Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
46/08.0TBMIR.C2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
VIOLAÇÃO DE LEI
PRESUNÇÃO JUDICIAL
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO
ASSINATURA A ROGO
QUITAÇÃO
TORNAS
DOCUMENTO
IMPUGNAÇÃO
CONFISSÃO
VALOR PROBATÓRIO
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito e não julga de facto, a não ser em situações excepcionais, conforme impõe o art. 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26-8 (“Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece da matéria de direito”). Por isso, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça está limitada aos casos previstos no art. 674, n.º 3, (2.ª parte) e 682.º, n.º 3, CPC, ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (isto é, violação das regras direito probatório material), reenvio do processo para ampliação dos factos (devido ao vício da insuficiência) ou contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica.

II - O Supremo Tribunal de Justiça não pode interferir no juízo que a Relação faz com base na reapreciação dos meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como os depoimentos testemunhais, documentos sem força probatória plena ou uso de presunções judiciais.

III - Contudo, ao Supremo Tribunal de Justiça compete decidir se o uso de presunções judiciais ofende qualquer norma legal de proibição de presunções, se padece de manifesta ilogicidade ou se parte (base da presunção) de factos não provados.

IV - Os factos instrumentais, polibásicos da presunção judicial, podem constar da motivação do julgamento de facto.

V - No inventário do cônjuge supérstite, em incidente contra a relação de bens, em que foi relacionado o direito de crédito das tornas devidas por alguns interessados àquele, no âmbito do primeiro inventário, por pré-falecimento do marido, a declaração assinada a rogo pela inventariada mulher na qual declara ter recebido em mão as tornas, cujo teor foi impugnado, não constitui força probatória pela do efectivo pagamento, sendo de livre apreciação.

VI - A confissão extra-judicial escrita só vincula o confitente (e través dele o juiz) quando dirigida à parte interessada, se for feita a um terceiro ou ainda se contida em testamento será de livre apreciação.

VII - Deve ser havido como terceiro, para o efeito, o interessado herdeiro, cabeça de casal, a quem a declaração não é dirigida (por não ser devedor das tornas) e que relaciona tais créditos de tornas como créditos da herança.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – RELATÓRIO



1.1.- -AA -instaurou ( 11/2/2008) inventário para a partilha da herança aberta por óbito de BB, falecido em .../9/2007.

Deixou como herdeiros:

O cônjuge AA e os filhos CC, DD, EE, FF, GG e HH.


1.2. Em 7/6/2012 foi elaborado mapa da partilha ( fls. 621 a 624 ).

Dele consta que a interessada AA recebe tornas dos interessados:

DD- € 220.125.34

EE e marido II - € 116.625,33

HH - € 34.514,59.


1.3. Por sentença de 6/7/2012, transitada em julgado, foi homologado o mapa da partilha constante do mapa de fls. 621 a 624.

1.4. CC – instaurou ( em 30 de Agosto de 2013 ) inventário para partilha da herança aberta por óbito do cônjuge supérstite, AA, falecida em ... de Setembro de 2012.

Deixou como herdeiros:

1.CC

2. GG

3. Em representação do filho pré-falecido FF, os netos JJ, KK

LL

4. DD

EE

HH


1.5. O interessado CC foi nomeado cabeça de casal e apresentou relação de bens ( fls. 741 e 742).

Dela consta como direitos de crédito:

Verba 1

Direito de crédito relativo a tornas da inventariada, resultantes do inventario aberto por óbito do seu marido BB, de que são devedores os interessados DD e mulher, no valor de € 220.125,34.

Verba 2

Direito de crédito relativo a tornas da inventariada, resultantes do inventario aberto por óbito do seu marido BB, de que são devedores os interessados EE e marido no valor de € 116.625,33

Verba 3

Direito de crédito relativo a tornas da inventariada, resultantes do inventario aberto por óbito do seu marido BB, de que é devedor o interessado HH no valor de € 34.514,59


1.6. Os interessados DD, EE e HH deduziram (fls.782 e segs.) incidente de reclamação contra a relação de bens requerendo a exclusão dos créditos relacionados sob as verbas 1, 2 e 3, alegando o pagamento dessas tornas.

Para tanto, juntaram três recibos e indicaram testemunhas.

1.7. O interessado e cabeça de casal CC respondeu ( fls. 800 e segs.) tendo, além do mais, impugnado o teor dos documentos (recibos), alegando que os interessados nunca pagaram o valor das tornas.

1.8. Após a produção de prova, por sentença de 20/11/2017 ( fls. 1204 a 1206) decidiu-se julgar procedente a reclamação determinando-se a exclusão das verbas 1, 2 e 3 da relação de bens.

Julgou provados os seguintes factos:

A) A inventariada AA faleceu em ... .09.2012, no estado de viúva de BB, tendo os presentes autos sido instaurados por óbito deste.

B) Em 06.12.2012 foi proferida sentença homologatória, já transitada em julgado, da partilha efectuada nos presentes autos de inventário por óbito de BB ocorrido em ... .09.2007.

C) Nessa partilha os reclamantes ficaram obrigados a pagar tornas à então interessada AA, sendo o DD no valor de 220.125,34 €, a EE no valor de 116.625,33 € e HH no valor de 34.514,59 €.

D) Os interessados procederam ao pagamento das tornas devidas à inventariada em vida dela.


1.9. Por sentença de 12/6/2019 decidiu-se homologar a partilha constante do mapa de 30/4/1019: ( fls. 1269 a 1272):

“Nos presentes autos de inventário a que se procede por óbito de AA, ocorrido em ... .09.2012, homologo por sentença a partilha a que se procedeu, como se encontra no mapa de partilha datado de 04.03.21 (Ref. 04.03.21/fls. 1356 a 1360), em cuja conformidade adjudico os bens pelos respectivos interessados.

Custas conforme o disposto no art. 1383º do CPC. Registe e notifique.”


1.10. A Relação de Coimbra, por decisão singular de 7/11/2019 ( fls. 1308 e segs.), decidiu:

“Determinar que o tribunal recorrido fundamente a sua convicção proferida sobre o facto D), ajuizando sobre os factos instrumentais alegados pelo Recorrente, nos termos do art.662 nº2 d) Código de Processo Civil, sendo necessário que faculte ao recorrente pedir esclarecimentos sobre tais factos aos depoentes DD, EE e HH”.


