Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
991/10.3TBESP.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÂO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: PARTILHA DOS BENS DO CASAL
MEAÇÃO
PATRIMÓNIO
SIMULAÇÃO
PREÇO
QUESTÃO NOVA
CONHECIMENTO OFICIOSO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática: DIREITO DA FAMÍLIA / PARTILHA DOS BENS DO CASAL / REGRA DA METADE / SIMULAÇÃO / QUESTÃO NOVA / CONHECIMENTO OFICIOSO /PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Doutrina: - Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª edição, pág. 437;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Amdedina, 2012, 7.ª edição, pág. 645.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL: ARTS. 240.º, 292.º, 474.º, 1730.º E 2121.º;
NCPC(2013): ART.5.º, N.º 3, E 608.º
Jurisprudência Nacional: - AC. RELAÇÃO DE LISBOA DE 03-07-2008, RELATOR JOÃO GOMES, CJ, III, PÁG. 119;
- AC. RELAÇÃO DO PORTO DE 29-11-1999, RELATOR FONSECA RAMOS, BMJ, 491.º-328;
- AC. STJ DE 05-05-2005, RELATOR LUCAS COELHO, PROC. 3/2003;
- AC. STJ DE 15-12-2011, RELATOR SILVA GONÇALVES, CJ, TOMO III, PÁG. 149, PROC. N.º 2049/06.0TBVCT.G1.S1;
- AC. STJ DE 05-03-2013, RELATOR JOÃO BERNARDO, PROC. N.º 839/11.1TBVNG.P1.S1
Sumário :
I - A regra da metade que consta do art. 1730.º, n.º 1, do CC, segundo a qual " os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em contrário" deve ser observada na fixação da quota parte que a cada um caiba no momento da dissolução e partilha do património comum.

II - Por isso, se na escritura de partilha todos os bens forem atribuídos a um dos ex-cônjuges considerando um valor inferior ao seu valor real, tal estipulação ofende a regra da metade.

III - Processualmente, no caso de ação proposta com base em simulação do preço que não se provou, esta questão da violação da regra da metade constitui uma questão nova (art. 608.º, n.º 2 do NCPC (2013)); no entanto sendo de conhecimento oficioso, o Tribunal pode e deve conhecer dela uma vez alegados os factos que permitem resolver o litígio perspetivado à luz dessa questão de direito.

IV - No caso de invalidade parcial do negócio passível de conhecimento oficioso, o Tribunal, atento o princípio da conservação dos negócios jurídicos, pode proceder à redução (art. 292.º do CC), salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada e, assim sendo, a escritura de partilha deve manter-se válida com observância da regra imperativa da metade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA intentou no dia 21-10-2010 ação declarativa com processo ordinário contra BB pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de 250.000 euros com juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a escritura de partilhas até à presente data, que se cifram em 30 mil euros, e nos juros vincendos até efetivo e integral pagamento.

2. Alegou a A. que outorgou com o réu no dia 12-6-2007 escritura de partilhas de dois imóveis integrativos de património comum do dissolvido casal em que se convencionou atribuir aos bens o valor patrimonial fiscal de 119.776,37€, inferior ao respetivo valor real, previamente avaliado em 600 mil euros.

3. Acordaram que o réu ficaria com os imóveis e a autora receberia a sua meação no montante de 250 mil euros que agora reclama por não lhe ter sido paga.

4. O réu contestou a ação alegando que o valor da meação correspondente a metade do montante constante da escritura foi pago antes desta ter sido outorgada, por exigência da autora, que desse valor deu quitação na escritura.

5. Mais alegou que os valores patrimoniais dos imóveis eram similares ao valor de mercado e que a autora, dias depois da escritura, assinou a transmissão de metade da quota, o que não faria se considerasse ser-lhe devida a quantia agora reclamada.

6. Transitou em julgado a decisão do juiz de 1.ª instância de fls. 210 (infra transcrita) que não admitiu a produção de prova sobre matéria destinada a provar o acordo referenciado entre A. e réu.

