Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
35505/12.1YIPRT.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: LIQUIDAÇÃO
CASO JULGADO MATERIAL
SENTENÇA
OBRIGAÇÃO GENÉRICA
CRITÉRIO DE QUANTIFICAÇÃO
EQUIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 05/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – No incidente de liquidação previsto nos arts. 358.º a 361.º do CPC já não é possível voltar a discutir a existência do fundamento do mesmo crédito de que a requerente é reconhecidamente titular sobre a requerida, uma vez que tal matéria – factual e jurídica – foi decidida, em termos definitivos, na acção principal e sobre a mesma foi proferida decisão judicial, de cariz condenatório, que transitou em julgado.
II - No seu âmbito foram apurados determinados factos (com base na causa de pedir apresentada) com fundamento nos quais, por aplicação do pertinente enquadramento jurídico, foi reconhecida a existência de uma obrigação de pagamento que, a partir daí, deixou de ser questionável, não podendo voltar a ser objecto de apreciação (e muito menos de contradição), sob pena de directa, frontal e grosseira violação do caso julgado material (cfr. art. 619.º, n.º 1, do CPC).
III - Não é juridicamente aceitável que o julgador do incidente de liquidação chegue à conclusão de que tal obrigação – reconhecida através de sentença judicial transitada em julgado – afinal não existia; não tinha base factual, ou correspondia à quantificação zero (o que equivaleria a dizer que não deveria ter sido reconhecido na acção anterior).
IV - Ao STJ compete controlar se a decisão recorrida coincide com aquela que deverá corresponder à decisão segundo o critério da equidade.
V - Perante a paradoxal situação em que a requerente prestadora exige da requerida beneficiária, por esta via, a contrapartida pelo resultado de uma actividade que não iniciou nem conseguiu concluir, deixando à sua devedora a missão de a acabar em sua substituição, tudo apontando, por um lado, para a relativa inconsistência e efémera duração da sua intervenção, e, por outro, para a objectiva ineficácia prática da sua actuação que não atingiu, na sua integralidade, o fim visado por ambas as partes, o valor a quantificar em sede de liquidação deverá ser reduzido, de forma acentuada, o que encontra a sua justificação, em termos equilibrados e ajustados, no carácter eminentemente provisório, inexplicavelmente inacabado e indubitavelmente ineficiente, do seu (fraco) desempenho em favor da requerida.
Decisão Texto Integral:



Revista nº 35505/12.1YIPRT.P1.S1.


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).


I - RELATÓRIO.