1.11. Realizou-se julgamento e foi proferida ( 27/2/2020) sentença( fls. 1320 e segs.)  que decidiu:

Julgar improcedente o incidente de reclamação à relação de bens e manter na relação de bens as verbas nºs 1, 2 e 3 ( direitos de crédito”).

Julgou-se provado que:

A) A inventariada AA faleceu em ... .09.2012, no estado de viúva de BB, tendo os presentes autos sido instaurados por óbito deste.

 B) Em 06.12.2012 foi proferida sentença homologatória, já transitada em julgado, da partilha efectuada nos presentes autos de inventário por óbito de BB ocorrido em ... .09.2007.

C) Nessa partilha os reclamantes ficaram obrigados a pagar tornas à então interessada AA, sendo o DD no valor de 220.125,34 €, a EE no valor de 116.625,33 € e HH no valor de 34.514,59 €.

Julgou-se não provado que:

1. Os interessados procederam ao pagamento das tornas devidas à inventariada em vida dela.

O tribunal justificou a decisão de facto da seguinte forma:

“Para formar a sua convicção o tribunal fez uma análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em julgamento e documentos juntos aos autos. A matéria descrita de A) e C) resulta das peças processuais constantes dos autos, centrando-se o litígio na verificação do pagamento das tornas. O facto não provado resulta da insuficiência de prova quanto ao mesmo e da dúvida criada pela demais prova produzida. Não obstante o teor dos recibos reconhecidos notarialmente e datados de 04.05.12 juntos aos autos pelos reclamantes nos quais a inventariada declara ter recebido em mão as quantias devidas pelos reclamantes para pagamento das tornas que lhe são devidas no inventário do seu falecido marido (cfr. fls. 783 a 788), a verdade é que, conforme foi referido na Decisão proferida pelo Tribunal da Relação, os mesmos não fazem prova plena e são apreciados livremente (…)”.

As testemunhas ouvidas não revelaram conhecimento directo ou indirecto acerca do pagamento das tornas.

Ainda que a prova constituída pelos referidos recibos indicie o pagamento, a demais prova produzida, designadamente através das declarações dos reclamantes e dos documentos juntos aos autos, conjugada com as regras da experiência comum, contraia tal factualidade, tornando-a duvidosa.

Assim, o requerimento de 07.05.12 (fls. 609 a 611) apresentado na pendência do inventário do cônjuge da ora inventariada através do qual os ora reclamantes pedem a prorrogação do prazo para proceder ao pagamento de tornas invocando necessidade de cumprir formalidades bancárias, tendo data muito próxima à dos recibos e sugerindo falta de liquidez, tornam duvidoso o declarado pagamento.

Os interessados reclamantes, em depoimento de partes, mantiveram a alegação do pagamento das tornas, não prestando, contudo, esclarecimentos convincentes e totalmente coerentes entre si. Assim, enquanto DD e HH deram conta que os recibos foram feitos já depois de estar tudo pago e que a mãe, quando passou a residir alternadamente em casa dos seus filhos, ora reclamantes, não trazia consigo dinheiro algum, EE referiu o contrário, sendo que, quanto ao dinheiro, explicou que a mãe o guardava numa carteirinha preta e que o mesmo desapareceu no hospital. Todos os depoentes disseram desconhecer o paradeiro do dinheiro que alegaram ter pago à inventariada, quando a mesma, em momento coincidente ou muito próximo, estava aos seus cuidados. E, pese embora os valores em causa, nada fizeram para tentar descobrir o seu paradeiro, nem, aparentemente, estranharam o desaparecimento de cerca de 370.000 € em poucos meses, quando não há notícia que a inventariada tenha sido alvo de furto, roubo ou burla, e nem eles, nem qualquer testemunha conhecia à inventariada hábitos de prodigalidade, vícios, despesas extraordinárias ou dívidas que justificassem tal gasto.

Por outro lado, não se afigura verosímil nem o pagamento em numerário de quantias da ordem da grandeza das que estão em questão nestes autos, nem a guarda avulsa de tais quantias em carteiras de senhora.

Acresce que, os documentos juntos aos autos, designadamente declarações fiscais, não comprovam a capacidade financeira dos interessados para proceder ao pagamento das tornas sem recorrerem a empréstimos, o que também não tem suporte documental.

Face à dúvida criada a respeito do pagamento indiciado pelos recibos juntos pelos interessados reclamantes, o Tribunal consignou tal factualidade como não provada nos termos do art. 346º do CC”.


1.12. Por sentença de 14/6/2021 ( flsl 1367) decidiu-se homologar  o mapa da partilha de 4/3/2021.

“Nos presentes autos de inventário a que se procede por óbito de AA, ocorrido em ... .09.2012, homologo por sentença a partilha a que se procedeu, como se encontra no mapa de partilha datado de 04.03.21 (Ref. 04.03.21/fls. 1356 a 1360), em cuja conformidade adjudico os bens pelos respectivos interessados.

Custas conforme o disposto no art. 1383º do CPC. Registe e notifique”


1.13. Os Reclamantes DD, HH e EE recorreram de apelação.

O Cabeça de Casal contra-alegou o recorreu subordinadamente da seguinte decisão:

“Ref. 12.03.21: O requerido – que sejam pagos no processo de inventário, através de tornas os direitos de crédito relacionados sob as verbas nºs 1, 2, e 3 – não encontra respaldo na lei.

Por outro lado, estando já depositadas as tornas devidas, não tem qualquer utilidade a elaboração de mapa informativo.

Pelo exposto, indefere-se o requerido.”


1.14. A Relação, por acórdão de 17/3/2022 ( fls. 1423 e segs.),  decidiu:

“Julga-se o recurso principal improcedente, confirmando-se a decisão recorrida relativa à manutenção das verbas 1 a 3 (direitos de crédito).

Julga-se o recurso subordinado procedente e determina-se a feitura de novo mapa da partilha, para determinação do excesso nos quinhões dos aqui Recorridos, com a consequente lavra de mapa informativo com as tornas a pagar e a receber pelos respetivos interessados.