7. Com efeito, o Tribunal da Relação não admitiu, por extemporâneo o recurso interposto dessa decisão - ver fls. 292/294 dos autos.

8. Essa decisão de fls. 210 não admitiu a produção de prova testemunhal incidente sobre os quesitos 4.º ("mais acordaram que os referidos imóveis e a quota social tinham o valor global de 500.000€"), 5.º ("acordando ainda que o réu entregaria à autora 250.000€ correspondente à sua meação desses bens?"), parte do 8.º ("… e que o pagamento dos 250.000 euros correspondente à meação da autora, seria feito pelo réu a seguir à partilha, sendo que a cedência da quota se faria através de documento escrito?", 9.º ("após a outorga da escritura de partilha referida em C), quando lhe foi pedido o pagamento, o réu disse à autora que até ao final dessa semana lhe entregaria o dinheiro, mas que ficasse descansada, que poderia até esse dia residir na casa de habitação do casal?" e 10.º ( "Dias depois em vez de dar/entregar o dinheiro à autora, o réu expulsou-a de casa com a sua filha menor, de nome CC, dizendo que não lhe dava dinheiro algum, porque ela declarara na escritura que já recebera?".

9. Exarou-se o seguinte nessa decisão:

" Não se admite o depoimento desta testemunha, bem como o de qualquer outra à matéria dos artigos 4.º, 5.º e à parte do artigo 8.º […] e artigos 9.º e 10.º na parte em que têm o mesmo sentido da matéria anteriormente referida, uma vez que a mesma é contrária ao constante do conteúdo da escritura junta aos autos com a petição inicial e, por outro lado, o que está também em causa nesta ação é um acordo simulatório entre as partes, pelo que também por esta via não seria admissível a produção de prova testemunhal quanto à matéria em causa.

De facto, a autora alega que as partes acordaram na entrega de um valor superior àquele que consta da escritura, atribuindo aos bens aí em causa o valor fiscal dos mesmos, ressaltando claramente que, por essa via, se pretendia "fugir ao fisco".

Tal inadmissibilidade de produção de prova testemunhal resulta do artigo 394.º, n.º1 e 2 do Código Civil.

É certo que na esteira daquilo que Vaz Serra defendeu nos trabalhos preparatórios do Código Civil a jurisprudência tem vindo a entender que será admissível a prova testemunhal desde que exista um princípio de prova escrita, o que não sucede manifestamente no caso em apreço".

10. A matéria constante dos aludidos quesitos não se provou, provando-se, na sequência de avaliação efetuada na fase de instrução da causa, que os imóveis partilhados tinham o valor global de 412.870€ e que, além desses imóveis, o casal dispunha de uma quota na sociedade com o valor de 152.112,95€, estando adquirido nos autos o que consta da escritura e a deliberação social de transmissão da meação da quota da autora a favor do réu.

11. A sentença de 1.ª instância julgou a ação improcedente considerando que dos factos provados não resulta provada a simulação e considerando ainda que a prova de que os bens partilhados tinham valor superior ao declarado é indiferente para a sorte da causa pois tal matéria mostra-se " desacompanhada de qualquer outra matéria que poderia ser relevante para o triunfo, ainda que parcial, da pretensão da demandante".

12. Nas alegações de recurso para a Relação do Porto, a autora, para o que aqui importa, suscitou duas questões: (a) a nulidade do acordo de partilha, nulidade que é do conhecimento oficioso, por violação do disposto no artigo 1730.º do Código Civil, visto que a regra imperativa da participação de metade no ativo e no passivo da comunhão se mostra violada considerando que se provou que o valor real dos imóveis partilhados é superior ao valor declarado.

13. Sustentou ainda (b) que, a entender-se que não ocorreu essa violação do artigo 1730.º do Código Civil, se verifica um enriquecimento sem causa do réu à custa da autora, razão por que o Tribunal sempre deveria ter condenado o réu a pagar à autora o montante com que se locupletou (cf. artigo 473.º e seguintes do Código Civil).