Nord Drivesystems, PTP, instaurou o presente incidente de liquidação contra Carlos Valinho, S.A.
Alegou essencialmente:
No âmbito da sua actividade comercial, a sociedade Equipalimentar, Ldª., apresentou, em 19 de Janeiro de 2009, uma proposta para instalação de uma via aérea e corrente M12000 nas instalações da ré, proposta essa que foi aceite pela ora demandada.
O valor orçamentado para a realização dos trabalhos, após efectuado um desconto comercial, ascendeu a €92.499,55, acrescido de IVA.
Nessa sequência, a sociedade Equipalimentar, Ld.ª, executou nas instalações da ré os trabalhos orçamentados, concluindo os mesmos conforme solicitado.
Ao longo da execução da obra, a Ré liquidou apenas o montante de €10.000,00, estando em falta o remanescente de 100.999,46 €, valor cujo pagamento é exigido nos presentes autos.
Conclui pedindo que seja liquidado em 100.999,46 € o valor a ser pago pela ré, decorrente de serviços prestados, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos.
A Ré deduziu oposição impugnado a factualidade alegada pela A.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção de liquidação improcedente.
Desta decisão recorreu a A. para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, através do acórdão proferido em 26 de Janeiro de 2021, julgou a apelação parcialmente procedente, revogando a sentença e fixando o crédito da Autora em € 40.000,00 (quarenta mil euros) e condenando a Ré a pagar à Autora este valor, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ao ano, desde a presente data e até efectivo e integral pagamento.
A requerida apresentou recurso de revista.
Concluiu nos seguintes termos:
1.A recorrente não se conforma com o acórdão que a condenou em incidente de liquidação de sentença, ao pagamento da quantia de € 40.000,00 à A. por recurso à equidade.
2.A recorrente, considera no seu modesto entendimento, não ter sido efetuada uma correcta aplicação do direito aos autos em apreço, nomeadamente no que tange à decisão proferida por recurso à equidade, por entender não se encontrarem reunidos os elementos necessários para a decisão com o recurso a tal instituto.
3.A A. instaurou injunção contra a agora recorrente, peticionando a condenação desta recorrente no pagamento da quantia de € 100.999,46, acrescida de juros de mora no montante de € 21.983,29 e outras quantias.
4.Para fundamentar o seu alegado crédito, a A. alegou, em síntese, ter adquirido, por cessão, o crédito que a sociedade “Equipalimentar – Equipamentos para Indústria Alimentar, Lda.” detinha perante a Requerida, no valor de € 110.999,46, titulado por faturas, do que já foi pago o montante de € 10.000,00.
5.Da sentença proferida em primeira instância na acção declarativa que condenou a Recorrente a pagar à Autora a quantia de € 123.135,75 foi pela agora recorrente intentado recurso para Tribunal da Relação de Coimbra, que o considerou parcialmente procedente e condenou a Ré Carnes Valinho, SA a pagar à autora Nord Drivesystems, Ptp, Lda., a quantia que se viesse a liquidar em posterior incidente, correspondente ao crédito proveniente dos materiais fornecidos e trabalhos executados pela Equipalimentar, Lda, ao abrigo do acordo celebrado com a requerida, até ao montante de € 100.999,46 (cem mil, novecentos e noventa e nove mil euros e quarenta e seus cêntimos).
6.A A. intentou incidente de liquidação e alegou que a Equipalimentar no âmbito da sua actividade comercial, apresentou à agora Recorrente em 19 de Janeiro de 2009, uma proposta para instalação de via aérea e corrente M12000 nas instalações da Ré, proposta essa que foi aceite por esta ultima, com o valor orçamentado para a realização dos trabalhos, após efectuado um desconto comercial, ascendeu a € 92.499,55 acrescido de IVA;
7.A A. alegou ainda que a referida sociedade “Equipalimentar, Ldª”, executou nas instalações da Ré os trabalhos orçamentados, concluindo os mesmos em conforme solicitado e que a Ré liquidou apenas o montante de €10.000,00, estando em falta o remanescente de € 100.999,46, valor cujo pagamento era exigido nos referidos autos.
8.Após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que considerou a liquidação improcedente e absolveu a Ré do pedido.
9.A improcedência da liquidação deveu-se à total ausência de prova dos factos alegados pela A. e ainda por decorrer dos depoimentos das testemunhas que a Equipalimentar, Ldª não teria realizado quaisquer trabalhos nas instalações da Ré.
10.O único facto provado no incidente de liquidação foi a decisão ínsita no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3/3/2015, transitado em julgado, que condenou a Ré a pagar à autora “a quantia que se vier a liquidar em posterior incidente, correspondente ao crédito proveniente dos materiais fornecidos e trabalhos executados pela Equipalimentar, Ldª, ao abrigo do acordo celebrado com a ré, até ao montante de € 100.999,46 (cem mil novecentos e noventa e nove euros e quarenta e seis cêntimos).” (art.1º do requerimento de liquidação).
