-.., dirigiram-se à urbanização da ..., onde foram buscar HH, a quem solicitaram que os acompanhasse para proceder à venda do ouro subtraído ao GG.

45. Entre as 11h56m e as 12h16m do dia 15 de março de 2020, os arguidos AA, BB e CC, acompanhados de HH, dirigiram-se ao Centro Comercial ..., sito em ..., no ..., onde tentaram vender as peças de ouro subtraídas à vítima GG, bem como da sua residência, na loja n.º ...9, denominada “P...”.

46. Para o efeito, o arguido AA deslocou-se com HH à loja “P...”, dirigindo-se os arguidos BB e CC para a zona de restauração, onde os aguardaram.

47. O valor oferecido para a venda do ouro não foi aceite pelos arguidos AA, BB e CC, e regressaram a ....

48. Na tarde do dia 15 de março de 2020, o arguido AA encontrou-se com FF no parque de estacionamento do estabelecimento comercial denominado C..., sito em ..., para onde se dirigiu ao volante do veículo da marca BMW, com a matrícula ..-ZS-.., e a quem disse “FF, em matei o GG!”, referindo-lhe que o havia feito com o arguido BB e com um indivíduo da ..., chamado “SS”, e que o corpo estava “longe”.

49. No interior do veículo, o arguido AA trazia consigo uma caixa de cor branca e cinzenta, com a inscrição “...”, utilizada por GG para guardar alguns dos seus objetos em ouro, e que a vítima mantinha na sua residência.

50. Do local onde se encontravam, o arguido AA e FF seguiram para casa de KK.

51. No dia 17 de março de 2020, pelas 17h48m, o arguido AA e HH dirigiram-se de novo ao Centro Comercial ..., em ..., no ....

52. Permanecendo o primeiro no exterior, e a pedido dos arguidos AA, BB e CC, HH dirigiu-se à loja “P...”, onde vendeu as peças de ouro pelo valor de € 1.600 (mil e seiscentos euros), conseguindo que lhe fosse entregue, no momento, a quantia de € 500 (quinhentos euros) em numerário, sendo o remanescente pago mediante depósito ou transferência bancária, entregando ao arguido AA, em termos não apurados, a quantia em numerário recebida.

53. No dia seguinte, 18 de março de 2020, HH recebeu, na conta bancária de que era titular junto do Montepio Geral, a quantia em falta relativa à venda do ouro, no montante de € 1.100 (mil e cem euros).

54. O arguido AA, na companhia da arguida DD e de FF, foi ter com HH, junto do Centro Comercial ..., tendo-lhe este entregado quantia monetária não concretamente apurada.

55. Após, seguiram os quatro até ao Aeroporto ..., onde o arguido AA solicitou a emissão, com urgência, do seu passaporte.

56. Também nesse dia 18 de março de 2020 o arguido BB dirigiu-se ao Aeroporto ..., onde solicitou a emissão, com urgência, do respetivo passaporte.

57. Os arguidos BB e AA fugiram do território nacional, respetivamente, nos dias 19 e 20 de março de 2020, tendo viajado para ..., em ....

58. Em consequência direta e necessária dos golpes infligidos pelos arguidos AA, BB e CC, por ação de natureza contundente, nos termos descritos em 24), a vítima GG sofreu as seguintes lesões traumáticas:

a) Mancha de descoloração claramente corada no frontal direito, consistente com infiltração hemorrágica, que também se confirmou na zona de escalpe correspondente;

b) Solução de continuidade no arco zigomático direito. Dobragem óssea do osso malar direito, na zona de impacto. Linha de fratura na base do processo zigomático direito, na zona da fossa temporal;

c) Fratura dos ossos nasais, direito e esquerdo, e do maxilar direito na zona que rodeia a abertura nasal, do lado direito; fratura do vómer (cuja lâmina óssea central já não se podia observar);

d) Diástase (afastamento) da sutura escamosa esquerda, de toda a zona do ptérion esquerda; da sutura fronto-malar; da sutura zigomático-temporal e zigo-maxilar, com cabelos entalados, demonstrativos do desnivelamento ósseo das zonas afetadas;

e) Apófises estiloides ausentes por destruição as mesmas, i. e., fratura das apófises estiloides;

f) Fratura transversa no dente 21;

g) Ao nível da fossa craniana média, fratura do rochedo direito (parte petrósea do temporal);

h) Ao nível da fossa anterior do crânio, fratura da grande asa do esfenoide direita, na fronteira com a asa menor;

i) Fratura no corpo do esfenoide, na zona adjacente à base do vómer, do lado direito do mesmo;

j) - Fissura esfenopetrosa mais separada;

k) Fratura da raiz dos nasais, na base dos mesmos;

l) Fratura completa na parte distal do corpo do esterno, com dobragem óssea e separação de um pequeno fragmento;

m) Fraturas adjacentes nas 2ª e 3ª costelas direitas, nos arcos anteriores, junto às articulações esternais, sendo a fratura completa na 2ª costela e incompleta na 3' costela.

n) Forte coloração do úmero direito, consistente com infiltração hemorrágica.

59. As lesões traumáticas cranianas anteriormente descritas, provocadas pelos arguidos AA, BB e CC, nos termos igualmente referidos, foram a causa direta da morte violenta de GG.

60. No dia 10 de novembro de 2020, o arguido CC tinha na sua posse, na residência sita na Rua ..., no Bairro ..., na ...:

a) onze munições de calibre 7,65 mm;

b) um carregador de pistola, de calibre 6,35 mm;

c) um aparelho de descargas elétricas, de fabrico artesanal;

d) cento e trinta e seis cartuchos de caça, de calibre 12 mm;

e) uma faca/punhal de abertura manual, da marca Opinel, modelo Carbone, com lâmina do tipo corto-perfurante, com um comprimento de 100 mm, gume de 100 mm, com uma largura máxima de 21 mm e uma espessura máxima de 2 mm.

61. Agiram os arguidos AA, BB, CC e DD de forma voluntária, livre e consciente, em comunhão de esforços e intentos, na execução de um plano previamente elaborado, com o propósito concretizado de retirar a GG os seus pertences, fazendo-os seus, não se coibindo, para o efeito, de usar de uma arma de fogo, de superioridade física e de violência, para fazer valer os seus intentos e colocar o ofendido na impossibilidade de reagir, o que conseguiram.

62. Agiram os arguidos AA, BB e CC de forma voluntária, livre e consciente, em comunhão de esforços e intentos, cada um aceitando o resultado das condutas dos outros, aproveitando-se da circunstância de se encontrarem em superioridade numérica em relação a GG, que no momento se encontrava sozinho, com o propósito concretizado de o atingirem no corpo e de lhe tirarem a vida, não se coibindo de o atingir repetidamente, com murros e pontapés e com a arma que empunharam, causando-lhe ferimentos aptos àquele fim, bem sabendo que os golpes que lhe infligiram, bem como as regiões do corpo que visaram e atingiram, eram adequados a provocar-lhe a morte.

63. Os arguidos AA, BB e CC agiram colhendo o GG de surpresa e indefeso, o que quiseram, de forma insensível e sem motivo plausível que minimamente o justificasse, com total desprezo e indiferença pela vida humana.

64. Mais agiram os arguidos AA, BB, CC de forma voluntária, livre e consciente, unindo os seus esforços e vontade, de acordo com o plano a que aderiram na execução dos factos, com o propósito concretizado de privar GG da sua liberdade ambulatória.

65. Quiseram ainda os arguidos AA, BB, CC, ao agir da forma descrita em 39) e 40), ocultar o cadáver de GG, o que concretizaram, fazendo-o deliberada, livre e conscientemente.

66. Atuaram igualmente os arguidos AA, BB e CC com o propósito concretizado de acederem à residência de GG, com a chave que lhe retiraram nos termos descritos, e fazer seus, como fizeram, os bens e quantias monetárias que ali encontraram, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam.

67. O arguido CC não possuía qualquer tipo de autorização para uso, porte ou detenção de munições dos referidos calibres, bem como não possuía licença de uso e porte de arma, e conhecia as características das munições que lhe foram apreendidas, sabendo que não as podia deter, como detinha, o que fez de forma voluntária, livre e consciente.

68. Em cada uma das situações descritas, os arguidos AA, BB, CC e DD bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

(Do pedido de indemnização civil)

69. A assistente EE é mãe da vítima GG, nascido a .../.../1991.

70. Durante o espancamento perpetrado pelos arguidos AA, BB e CC, GG vivenciou horror, sofreu dores lancinantes e anteviu que ia deixar de viver, o que lhe causou agonia, angústia e medo.

71. Nos últimos anos, e após a autonomização dos irmãos mais velhos, GG era o principal apoio e conforto da sua mãe, vivendo apenas os dois.

72. A vítima era muito dedicada à progenitora, a quem estava ligado por laços de grande ternura e amor filial.

73. GG era um jovem alegre e com amigos com quem convivia diariamente.

74. Era mais conhecido, no mundo da música “rap”, como “TT”, tendo ascendido como artista, obtendo várias das suas canções sucesso nacional e internacional, nomeadamente na ... e ....

75. Os seus concertos, sempre cheios, eram também difundidos nas plataformas digitais, tendo o cantor vários milhões de visualizações acumuladas no Youtube.

76. No Instagram acumulava mais de 150 mil seguidores, e em 2020 lançou o seu último trabalho, com o título “...”, do qual o single “...” alcançou sucesso imediato.

77. A vítima era um indivíduo muito amável e respeitador, ao qual foi abruptamente retirada a possibilidade de ter a sua vida, com trabalho, saúde, família e amigos.

78. Nunca a assistente imaginou que estaria presente no funeral do próprio filho, não existindo maior desgosto do que um enterrar um filho.

79. Com a morte do filho GG, a assistente ficou sem família a viver na respetiva residência, pelo que os outros dois filhos tiveram de ali passar, alternadamente, a residir.