14. Nas suas contra-alegações o réu sustentou que "se aceitássemos a posição defendida pela autora, inexistiria qualquer segurança no comércio jurídico e seria impossível realizar qualquer partilha por divórcio de comum acordo já que sempre que um cônjuge mudasse de ideias e pretendesse receber mais pela sua meação bastava que fosse realizada uma avaliação a atribuir um valor superior aos bens para que a partilha fosse declarada nula. Pelo que, estando ambos os cônjuges de acordo com a divisão dos bens, mesmo que a meação de um deles não corresponda exatamente ao valor real dos mesmos, não se verifica a violação do seu direito de comungar no património comum do casal".

15. Salientou também o réu recorrido que o instituto do enriquecimento sem causa é subsidiário, não podendo a autora socorrer-se do mesmo apenas porque não conseguiu provar o invocado acordo simulatório, encontrando-se prescrita a ação de enriquecimento sem causa.

16. O Tribunal da Relação, sem voto de vencido, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.

17. Considerou o Tribunal da Relação, em sintonia com a posição assumida nas contra-alegações pelo réu, que a causa de pedir da presente ação é constituída pela simulação, não se fundamentando na pretensão de que a autora aceitou receber "pela sua meação um valor inferior àquele que constituía o valor de mercado dos imóveis", pois " o que alegou na petição inicial foi a verificação de um acordo simulatório"; daí que não possa, em sede de recurso, ser apreciada e decidida a questão da divisão igualitária do património comum do casal extinto, "desde logo porque não foram alegados factos suscetíveis de enquadrar a violação da regra de metade a que se refere o n.º1 do artigo 1730.º do Código Civil".

18. No que respeita ao enriquecimento sem causa, entendeu o Tribunal da Relação que não se provaram factos suscetíveis de levar à conclusão de que houve enriquecimento sem causa, não preenchendo a factualidade provada os requisitos do enriquecimento injusto, não invocado na petição inicial, obstando-se, assim, a que, para além do mais, fosse excecionada a prescrição da ação de enriquecimento sem causa (artigo 482.º do Código Civil).

19. A autora interpôs recurso de revista excecional, sustentando a relevância social no que respeita à abordagem que faz da violação da regra de metade prevista no artigo 1730.º do Código Civil a impor nulidade que é do conhecimento oficioso.

20. Concluiu a minuta de recurso sustentando o seguinte:

1) Consta dos factos dados como provados que o valor de partilha dos imóveis foi de 59.888,19€.

2) Consta dos factos dados como provados que os imóveis foram avaliados em 412.870,OO€.

3) Sendo estes dois valores em causa tão díspares, estaria mais que provado o acordo simulatório entre A e R. no propósito de declararem nas partilhas valores inferiores, para pagarem menos impostos ao Estado.

4) E por via disso estar provada a simulação ainda que relativa do preço declarado na escritura pública de partilhas e que a A. recorrente declarou receber na sua metade.

5) Ficando desta forma por liquidar por parte do R/recorrido à A./recorrente a diferença na sua meação.

6) Porém, caso assim não se entenda,

7) Existem factos provados no processo que impõem outra decisão, de condenação do réu por violação da regra da metade, prevista no artigo 1730°. do C. Civil:

8) Já que se encontra provado que A. e R. acordaram que o R, ficasse com os imóveis e a quota societária, património do casal, que soma um total de 488.925,00€.

9) Sendo que a A. só recebeu o constante documentalmente, no valor de 61.138, 19€.

10) Sendo clara a desproporção, nitidamente a favor do réu entre o valor do que recebeu, e valor que pagou.

11) A violação da regra da metade implica a nulidade do respetivo acordo divisório, devendo o réu liquidar à A. o montante em falta.

12) Embora a nulidade do acordo de partilha não tenha sido invocado pela A., a mesma é do conhecimento oficioso.

13) Devendo o Meritíssimo Juiz conhecê-la, uma vez que constam dos autos o acordo, o valor do património, a partilha e o valor que a A. recebeu.