Custas pelos Recorrentes principais (Recorridos no subordinado)”


1.15. Inconformados, os interessados reclamantes/DD, HH e EE recorreram de revista, com as seguintes conclusões:

A) O presente recurso de revista tem por base o incidente de reclamação contra a relação de bens, sendo que, nesse incidente os ora recorrentes reclamavam do relacionamento entre os bens deixados pela inventariada AA das quantias que, no anterior inventário por óbito do respectivo cônjuge lhe caberiam a título de tornas, pois que (alegam os reclamantes) já lhe haviam pago essas tornas e apresentavam recibo comprovativo desse pagamento.

B) A decisão singular do Tribunal da Relação ordenou a baixa do presente processo “para que Tribunal recorrido fundamente a sua convicção na decisão proferida sobre o facto D), ajuizando sobre os factos instrumentais alegados pelo recorrente, nos termos do art.662°, n° 2, d), do Código de Processo Civil, sendo necessário que faculte ao Recorrente pedir os esclarecimentos sobre tais factos aos depoentes DD, EE e HH”.

C) Portanto, essa referida decisão singular não revogou a anterior decisão da matéria de facto, na qual se consignava que “D) Os interessados procederam ao pagamento das tornas devidas à inventariada em vida dela”, pelo que ao alterar a decisão da matéria de facto, o despacho pela segunda vez agora decidiu as reclamações, bem como o acórdão ora recorrido que o confirmou, violaram o caso julgado formal constituído por essa decisão em sede de matéria de facto.

D) A decisão proferida por essa decisão singular manteve a decisão da primeira instância, apenas obrigando a mais detalhada fundamentação e à ponderação de factos instrumentais, mas não alterou a matéria de facto considerada provada anteriormente, pelo que se manteve como provado, o facto constante da al. D), ou seja, que “Os interessados procederam ao pagamento das tornas devidas à inventariada em vida dela”.

E) Ao não considerar este caso julgado, que se forma apenas sobre a decisão proferida, o acórdão ora recorrido violou o caso julgado constituído nessa parte pela decisão singular anterior.

F) Há que ampliar, porém, a matéria de facto, muito escassa, para que o problema seja colocado em toda a sua dimensão, pois no despacho que decidiu a reclamação, foram apenas considerados provados os seguintes factos:

A) A inventariada AA faleceu em ... .09.2012, no estado de viúva de BB, tendo os presentes autos sido instaurados por óbito deste.

B) Em 06.12.2012 foi proferida sentença homologatória, já transitada em julgado, da partilha efectuada nos presentes autos de inventário por óbito de BB ocorrido em ... .09.2007.

C) Nessa partilha os reclamantes ficaram obrigados a pagar tornas à então interessada AA, sendo o DD no valor de 220.125,34 €, a EE no valor de 116.625,33 € e HH no valor de 34.514,59 €.

G) É que existe a prova documental constituída pelos recibos emitidos pela falecida AA. e por outro lado, a prova produzida em sede de audiência.

H) Nos recibos juntos em 3/7/2014 – referência CITIUS ... -, a falecida AA declara, em ... de Maio de 2012, em recibos emitidos que recebera as tornas que lhe eram devidas e, além disso, em tais recibos assinados a seu rogo, na presença do notário que atestou essa declaração, a falecida declara ainda dá quitação integral e sem reservas da importância recebida a todos e cada um dos pagadores.

I) Juntos esses recibos aos presentes autos, não foram impugnados pelo cabeça-de-casal, pelo que se têm como verdadeiras as declarações prestadas, pelo que deveriam ser aditados mais 4 factos aos factos provados, a saber:

E) Por recibo de 4 Maio de 2012, AA, cabeça-de-casal nos autos de Inventário (Herança) - Proc. nº. 46/08.0TBMIR -, os quais correram termos pelo Tribunal Judicial ..., declara “para todos os devidos e legais efeitos que recebeu em mão, do interessado DD e mulher MM, residentes na Avenida ..., ... ..., a quantia de € 220 125,34 (duzentos e vinte mil, cento e vinte e cinco euros e trinta e quatro cêntimos), para pagamento das tornas que lhe são devidas no inventário acima identificado, conforme mapa informativo rectificado”.

F) Por recibo de 4 Maio de 2012, AA, cabeça-de-casal nos autos de Inventário (Herança) - Proc. nº. 46/08.0TBMIR -, os quais correram termos pelo Tribunal Judicial ..., declara “para todos os devidos e legais efeitos que recebeu em mão, da interessada EE e marido II, casada, residente na Av.ª ..., ... ..., a quantia de € 116 625,33 (cento e dezasseis mil, seiscentos e vinte e cinco euros e cinquenta e trinta e três cêntimos), para pagamento das tornas que lhe são devidas no inventário acima identificado, conforme mapa informativo rectificado”.

G) Por recibo de 4 Maio de 2012, AA, cabeça-de-casal nos autos de Inventário (Herança) - Proc. nº. 46/08.0TBMIR -, os quais correram termos pelo Tribunal Judicial ..., declara “para todos os devidos e legais efeitos que recebeu em mão, do interessado HH, casado, residente na Rua ... ..., a quantia de € 34 514,59 (trinta e quatro mil, quinhentos e catorze euros e cinquenta e nove cêntimos), para pagamento das tornas que lhe são devidas no inventário acima identificado, conforme mapa informativo rectificado”.

H) todos os recibos têm o reconhecimento da assinatura “a rogo de AA, cujo rogo foi dado na minha presença pela própria rogante, pessoa a quem li o documento e cuja identidade verifiquei pela exibição do seu Bilhete de Identidade n.º ... de 14/02/2008 emitido pelos Serviços de Identificação Civil de ..., a qual declarou não poder assinar e vai apor a sua impressão digital”.

J) Os recibos juntos pelos ora recorrentes são documentos particulares, cuja assinatura está reconhecida notarialmente, pois a declarante não sabia assinar – facto que é reconhecido pelo cabeça-de-casal – e tendo a assinatura de ser feita a rogo, tinha de o ser de forma presencial no notário, pelo que ao presente caso é aplicada a doutrina que consta dos artigos 373º a 376º ainda do Cod. Civil.