11.Todas os demais factos alegados pela A. no requerimento de liquidação, foram considerados não provados.
12.Os factos considerados não provados, assim foram considerados (não provados) em virtude de não terem sido carreados para os autos elementos probatórios dos quais resulte que a referida sociedade “Equipalimentar, Ldª” realizou o conjunto de trabalhos que vinham alegados por parte da A; porque a A. apresentou documentos que “por si só eram insuficientes para demonstrar a realização dos serviços em causa e os correspondentes valores; e não obstante as dificuldades que a autora poderia invocar decorrentes da circunstância de não ter acesso a suportes documentais relevantes (por estarem na posse de terceiros, designadamente da referida sociedade ou do respectivo contabilista), constata-se que as entidades que, supostamente, teriam no seu acerto documentos referentes a esta matéria (a já aludida sociedade comercial “Equipalimentar, Ldª e o responsável pela contabilidade da mesma), não colaboraram proficuamente no sentido de ser esclarecida esta problemática, não obstante inúmeras diligencias realizadas pelo Perito que elaborou o relatório de fls 668 a 677”; os depoimentos produzidos em sede de audiência vão no sentido de que a sociedade em questão não realizou quaisquer trabalhos nas instalações da ora Ré e ainda porque as perícias a se procedeu nos autos (cf, relatórios de fls 630 a 633 e 668 a 677) também não demonstram que a sociedade “Equipalimentar, Ldª” tenha realizado a obra que a autora veio mencionar.
13.Apesar da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, referenciada no único facto provado no incidente de liquidação, que condenou a agora recorrente a pagar à A. quantia a liquidar em sede de liquidação, correspondente ao crédito proveniente de materiais e trabalhos fornecidos e executados pela sociedade Equipalimentar, Ldª, ao abrigo de um acordo com a agora recorrente, não existe, pois, qualquer elemento probatório carreado para os autos, por parte da demandante ou a titulo oficioso, que demonstre a realização dos trabalhos que vinham descritos no respetivo articulado.
14.Não ficou demonstrado o acervo factual que sustentava a pretensão da A. que a ter ficado assente, sempre permitiria o enquadramento da relação contratual no regime do contrato de empreitada.
15.Pelo que o incidente de liquidação foi considerado improcedente e a ré, absolvida do pedido.
16. Decisão que devera ter sido mantido no acórdão proferido e agora posto em crise.
17.A recorrente insurge-se quanto à decidida aplicação no acórdão de que se recorre, do instituto da equidade na ausência de prova factual.
18.Considera a Recorrente, que a total ausência de prova produzida quanto aos trabalhos alegadamente executados e que materiais alegadamente aplicados pela Equipalimentar,
19.Não permite a decisão proferida, conforme o foi, isto é, de acordo com a equidade.
20.Era a A. que tinha o ónus da prova dos factos alegados,
21.O recurso à equidade como forma de determinar o crédito proveniente dos alegados materiais fornecidos e trabalhos executados não surge automaticamente, cabendo à parte (e não ao Tribunal) a prova concreta e objectiva da factualidade que permita concluir pelo montante real do alegado crédito.
22.O recurso à equidade sem um suporte mínimo de elementos traduz-se e traduziu-se numa decisão totalmente arbitrária,
23.A prova produzida foi toda no sentido de que a sociedade (Equipalimentar) não realizou quaisquer trabalhos nas instalações da agora recorrida.
24.Atenta a ausência de acervo probatório, não haveria qualquer juízo de equidade a ponderar por ausência de elementos que o permitissem.
25.O indicado acervo fáctico foi determinado por recurso à prova testemunhal e pericial, oficiosamente ordenada pelo Tribunal de Primeira Instância, tendo ainda o Mmº Juiz de primeira instancia feito consignar na douta sentença que dos depoimentos produzidos em sede de julgamento, resultou que a Equipalimentar, Ldª não realizou quaisquer trabalhos nas instalações da agora recorrente.
26.Não existem nos autos, elementos para julgar de acordo com a equidade, uma vez que, tratando-se de liquidação que não depende de simples cálculo aritmético, vigorava para a A. o ónus de proceder à liquidação com a alegação e prova dos factos que fundamentam a pretendida liquidação.
27. A A. não produziu qualquer prova quanto aos factos alegados, sendo a douta decisão perentória de que os depoimentos produzidos em sede de audiência vão no sentido de que a sociedade (Equipalimentar) não realizou quaisquer trabalhos nas instalações da agora recorrida.
28.Atenta a ausência de prova, não há qualquer juízo de equidade a ponderar por ausência de elementos que o permitissem.