14) Mas mesmo que não se entenda que houve essa violação do artigo 1730°. do Código Civil, sempre existe um locupletamento do réu relativamente à A, e sem causa justificativa, da diferença entre os bens que recebeu e respetivo valor e os bens que a A. recebeu e aquilo a que tinha legalmente direito.

15) De facto, nada consta só processo, como causa justificativa, do montante que o R/recorrido recebeu a mais pela sua meação.

16) Não consta do processo que a A/recorrente tenha dado ou doado, ou a outro titulo qualquer, a parte que excedeu a sua meação.

17) Através do instituto do enriquecimento sem causa, sempre o Meritíssimo Juiz, uma vez que, no que se refere 'a subsunção jurídica dos factos 'a lei, "o juiz não esta sujeito 'as alegações das partes no tocante 'a indagação, interpretação e aplicação das regras do direito" (nº. 3 do artigo 5°. do C.P.C.), podendo, e de acordo com este principio, enquadrar os factos provados noutra solução de direito, que não a equacionada pela A.

18) Dado que no processo existem factos provados capazes de levarem a esse enquadramento jurídico, deveria o Meritíssimo Juiz a quo, condenar o R. a liquidar 'a A o montante em que se locupletou.

Foram, pois, violadas as disposições legais previstas nos artigos 241.º, 473.º e 1730°., todos do Código Civil.

21. A revista excecional não foi admitida. Entendeu, no entanto, o coletivo de juízes a quem compete apreciar a admissibilidade da revista excecional que, tal como se pode constatar das respetivas peças, as questões suscitadas pela recorrente não foram objeto de apreciação na 1.ª instância, mas apenas pelo Tribunal da Relação. "Assim sendo, porque não correu uma apreciação dupla e sucessiva dessas questões pelas instâncias, mas uma apreciação e decisão ex novo da Relação, não se verifica a dupla conforme, pressuposto necessário da admissibilidade excecional da revista". Conclui o acórdão que "poderá, nos termos referidos, ser caso de admissibilidade da revista nos termos gerais e, consequentemente, ser de proceder em conformidade com o que se dispõe no n.º5 do citado artigo 672.º, a fim de o requerimento recursivo ser apreciado pelo Exm.º relator".

22. Factos Provados:

1 – Autora e réu foram casados entre si, sob o regime da comunhão de adquiridos, desde 28 de Dezembro de 1985.

2 – Em 12.06.2007, na Conservatória do Registo Civil de Santa Maria da Feira, foi declarado o seu divórcio por mútuo consentimento.

3 – Autora e réu outorgaram a escritura pública cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 10 e seguintes, mediante a qual declararam que:

i) Ao réu seriam atribuídos, pelo valor patrimonial tributário, os seguintes bens:

a) Casa de rés-do-chão com anexo, destinado a habitação, sita na rua do …, nº …, da freguesia de Lourosa, com a área coberta de 331 m2 e área total do terreno de 1.210m2, a confrontar do norte com DD, sul com caminho, nascente EE e do poente com FF, inscrito na matriz sob o art. …º e com o valor patrimonial de 44.019,11€.

b) Prédio urbano, composto por um pavilhão, destinado a indústria e logradouro, sito no lugar de …, freguesia de Lourosa, sendo que o pavilhão tem a área de 890m2 e área descoberta – logradouro – de 3.300m2, inscrito na matriz sob o art. …º e não se encontrando averbado na descrição da conservatória sob o a qual o terreno se encontra registado, com a descrição nº …, com o valor patrimonial de 75.657,26€.

ii) que o R. pagava a título de tornas à A. 59.888,19€

iii) A autora declarou ter recebido e dar quitação da aludida quantia.