80. Encontra-se em permanente melancolia, pensa permanentemente no filho e perdeu a capacidade de sorrir.

81. O profundo desgosto que a atingiu não a deixa pernoitar devidamente, sendo atacada por insónias e por tremendos pesadelos.

82. Com o funeral do filho a assistente despendeu a quantia de € 2.175 (dois mil cento e setenta e cinco euros).

83. Com a inumação da vítima em sepultura perpétua despendeu a quantia de € 1.880 (mil oitocentos e oitenta euros).

84. Com a escritura de habilitação de herdeiros a assistente EE despendeu a quantia de € 225,86 (duzentos e vinte cinco euros e oitenta e seis cêntimos).

85. Na sequência da morte do filho, a assistente frequentou, pelo menos, três consultas de psiquiatria, no que despendeu a quantia total de € 90 (noventa euros).

(Das condições pessoais dos arguidos)

(Arguido AA)

86. O arguido AA é o mais novo de dois filhos de um casal de estatuto socioeconómico favorecido (o progenitor, de 74 anos de idade, empresário, e a progenitora, de 58 anos, técnica da função pública).

87. O respetivo processo de desenvolvimento decorreu no seio do agregado familiar de origem, residente numa zona suburbana da cidade ... e em contexto sócio residencial favorecido.

88. A dinâmica familiar vivenciada foi isenta de problemáticas dignas de relevo, ainda que pautada por alguma discrepância nas atitudes e comportamentos educativos entre os progenitores e dificuldades no exercício equilibrado da autoridade: a mãe, mais exigente e controladora, e o pai, mais permissivo e flexível.

89. O arguido sempre manifestou, desde a infância, alguma desconcentração, rebeldia e irreverência nos comportamentos, o que dificultava o seu acompanhamento educativo e parental, agravadas pela crença/desculpabilização do progenitor, no sentido de que estes comportamentos, “aceites em rapazes”, se alterariam com o seu crescimento e desenvolvimento.

90. Este desencontro nos estilos educativos por parte dos progenitores esteve subjacente a uma dinâmica parental pouco securizante e consistente, favorecedora de dificuldades na interiorização de regras e limites e, consequentemente, de comportamentos disruptivos.

91. Até aos 2 anos de idade, e durante o período laboral dos progenitores, o arguido AA ficou aos cuidados da avó materna, integrando, posteriormente, um estabelecimento de ensino privado, até à conclusão do 40 ano de escolaridade.

92. Aos 8 anos de idade, e durante três anos, foi acompanhado no Hospital ..., em consultas específicas para a hiperatividade e dificuldades de concentração, tendo chegado a ser medicado com o objetivo de melhorar esta problemática.

93. Integrou o ensino público no 5º ano de escolaridade, mas não conseguiu obter sucesso no ano imediatamente seguinte, devido ao elevado absentismo e ao incumprimento das suas obrigações escolares.

94. Na tentativa da obtenção da escolaridade obrigatória e de um maior controlo do seu comportamento, os progenitores voltaram a integrá-lo numa escola particular, onde concluiu o 6º ano. Contudo, não conseguiu concluir o 9º ano, no âmbito de um curso de formação profissional de informática, por desmotivação e abandono escolar.

95. O abandono da prática do futebol, como jogador federado, aos 14/15 anos, o convívio frequente com pares com elevado absentismo escolar e a desocupação do tempo, bem como o consumo de haxixe iniciado aos 17 anos de idade, e que é desvalorizado pelo próprio e pelos familiares, são fatores que estiveram subjacentes a um estilo de vida desregrado e sem a organização/ocupação do tempo de forma estruturada.

96. Neste contexto, que o arguido descreveu como sendo uma fase em que se sentia desinteressado pelas coisas, candidatou-se ao serviço militar, aos 16 anos, mas sem sucesso, por ser ainda menor.

97. O contacto com práticas e comportamentos ilícitos, no âmbito dos seus relacionamentos interpessoais, e a frequência de bairros conotados com práticas criminais, onde conheceu o coarguido CC, levou a que o arguido AA procurasse afastar-se desses meios e vivências, alegadamente como forma de proteção pessoal.

98. Acabou, assim, por emigrar para ..., em 2013, aos 17 anos de idade, onde se encontrava a residir um casal amigo. Em ..., onde fixou residência, arrendou um quarto e, depois de um período de tempo de adaptação à língua e de obter título de residência, angariou um posto de trabalho na área da restauração, na qual evoluiu e trabalhou em dois restaurantes, durante quase um ano.

99. Entretanto, estabeleceu uma relação de namoro com uma jovem portuguesa, UU, e conheceu o seu coarguido BB, nomeadamente numa fábrica de têxteis onde trabalhou, e da qual veio a ser despedido por falta de assiduidade.

100. O arguido começou a viver em união de facto com a namorada, junto do agregado familiar de origem desta, tendo-se autonomizado e passado a residir numa habitação arrendada, com apoio estatal, quando aquela ficou grávida.

101. Nessa fase, o arguido trabalhou numa empresa de distribuição, como ajudante de motorista, em regime de part-time, durante alguns meses.

102. A relação com a companheira, licenciada ... e ativa em termos laborais, foi pautada pela conflitualidade, alegadamente pelos sentimentos de ciúme mútuos e também devido à má gestão dos recursos económicos por parte do casal.

103. Face à referida má gestão económica, eram os progenitores do arguido que em momentos de dificuldade suportavam as despesas ou dívidas contraídas por este.

104. Devido aos conflitos entre o casal e ao termo da relação conjugal, o arguido veio para Portugal logo após o nascimento da filha, em 2017, período em que obteve a carta de condução.

105. Algum tempo depois o arguido AA regressou a ..., restabeleceu o relacionamento afetivo com a companheira e, com o apoio dos progenitores, adquiriu viatura própria. Trabalhou ainda como motorista na distribuição de vinhos, com contrato de trabalho, durante alguns meses.

106. Há cerca de dois anos o arguido e a companheira terminaram definitivamente o relacionamento, razão que o fez regressar a Portugal, fixando residência junto dos progenitores e ajudando o pai na empresa ... de que é proprietário.

107. À data dos factos encontrava-se a residir em Portugal, mas em casa de um amigo, em virtude de se ter incompatibilizado com o progenitor, por motivos não concretamente especificados, mas correlacionados com o facto de o arguido manter uma relação afetiva com FF, ... ..., cuja entrada na residência dos pais não era permitida.

108. O arguido e respetivo agregado familiar mantêm um relacionamento próximo com a filha e com a ex-companheira do primeiro, sendo sobretudo os seus progenitores que asseguram a estabilidade económica dos cuidados à menor.

109. O relacionamento entre o arguido AA e a filha é imaturo e baseado na satisfação das necessidades imediatas da mesma, sobretudo através da atribuição de presentes, não evidenciando, da sua parte, uma efetiva responsabilidade parental.

110. O relacionamento familiar foi descrito, pelo próprio, como sendo pautado por várias discussões, sobretudo pela discrepância entre os vários elementos do agregado em relação à dinâmica que o arguido mantinha com cada um: o pai, com uma postura de maior afastamento em relação ao arguido, mas mais envolvido na concessão de benefícios e na satisfação das necessidades do próprio, como forma de evitar problemas e conflitos; a mãe, mais exigente e assertiva em relação à conduta que desejava da parte do filho; e a irmã, de 33 anos, que não falava com o arguido há dois anos, pela discordância com o respetivo estilo de vida e com a sua forma de conviver com os restantes elementos, que se caracterizava também pelo desrespeito dos direitos e dos bens materiais dos outros, fazendo deles uso sem permissão.

111. No plano laboral, o arguido tinha assumido o exercício de atividade na empresa do ramo ... de que o progenitor é proprietário, nomeadamente ao nível da parte informática e do relacionamento/comunicação com clientes estrangeiros, devido ao seu domínio da língua inglesa; contudo, o mesmo nem sempre cumpria as regras e os horários, apresentando elevado absentismo e dificuldade em aguardar pelo dia de receber a remuneração acordada, solicitando frequentemente o respetivo adiantamento (cerca de € 200/semana).

112. O arguido apresenta especial interesse por veículos motorizados e pela condução, bem como por vestuário de marca e pela alimentação em restaurantes, despendendo, nestas circunstâncias, os seus rendimentos ou economias.

113. Em termos pessoais o arguido apresenta-se como um indivíduo imaturo, pouco ponderado e com grande necessidade de validação e reconhecimento pelo grupo de pares. É neste grupo que se sente valorizado, zelando pela manutenção de uma boa imagem, quer pelos bens materiais que apresenta, quer pela disponibilidade/lealdade para ajudar os amigos, alguns de infância, e por quem revela especial solidariedade, como por exemplo a coarguida DD, quer pela proteção e conselhos que lhes proporciona, através da sua presença próxima e atenta.

114. O arguido AA aparenta também ser um indivíduo que prioriza a satisfação das suas necessidades imediatas em detrimento do respeito ou cumprimento das normas e regras vigentes, denotando dificuldades na internalização de limites/regras, patentes ao longo do seu percurso vivencial desde idade precoce, e mais recentemente durante a sua permanência no estabelecimento prisional.

115. O enquadramento e o suporte familiar de que dispõe, e que se traduz nas visitas regulares da progenitora, da madrinha e, pontualmente, do progenitor, denotam uma dinâmica marcada pela permissividade, pela visão do arguido como um indivíduo com necessidade de proteção e pela satisfação das suas necessidades e até exigências. Deste modo, a família não se apresenta suficientemente capacitada para promover no arguido a aquisição de um maior sentido das responsabilidades, de pensamento consequencial e de capacidade de descentração.