29.Uma decisão judicial de acordo com a equidade, tem de ter por base um mínimo de elementos que permitam decidir em conformidade, de forma a não ocorrer uma decisão arbitrária, e os presentes autos não reúnem tais elementos, nem mesmo indiciários.
30.Não obstante a ausência de prova produzida pela A., o Tribunal de primeira instância ainda promoveu a indagação oficiosa de todas as informações que permitissem averiguar a quantificação dos valores alegadamente em causa, mas prova realizada foi no sentido de que a Equipalimentar, Ldª não realizou quaisquer trabalhos nas instalações da agora recorrente.
31. Não existindo nos autos elementos que permitiam ao Tribunal decidir com recurso a equidade, o acórdão agora posto em crise, ao decidir fixar o crédito da A. em € 40.000,00 por recurso à equidade, condenando a recorrente ao seu pagamento, mesmo na ausência de elementos de facto que o permitissem, criou um enriquecimento ilegítimo para A., em detrimento da Recorrente.
32. A A. quando instaurou o incidente de liquidação não juntou um único documento para fazer prova dos trabalhos alegadamente executados e materiais fornecidos pela Equipalimentar à agora recorrente.
33.A única prova produzida no decurso dos autos foi no sentido oposto ao alegado pela A., isto é, os depoimentos produzidos em sede de audiência de julgamento foram no sentido de que a Equipalimentar, Ldª não realizou quaisquer trabalhos nas instalações da agora recorrente.
34. Na ausência da prova que se tentou alcançar no incidente de liquidação, a decisão com recurso à equidade, confunde-se com arbitrariedade aplicada por parte do Tribunal.
35. Era à A. que incumbia carrear para os autos os elementos de prova mínimos que permitam partir para a aplicação de um juízo equitativo.
36. O incidente de liquidação “…pressupõe uma colaboração activa do autor, que tem o ónus da prova concreta dos danos e respectivo montante, e que não pode esperar obter vantagem com a falta de colaboração, a sua inércia ou a oposição a um maior aprofundamento da sua determinação. (…) A arbitrariedade não é consentida no direito.”
37.Nos presentes autos, não estamos apenas perante uma situação de insuficiência de prova dos alegados trabalhos executados e materiais fornecidos pela Equipalimentar, Ldª à recorrente, mas também perante uma situação em que a prova correu diametralmente no sentido oposto do alegado pela A., nomeadamente e repete-se, os depoimentos produzidos em sede de audiência vão no sentido de que a sociedade (Equipalimentar) não realizou quaisquer trabalhos nas instalações da agora recorrida.
38. Pelo que o acórdão agora posto em crise, ao condenar a recorrente no pagamento da quantia de €40.000 à A. por recurso à equidade, na total ausência de elementos que o permitissem, provocou um enriquecimento ilegítimo para a A.
39.O acórdão recorrido não podia ter lançado mão, como fez, da equidade, para decidir o recurso intentado, quer pela total ausência de elementos que o permitissem, quer perante uma sentença que considera que a prova produzida foi no sentido de que a Equipalimentar, Ldª não realizou quaisquer trabalhos nas instalações da agora recorrente.
40.Para ser proferida uma decisão de acordo com a equidade, é necessário ter um mínimo de elementos que permitam decidir em conformidade, de forma a não ocorrer uma decisão arbitrária e os presentes autos não reúnem tais elementos, nem mesmo indiciários.
41. A equidade aplicada nos presentes autos traduz tudo menos uma solução justa, porque decidida quando a prova produzida não só não concluiu quais os trabalhos executados pela Equipalimentar e materiais fornecidos, mas também quando a prova produzida foi no sentido de Equipalimentar, Ldª, não realizara quaisquer trabalhos nas instalações da recorrente.
42.Não obstante o acórdão agora posto em crise aludir para a sua fundamentação, ao disposto no artigo 566, nº3 do CC, que dispõe que se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o Tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, a verdade é que tal previsão não dispensa o lesado de alegar e provar os factos que revelem a existência de danos e permitam a sua avaliação segundo um juízo de equidade.
43.O que a A. não cumpriu.
44.Pois não existem elementos de prova.
45.Pelo que é notória a errada aplicação do direito no acórdão recorrido.
46.A A. em sede de incidente de liquidação de sentença, não logrou provar os factos que alegou, e não obstante o facto provado pelo acórdão de Relação de Coimbra, a ausência de qualquer prova de facto, não permite a prolação de uma decisão com recurso a uma suposta equidade,
47. Com o acórdão proferido a recorrente foi condenada, sem fundamento, a pagar à A. um valor totalmente arbitrário.
48.Pelo que o acórdão deve ser revogado, sendo proferida decisão que absolva a recorrente do pedido, conforme aliás já fora decidido na sentença proferida em primeira instância no incidente de liquidação.