4 – A autora outorgou a acta da sociedade Corticeira GG, Ldª., junta aos autos a fls. 41 e que aqui se dá por integralmente reproduzida, na qual se pode ler que foi deliberado transmitir a meação da autora na quota do réu, pelo valor de 1.250€, que a autora já recebeu e confere quitação, acta essa datada de 14.6.2007;

5 – A autora apresentou queixa crime contra o réu, pela prática por crime de burla, tendo este sido acusado pelo Ministério Público, a que se seguiu despacho de não pronúncia, sendo que este veio a ser confirmado por acórdão cuja cópia se encontra junta a fls. 18 e seguintes dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

6 – Os prédios identificados em “3” têm o valor global de 412.870€, ou seja o valor de 146.995€ a casa e o pavilhão industrial e terreno o valor de 265.875€;

7 – Para além dos bens referidos em 3, à autora e réu pertencia uma quota da sociedade com o valor de 152.112,95€;

8 – Apesar do declarado em 3, autora e réu acordaram que este ficaria com os imóveis aí descritos e a quota referida em 7.

Apreciando

23. As duas questões que se põem ao Tribunal são estas:

- Saber se a escritura pública em que se outorgou partilha extrajudical de parte do património comum do casal contém estipulação que desrespeita a regra da metade que consta do artigo 1730.º do Código Civil.

- Saber se a autora tem direito à condenação do réu no pagamento de 250.000 euros que, segundo alegou, correspondia a metade do valor real dos imóveis partilhados, considerando que esse valor foi o valor ajustado, antes da escritura, entre ela e o réu, inferior ao valor corrente que seria de 600.000 euros.

24. Decorre do exposto que a causa de pedir que estava na base do pedido - simulação do preço dos imóveis por divergência entre a vontade real e a vontade declarada com prejuízo de terceiros, in casu a entidade fiscal (artigo 240.º do Código Civil) - não se provou.

25. Por isso, não pode declarar-se nula a escritura de partilha dos aludidos imóveis com base no artigo 240.º do Código Civil, não tendo a autora impugnado a sua validade com base noutro qualquer fundamento, sabendo-se que a partilha extrajudicial só é impugnável nos casos em que o sejam os contratos (artigo 2121.º do Código Civil). Daqui decorre que a autora não pode, com base neste fundamento, lograr obter o pagamento dos pedidos 250.000 euros, pois, para que assim se decidisse, teria de se provar que houve simulação do preço.

26. Suscitou todavia a autora a violação da regra de metade, de natureza imperativa, que consta do artigo 1730.º do Código Civil. A estipulação ou cláusula que desrespeite essa regra implica nulidade. Por isso, dado o seu conhecimento oficioso, a questão nova suscitada podia ser atendida pelo Tribunal (artigo 608.º do C.P.C.). Os factos integrativos dessa questão foram alegados - outorga da escritura em que o valor declarado dos imóveis era inferior ao seu valor real de 600 mil euros - embora visando um diverso enquadramento jurídico do litígio, o que não obsta ao seu conhecimento (artigo 5.º/3 do C.P.C. 2013).

27. Prescreve o artigo 1730.º/1 do Código Civil que "os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso"; esta regra vale para a outorga de convenção antenupcial, mas vale igualmente para quaisquer cláusulas que constem de contratos que visem a partilha do património do casal (contrato-promessa de partilha) e também para a própria escritura de partilha do património do casal dissolvido. Refere, a este propósito, Antunes Varela que " quando, por conseguinte, no artigo 1730.º se prescreve que os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista fixar a quota parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do património comum" (Código Civil Anotado, Vol IV, 2.ª edição, pág. 437).

28. Não há dúvida, face aos factos provados, que os outorgantes atribuíram aos imóveis a partilhar o seu valor tributário que é manifestamente inferior ao valor real, estipulando que os imóveis seriam adjudicados por aquele valor ao ex-cônjuge marido. O valor dos imóveis é de 412.870 euros, cabendo à autora receber metade, ou seja, 206.435 euros à qual se deve deduzir o valor que recebeu de 59.888,19€, perfazendo-se, assim, a quantia de 146.546,81 euros.