116. Em liberdade, face à mediatização do presente processo judicial e a alegadas ameaças por parte de terceiros, o arguido e família perspetivam que o mesmo volte a fixar residência em ... e mantenha o atual relacionamento afetivo com a ex-companheira, mãe da filha, entretanto, restabelecido.

117. A irmã do arguido, licenciada e já autónoma do agregado familiar de origem, não visita o arguido no estabelecimento prisional, pelo facto de se sentir muito penalizada pelo estilo de vida do mesmo e pelo mediatismo deste processo, que a tem prejudicado e condicionado no seu quotidiano.

118. Durante o período de reclusão o arguido AA tem revelado dificuldade no cumprimento das regras internas, sendo que até à data das entrevistas realizadas para elaboração do relatório social foi já alvo de três sanções disciplinares, por posse de telemóvel, além de ter sido igualmente encontrado na posse de haxixe.

119. O arguido AA foi anteriormente condenado:

119.1. No Processo Sumário n.º 904/14...., do Juízo Local de Pequena Criminalidade ..., por sentença datada de 18 de agosto de 2014, transitada em julgado a 30 de setembro de 2019, foi condenado pela prática, no dia 30 de julho de 2014, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º do D.L. n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), o que perfaz a quantia total de € 200 (duzentos euros), já julgada extinta pelo pagamento.

120. Não assumiu a prática dos factos e não demonstrou qualquer arrependimento, não evidenciando ainda qualquer ressonância emocional face à vítima e juízo de autocensura.

(Arguido BB)

121. O processo de desenvolvimento e socialização do arguido BB decorreu, na primeira infância, junto do agregado de origem, na zona de ... - ..., composto pelos pais e uma irmã germana mais nova.

122. Quando contava cerca de 4/5 anos de idade, o pai faleceu, vítima de acidente, pelo que o arguido ficou aos cuidados da mãe e da avó paterna, tendo sido o avô materno, no entanto, a constituir-se como figura paternal de referência.

123. A dinâmica familiar foi pautada por laços de afetividade e solidariedade entre os seus membros, num contexto relacional estável e estruturado, sendo que os mesmos se descreveram como familiares atentos e preocupados com a transmissão de valores e regras pró-sociais aos descendentes.

124. A subsistência do agregado familiar era assegurada pela atividade laboral exercida pela mãe, como auxiliar de educação e alguns trabalhos em limpezas, e pela avó, empregada de limpezas, não sendo referenciadas dificuldades relevantes no domínio da satisfação das necessidades básicas da família.

125. Em 2007 a mãe e a irmã mais nova emigraram para ..., tendo o arguido permanecido em Portugal, aos cuidados da avó paterna, residente num bairro social em ..., numa habitação atribuída aos avós paternos, onde permaneceu apenas um ano, para concluir o 8º ano de escolaridade, sem historial de reprovações.

126. Após concluir, em 2008, o 8º ano de escolaridade, emigrou para ..., para junto da progenitora, tendo dado continuidade aos estudos numa escola ..., onde veio a concluir o 11º ano, em 2011.

127. Em 2012 o arguido voltou para Portugal, uma vez que nunca gostou de viver naquele país, integrando o agregado dos avós maternos, que habitavam em ..., que alternava com o agregado da avó paterna, tendo concluído, em 2013/2014, o 12º ano de escolaridade, através de um “Curso Técnico de Turismo” ministrado no Instituto de Educação e Desenvolvimento Profissional, e obtido ainda formação em segurança.

128. Antes de concluir o 12º ano ainda se matriculou em vários cursos, dos quais veio a desistir, por ter tido algumas dificuldades/dúvidas em encontrar o seu caminho profissional.

129. O arguido BB passou por uma fase de instabilidade pessoal, sem rumo definido, consumos de haxixe e acompanhamento com pares com iguais consumos, a que ficou a dever-se, em parte, a pouca vigilância exercida por parte das avós onde ia alternando a sua pernoita, ficando assim mais livre para se movimentar sem algum controlo e autoridade.

130. Em 2014/2015 retornou a ..., tendo-se matriculado no ensino superior, que não prosseguiu, por não estar disponível para corresponder a uma exigência da universidade (melhoria de nota).

131. Deste modo, veio a integrar-se no mercado de trabalho, em várias atividades indiferenciadas, como segurança de portarias, em armazéns, na área de picking, e ainda em bares e restaurantes. Sendo esta última atividade laboral a da sua preferência, veio a inserir-se, em 2016/2017, e após formação, num restaurante ..., como chefe de cozinha da secção “...”.

132. Em ... a vida do arguido afigurava-se estável, nomeadamente na área laboral, trabalhando como chefe de cozinha, atividade que complementava com a de segurança em portarias. Contudo, em 2019 decidiu regressar novamente a Portugal, perspetivando explorar um restaurante, projeto que inicialmente não foi bem aceite pela mãe e pela namorada, devido ao facto de o arguido não possuir ainda o montante necessário para empreender o negócio e por ter a sua vida estruturada naquele país.

133. No domínio afetivo, em 2015 encetou uma relação de namoro com VV, sua amiga de infância, que residia em ..., tendo o casal iniciado uma vida em comum em 2016, em .... O relacionamento entre o casal foi descrito como equilibrado, coeso e estável, beneficiando de uma relação próxima com a restante família alargada de ambos, com a qual sempre mantiveram fortes laços de união e de interajuda.

134. Contudo, em Portugal o arguido BB teve uma outra relação amorosa, que durou algum tempo, mas que não veio a ter consequências na relação com a companheira, que desvalorizou esse facto.

135. O arguido conheceu o arguido AA quando trabalhou numa fábrica em ..., ..., tendo ajudado na sua integração laboral quando este ficou desempregado, e veio a retomar o convívio com o mesmo aquando do seu regresso a Portugal.

136. No que respeita à ocupação dos tempos livres, em Portugal, e durante a adolescência, o arguido BB dedicou-se à prática desportiva, nomeadamente futebol, jogging e kickboxing, frequentando ainda um ginásio.

137. Iniciou o consumo de haxixe aos 15/16 anos de idade, numa fase de experimentação, vindo, passados alguns meses, a abandoná-lo, por considerar ser prejudicial ao seu bem-estar.

138. Na idade adulta, e durante o período em que viveu em ..., o seu tempo livre era dedicado essencialmente à atividade profissional e ao convívio com familiares e alguns colegas de trabalho.

139. No período que precedeu a presente situação jurídico-penal, o arguido permanecia a residir com a avó materna, num bairro social da zona de ..., mantendo com esta familiar uma relação de grande proximidade, apesar de alguma permissividade e falta de supervisão desta em relação ao mesmo.

140. Em termos económicos o arguido detinha uma situação estável, uma vez que não tinha quaisquer encargos com despesas domésticas, sendo a avó proprietária da habitação, e em caso de necessidade contava com o apoio da mãe e das avós.

141. Uma vez que não logrou empreender o negócio a que se propunha, em novembro de 2019 inseriu-se profissionalmente num bar, no Aeroporto ..., como empregado de balcão, auferindo o salário líquido de € 715, acrescido de subsídio de refeição no valor de € 80.

142. Durante o período em que permaneceu em ... – entre 19 de março de 2020 e 25 de maio de 2020, o arguido BB e a namorada permaneceram desempregados, devido à situação económica e sanitária, subsistindo com uma bolsa de estudo atribuída àquela e com algum dinheiro do arguido.

143. Numa primeira abordagem o arguido tende a mostrar-se como uma pessoa calma, simpática e cordial no contacto interpessoal, evidenciando um discurso defensivo e por vezes confuso, esforçando-se por passar uma imagem positiva/equilibrada de si e ajustada aos valores da sociedade que integra. Em termos pessoais tenta igualmente transmitir a imagem de que tem objetivos profissionais bem definidos, que nunca conseguiu alcançar, demonstrando dificuldades na sua concretização, passando a vida a alternar entre Portugal e ..., sem se fixar num lugar, sem concluir os estudos a que se propõe e sem integração profissional consistente.

144. Com alguma permissividade e facilitismo da parte dos seus familiares, o arguido BB demonstra dificuldade em refletir nas consequências das suas decisões, regidas primordialmente pelo imediatismo e pela necessidade de reconhecimento social. Evidencia ser um individuo ambicioso, com dificuldade em se firmar nos projetos pessoais e profissionais e dificuldades em lidar com a frustração, demonstrando instabilidade, inquietude e insatisfação, assim como alguma impaciência na forma de agir e de fazer escolhas.

145. Em termos futuros, e em meio livre, perspetiva voltar a residir em ..., com a namorada, contando com o apoio desta e da mãe, regressar à vida ativa em termos escolares e laborais, nomeadamente reintegrar-se no restaurante onde laborava no período precedente à sua vinda para Portugal em 2019.

146. Preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ... desde o dia .../.../2020, o arguido tem vindo a denotar uma postura consentânea com as regras e normas vigentes, encontrando-se inativo devido à sua situação jurídico-penal.

147. Recebe visitas da mãe e da namorada, que presentemente se encontram a viver em Portugal (e que ficaram laboralmente inativas, a primeira no gozo de uma licença sem vencimento e a segunda apenas a estudar online, auferindo uma bolsa de estudo), tendo-se anteriormente deslocado de ... apenas com o referido propósito.

148. Em meio prisional foi alvo de agressões por parte de outros reclusos, situação que deu origem ao Nuipc n.º 80517/20...., no qual é lesado/ofendido em crimes contra a integridade física.

149. O arguido BB não tem antecedentes criminais registados.

150. Não assumiu a prática dos factos e não demonstrou arrependimento, não evidenciando ainda qualquer ressonância emocional face à vítima ou juízo de autocrítica.

(Arguido CC)

151. De nacionalidade portuguesa e com ascendência ..., o processo de socialização do arguido CC decorreu num bairro de ... - Bairro ..., na ... -, local onde os avós paternos fixaram residência há várias décadas, conotado com problemáticas sociais, de marginalidade e exclusão.