49.O douto acórdão viola o disposto nos artigos 566º, nº 3 do CC, o artigo 342º, nº 1 do CPC, pelo que deve ser revogado, absolvendo-se a Recorrente do pedido.
Contra-alegou a A., apresentando as seguintes conclusões:
1. A decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto que condenou a recorrente ao pagamento à Autora da quantia de € 40.000,00 não é passível de qualquer censura ou crítica, devendo ser mantida nos seus termos.
2. Das alegações apresentadas pela Ré entende esta que foi feita uma incorrecta aplicação do instituto da equidade nos autos e, consequentemente, deveria ter sido absolvida do pedido deduzido pela Autora.
3. Ora, o recurso interposto do acórdão proferido no âmbito dos autos deverá ser julgado improcedente e mantida a decisão proferida.
4. Pois, conforme resulta dos autos, o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão já transitado em julgado considerou que existiram serviços prestados pela sociedade Equipalimentar à Ré e relegou para sede de incidente de liquidação da sentença a condenação desta.
5. Demonstrada a existência de um serviço – por decisão proferida já transitada em julgado – não pode a recorrida deixar de ser condenada a proceder ao pagamento do respectivo valor devido e acordado entre as partes.
6. Estabelece o artigo 358.º do Código de Processo Civil que o incidente de liquidação é o meio adequado para tornar líquido o pedido genérico.
7. Como se escreveu no acórdão do STJ de 7.11.2019 [6], “...a lei prevê um incidente próprio para resolver aquela indeterminação, ou seja, que serve, precisamente, para apurar ou tornar líquido o pedido genérico bem como o pedido específico que não seja possível confirmar enquanto tal [...] – o incidente de liquidação (antes designado “liquidação ulterior de sentença”), regulado actualmente nos artigos 358.º a 361.º do CPC[...].
8. Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.07.2019, “A liquidação é um incidente da instância com estreita ligação à ação que reconheceu a existência de um crédito, que não foi quantificado, quer por não ter sido possível, quer por o autor ter formulado um pedido ilíquido ou genérico”.
9. Com efeito, como faz notar o citado acórdão do STJ de 4.07.2019, “mesmo nos casos em que, no incidente de liquidação, não foi possível fazer a prova do valor exato dos créditos em causa, tal falta de prova não pode conduzir à improcedência da liquidação, pois, como afirma o Acórdão do STJ, de 14,07.2009 (processo nº 630-A/1996.S1) [...], isso equivaleria a um “non liquet” e violaria o caso julgado formado com a decisão definitiva que reconheceu a existência de um direito de crédito (apenas não quantificado), que, afinal, contraditoriamente, lhe seria negado, pelo que, para evitar uma tal injustiça e contradição, deve o julgador recorrer à equidade, nos termos do disposto no art. 566º, nº 3 do C. Civil”.
10. De acordo com este normativo, “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
11. Neste sentido foi decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 31.01.2020, disponível in www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve: “Relegado para liquidação em execução de sentença o apuramento do valor a receber pelo credor e uma vez que no incidente de liquidação não existe ónus da prova por parte do credor, no termo desse incidente terá que ser quantificado um qualquer crédito do credor sobre o devedor, recorrendo-se oficiosamente, se necessário, à prova pericial ou à equidade, sob pena de violação do caso julgado formado em torno da decisão em liquidação.”
12. Encontrando-se esgotados todas as possibilidades de determinar com precisão o montante devido, terá o Tribunal de recorrer ao princípio da equidade para proferir uma decisão adequada.
13. Foi pois nesta linha de orientação que foi tratada a questão pelo Tribunal da Relação do Porto.
14. E correctamente procedeu à condenação da recorrente na quantia de € 40.000,00 com base no princípio da equidade estabelecido legalmente e em conformidade com a decisão já transitada em julgado proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra que considerou a existência de diversos trabalhos prestados pela sociedade Equipalimentar.
15. Como se referiu, citando o Prof. Castanheira Neves, “… a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real, a justiça ajustada às circunstâncias, em oposição à justiça meramente formal.
Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da juridicidade. (...) A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto".
16. Assim sendo, perante o circunstancialismo apontado, consideramos que o valor fixado pelo acórdão recorrido não se afasta, por defeito, substancialmente e sem justificação adequada, dos critérios jurisprudenciais que vêm sendo adotados, pelo que deverá ser mantido.
17. E portanto, deverá o recurso interposto pela recorrida ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão proferida.