29. A observância da regra da metade não vale apenas para a estipulação que decorra de convenção antenupcial, mas impõe-se, como se disse, na fixação concreta da quota parte que a cada um dos cônjuges deva caber no momento da dissolução sem o que ficaria desprovida de utilidade real. Este tem sido o entendimento da jurisprudência como decorre dos Ac. do S.T.J. de 5-5-2005, rel. Lucas Coelho, P. 0003/2003, de 15-12-2011 (rel. Silva Gonçalves) na C.J.,3, pág. 149, P. 2049/06.0TBVCT.G1.S1, de 5-3-2013, rel. João Bernardo, P. 839/11.1TBVNG.P1.S1; ver também o Ac. da Relação do Porto de 29-11-1999, (rel. Fonseca Ramos) ,B.M.J. n.º 491-328 e o Ac. da Relação de Lisboa de 3-7-2008, rel. João Gomes, C.J. 3, pág. 119.

30. O princípio da conservação dos negócios jurídicos conduz ao aproveitamento do negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada (artigo 292.º do Código Civil). Como salienta Pedro Pais de Vasconcelos, " no caso de nulidade parcial, de conhecimento oficioso, o tribunal não pode deixar de conhecer a nulidade e, segundo o preceito do artigo 292.º, só deve deixar de reduzir quando se convença de que as partes não teriam celebrado o negócio sem a parte viciada" (Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2012, 7.ª edição, pág. 645).

31. Dos autos resulta que a autora não pretende mais do que receber o valor correspondente à sua efetiva meação, não estando interessada na anulação total da partilha salvo no que respeita à estipulação que levou ao desrespeito da regra da metade; também não se vê que o réu não quisesse celebrar a escritura de partilha desrespeitando a regra de metade que implica, no caso de adjudicação integral a seu favor dos imóveis, a fixação do valor real e não do valor tributário.

32. Por isso, considera-se reduzido o negócio, considerando-se nulas as cláusulas estipuladas com o valor tributário indicado por violação da regra da metade, valendo a escritura de partilha dos imóveis, tal como foi acordado entre os outorgantes, considerando o indicado valor dos imóveis que respeita a regra da metade.

33. No que respeita a juros, a A. pretende que sejam devidos desde a outorga da escritura; no entanto, não tendo havido divergência na escritura quanto ao respetivo montante, a constituição em mora só ocorre com a exigência da diferença, visando assegurar a meação, ou seja, com a citação ocorrida em 7-12-2010.

34. Saber se a autora podia obter a quantia reclamada a título enriquecimento sem causa, instituto de natureza subsidiária (artigo 474.º do Código Civil), constitui questão prejudicada face ao decidido. 

Concluindo:

I - A regra da metade que consta do artigo 1730.º/1 do Código Civil segundo a qual " os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em contrário" deve ser observada na fixação da quota parte que a cada um caiba no momento da dissolução e partilha do património comum.

II - Por isso, se na escritura de partilha todos os bens forem atribuídos a um dos ex-cônjuges considerando um valor inferior ao seu valor real, tal estipulação ofende a regra da metade.

III - Processualmente, no caso de ação proposta com base em simulação do preço que não se provou, esta questão da violação da regra da metade constitui uma questão nova (artigo 608.º/2 do C.P.C. 2013); no entanto sendo de conhecimento oficioso, o Tribunal pode e deve conhecer dela uma vez alegados os factos que permitem resolver o litígio perspetivado à luz dessa questão de direito.

IV - No caso de invalidade parcial do negócio passível de conhecimento oficioso, o Tribunal, atento o princípio da conservação dos negócios jurídicos, pode proceder à redução (artigo 292.º do Código Civil), salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada e, assim sendo, a escritura de partilha deve manter-se válida com observância da regra imperativa da metade.

Decisão: concede-se revista parcial, condenando-se o réu a pagar à autora a quantia de 146.546,80€ ( cento e quarenta e seis mil quinhentos e quarenta e seis euros e oitenta cêntimos) com juros à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento, absolvendo-se réu do demais pedido.

Custas nas instâncias e no Supremo na medida do decaimento.

Lisboa, 8-1-2014

Salazar Casanova (Relator)

Lopes do Rego

Orlando Afonso