152. É filho único, fruto de uma relação que terminou quando o arguido tinha poucos meses de vida, altura em que a mãe abandonou o agregado composto pelo progenitor e pelos avós e tios paternos.

153. A progenitora continuou a residir, até ao momento presente, numa outra habitação do mesmo bairro, destituindo-se, no entanto, do seu papel parental, razão pela qual o arguido não estabeleceu qualquer ligação com a mesma, embora mantenha contacto com os irmãos uterinos, entretanto nascidos.

154. O progenitor veio posteriormente a autonomizar-se do agregado de origem, para viver com outra companheira, tendo o arguido três irmãos consanguíneos mais novos, com quem também mantém relação.

155. A mãe biológica manteve-se uma figura ausente da sua trajetória, constituindo-se os avós paternos as figuras de substituição e os responsáveis pelo respetivo acompanhamento socioeducativo, num contexto intrafamiliar aparentemente equilibrado, coeso e de entreajuda.

156. Apesar de o arguido CC ter estabelecido relações afetivamente investidas e recompensadoras com os familiares, verificaram-se constrangimentos ao nível da supervisão parental e ineficácia na imposição de regras e limites, que tendia a ultrapassar.

157. Ainda que tivesse mantido inicialmente um comportamento de ajustabilidade, precocemente começou a associar-se com pares significativos do meio comunitário, conotados com comportamentos desviantes, com quem estabeleceu vinculações pró-criminais, comprometedoras do seu percurso vivencial posterior.

158. A família dispunha de uma condição económica humilde, que permitiu garantir precariamente as condições de subsistência dos diferentes elementos, decorrente, sobretudo, dos rendimentos do pai e dos avós paternos, em áreas indiferenciadas, como a construção civil e as limpezas.

159. O arguido iniciou a escolaridade em idade regular e, apesar da adequação na interação com os pares e com os agentes educativos, desde cedo revelou desinteresse e desmotivação pelas atividades letivas, apresentando um acentuado absentismo, circunstâncias que caracterizaram um percurso pouco investido e de abandono escolar aos 10 anos, durante a frequência do terceiro ano do ensino básico.

160. Sinalizado no âmbito de um processo de promoção e proteção, em 2008 foi-lhe aplicada uma medida de acolhimento residencial na “C...”, registando recorrentes fugas desta instituição, após as quais tendia a regressar ao agregado de origem e a perpetrar um estilo de vida desregrado, sem respeito pelas normas educativas dos familiares, o que motivou, em 2010, uma intervenção tutelar educativa.

161. Assim, aos 16 anos foi-lhe aplicada uma medida tutelar educativa de internamento em centro educativo pelo período de dois anos, onde concluiu, com aproveitamento, o segundo ciclo do ensino básico e obteve a certificação profissional como operador de pré-impressão.

162. A referida institucionalização foi avaliada, pelo arguido, como positiva, como forma de obter a sua estabilização e de encetar um trajeto de mudança ao nível da aquisição e interiorização de regras e limites, bem como a respetiva valorização formativo-profissional.

163. Após o termo da referida medida de internamento, aos 18 anos de idade, o arguido CC regressou ao agregado de origem, no mesmo enquadramento sociocomunitário e familiar, tendo integrado, em maio de 2013, um curso de formação profissional de cozinha, num centro de formação no ..., para dar continuidade ao Curso de Educação e Formação para Adultos (...), iniciado em contexto institucional, de modo a habilitar-se com o 9º ano de escolaridade e a obter uma qualificação profissional de nível 3.

164. Foi igualmente encaminhado para a Associação ..., localizada no Bairro ..., para ocupação dos seus tempos livres, tendo, nessa estrutura comunitária, desempenhado funções na cozinha, o que fez com zelo, assiduidade e pontualidade, e participado em diferentes atividades ocupacionais.

165. Preso preventivamente, pela primeira vez, em 30 de janeiro de 2014, no âmbito de um outro processo judicial, foi restituído à liberdade em 19 de dezembro de 2014.

166. Na impossibilidade de retomar a referida atividade formativa, o arguido emigrou para a ..., alegadamente para se afastar do meio comunitário e das suas referências sociais, integrando o agregado de uma tia paterna, composto também por três primos menores.

167. O arguido CC manteve-se Maioritariamente desocupado, responsabilizando-se pelo acompanhamento dos primos menores aos estabelecimentos de ensino e dependendo, ao nível financeiro, essencialmente da tia, empregada de limpezas, bem como de alguns rendimentos obtidos com a realização de atividades pontuais e indiferenciadas nas áreas da construção civil e da montagem e desmontagem de palcos.

168. Naquele país, o arguido iniciou um relacionamento afetivo, integrando posteriormente o agregado de origem da namorada (WW), composto pelo pai e pelo filho desta, menor de idade, fruto de uma anterior relação. Continuou a desenvolver funções indiferenciadas, contribuindo para a economia do agregado, que incluía também os rendimentos decorrentes do exercício profissional da namorada, como funcionária de uma loja, e do pai desta, enquanto trabalhador da construção civil.

169. O arguido veio a ser detido na ... no dia 1 de novembro de 2016, e extraditado para Portugal, onde foi preso preventivamente, pela segunda vez, a 11 de novembro de 2016, mantendo-se nessa situação de reclusão até 11 de novembro de 2018.

170. Nessas circunstâncias, regressou ao mesmo contexto familiar e sociocomunitário onde decorreu o respetivo processo de socialização, reintegrando-se profissionalmente a 13 de novembro de 2018, numa empresa de carpintaria denominada “E...”, com vínculo contratual, para o exercício de funções como servente.

171. À data dos factos o arguido CC residia com o pai, no mesmo meio sociocomunitário - Bairro ..., ... -, num registo relacional familiar e vicinal adequado. Beneficiava igualmente de enquadramento familiar por parte dos avós e dos tios paternos, residentes no mesmo bairro, embora estes desconhecessem maioritariamente as suas rotinas e as suas interações sociais.

172. O agregado paterno dispunha de uma situação financeira equilibrada, decorrente sobretudo dos rendimentos do exercício profissional do progenitor, funcionário de uma loja de decoração, a que acresciam rendimentos pontuais na área da construção civil desenvolvidos pelo arguido CC.

173. Formalmente desempregado, o arguido ocupava maioritariamente o seu quotidiano a tomar conta da filha mais velha (nascida a .../.../2019), e do irmão desta, na sua habitação sita na ..., assim como no convívio com amigos de dentro e fora do respetivo meio comunitário, e com outros que não vivendo no bairro, aí se deslocavam, como é o caso do coarguido AA.

174. Beneficiava de suporte institucional por parte da Associação ..., estabelecendo, nesse contexto, interações adequadas e dentro da normalidade, frequentando as respostas sociais disponíveis e participando na organização e realização do último evento (festival) do bairro, como voluntário.

175. O arguido mantinha adequação comportamental nas interações que estabelecia com a vizinhança, e proximidade afetiva sobretudo com os avós paternos e com um dos tios, as suas referências familiares significativas.

176. Em termos afetivos, foi mantendo relacionamentos pontuais, tendo mais dois filhos de duas relações diferentes, que nasceram a ... de ... de 2021 e ... de ... de 2021, e que se encontram aos cuidados das respetivas progenitoras, que residem em ... e no ..., respetivamente, tentando acompanhar o desenvolvimento dos mesmos, dentro dos condicionalismos atuais da sua privação da liberdade.

177. Ao nível das suas características pessoais, o arguido CC apresenta adequação na interação e facilidade nas relações interpessoais, capacidade de adaptação a diferentes contextos, de liderança, de resiliência e autocontrolo, tendendo a uma atitude de retraimento na partilha da vivência interna da sua emocionalidade.

178. Preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ..., à ordem dos presentes autos, desde o dia ... de ... de 2020, e reconhecendo embora a gravidade da ilicitude dos factos em causa, neles não se revê, apresentando um discurso consonante com o socialmente expetável e normativo.

179. O arguido minimiza o seu anterior contacto com o sistema da justiça penal e tende a minimizá-lo, revelando deficits na capacidade crítica.

180. Em contexto institucional apresenta adequação e um comportamento conforme às regras, sem registo de infrações disciplinares, não mantendo qualquer ocupação formativo-laboral por condicionalismos inerentes ao próprio estabelecimento prisional e agravados pela pandemia por Covid 19. Continua a beneficiar do apoio dos familiares, recebendo visitas regulares sobretudo de um tio paterno.

181. O arguido CC foi anteriormente condenado:

181.1. No Processo Comum Coletivo n.º 653/13...., do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., por acórdão datado de 19 de dezembro de 2014, transitado em julgado a 19 de janeiro de 2015, foi condenado pela prática, no dia 15 de outubro de 2013, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º 1 al. d), com referência ao art. 2º, n.º 3 al. p), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), o que perfaz o total de € 300 (trezentos euros), já julgada extinta pelo pagamento.

181.2. Por sentença proferida a 16 de janeiro de 2018, transitada em julgado a 15 de fevereiro de 2018, no Processo Comum Singular n.° 32/17...., do Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., foi condenado pela prática, no dia 21 de janeiro de 2017, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos arts. 21º, n.º 1 e 25º, al. a) do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com regime de prova, já julgada extinta nos termos do art. 57º do Código Penal.

183. Sem prejuízo desta extinção, e ainda que a avaliação da suspensão da execução desta pena, com regime de prova, tenha sido globalmente positiva no primeiro semestre de acompanhamento, em abril de 2019 a situação inverteu-se negativamente, uma vez que o arguido CC abandonou o referido acompanhamento, mantendo-se incontactável e com paradeiro desconhecido.

184. O arguido não assumiu a prática dos factos e não demonstrou arrependimento, não evidenciando ainda qualquer ressonância emocional face à vítima e juízo de autocrítica.