K) No caso dos autos, a assinatura a rogo da declarante e ora inventariada, AA, foi feita a seu rogo, por não saber assinar e o cabeça-de-casal expressamente declarou nas suas alegações, aliás, como já o fizera anteriormente, que reconhecia como verdadeiro o reconhecimento de assinatura feito no Cartório Notarial ..., pelo que, em momento algum, pôs em causa a sua regularidade formal, pelo que se não colocam problemas de falsidade.

L) Atento o facto de o Supremo Tribunal ter de emitir a sua decisão sobre os factos materiais fixados pela Relação, deve o STJ ordenar a baixa do processo ao Tribunal da Relação, a fim de ser ampliada a matéria de facto que possa servir de base suficientes para a decisão de direito. - Cfr. artºs. 682º., nº. 3 e 683º, nº 1., ambos do Cod. Proc. Civil.

M) O acórdão recorrido considera que com base em diversos “factos” ditos instrumentais conclui pelo não pagamento das tornas, ou seja, verifica-se aqui o recurso a presunções judiciais, sem que constem da matéria de facto declarada como provada, os factos conhecidos de onde se inferem os factos desconhecidos, pelo que a declaração que não houve pagamento é uma conclusão não alicerçada em factos, sobretudo quando há recibos passados.

N) É que foi concluído que não houve pagamentos, porque os filhos devedores das tornas declararam não saber o que a Mãe fez ao dinheiro, nada fizeram para descobrir o paradeiro do dinheiro, mas não se entende por que razão o haviam de fazer, nem que devessem controlar a mãe.

O) Além disso, não havendo notícia de furto, roubo ou burla, e não se conhecendo à inventariada hábitos de prodigalidade, vícios, despesas extraordinárias ou dívidas que justificassem o gasto de quantia tão avultada, sendo certo que também não há notícia do contrário e os outros filhos que agora reclamam as quantias já pagas é que o deveriam ter feito, sendo que as declarações fiscais dizem respeito aos anos mais recentes, mas as poupanças são de anos, pelo que nada se pode concluir das mesmas.

P) Nestas ditas presunções judiciais, não alicerçadas em factos concretos provados, mas com fundamento em verosimilhança, não podem considerar-se como instrumentais os factos com base nos quais, em completa ausência de prova, a decisão ora em recurso considerou existirem para dar como não provados os pagamentos que a credora afirmou terem sido pagos por recibos por si assinados a rogo com a sua concordância.

Q) Sendo sindicável a correção do uso da prova por presunções judiciais, vis a vis a obtenção de um resultado harmónico com a verdade material - em termos de justeza e plausibilidade – como matéria de direito que indiscutivelmente é, deve poder ser sindicado em sede de recurso de revista.

R) O acórdão recorrido pronuncia-se sobre o valor probatório dos recibos juntos – matéria de direito – sem que se tenha previamente admitido a sua existência – matéria de facto, pelo que tem que ser ordenada abaixa do processo para que o Supremo Tribunal possa, em sede de recurso de revista, pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas.

S) É que, como já foi decidido pelo STJ, no seu acórdão de 14-5-2019, Proc. 930/12.7TBPVZ.P1.S1, cujo relator foi o Cons. Raimundo Queirós a confissão extrajudicial do pagamento de tomas exarada pelo confitente em documento autêntico (escritura pública de partilhas) feita ao respetivo credor, nos termos e para os efeitos dos n°s 1 e 2 do art° 358° do CC, terá força probatória plena e só pode ser destruída com base na falsidade do documento (art° 372º., nº.1 do Cod. Civil), pelo que, nesse caso «não tendo os autores provado a falsidade do documento, nem os elementos integradores da falta ou vício da vontade, a ação não poderia proceder».

T) No caso de documentos particulares, com assinatura a rogo reconhecida presencialmente pelo notário, não sendo o confitente parte no processo em que a confissão do pagamento é feita, estamos perante uma confissão extrajudicial escrita, realizada por documento particular, a sua admissibilidade e valor probatório está sujeita às mesmas restrições da prova testemunhal – artº. 358º., nºs. 3 e 4 do Cod. Civil.

U) Convém ter aqui presente que, nos termos do artº. 358º., nº. 2 do Cod. Civil, a confissão extrajudicial constante de documento particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a esses documentos e, se feita à parte contrária ou a quem a represente, assume força probatória plena

V) Já LEBRE DE FREITAS, na sua obra Confissão no Direito Probatório (1990), págs. 327 e segs, entre as excepções ao princípio (regra) da eficácia subjetiva plena restrita ao confitente, admitia a eficácia da confissão perante o herdeiro do confitente, como sucede nos presentes autos.

X) Conforme refere o Cons. Ferreira de Almeida, no seu Direito Processual Civil, vol. II, 2ª. Edição, pág. 307, “a prova da autoria do documento particular pode também ser estabelecida por reconhecimento presencial da assinatura, cujo termo constitui um verdadeiro documento autêntico, no qual o notário atesta que a assinatura é produzida na sua presença ou que o signatário está presente no ato, assim como a forma como verificou a sua identidade (artºs 153º., nº. 5 e 155º, nº. 2, do Código do Notariado). A impugnação da genuinidade de documento particular opera-se através do procedimento previsto nos artºs 444º. e 445º. (do Cod. Proc. Civil)”.

Y) E acrescenta o mesmo autor que “Se estabelecida a autoria por reconhecimento presencial da assinatura, constante do respetivo termo de autenticação (artºs 153º, nº 5 e 155º, nº 2, do Cod. Notariado), constitui o documento particular um verdadeiro documento autêntico, desde que a atestação notarial preencha os «requisitos essenciais (de origem), ficando assim o documento particular dotado da mesma força probatória daquele provando plenamente a autoria do documento».

Z) Os recibos juntos pelos ora recorrentes são documentos particulares, cuja assinatura está reconhecida notarialmente, pois a declarante não sabia assinar – facto que é reconhecido pelo cabeça-de-casal – e tendo a assinatura de ser feita a rogo, tinha de o ser de forma presencial no notário e nesse reconhecimento refere-se expressamente que o documento lhe foi lido e explicado à declarante, pelo que, ao presente caso, é aplicada a doutrina que consta dos artigos 373º a 376º ainda do Cod. Civil.