II – FACTOS PROVADOS.

Encontra-se provado nos autos:
1. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de Março de 2015, transitado em julgado, proferido no âmbito dos presentes autos, foi a ré condenada a pagar à autora “a quantia que se vier a liquidar em posterior incidente, correspondente ao crédito proveniente dos materiais fornecidos e trabalhos executados pela Equipalimentar, Lda., ao abrigo do acordo celebrado com a ré, até ao montante de 100 999,46 € (cem mil novecentos e noventa e nove euros e quarenta e seis cêntimos).” (art.º 1.º do requerimento de liquidação).

 
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

1- Incidente de liquidação (artigos 358º a 361º do Código de Processo Civil). Apuramento necessário de montante, que dessa forma se quantifica, por referência à obrigação genérica em que a requerida foi condenada na acção principal.

2 – Recurso à equidade. Quantificação possível do valor dos materiais fornecidos e dos trabalhos prestados pela requerente em favor da requerida.
Passemos à sua análise:
1- Incidente de liquidação (artigos 358º a 361º do Código de Processo Civil). Apuramento necessário de montante, que dessa forma se quantifica, por referência à obrigação genérica em que a requerida foi condenada na acção principal.
Na sentença proferida na acção principal, transitada em julgado, foi proferida a seguinte condenação genérica da Ré: “pagar à autora a quantia que se vier a liquidar em posterior incidente, correspondente ao crédito proveniente dos materiais fornecidos e trabalhos executados pela Equipalimentar, Lda., ao abrigo do acordo celebrado com a ré, até ao montante de 100 999,46 € (cem mil novecentos e noventa e nove euros e quarenta e seis cêntimos).”.
Tal significa que, na acção declarativa principal, por efeito da modificação operada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 371 a 406 quanto ao conjunto de factos provados e não provados, considerou-se demonstrado que a A. (ora requerente) forneceu alguns materiais e executou alguns trabalhos em favor da Ré (ora requerida), segundo o acordado entre ambas, cujo preço não foi integralmente pago, resultando assim um crédito de que a primeira é titular, em montante não apurado e que importará quantificar em sede de liquidação.
Assim sendo, já não é possível, no incidente de liquidação previsto nos artigos 358º a 361º do Código de Processo Civil, voltar a discutir a existência do fundamento desse mesmo crédito de que a requerente é reconhecidamente titular sobre a requerida.
Tal matéria – factual e jurídica - foi decidida, em termos definitivos, na acção principal, tendo havido lugar ao conhecimento do mérito da questão controvertida, sendo extraído segmento de cariz condenatório, que transitou em julgado.
No seu âmbito foram apurados determinados factos (com base na causa de pedir apresentada) com fundamento nos quais, por aplicação do pertinente enquadramento jurídico, foi reconhecida a existência de uma obrigação de pagamento que, a partir daí, deixou de ser questionável, não podendo voltar a ser objecto de apreciação (e muito menos de contradição), sob pena de directa, frontal e grosseira violação do caso julgado material (cfr. artigo 619º, nº 1, do Código de Processo Civil).
No subsequente incidente de liquidação, promovido pela vencedora da lide, o que está em causa é tão somente a operação de mera quantificação de uma obrigação jurídica concreta já anteriormente reconhecida quanto aos seus fundamentos de facto e de direito e que é, por isso mesmo, indiscutível.
Não se pode, portanto, reapreciar no incidente de liquidação se é devido algum montante pela requerida à requerente, mas apenas procurar, através da produção da prova pertinente, a expressão pecuniária concreta em que o (indiscutível) crédito se traduz.
Pelo que não é juridicamente aceitável que o julgador do incidente de liquidação tivesse chegado à conclusão de que tal obrigação – reconhecida através de sentença judicial transitada em julgado -, afinal não existia; não tinha base factual, ou correspondia à quantificação zero (o que equivaleria a dizer que não deveria ter sido reconhecido na acção anterior).
Tal conclusão extraída em 1ª instância constitui um perfeito contra-senso e uma insofismável violação dos efeitos do caso julgado material.
Neste ponto, o acórdão recorrido decidiu com inteira justeza, revogando a decisão de 1ª instância que, contrariando a sentença condenatória anterior, considerou não existir fundamento para quantificação alguma, decretando uma descabida absolvição do pedido, logicamente incompatível com o teor da anterior condenação judicial.
A questão que releva discutir-se-á, portanto, no plano dos critérios a utilizar para a quantificação da obrigação genérica já devidamente reconhecida.
(Sobre esta matéria, vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1º, Artigos 1º a 361º, Almedina 2021, 4ª edição, página 711, onde se refere: “Sendo a prova produzida pelas partes insuficiente para a fixação da quantia devida, deve o juiz completá-la oficiosamente, nos termos gerais do artigo 411º, ordenando designadamente a produção de prova pericial, nos termos do artigo 477º. Como último recurso, o juiz fixa equitativamente o montante da indemnização, nos termos do artigo 566º, nº 3, do Código Civil”; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado, Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1º a 702º”, Volume I), Almeida Fevereiro 2020, a página 435, onde se salienta: “Ocorrendo uma condenação genérica, nos termos do artigo 609º, nº 2, a liquidação deve ser requerida obrigatoriamente na acção declarativa, num incidente pós-sentença (nº 2). Certo é que a liquidação da sentença não pode servir para reabrir a discussão sobre se existe ou não a obrigação”; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2014 (relator Mário Morgado), proferido no processo nº 593/09.7TTLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2019 (relatora Rosa Tching), proferido no processo nº 5071/12.4TBVNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