(Arguida DD)

185. Por incapacidade dos progenitores, ambos toxicodependentes, a arguida DD ficou entregue aos cuidados dos avós paternos, antes de completar o primeiro ano de vida. A mãe, vítima de doença infectocontagiosa, faleceu quando a mesma tinha 7 anos e o pai emigrou para a ..., país onde se fixou e mantém integrado profissionalmente.

186. Os avós, ambos com enquadramento sociocultural, constituíram-se as figuras parentais da neta, tendo efetivado esforços no sentido de dar respostas às suas necessidades educativas.

187. Porém, com a entrada na pré-adolescência, a arguida DD passou a manifestar alterações comportamentais, com registos de adesão a grupos de pares problemáticos, não detendo os avós ascendência sobre a mesma.

188. A arguida sentia-se revoltada e com dificuldades em lidar com o falecimento da mãe, acontecimento traumático vivenciado com acrescida angústia, sentindo-se, além disso, distante das mentalidades dos avós, o que dificultava a partilha de sentimentos e preocupações e fazia com que se sentisse sozinha e não os respeitasse, assumindo comportamentos desafiantes, de oposição e agressivos.

189. O seu percurso escolar decorreu de forma normativa até à obtenção do 6º ano, altura em que passou a apresentar um elevado grau de absentismo, privilegiando as vivências de rua, em zonas problemáticas situadas nos arredores da respetiva residência.

190. Tais comportamentos foram-se agravando, chegando a pernoitar fora de casa e sem que os avós conhecessem o seu paradeiro.

191. Neste contexto, os avós diligenciaram no sentido de a arguida ser avaliada na especialidade de pedopsiquiatria, tendo iniciado terapêutica medicamentosa na sequência de diagnóstico de perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA) e sido encaminhada para a área da psicologia.

192. Ainda que se tenha verificado uma ligeira melhoria, a arguida manteve a instabilidade comportamental, adotando um estilo de vida desregrado, sem rotinas organizadas e atividades estruturadas.

193. Este contexto promoveu a respetiva sinalização pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (C.P.C.J.), bem como o primeiro contacto com o sistema de justiça, tendo-lhe sido aplicada uma medida tutelar, em cujo âmbito foi integrada num colégio interno privado na zona de ..., suportado pelos avós, onde permaneceu dos 14 aos 17 anos, aí concluindo o 8º ano de escolaridade.

194. Entre os 17 e os 18 anos permaneceu em ..., integrada no agregado de uma colega, tendo concluído o 9º ano de escolaridade. Entretanto regressou a ... e reintegrou o agregado dos avós, tendo frequentado o primeiro ano de um curso profissional com equivalência ao 12º ano, que não concluiu.

195. A arguida regista consumos de haxixe e MDMA desde os 17 anos de idade, embora pontuais e decorrentes de experiências em momentos de convívio social.

196. Iniciou-se laboralmente aos 19 anos, como repositora e operadora de caixa numa superfície comercial, funções que exerceu durante um ano. Seguiu-se uma experiência de seis meses num café da associação de moradores da sua área de residência. Há cerca de um ano exerceu funções na área da estética, durante cerca de três meses, que interrompeu devido ao confinamento decretado no âmbito do plano de combate à pandemia por Covid19.

197. Ao longo do respetivo processo de desenvolvimento a arguida manteve o acompanhamento regular na área da psicologia e da psiquiatria, tendo-lhe sido diagnosticadas, desde os 15 anos, várias depressões, crises de ansiedade e dificuldades acrescidas no controlo dos impulsos, que a levaram à toma regular de terapêutica medicamentosa, nomeadamente de antidepressivos, ansiolíticos e anti psicóticos, e que mantém no presente.

198. À data dos factos a arguida DD integrava o atual agregado familiar, constituído pelos avós paternos e por um primo. A família reside numa zona residencial do concelho ..., beneficiando de uma condição económica confortável, decorrente da pensão de reforma do avô e dos rendimentos do arrendamento de imóveis de que são proprietários.

199. Encontrando-se desempregada, a arguida ocupava o seu quotidiano entre a prática de desporto num ginásio e o convívio com amigos da área de residência, nomeadamente com o seu coarguido AA, com quem mantém uma relação privilegiada.

200. Ao nível afetivo, a arguida DD destacou a relação que mantém no presente, iniciada há cerca de dois anos, relativamente à qual se sente vinculada e que descreve como gratificante e apoiante.

201. Sujeita à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, desde o dia .../.../2020, beneficia do apoio estruturado dos avós e do progenitor, sendo que este último, apesar de se encontrar ausente, mantém, com a mesma, contactos regulares, fornecendo suporte afetivo e financeiro. Para além disso, o namorado tem-se constituído um forte apoio afetivo, frequentando a sua casa com regularidade.

202. A arguida tem evidenciado capacidade de adaptação às regras e obrigações a que está sujeita, ocupando o seu quotidiano com a frequência de um curso online de unhas de gel.

203. No entanto, tem manifestado sintomatologia associada a altos níveis de ansiedade, necessitando de recorrer com frequência aos serviços de urgência hospitalar.

204. A arguida DD apresentou-se como uma jovem com capacidades ao nível da comunicação, ainda que se mostre reservada, revelando o estritamente necessário acerca das suas vivências, ideias e pensamentos. Apresentando um discurso autocentrado, manifesta dificuldades em reconhecer o impacto dos seus comportamentos em terceiros, revelando fraca ressonância ao nível dos afetos e das emoções.

205. Em termos futuros, a arguida pretende reintegrar-se laboralmente, de forma a autonomizar-se e a constituir agregado com o namorado. Além disso, perspetiva emigrar, na procura de melhores condições de vida, uma vez que considera que em Portugal será alvo de estigmatização social, decorrente do mediatismo do presente processo judicial.

206. A arguida DD não tem antecedentes criminais registados.

207. Não assumiu a prática dos factos e não demonstrou arrependimento.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

a) No dia 10 de março de 2020 os arguidos tentaram pôr em prática o seu plano de assaltar GG, não o tendo, no entanto, concretizado, por se terem enganado no prédio.

b) A chamada referida em 6) foi efetuada em alta voz.

c) Perante os gritos da vítima, o arguido AA dirigiu-se para o prédio onde GG residia.

d) No túnel, GG continuou a apresentar resistência.

e) Sem prejuízo da matéria de facto dada como provada, o arguido BB aplicou um golpe de estrangulamento em GG, vulgo “mata-leão”, a que se seguiu um forte empurrão dos arguidos AA, BB e CC, que o projetou, de forma violenta, contra a parede do túnel.

f) Em casa de KK os arguidos AA e BB mudaram a roupa que trajavam por outras peças de vestuário, colocando a roupa que despiram num saco preto.

g) O arguido AA referiu a KK que as coisas não tinham corrido bem e que o sangue que tinha na roupa era de GG.

h) O arguido BB referiu a KK que tinha sido mordido e desinfetou rapidamente a mão.

i) Ao saírem da referida casa, os arguidos levaram consigo o saco preto onde depositaram as roupas que despiram.

j) Na viatura, os arguidos AA, BB e CC dividiram, entre si, notas de € 20, em quantidade não apurada em concreto, e traziam consigo uma mala de desporto de cor preta, com pertences de GG, designadamente uns ténis da marca Nike, de cor rosa e azul, e um mealheiro de lata.

k) Os arguidos pretendiam a quantia de € 2.500 pelas peças em ouro que no dia 15 de março tentaram vender na “P...”.

l) Os arguidos e HH regressaram a ... pela ..., pagando a portagem em numerário.

m) Dali, deslocaram-se para a ..., onde o arguido CC tentou vender o ouro, mas não encontrou no local quem fizesse o negócio.

n) Deslocaram-se ainda à loja denominada “O...”, sita em ..., cerca das 14h00m, para vender o ouro, mas não conseguiram.

o) No período em que seguiam no veículo, os arguidos AA, BB e CC comentaram entre si que tinham “agarrado o gajo”, que tinha “corrido bué mal” e que “tinham ido para uma serra e usado umas cordas”.

p) Mais alertou o arguido AA os arguidos BB e CC para o facto de, depois do que se tinha passado, cada um ter de seguir o seu caminho, não podendo comunicar mais entre si.

q) O arguido AA mostrou a FF o que se encontrava no interior da caixa branca com os dizeres “...”.

r) Questionado por FF acerca do motivo de não ter enterrado o corpo, o arguido AA referiu que a mata era muito densa e não tinha visibilidade, terminando a dizer, “sabes o que é enterrar um corpo?”.

s) Num passado recente, o arguido AA tinha comentado com FF que GG tinha muito dinheiro e seria um bom alvo para um assalto.

t) Nesse mesmo dia 15 de março de 2020, depois das 20h30m, a arguida DD contou a KK que na noite anterior se encontrava com GG e que, quando estavam junto do prédio dele, surgiram os arguidos AA, BB e CC, que o agarraram, ordenando-lhe “sai mas é daqui, ó puta do caralho!”.

u) Depois de saber por KK o que se passara na casa deste na noite anterior, a arguida DD referiu que alguma coisa correra mal e que precisava de saber o que tinha acontecido.

v) Os arguidos BB e CC voltaram à loja “P...” no dia 17 de março de 2020.

w) Para tanto, no dia 17 de março de 2020 o arguido AA foi buscar HH a casa e, quando ali chegou no seu veículo, encontrava-se com o arguido BB.

x) Referiu o arguido AA a HH que tinha pressa em receber o dinheiro, para fugir para o estrangeiro.

y) Pelo caminho, pararam num posto de abastecimento de combustível, para abastecer a viatura do arguido AA, e este ordenou a HH que deitasse fora a caixa onde tinha transportado o ouro, com a indicação “...”, o que aquele fez.

z) HH dirigiu-se, a mando do arguido AA e na sua companhia, ao balcão do Banco Montepio Geral, sito no ..., nos ..., onde levantou e entregou ao arguido AA a quantia remanescente.

aa) Após, os arguidos AA e DD, e HH e FF deslocaram-se ao Centro Comercial ..., na ..., a fim de vender um telemóvel da arguida DD, e almoçaram no carro.

ab) Sem prejuízo da matéria de facto dada como provada, a quantia obtida através da venda do ouro e a quantia e objetos retirados da casa da vítima foram divididos pelos arguidos AA, BB e CC, entre si, nos termos acordados pelos três.