AA) Os documentos juntos pelos ora recorrentes têm a sua autoria reconhecida nos termos do artº. 373º e 375º, ambos do Cod. Civil, pelo que fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, neste caso, a inventariada AA, pelo que, nos termos do normativo legal referido, está plenamente provado que a inventariada AA, “recebeu em mão” de cada um dos recorridos, identificado em cada recibo, as quantias aí referidas numericamente e por extenso, “para pagamento das tornas que lhe são devidas no inventário acima identificado, conforme mapa informativo rectificado”.

BB) O nº. 2 do citado artº. 376º determina os limites da prova plena e que são, serem as declarações “contrárias aos interesses do declarante”.

CC) Para poderem contrariar a referida prova plena das declarações contrárias aos interesses da inventariada, ou seja, que já recebera as quantias constantes dos recibos que provar “não ser verdadeiro o facto que dela for objecto”, conforme determina o artº. 347º do Cod. Civil, pois que, mesmo na presença do notário, onde a referida AA se deslocou ela deu o seu rogo à assinatura do recibo depois de o mesmo lhe ter sido lido e explicado, ou seja, a inventariada AA sabia e tinha consciência que já havia recebido o dinheiro das tornas.

DD) A ausência de movimentos bancários, bem como a falta de declaração fiscal de rendimentos não tem sequer a virtualidade de abanar as declarações emitidas pela inventaria AA, pois é comum nas nossas aldeias as pessoas nem sequer depositarem muito dos dinheiros que vão recebendo das suas produções agrícolas ou piscatórias, como é o caso, que vão aforrando em casa, ao longo de anos.

EE) Também em sede de revista, não pode deixar de censurar-se a forma como o acórdão recorrido, aliás na esteira da sentença de 1ª. instância lança mão de uma série de presunções judiciais, aparentemente razoáveis e plausíveis, mas todas sem qualquer suporte na realidade fáctica, pelo que deve ser revogado o acórdão ora recorrido, na parte em julgou improcedente a reclamação contra a relação de bens, por carecer de qualquer fundamento fáctico, nas presunções utilizadas.

FF) Face ao exposto, nem sequer foi colocado em dúvida o pagamento das quantias de que os recibos são de quitação, pelo que também se não demonstrou que não sejam verdadeiras as declarações de recebimento feitas pela inventariada AA, nos recibos juntos pelos reclamantes e esse ónus cabia ao cabeça-de-casal, pois era ele que tinha de demonstrar que esses factos não eram verdadeiros, atenta a presunção legal de que tais factos se consideram provados na exacta medida em que eram contrários aos interesses da declarante, que assim via extinguir-se o seu crédito, sendo que essa presunção legal consta do nº. 2 do artº. 376º do Cod. Civil.

GG) Aliás, é das regras da experiência (e é hoje doutrinal e jurisprudencialmente pacífico que o Supremo pode socorrer-se de presunções judiciais) que ninguém passa um recibo de quitação total, aceitando que seja assinado um documento, sem que tenha efectivamente recebido a quantia aí referida e que era devida, o que é uma presunção judicial ou natural, que os julgadores têm em consideração na formação da sua convicção, nos termos do artº. 351º. do Cod. Civil

HH) Não se alcançando por qualquer outro meio de prova a certeza de que o pagamento foi ou não feito, nem se aceitando que os recibos emitidos por AA fazem prova plena das suas declarações, ficam a prevalecer esses recibos emitidos pela credora das tornas, nos quais refere as quantias pagas e o modo como lhe foram pagas, ainda que livremente apreciados.

II) Por fim, a questão de saber se as partes podem acordar sobre os procedimentos processuais, como eventualmente, terá ocorrido nos presentes autos ou se nessa parte o acordo é inválido, pois existem normas próprias.

JJ) O mapa informativo é um instrumento processual, cujos pressupostos constavam do artº. 1376º. do Cod. Proc. Civil aplicável, que é o que resulta da reforma de 1995, promovida pelo Dec. Lei nº. 392-A/95, de 12 de Dezembro, que, no seu nº. 1, determinava que “se a secretaria verificar, no acto da organização do mapa, que os bens doados, legados ou licitados excedem a quota do respectivo interessado, lançará no processo uma informação, sob a forma de mapa, indicando o montante do excesso” e, no caso dos presentes autos, as tornas a pagar não provêm de qualquer excesso de bens doados, legados ou licitados, mas de uma quantia que diz respeito a créditos supostamente não pagos de tornas em inventário anterior, pelo que não estava o escrivão obrigado a elaborar mapa informativo.

KK) É que o mapa informativo tem em vista os procedimentos constantes dos artigos seguintes, ou seja, o artº. 1377º., no caso de licitação em verbas de valor superior à quota de cada interessado e o artº. 1378º., que abrange os casos de verbas doadas ou legadas que devam ser adjudicadas aos devedores de tornas e não se verifica, no caso dos autos, nenhuma das situações.

LL) Face aos factos referidos que estão provados, não podendo o Supremo Tribunal alterar a decisão da matéria de facto, deve ordenar-se a baixa do processo para ampliação da matéria de facto, nos termos expostos, de modo a constituir base suficiente para a decisão de direito na questão da reclamação contra a relação de bens.

MM) Além disso, deve também ser revogado o acórdão recorrido na parte em que ordenou a elaboração de mapa informativo, que ao caso não cabe, violando o disposto no artº. 1376º. do CPC aplicável aos presentes autos.


1.16.- O interessado CC contra-alegou, com as seguintes conclusões:

1. A presente Revista carece de qualquer razão legal ou moral, pelo que terá de improceder;

2. A presente Revista não pode ser, pelo menos parcialmente, admitida sob pena de violação do nº 3 do art.º 671 do CPC, na parte concernente à impugnação da matéria de facto da reclamação à relação de bens, porquanto o Douto Acórdão do Tribunal da Relação, ora em crise, confirmou a decisão proferida na 1ª Instância, sem voto de vencido e com a mesma e exacta fundamentação, não estando em causa nenhuma das situações previstas no art.º 672º do mesmo diploma;

3. Este Supremo Tribunal não pode também conhecer da questão do valor probatório dos alegados “recibos” porquanto sobre a mesma formou-se caso julgado formal nestes autos, uma vez que a mesma já foi apreciada e julgada na decisão sumária do Tribunal da Relação ... de 07.11.2019, esta, com que todos os intervenientes processuais se conformaram e da qual não recorreram, pelo que transitou em julgado;

4. Inexiste qualquer fundamento que permita ou justifique qualquer censura ao Acórdão em crise, pelo que deve o mesmo ser mantido nos seus precisos termos;

5. Em função do determinado pela decisão da Relação de 07.11.2019, era lícito e lógico que a primeira instância procedesse a uma reavaliação de toda a fundamentação da decisão inicialmente tomada, e, em sua consequência natural procedesse à alteração do sentido da resposta, como veio a acontecer.