Logo, a revista não pode proceder quando a recorrente pretende que se repristine a decisão de 1ª instância que, sem fundamentação jurídica adequada, considerou improcedente a liquidação.
2 – Recurso à equidade. Quantificação do valor dos materiais fornecidos e dos trabalhos prestados pela requerente em favor da requerida.
No incidente de liquidação apenas foi dado como provado o teor do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito qual, alterando o decidido em 1ª instância, se procedeu à dita condenação genérica.
Nada mais.
No que concerne à quantificação dessa obrigação genérica, fixada nos termos do artigo 609º, nº 2, do Código de Processo Civil, deixou-se consignado no acórdão recorrido:
“Neste contexto, o recurso à equidade deve remeter-nos, por falta de outros elementos de facto, para um valor de raciocínio próximo de 50% do peticionado.
Contudo, entendemos dever reduzir, também por recurso à equidade, este valor, atendendo a que a credora só esteve em obra na parte final, depois de ter saído a primeira empresa e atendendo igualmente ao facto de não ter concluído a obra.
Em face destes elementos e raciocínios, fixa-se a indemnização devida em € 40.000,00”.
Apreciando:
Concorda-se em que o único critério ao dispor do tribunal para a quantificação do crédito em causa só pode ser o da equidade, como ultima ratio, tomando em consideração os factos que foram dados como assentes na acção declarativa principal, conjugados com as alterações neles introduzida pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
Diga-se, a este propósito, que a decisão segundo a equidade traduz-se na denominada “justiça do caso concreto“, e tende a constituir um juízo especificamente adaptado ao peculiar circunstancialismo da situação sub judice, procurando encontrar o mais adequado e ponderoso equilíbrio entre os interesses em causa.
Escreve sobre esta temática Angel Latorre, in “Introdução ao Estudo do Direito”, Almedina, 1978, a pags. 118 a 119: “Nessa contínua adaptação da lei à infinita variedade dos problemas práticos que a vida suscita consiste o trabalho da equidade, que um juiz tem de ter sempre presente, e sem a qual a aplicação rígida do Direito poderia conduzir em hipóteses concretas a soluções injustas, segundo o velho adágio summum ius, summa iniuria. ( … ) Conciliar a vinculação à lei com a equidade ao julgar o caso concreto, encontrar equilíbrio entre a segurança e a justiça, respeitar o Direito estabelecido, mas aplicá-lo com sentido humano e com a consciência do que tem de único e irrepetível qualquer problema individual, constitui a servidão e a grandeza dos juízes “.
A resposta a dar pelo Tribunal, ao abrigo deste normativo, é aquela que parecer mais justa, atendendo apenas à especificidade do caso.
Escrevem Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado“, Volume I, pags. 54 a 55: “ …o que fundamentalmente interessa é a ideia de que o julgador não está, nesses casos, subordinado aos critérios normativos fixados na lei “.
Conforme salienta Oliveira Ascensão in “O Direito. Introdução e Teoria Geral“, pag. 477: “A resolução dos casos segundo a equidade contrapõe-se à resolução dos casos segundo o direito estrito. Pode haver regras e haver equidade, quando o juiz estiver autorizado a afastar-se da solução legal e a decidir de harmonia com as circunstâncias do caso singular. ( … ) (A equidade) está em condições de tomar em conta as circunstâncias do caso, que a regra despreza, como a força ou a fraqueza das partes, as incidências sobre o seu estado de fortuna, etc., para chegar a uma solução que se adapta melhor ao caso concreto, mesmo que se afaste da solução normal, estabelecida por lei.
De todo o modo, na equidade (…) não há por natureza aplicação da regra, antes há uma criação para o caso singular “.
Sobre esta matéria, vide António Menezes Cordeiro, in “A Decisão segundo a Equidade“, Revista “O Direito“, nº 122, II (Abril-Junho), a páginas 271 a 273 : “A decisão segundo a equidade é, pois, uma decisão tomada à luz do Direito e de acordo com as directrizes jurídicas dimanadas pelas normas positivas estritas. ( … ) A aproximação entre a equidade e o Direito positivo, aqui propugnada, não deve, porém, ser levada até uma total identificação. Quando as partes remeteram para uma decisão de acordo com a equidade, elas revelaram uma intenção de abdicar de parte, pelo menos, do Direito positivo. ( … ) Assim, haverá que partir do Direito estrito, expurgado de regras formais e limado de aspectos demasiados rígidos ; o resultado desse modo obtido poderá ser adaptado, dentro de certos limites, de modo a melhor corresponder ao equilíbrio buscado pelas partes. ( … ) O julgamento de equidade será assim, em última análise, sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas. Ele distinguir-se-á do puro julgamento jurídico por apresentar menos proposições sistemáticas e maiores empirismo e intuição. Mas as proposições objectivas a ter em conta, base de qualquer convencibilidade da própria decisão de equidade, serão sempre as historicamente mais adequadas. O Direito permite conhecê-las “.
Sobre o mesmo tema refere Manuel Carneiro de Frada, na comunicação do autor, em 16 de Julho de 2010, ao Congresso de Arbitragem Voluntária promovido pelo Centro de Arbitragem Voluntária da Associação Comercial de Lisboa: “As proposições, considerando as suas abstracção e generalidade, tenderiam para o típico ou geral, mas nem sempre levariam na devida conta as especificidades do caso, de resto muitas vezes insusceptíveis de antecipação pelo legislador: aqui interviria a equidade, corrigindo a justiça legal. Em contraste com a lei, a equidade representaria uma medida flexível, semelhante à régua que os arquitectos de Lesbos usavam e que tinha a propriedade de se adaptar aos contornos das pedras. Esta a matriz primordial da reflexão sobre a equidade“.