*

B

O Direito

Questão prévia.

1. Diz o recorrente AA:

«1- A questão previa deve ser deferida e consequentemente considerar nula da a prova recolhida de forma ilegal com o recurso aos metadados fornecidos pelas operadoras -sem mandado prévio de Juiz (para crimes específicos).

2- Por conterem elementos qualificados como prova obtidos de forma Ilegal devem de ser declarados nulos para tais efeitos e destruídos os anexos Apensos I, IV e V referentes aos reportes de trafego de IP BT fornecidos pelas operadoras Altice e Nós

3- São prova proibida a transmissão de números de telemóvel dos arguidos obtidos com recurso aos metadados (nos termos do acórdão de 19 de Abril de 2022 do TC aplicável para casos futuros e processos em curso que ainda não transitaram em julgado».

2. Diz o arguido BB:

«Existe nulidade da análise aos metadados efectuados aos números de telemóveis indicados nos autos - objecto de análise por parte da investigação -por força da aplicação do acórdão n.º 268/2022, do Tribunal Constitucional.

a) Com efeito, da matéria dada com assente sob os artigo 1º a 68º dos factos provados no acórdão em crise, não se pode concluir, de acordo com as regras de experiência comum e de acordo com o princípio do homem médio, que o recorrente tenha praticado os factos nos locais de ... (...), ... e ... quando no período temporal compreendido entre o dia 13 de Março de 2020 e o dia 15 de Março de 2020, até às 09H45 o recorrente esteve com a namorada deste, JJ, na residência desta sita na ..., a largos quilómetros dos locais onde ocorreram os factos».

3. Os recorrentes não distinguem a prova resultante de dados de tráfego conservados em sistemas informáticos (disciplinada pelas Leis 32/2008 e 109/2009) e a prova resultante de dados de tráfego intercetados/conhecidos em tempo real, a que é aplicável o regime das escutas telefónicas (art. 189.º/2, CPP), quando nos autos há esses dois tipos de prova.

4. A inferência que os recorrentes fazem do ac. TC 268/2022, no sentido da nulidade da prova obtida a partir dos dados conservados pelos operadores de telecomunicações, não resulta imediatamente daquela decisão. O que declarou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 – Diário da República n.º 108/2022, Série I de 2022-06-03, foi a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º, da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição. Não declarou «nula a prova recolhida (…) com o recurso aos metadados fornecidos pelas operadoras» nem a «nulidade da análise aos metadados» nem disse que toda e qualquer recolha e conservação dados e independentemente do período de conservação constitui prova proibida.

5. Dito isto, de acordo com o estabelecido no artigo 410.º/1, CPP, o recurso para o tribunal superior só pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. No recurso para o TRL não foi suscitada esta questão, que dela não conheceu. Assim, a questão posta é nova, pois relativamente a ela não discretearam os sujeitos processuais, não se cumpriu naquela instância o contraditório, nem sobre ela se pronunciou a decisão recorrida o que é, num processo de estrutura contraditória, pressuposto do recurso nessa parte, pois, o tribunal superior, repete-se, não se pronuncia, salvo caso de questões de conhecimento oficioso, sobre questões novas.

6. Acresce que as questões devem ser corretamente delimitadas no seu recorte factual, não bastando a sua invocação genérica e a granel, pois o tribunal de recurso – em recurso – está limitado aos factos objeto do processo, não dispondo obviamente dos poderes de investigação que os recorrentes pressupõem ou lhe outorgam. Ademais, o recurso para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito (art. 434.º, CPP) e estamos perante questão típica de facto, não lhe cabendo no presente contexto identificar que concretos meios de prova viabilizaram a afirmação dos factos provados e, caso estejam entre esses meios de prova dados de tráfego conservados, qual a consequência a retirar da declaração de inconstitucionalidade.

7. Este tem sido o entendimento dos tribunais de recurso, mormente do Supremo Tribunal de Justiça: os recursos destinam-se a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições, posto que, como remédios jurídicos que são, com eles não se visa o conhecimento de questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso (ac. do STJ de 26.09.2007, disponível em www.dgsi.pt).

8. Decidiu o acórdão do tribunal de 1.ª instância (com realce da nossa responsabilidade):

«Ainda antes de avançarmos para a análise, em concreto, dos vários meios probatórios que foram atendidos, e porque tal questão foi suscitada em sede de alegações, cumpre tecer alguns considerandos prévios acerca da localização celular (e da obtenção de outros dados de tráfego).

«(…) In casu, conforme facilmente se constata através da análise dos autos, a Polícia Judiciária – Unidade Nacional Contra – Terrorismo, após ter sido acionada perante o desaparecimento da vítima GG em circunstâncias que denotavam violência e indiciavam a prática dos crimes de, pelo menos, rapto e sequestro (ainda em curso), delas se inferindo ainda a existência de grave perigo para a vida ou para a integridade física daquela (relato, à data, da pessoa que o acompanhava aquando da abordagem por dois indivíduos e da ameaça com arma de fogo, a ora arguida DD, vestígios hemáticos encontrados no hall do prédio onde a vítima residia e no túnel, para onde foi levada, deixando para trás alguns dos seus bens pessoais, ilustrados pelas fotografias de fls. 13 a 24 e 536 a 546, e relatos das testemunhas PP e QQ, que visualizaram dois ou mesmo três dos suspeitos, em termos que adiante melhor serão explicitados), diligenciou pela preservação dos eventos de rede das células “BTS”, incluindo as antenas “UMTS” (Universal Mobile Telecommunication System), ou seja, 3G, ativadas nas imediações do imóvel sito na Avenida ..., em ... – ..., e na Rua ..., em ... – ..., no período compreendido entre a 01h00m hora e as 02h30m do dia 15 de março de 2020, bem como nas imediações do M..., no período compreendido entre as 00h00m e a 01h45m do mesmo dia, que identificou – fls. 84 a 93.

Preservados tais eventos de rede, mediante promoção do Ministério Público, por despacho judicial proferido no dia 17 de março de 2020, foram autorizadas as operadoras de serviço telefónico a fornecer, suporte digital e em formato Excel, os registos completos das comunicações efetuadas e recebidas nas BTS, detalhe das comunicações associadas e eventos de rede, relativos aos cartões que operaram no período temporal compreendido entre a 01h00m e as 02h30m do dia 15 de março de 2020, relativamente à Avenida ..., em ..., ..., e à Rua ..., em ... – ..., e no período compreendido entre as 00h00m e a 01h45m desse mesmo dia, relativamente à Estrada Nacional ..., onde se situa o M..., por referência às BTS constantes do expediente remetido pela Polícia Judiciária (fls. 123 a 125, 138 e 139).

E, conforme se referiu nesse despacho, “pese embora os factos tenham ocorrido num aglomerado urbano de grandes dimensões, a hora em que tiveram lugar reduz de forma substancial o número de alvos, por um lado e, por outro, a possibilidade de localizar no mesmo lapso de tempo os mesmos telemóveis em 3 locais distintos, poderá conduzir aos suspeitos dos factos em investigação. Não sendo vasto o universo de pessoas que podem ter acionado as células identificadas, estabelecida a conexão entre os utilizadores dos telefones mormente pelo cruzamento dos dados constantes das listagens solicitadas e informação sobre localização celular é possível determinar a identidade dos autores dos factos em investigação”.

Para além de concordarmos, na íntegra, com os fundamentos ali expendidos, cumpra ainda realçar que as informações solicitadas e fornecidas não são suscetíveis de violar a intimidade das pessoas, porquanto se traduziram apenas nas listagens onde constam números de telefone, não importando obter, relativamente aos mesmos, a identificação dos respetivos titulares, com exceção dos suspeitos, ora arguidos. E, nesta última parte, a restrição realizada – que permitiu chegar à identificação desde logo, dos arguidos AA e BB -, fez-se mediante o cruzamento dos dados de tráfego de dois dos números delas constantes, que não só mantiveram conversações entre si, como também as mantiveram, por um lado, com os cartões SIM associados à arguida DD e à testemunha FF, e com o cartão SIM inicialmente associado ao próprio arguido BB, com o número ...43, por outro (por ter sido um dos contactos fornecidos no S.E.F. aquando do pedido de emissão de passaporte, cf. fls. 257, e que chegou, por esse motivo, a estar intercetado, nos termos do despacho judicial de fls. 303 e 304), mas que depois veio a apurar-se pertencer à avó paterna daquele, II (tudo conforme consta da análise constante dos Apensos I, IV e V e do depoimento da testemunha XX, meios de prova que adiante serão escalpelizados).

Deste modo, e por mais que o nosso processo penal seja garantístico, não podemos perder de vista que a sua finalidade primeira “continua a ser a perseguição de infrações criminais, como defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e da comunidade que são lesados com essas infrações criminais, sendo certo que, como foi já salientado, o meio de obtenção de prova pretendido afetará de forma muito pouco significativa terceiros à investigação, servindo em contrapartida para propiciar a perseguição criminal de um delito com considerável gravidade

e que causou forte alarme social” (cf., neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de novembro de 2020, Processo n.º 497/20.2PFCSC-A.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).

Ademais, o princípio da inviolabilidade das comunicações privadas, úbio das telecomunicações, tem necessariamente de recuar, à luz do princípio da proporcionalidade, face às necessidades da justiça criminal na procura da verdade.