6. Os alegados “recibos”, cuja valoração era de livre apreciação do Tribunal por no caso não terem força probatória plena, foram impugnados quanto à veracidade do seu conteúdo, nunca tendo os ora recorrentes logrado produzir prova que confirmasse o efectivo pagamento neles afirmado, e cuja prova era da sua responsabilidade;

7. Em lado algum em tais documentos se encontra atestado qualquer facto com base na percepção da entidade documentadora para além do motivo de os mesmos haverem sido assinados a rogo por a inventariada não saber assinar.

8. Em sede de conferência de interessados deliberaram todos os interessados por unanimidade na adjudicação de todos os bens constantes da relação na proporção dos respectivos quinhões.

9. Além disso deliberaram ainda que “Os interessados DD, EE e HH enquanto sujeitos passivos dos créditos constantes das verbas 1, 2, 3, 4 e 5 pagarão os valores que resultarem do mapa informativo, o excesso sobre os seus quinhões sobre a forma de tornas” (verificando-se na respectiva acta um lapso ao mencionar-se aqui a verba 5);

10. Às deliberações da conferência de interessados, a que presidiu, a Meritíssima Juíza a quo, não fez qualquer reparo ou objecto, apenas determinando às partes o darem forma à partilha, o que veio a acontecer; Porém,

11. A deliberação transcrita supra no ponto 9 destas conclusões nunca veio a ser levada ao mapa informativo da partilha, mesmo após a competente reclamação, tendo sido indeferida com o fundamento exclusivo de que tal pretensão “não encontra respaldo na lei”;

12. O conteúdo vertido na mencionada cláusula foi essencial para o ora recorrido e outros interessados aceitarem a globalidade do acordo obtido;

13. O conteúdo de tal deliberação unânime dos interessados não viola nenhum princípio ou norma legal aplicável, não é proibido, não é ofensivo da boa-fé ou bons costumes nem constitui Abuso de Direito;

14. O objecto e conteúdo de tal acordo está na disponibilidade das partes (não é um direito indisponível), está dentro da sua liberdade negocial (art.º 405º do CC) e foi unânime quanto ao seu assentimento, tornando tal declaração negocial perfeita (art.º 217º e 232º - a contrario sensu – ambos do CC).

15. A conferência de interessados, não se verificando qualquer das circunstâncias referidas nas duas conclusões anteriores, é soberana nas suas decisões, nas mesmas não podendo interferir o magistrado, impedindo a produção dos seus efeitos.

16. Tal cláusula é assim válida e legal e tem de ser respeitada por todos – começando, é claro, pelo próprio Tribunal.

17. Ao ter decidido como decidiu, violou o mencionado despacho da 1ª instância as disposições dos art.º 1353º, 1374º, 1375º a 1377º, 1379º e 1382º do CPC aplicável, bem como dos art.º 217º, 232º, 405º e ss. todos do CC.

18. Pelo que, e muito bem, em 2ª Instância, foi revogado e substituído por outro que determinou a feitura de novo mapa da partilha levando em consideração integral tudo o deliberado em sede de conferência de interessados, designadamente, para determinação do excesso nos quinhões dos aqui Recorridos, com a consequente lavra de mapa informativo com as tornas a pagar e a receber pelos respetivos interessados;

19. Decisão, esta, que também nesta parte deve ser mantida nos precisos termos exarados pelo Tribunal da Relação.

Termos em que, deverá a presente Revista:

Não ser admitida por violação do art.º 671º nº 3 do CPC, na parte relativa ao pedido de alteração da matéria de facto relativa à reclamação à relação de bens; em qualquer dos casos, e mesmo que assim não fosse entendido;

Ser julgada não provada e improcedente, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão proferida em 2ª Instância em 17.03.2022, relativamente a toda a matéria da mesma objecto.



II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – A (in)admissibilidade da revista

Considerando a pretensão recursiva dos revistantes, impõe-se, desde logo, aferir da “dupla conforme”, quanto à (in) admissibilidade do recurso, dada a questão prévia suscitada.

A existência de “dupla conforme” pressupõe um requisito subjectivo (ausência de voto de vencido) e dois requisitos objectivos –a conformidade decisória (reportado à decisão) e a conformidade essencial de fundamentação ( incidindo sobre a fundamentação)

Na situação dos autos verifica-se que a Relação confirmou a sentença da 1ª instância (confirmação decisória da improcedência do incidente da reclamação de bens )) e de fundamentação.

A propósito da expressão “sem fundamentação essencialmente diferente”, o STJ tem adoptado orientação que se pode resumir do seguinte modo -  “ Só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações, normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância” (cf. Ac STJ de 19/2/2015 ( proc. nº 302913/11.6YIPRT.E1.S1)

Uma vez verificada a dupla conforme, em princípio não é admitida a revista (normal ), salvo nos casos em que o recurso é sempre admissível ( art.671 nº3 CPC).Ora, uma das situações em que o recurso é sempre admissível é o previsto no art.629 nº2 a) (in fine ) CPC, com fundamento na ofensa de caso julgado.

Por outro lado, não ocorre dupla conforme quanto à alegada violação das regras processuais no tocante à apreciação da prova pela Relação ( violação do direito probatório material), como é jurisprudência deste Supremo.

Improcede a questão prévia da inadmissibilidade da revista.


2.2. – O objecto da revista

A violação do caso julgado

O valor probatório dos documentos ( recibos)

A presunção judicial

A determinação de novo mapa da partilha.