Sobre as finalidades da equidade, vide Inocêncio Galvão Telles in “Introdução ao Estudo do Direito“, Volume I, pags. 149 a 150, onde salienta: “A equidade visa temperar a rigidez da lei. Esta é formulada em termos genéricos, tendo em vista, sem dúvida, as circunstâncias reais da vida, mas numa perspectiva abstracta, sem descer às particularidades dos casos concretos. Dessa abstracção podem resultar, e resultam por vezes, desajustamentos entre a justiça da solução legal e a justiça desejável na hipótese individual submetida à apreciação do julgador. A equidade é o instrumento idóneo para afastar ou evitar estes desajustamentos. Daí a imagem aristotélica de equiparar a equidade à régua lésbica. A lei é como uma régua vulgar, que não se adapta às sinuosidades do objecto medido. A equidade é como uma régua lésbica, adoptada para certos efeitos na edilidade de Lesbos (daí o seu nome), com a particularidade de acompanhar os objectos nas suas irregularidades “.
Refira-se igualmente que ao Supremo Tribunal de Justiça compete controlar se a decisão recorrida coincide com aquela que deverá corresponder à decisão segundo o critério da equidade, verificando da justeza, adequação e equilíbrio do valor encontrado por esta via, aplicável à concreta e singular realidade que foi apurada nos autos.
(Sobre este ponto, vide a certeira e oportuna anotação de Miguel Teixeira de Sousa ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 2019, publicado in “Cadernos de Direito Privado”, nº 71, Julho/Setembro de 2020, a fls. 38 a 51).
Apresentando uma importante resenha jurisprudencial quanto à orientação da jurisprudência sobre o incidente de liquidação face à aplicação dos juízos de equidade, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2020 (relatora Fátima Gomes), proferido no processo nº 877/18.3YRLSB.S2, publicado in ECLI. PT.
Na situação sub judice, reconhecendo as dificuldades associadas à total ausência de fixação de matéria de facto em sede de incidente de liquidação, entende-se fazer relevar, para os efeitos de funcionamento do juízo de equidade, as seguintes circunstâncias essenciais, em conformidade com os factos dados como provados na acção principal:
-No ano de 2009, a requerente forneceu alguns materiais e instalou-os no matadouro da requerida, havendo trabalhadores seus tido participação em trabalhos que competiam à sociedade Mecanipol, Lda, mas que esta propôs que fossem realizados pela Equipalimentar, Lda., com a justificação de estar a atravessar “uma situação de graves dificuldades”.
-Porém, tais trabalhadores da requerente não concluíram esses trabalhos, que acabaram por ser finalizados pela própria requerida, com recurso a trabalhadores seus, da área da manutenção, beneficiando ainda do apoio e orientação de uma entidade terceira.
-Por conta da retribuição desses trabalhos, a requerida entregou à requerente o montante de € 10.000,00.
Ora, haverá que tomar em consideração:
-a manifesta exiguidade da prova produzida pela parte a quem incumbia o ónus da liquidação quanto ao valor dos trabalhos executados e dos materiais fornecidos;
-a circunstância de se tratar de um intervenção para a conclusão de trabalhos em curso, realizada já no decorrer da obra, a pedido de outra sociedade (com relações com a ora requerente) que provocou a sua “entrada em campo” devido, alegadamente, a estar a atravessar uma “situação de graves dificuldades”;
-ao elemento significante de os trabalhadores da requerente, chamados em desespero de causa para resolver os problemas em obra, durante a qual a Mecanipol, Lda., se revelarem incapazes, nem sequer tendo concluído os trabalhos a que se propuseram – não satisfazendo assim, no fundo, o interesse principal da entidade contratante –, e que foram finalizados pelos próprios trabalhadores da requerida, concluindo ela o serviço a cargo da entidade a quem tem agora de o pagar.
Assim, sem discutir ou colocar em crise o direito de crédito a liquidar, já reconhecido judicialmente, encontramo-nos perante a paradoxal situação em que a requerente prestadora está a exigir da requerida beneficiária, por esta via, a contrapartida pelo resultado de uma actividade que não começou nem conseguiu concluir, deixando à sua devedora a missão (que lhe competia) de a acabar em sua substituição.
Pelo exposto, tudo aponta, por um lado, para a relativa inconsistência e efémera duração da sua intervenção, e, por outro, para a objectiva ineficácia prática da sua actuação, enquanto entidade prestadora, que não atingiu, na sua integralidade, o fim contratual visado.
Assim sendo, o valor que importa quantificar em sede de liquidação deverá ser reduzido, de forma acentuada, para um patamar manifestamente inferior ao fixado no acórdão recorrido, não podendo, em termos equitativos, ser superior ao montante de € 20.000,00 (vinte mil euros), o que encontra a sua justificação, em termos equilibrados e ajustados, no carácter eminentemente provisório, inexplicavelmente inacabado e indubitavelmente ineficiente, do seu (fraco) desempenho em favor da requerida.
Os juros devidos contar-se-ão a partir da data do presente acórdão, na medida em que se trata de um valor actualizado por referência à mesma.
Procede, assim, parcialmente, a revista.
 
IV – DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em conceder parcial provimento à presente revista, liquidando o valor devido em € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescido de juros desde a data do presente acórdão.
Custas pela recorrente e recorrida na proporção do decaimento.

Lisboa, 10 de Maio de 2021.

Luís Espírito Santo (Relator).

Ana Paula Boularot.

Pinto de Almeida.

(Tem o voto de conformidade dos Exmºs Adjuntos Conselheiros Ana Paula Boularot e Fernando Pinto de Almeida, nos termos do artigo 15º A, aditado ao Decreto-lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, pelo Decreto-lei nº 20/2020, de 14 de Março).

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.