Por todo o que deixou exposto, e porque tais considerandos são igualmente válidos para todos os dados de tráfego (onde se incluem o registo das comunicações) e de localização celular obtidos, quer por referência aos cartões SIM com os n.ºs ...04, ...47, ...95, ...05 e ...95, quer por referência ao cartão SIM com o n.º ...51 (cf. despachos datados de 23 de março de 2020 – fls. 303 e seguintes, 8 de maio de 2020 – fls. 805 e 806, 22 de julho de 2020 – fls. 1814 e 1815, e 7 de agosto de 2020 – fls. 2005), importa concluir pela absoluta legalidade dos referidos meios de obtenção de prova».

9. Podendo este entendimento, que pretendeu responder à questão suscitada em alegações, ser impugnado perante o TRL, os recorrentes não o fizeram, tanto quanto resulta do elenco das conclusões transcritas pelo acórdão recorrido, quer das questões por ele enunciadas como questões a decidir. E publicado o acórdão, os sujeitos processuais não o arguiram de nulo por omissão de pronúncia. Assim, estamos perante caso julgado parcial, relativo a uma parte decisória que se fixou, sendo por isso, em regra, irrevogável e inalterável dentro do mesmo procedimento. Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objeto do processo-, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retração processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão. No rigor do procedimento, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão (ac. STJ de 20.10.2010, disponível em www.dgsi.pt).

10. No caso a preclusão de conhecimento tem um motivo acrescido, o recurso para o Supremo tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito (art. 434.º, CPP), e a questão posta pelos recorrentes tem uma dimensão fáctica cujo recorte os recorrentes não delimitaram como lhes era exigido. Por esta dupla ordem de razões, está arredada a possibilidade de conhecimento da questão posta pelos recorrentes.

11. Os recursos dos arguidos AA e BB, foram interpostos do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que por sua vez conheceu e negou provimento aos recursos interpostos do acórdão do tribunal coletivo que julgou e condenou os recorrentes em 1.ª instância. Assim, o acórdão recorrido é o do TRL e não o acórdão do tribunal de 1.º instância; as questões a decidir são as suscitadas relativamente ao acórdão do TRL.

12. As alegações de recurso repetem em grande parte as apresentadas no recurso para o TRL, suscitando os recorrentes no recurso para o STJ as mesmas questões de facto que já tinham apresentado no recurso da decisão de 1.ª instância, chegando a elencar as provas que na sua ótica impõem decisão diversa.

13. Em tema de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dispõe o art.º 432.º, na parte aqui relevante:

 1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

(…)

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

(…)

Segundo o art. 400.º/1/f, CPP, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

14. O acórdão do TRL confirmou integralmente – sem qualquer alteração da matéria de facto e da respetiva qualificação jurídica – a decisão condenatória proferida pelo tribunal de 1.ª instância. Excetuando a condenação pela coautoria do crime de homicídio e a pena única, aos demais crimes foram aplicadas penas de prisão não superiores a 8 anos. Assim, ao arguido AA, pela prática de um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, foi aplicada a pena de 7 anos de prisão; pelo crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão; pelo crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, alínea a), do Código Penal, a pena de 1 ano de prisão; pelo crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea f), todos do Código Penal, a pena de 4 anos de prisão.

15. Ao arguido BB foram confirmadas pelo TRL todas as condenações proferidas pelo tribunal de 1.ª instância:

- pela prática de um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do Código Penal, a pena de 7 anos de prisão; - - - pelo crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

- pelo crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, alínea a), do Código Penal, a pena de 1 ano de prisão;

- e pelo crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea f), todos do Código Penal, a pena de 4 anos de prisão.

16. Estas condenações parcelares são irrecorríveis para o STJ (artºs 400.º/1/f, 432.º/1/b, CPP). A irrecorribilidade das penas parcelares não significa, apenas, que a respetiva medida fica intocada, mas coenvolve a insindicabilidade de todo o juízo decisório – absolvição ou condenação – efetuado (ac. STJ 14.03.2018, disponível em www.dgsi.pt), não podendo ser discutido o preenchimento dos seus elementos «objetivos e subjetivos».

17. No caso, em relação às questões postas pelos recorrentes e atinentes às penas parcelares, foi garantido o duplo grau de jurisdição consagrado no art. 32.º/1, CRP. O que pretendem os recorrentes, na parte dos respetivos recursos relativa às condenações em penas parcelares, é um triplo grau de jurisdição e um duplo grau de recurso relativamente a um conjunto de penas situadas entre um ano e sete anos de prisão, garantia que a Constituição não lhe outorga (art. 32.º/1, CRP acs. TC 64/2006, 659/2011 e 290/2014, e ac. STJ 14.03. 2018, disponível em http://www.dgsi.pt).

18. A inadmissibilidade de recurso, quando é total acarreta a rejeição do recurso (art. 420.º/1/b, CPP); sendo parcial, como é o caso quanto às elencadas questões implica o não conhecimento do recurso na parte irrecorrível (ac. STJ 23.04.2015, disponível em http://www.dgsi.pt).

19. Prosseguindo na delimitação do objeto do recurso, dispõe o artigo 434.º, CPP, em matéria de poderes de cognição, que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º, CPP. As alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º, CPP, reportam-se aos recursos (a) de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º, o que não é o caso, e aos recursos (c) de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º, o que também não é o caso.

20. Mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito é jurisprudência deste STJ que é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º/2, do Código de Processo Penal. Lida a decisão recorrida, concretamente a parte relativa aos factos provados, não provados e motivação, não se descortina do seu texto por si só ou conjugado com as regras da experiência comum: (a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou, finalmente, (c) erro notório na apreciação da prova (art. 410.º/2, CPP). Aliás, tal conclusão, já tinha sido deliberada no acórdão recorrido.

Recurso do arguido BB.

21. Visando o recurso interposto pelo recorrente do acórdão da relação (que conheceu, de facto e de direito, do recurso por si interposto da decisão proferida em 1.ª instância) para este Supremo Tribunal de Justiça o reexame de matéria de direito (art. 434.º, CPP), está votada ao insucesso e legalmente vedada a pretensão do conhecimento da parte do recurso interposto pelo arguido BB, em que ele pretende que o STJ revisite e se intrometa na decisão da matéria de facto, concretamente:

- A insuficiência da matéria de facto, dada como provada para a condenação do recorrente, o que, aliás, não se verifica conforme dito em 20;

- A contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão a propósito dos factos provados sob o artigo 1º a 68º dos factos provados, por um lado, e o facto a) e ab) dos factos não provados;

- A contradição insanável na fundamentação entre os factos supra indicados;

- O erro na valoração da prova pelo Tribunal de 1.ª instância, porquanto a decisão recorrida é o acórdão do TRL e não a decisão da 1.ª instância;

- A falta de fundamentação relativamente à matéria dada como assente sob o artigo 1º a 68º dos factos provados, porquanto a decisão recorrida não é a da 1.ª instância e o acórdão do TRL, que nessa parte é irrecorrível, entendeu que não há falta de fundamentação.

22. Porque no caso o recurso para o STJ não é um recurso em matéria de facto está votada ao insucesso a pretensão do recorrente de analisar «[t]oda prova documental junta aos autos, em especial o documento de fls 257 (registo de pedido de passaporte junto do SEF Aeroporto ...) e consequente prova documental; A prova pericial – relatório de autópsia Filmagens e fotogramas recolhidos do sistema de videovigilância do ... do dia 15 de Março de 2020. (…) [o] cotejo com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas FF (..., 00:01 a 35:02), KK (... 00:51:06) e JJ (...» etc. etc.

23. É ininteligível a alegação de «contradição insanável na fundamentação expendida a propósito da subsunção da matéria de facto ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crimes de que foi condenado», quando, no caso, os factos provados preenchem os ilícitos típicos por que o recorrente foi condenado. Acresce que o nexo de causalidade entre a ação e o resultado consta e está estabelecido na factualidade assente.

24. Ao recorrente não assiste legitimidade para invocar a nulidade da prova relativamente ao telemóvel com o número SIM ...43, utilizado pela cidadã II, por violação do disposto na alínea b) do n.º 4 e 6 do artigo 15º da Lei do Cibercrime conjugado com os artigos 253º e 126º, n.º 3 do Código de Processo Penal. Reitera-se o já dito ao recorrente na decisão recorrida:

«Com efeito, como retro ficou explicitado, o cartão SIM com o nº ...43 chegou a estar inicialmente associado ao recorrente, por ter sido um dos nºs de contacto que forneceu ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras quando do pedido de passaporte que efectuou, o que conduziu à intercepção das respectivas comunicações, após prolacção de despacho judicial.

Mas, posteriormente apurou-se nos autos que o mesmo pertencia a II – avó paterna do recorrente -, que o utilizava, pelo que foi cessada a intercepção, por destituída de interesse.

Por outro lado, conforme se pode constatar do “Termo de Consentimento” de fls. 1249, II autorizou expressamente e por escrito “ a Polícia Judiciária a recolher para o presente Inquérito todos os elementos relevantes relativos ao número de telefone ...43, da operadora NOS, acima referido, incluindo registos de chamadas e de mensagens e faturação detalhada, referentes ao primeiro trimestre do ano 2020.”

E, como se mostra patente no acórdão censurado inexistem dados de tráfego e de localização celular referentes a esse cartão que tenham sido tomados em conta para a formação da convicção dos julgadores da 1ª instância quanto à culpabilidade do recorrente.

De onde, inexiste valoração de prova proibida ou nulidade do processado, não ocorrendo obliteração do artigo 32º (de que o arguido não concretiza sequer qual a norma que entende ter sido violada em concreto), da Constituição da República Portuguesa».

Acresce que constituindo essa questão matéria de facto foi definitivamente arrumada pela decisão do TRL.