2.3. – As instâncias deram como provado

A) A inventariada AA faleceu em ... .09.2012, no estado de viúva de BB, tendo os presentes autos sido instaurados por óbito deste.

B) Em 06.12.2012 foi proferida sentença homologatória, já transitada em julgado, da partilha efectuada nos presentes autos de inventário por óbito de BB ocorrido em ... .09.2007.

C) Nessa partilha os reclamantes ficaram obrigados a pagar tornas à então interessada AA, sendo o DD no valor de 220.125,34 €, a EE no valor de 116.625,33 € e HH no valor de 34.514,59 €.


2.4.- E julgaram não provado que:

Os interessados procederam ao pagamento das tornas devidas à inventariada em vida dela.


2.5. A violação do caso julgado

Alegam os recorrentes que

A decisão singular do Tribunal da Relação ao ordenar a baixa do presente processo - “para que Tribunal recorrido fundamente a sua convicção na decisão proferida sobre o facto D), ajuizando sobre os factos instrumentais alegados pelo recorrente, nos termos do art.662°, n° 2, d), do Código de Processo Civil, sendo necessário que faculte ao Recorrente pedir os esclarecimentos sobre tais factos aos depoentes DD, EE e HH” - não revogou a anterior decisão da matéria de facto, na qual se consignava que “D) Os interessados procederam ao pagamento das tornas devidas à inventariada em vida dela”, pelo que ao alterar a decisão da matéria de facto, o despacho pela segunda vez agora decidiu as reclamações, bem como o acórdão ora recorrido que o confirmou, violaram o caso julgado formal constituído por essa decisão em sede de matéria de facto.

A decisão proferida por essa decisão singular manteve a decisão da primeira instância, apenas obrigando a mais detalhada fundamentação e à ponderação de factos instrumentais, mas não alterou a matéria de facto considerada provada anteriormente, pelo que se manteve como provado, o facto constante da al. D), ou seja, que “Os interessados procederam ao pagamento das tornas devidas à inventariada em vida dela”.

O Recorrido objecta dizendo que em função da decisão da Relação de 7/11/2019 era lógico e lícito que a primeira instância “procedesse a uma reavaliação de toda a fundamentação (…)” e ao consequentemente procedesse à alteração de facto ( alínea D) ).

A sentença de 20/11/2017 julgou provado o facto D) – “Os interessados procederam ao pagamento das tornas devidas à inventariada em vida dela”, com fundamento na força probatória plena dos documentos particulares ( recibos), assinados a rogo.

A Relação, muito embora mencione o art.662 nº2 d) CPC, a verdade é que determina que o tribunal da 1ª instância não apenas fundamente a sua convicção sobre o facto D), mas acrescenta “ajuizando os factos instrumentais alegados pelo Recorrente (…) sendo necessário que faculte ao Recorrente pedir os esclarecimentos sobre tais factos aos depoentes DD, EE e HH”.

A interpretação que se colhe da parte decisória, conjugada com a fundamentação, segundo o critério orientador dos arts. 236, 238 e 295 CC, é no sentido de uma nova reapreciação da matéria de facto, como, de resto se refere expressamente na fundamentação ( (…) com vista a uma adequada e mais completa reapreciação da matéria de facto”), e mais enfaticamente na “nota final”- “ se o pagamento ficar provado, quer dizer que o dinheiro passou para a inventariada e, na falta de prova do seu gasto ou de uma explicação credível do seu gasto, tal montante envolvido , ele entra na herança(…)”).

Como se vê, a Relação não se limitou ao reenvio para a simples fundamentação, mas decidiu pela reapreciação da matéria de facto, logo um novo juízo de valoração, estando subjacente ou implícita a produção de prova, pois entendeu que os documentos particulares (recibos) não tinham força probatória plena, sendo de livre apreciação.

De resto, esta interpretação foi a acolhida tanto pelo tribunal da 1ª instância, como pelos interessados e mandatários judicias, já que nenhuma objecção opuseram na acta de julgamento (cf fls. 1319), muito menos impugnaram a decisão singular da Relação, que transitou em julgado. Por outro lado, se fosse para manter o decidido, e tão somente para melhor fundamentação, não faria sentido a produção de novos elementos de prova, como a audição dos interessados DD e EE, e HH, sendo que o art.662 nº2 d) CPC manda ter em conta os depoimentos gravados ou registados, e não a produção de novos elementos.

Por isso, não ocorre violação do caso julgado.


2.6.- A violação do direito probatório – a força probatória dos recibos

Os Recorrentes consideram que os recibos juntos são documentos particulares, cuja assinatura está reconhecida notarialmente, pois a declarante não sabia assinar – facto que é reconhecido pelo cabeça-de-casal – e tendo a assinatura de ser feita a rogo, tinha de o ser de forma presencial no notário, pelo que ao presente caso é aplicada a doutrina que consta dos artigos 373º a 376º ainda do CC ou seja, têm força probatória plena, por consubstanciarem uma confissão extrajudicial.

No entanto, o acórdão recorrido rejeitou a natureza de prova plena aos recibos, porque não foram apresentados contra o declarante, mas sim contra um dos herdeiros ( “ os documentos não foram apresentados como reveladores de facto pessoal do herdeiro” ), e por conseguinte estão sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova.


Com a petição incidental da reclamação de bens, os interessados/reclamantes requereram a eliminação das três verbas ( direitos de crédito), alegando que foram pagas no dia ... de Maio de 2012.

Para tanto, juntaram três recibos (cf fls.783 a 788) nos quais se menciona, em cada um deles, que a inventariada AA declara que “recebeu em mão”, e que “dá quitação integral e sem reservas”.

Cada um dos três recibos consta na parte final “assina a rogo de AA por esta não poder assinar” NN, e consta o reconhecimento notarial da assinatura e o rogo.

A questão que se coloca é a de saber se estes recibos fazem ou não prova plena do pagamento.

Estamos perante documentos particulares, com assinatura a rogo, reconhecida notarialmente ( arts. 154 e 155 C.Notariado). Importa observar que não se trata de documentos particulares autenticados, para efeitos do art. 377 CC, pois para que o documento se considere autenticado exige-se que o seu teor tenha sido confirmado perante o Oficial público, neste caso o Notário, nos termos da lei notarial, o que deve constar de um termo de autenticação, não bastando o simples reconhecimento das assinaturas.