25. Quanto à alegada violação dos direitos de defesa do recorrente BB em consequência da ausência da junção da prova documental, contrariamente ao alegado e como o recorrente acaba por admitir, dos elementos pedidos, os disponíveis foram fornecidos e juntos. Essa questão de facto foi decidida pela 1.ª instância e teve posterior pronúncia do TRL. Como questão de facto, não cabe no âmbito no âmbito de cognição deste STJ. De qualquer modo não há qualquer omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade. A existir, como ocorreu durante a audiência de julgamento em 1.ª instância, e oportunamente o recorrente não reagiu pelo meio próprio, a mesma ficou definitivamente sanada (art. 120.º/2/d/3, CPP).

26. A pretexto de alegada «nulidade da análise aos metadados efectuados aos números de telemóveis indicados nos autos» «por força da aplicação do acórdão n.º 268/2022, do Tribunal Constitucional», sem prejuízo do já referido na questão prévia, o que sindica o recorrente BB é «a matéria dada com assente sob os artigo 1º a 68º dos factos provados», porquanto segundo o recorrente «não se pode concluir, de acordo com as regras de experiência comum e de acordo com o princípio do homem médio, que o recorrente tenha praticado os factos nos locais de ... (...), ... e ... quando no período temporal compreendido entre o dia 13 de Março de 2020 e o dia 15 de Março de 2020, até às 09H45 o recorrente esteve com a namorada deste, JJ, na residência desta sita na ..., a largos quilómetros dos locais onde ocorreram os factos…». Discordando o recorrente da apreciação da prova realizada em primeira instância e mantida pelo TRL, estamos em tema de julgamento da matéria de facto que este STJ não pode revisitar, mesmo na estrita medida dos vícios decisórios do art. 410.º/2, CPP, que, como já decidido, não se verificam. Finalmente, a contradição insanável entre os factos provados no artigo 1º a 68º dos factos provados e os factos a) a ab) dos factos não provados, afere-se em vista do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (art. 410.º/2, corpo, CPP) e não em confronto com o depoimento de testemunhas ou arguidos, como parece supor o recorrente.

27. Do recurso do arguido BB, sobra para apreciação a alegada inexistência dos elementos objetivo e subjetivo do crime de homicídio. O tipo objetivo do crime de homicídio consiste em matar outra pessoa. O tipo subjetivo exige o dolo, em qualquer das suas modalidades, nessa ação. Resulta dos factos provados (24.º, 39.º, 58 e 59.º) que em consequência das agressões concertadas infligidas pelos arguidos AA, BB e CC, à vítima esta sofreu lesões traumáticas de que veio a morrer. Como provado em 62., a conduta foi dolosa: «agiram os arguidos AA, BB e CC de forma voluntária, livre e consciente em comunhão de esforços e intentos, cada um aceitando o resultado das condutas dos outros, aproveitando-se da circunstância de se encontrarem em superioridade numérica em relação a GG, que no momento se encontrava sozinho, com o propósito concretizado de o atingirem no corpo e de lhe tirarem a vida, não se coibindo de o atingir repetidamente, com murros e pontapés e com a arma que empunharam, causando-lhe ferimentos aptos àquele fim, bem sabendo que os golpes que lhe infligiram, bem como as regiões do corpo que visaram e atingiram, eram adequados a provocar-lhe a morte».

Recurso do arguido AA.

28. Consideram-se a qui reproduzidas as considerações gerais constantes dos antecedentes n.ºs 11 a 20, relativas ao âmbito do recurso e poderes de cognição do STJ, no caso de recurso do acórdão da relação que conheceu de decisão do tribunal de 1.ª instância. Aplicando o disposto nos artºs 432.º e 434.º, CPP, conclui-se que os pontos 4 a 22 das conclusões da sua alegação de recurso veiculam questões atinentes à decisão da matéria de facto definitivamente decididas pelo TRL que não compete a este tribunal revisitar.

29. Quanto à alegação, conclusiva, de violação do princípio in dúbio pro reo, não é senão uma mera alegação sem que o recorrente tenha convocada qualquer fundamento atendível. Segundo o princípio perante uma dúvida deve decidir-se em favor do arguido. O in dúbio pro reo não é uma regra de apreciação da prova, aplica-se, posteriormente, quando depois de produzida e valorada toda a prova persiste uma dúvida inultrapassável, um non liquet. Em todos os casos de persistência de dúvida razoável após a produção e valoração da prova, o facto em dúvida deve ser decidido em sentido favorável ao arguido (Claus Roxin, Derecho Procesal Penal, 2000, p. 111 e ss, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, p. 215). No caso, só o recorrente afirma a dúvida, não resultando dos factos provados e não provados e respetiva motivação, que relativamente aos pontos aqui em causa o tribunal devesse ter feito aplicação do princípio.

30. Diz ainda o recorrente na conclusão 25.ª que «[o] tribunal recorrido não ponderou nem considerou a inexistência de agravantes para através delas e por interpretação à contrário segundo o princípio do tratamento mais favorável ao arguido, par e caso entende-se pela condenação; aplicar-lhe o mínimo legal do único crime que se entende o mesmo tenha praticado com cúmplice: Recetação dos objetos vendidos por um terceiro, testemunha destes autos (HH)». E na 26 ª. «O tribunal não relevou factos que deu como provados para a demonstração da reintegração social do arguido, as suas condições de vida, hábitos regulares de trabalho; violou desta forma na determinação da medida da pena o art 40º nº1 e 2º CP».

31. Confessamos dificuldade em descortinar o que, concretamente, pretende o recorrente AA, o que não é esclarecido com a leitura, nessa parte, do corpo da alegação. Arredada a questão da condenação por um único crime de recetação, o recorrente realça o relevo, que a decisão recorrida não deu, à sua reintegração social, às suas condições de vida, hábitos de trabalho, em violação do art.º 40.º/1/2, CP.

32. Dispõe o art. 40.º em tema de finalidades das penas que:

1 – A aplicação de penas (…) visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.       

2 – Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Limita-se o recorrente a dizer que a decisão recorrida não deu relevo a factos provados quanto à sua reintegração social, as suas condições de vida e hábitos regulares de trabalho. Lendo a alegação do recorrente, perpassa a ideia de que factos relevantes e favoráveis não foram tidos em conta. Acontece que o recorrente não concretiza as omissões o que, reconhece-se, não era tarefa fácil perante o retrato nada favorável constante dos pontos 100 e ss. dos provados. Como a realçou a decisão recorrida, citando a decisão de 1.ª instância que nesse relato segue os factos provados, o AA apresenta[-se] como um indivíduo imaturo, pouco ponderado e com grande necessidade de validação e reconhecimento pelo grupo de pares, sendo neste que se sente valorizado, zelando pela manutenção de uma boa imagem, quer pelos bens materiais que apresenta, quer pela disponibilidade/lealdade para ajudar os amigos. Por outro lado, aparenta também ser um indivíduo que prioriza a satisfação das suas necessidades imediatas em detrimento do respeito ou cumprimento das normas e regras vigentes, denotando dificuldades na internalização de limites/regras, patentes ao longo do seu percurso vivencial desde idade precoce, e mais recentemente durante a sua permanência no estabelecimento prisional. Perante este retrato é liminar a conclusão de que não assiste razão ao recorrente.

33. Finalmente, diz o recorrente AA que «exerceu o direito ao silêncio, e o tribunal recorrido e mesmo a 1ª instância consideraram indiretamente que tal atitude seria negativa para o mesmo, ou seja, com tal consideração mesmo que indireta, fez o tribunal a quo e a Relação confirmou; uma prognose ilegal de como deverá ser tratado tal direito constitucional».

34. Como se decidiu no ac. de 8.9.2022 deste STJ «[s]endo o arguido senhor do direito ao silêncio (art. 343.º/1, CPP) a confissão e o arrependimento são circunstâncias, quando se verificam, favoráveis ao arguido; não confessando o arguido, nem demostrando arrependimento, deixa de poder contar com essas circunstâncias favoráveis, mas isso não equivale a que se contabilize como agravantes a não confissão e não ter demonstrado arrependimento pela prática dos factos». Constitui «erro na determinação da medida da pena considerar contra o arguido circunstâncias derivadas do exercício de um direito».

35. Consta dos factos provados:

120. Não assumiu a prática dos factos e não demonstrou qualquer arrependimento, não evidenciando ainda qualquer ressonância emocional face à vítima e juízo de autocensura.

Não assumir a prática dos factos e não demostrar arrependimento não é, obviamente, uma circunstância favorável ao arguido, mas resultando esses factos do exercício de um direito, no caso, do direito ao silêncio e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo (art. 343.º/1, CPP) não podem ser considerados contra o arguido. O direito ao silêncio não tem só consagração legislativa ordinário sendo uma emanação do princípio do Estado de Direito (Claus Roxin, Drecho Processal Penal, 2000, p. 108) Não confessando o arguido, nem demostrando arrependimento, deixa de poder contar com essas circunstâncias favoráveis. Neste contexto, considerar provado que o arguido não assumiu a prática dos factos e não demonstrou qualquer arrependimento é um não facto para efeito da escolha e medida da pena.

36. O recorrente sustenta, como vimos, que a decisão recorrida considera indiretamente tal atitude e em sentido negativo. Lida a decisão recorrida, do seu texto não se descortina premissa onde possa radicar violação – mesmo na vertente de consideração indireta… – do direito ao silêncio, concluindo-se que o provado no ponto 120, não foi valorado contra o arguido.

III

Decisão:

Acordam em rejeitar os recursos na parte em que impugnam o julgamento da matéria de facto; no mais, em julgar improcedentes os recursos dos arguidos AA e BB.

Custas pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta, para cada um deles.

Supremo tribunal de Justiça, 03.11.2022.

António Gama (Relator)

João Guerra

Orlando Gonçalves

Eduardo Loureiro (Presidente de seção)