Relativamente a cada um dos documentos o Notário limitou-se a presenciar o rogo da rogante e a assinatura do signatário, bem como a reconhecer a assinatura deste e a atestar que a rogante lhe declarou que não sabia assinar, e nada mais, pois nada presenciou sobre o conteúdo da declaração, nem ela foi feita na sua presença.

Segundo o art. 150 C.Notariado, “Os documentos particulares adquirem a natureza de documentos autenticados desde que as partes confirmem o seu conteúdo perante o notário”, devendo o Notário elaborar o termo de autenticação, em conformidade com o disposto no art. 151 C.Notariado, sendo uma dos requisitos que do termo conste “ A declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade”, o que não sucede.

Sobre a força probatória dos documentos particulares (concepção restrita) impõe-se distinguir a força probatória formal e a material.

Quanto à formal, há que diferenciar se o documento é assinado ou não pelo seu autor, porque não sendo assinado é sempre de livre apreciação. Quando assinado, não sendo impugnada a letra e/ou a assinatura, tem-se por estabelecida a sua genuinidade (força probatória formal), e uma vez fixada releva a força probatória material, ou seja, apenas faz prova plena da materialidade das declarações ( art. 376 nº1 CC).

Dispõe o art. 376 nº2 CC que os factos compreendidos na declaração, consideram-se provados na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante, sendo indivisível a declaração, nos termos estatuídos para a prova por confissão. A razão de ser da atribuição de força probatória plena às declarações desfavoráveis ao declarante que constem de documento particular assenta no facto de poder ser concebida como confissão extrajudicial ( cf. arts. 358 nº2 e 376 nº2 CC ).

A confissão, enquanto “reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária” ( art.352 CC ), se for efectuada em documento autêntico ou particular “ considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos, e se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena” ( art. 358 nº2 CC ).

Por isso, tratando-se de documento particular, os factos compreendidos na declaração consideram-se plenamente provados na medida em que sejam desfavoráveis ao declarante, estando pressuposto que a declaração é recipienda, produzindo os seus efeitos jurídicos somente quanto ao real destinatário. E o art. 358 CC distingue consoante o destinatário é a parte contrária ou um terceiro, tendo força probatória plena apenas no primeiro caso, dadas as maiores garantias de seriedade e de ponderação que a confissão oferece ( P. LIMA /A VARELA, Código Civil Anotado, I, pág. 316 ).

É que os factos objecto da declaração que forem contrários aos interesses do declarante apresentam-se como factos objecto de confissão, considerando-se provados nos termos gerais da confissão, pois “ a regra do nº2 do art. 376 constitui uma presunção fundada na regra de experiência de quem afirma factos contrários aos seus interesses o faz por saber que são verdadeiros (…)” ( VAZ SERRA, RLJ ano 110, pág. 85 ).

Como doutrinou MANUEL DE ANDRADE, a confissão “ quando exarada em documento com força probatória plena e for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (art. 358 nº2) ”, mas essa confissão escrita “ só vincula o confitente ( e través dele o juiz) quando dirigida à parte interessada ou seu representante; se for feita a um terceiro ou ainda se contida em testamento o juiz apreciá-la-á livremente “ ( Noções Elementares de Processo Civil, pág.247, 255 ).

No mesmo sentido, elucida VAZ SERRA “ Os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte, nos termos da confissão, sendo indivisível a declaração nesses termos. Portanto, nessa medida, o documento pode ser invocado como prova plena, pelo declaratário contra o declarante; em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal” (R.L.J., ano 114, pág. 287 ).

Deste modo, o documento não faz prova plena que na verdade a AA tenha efectivamente recebido as quantias referidas em cada um dos documentos para pagamento das tornas. Ou seja, sendo indiscutível a materialidade da declaração, já o respectivo conteúdo, porque impugnando, sai da órbita da força probatória plena.

Também não pode colher a pretensa força probatória plena com base confissão extrajudicial. A confissão, enquanto “reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária” ( art. 352 CC), se for efectuada em documento autêntico ou particular “ considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos, e se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena “ ( art. 358 nº2 CC).

O art.352 nº2 CC deve ser interpretado no sentido de que a confissão extrajudicial só conduz à prova plena se esta resultar do documento em que se insere e (ainda) for feita à parte contrária ou a quem a represente ( cf. Ac STJ de 2/3/2011 ( proc. nº 888/07), em www dgsi.pt ), logo a confissão extrajudicial escrita (enquanto declaração receptícia) apenas assume força probatória plena quando dirigida à parte contrária, pois em relação a terceiros é livremente apreciada pelo tribunal.


Verifica-se que o interessado e cabeça de casal CC, embora não questione a regularidade formal dos documentos, impugna o conteúdo, a veracidade das declarações, ou seja, que à AA tenham efectivamente sido pagas as tornas e recebidas em mão ( cf. fls.800).

Pois bem, uma vez impugnada a veracidade da declaração, e porque a mesma não foi feita ao interessado CC, logo a declaração contida nos recibos é livremente apreciada pelo tribunal (art.358 nº4 CC). Refira-se que o citado Ac STJ de 14/5/2019 não tem aqui aplicação, pois a declaração de recebimento de tornas foi feita em escritura pública e com intervenção de ambas as partes (autora e réu). Na situação dos autos, para efeitos de eficácia subjectiva da confissão extrajudicial, o interessado BB é considerado terceiro

Foi esta a doutrina seguida pela Relação, tanto na decisão singular, como no acórdão recorrido, concluindo-se, assim, que os documentos “recibos” estão sujeitos ao princípio da livre apreciação.


2.7. – O facto não provado do pagamento das tornas - as presunções judiciais e a insuficiência de facto

Conforme consta da fundamentação, a Relação socorreu-se de presunções judiciais para justificar o facto não provado.

Os Recorrentes questionam o uso das presunções dizendo que carecem de suporte factual donde se infira o não pagamento e preconizam ampliação da matéria de facto no sentido de que a inventariada AA declarou ter recebido em mão as tornas, conforme declarado em cada um dos recibos.

O nosso modelo processual contém a garantia do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, pois o Tribunal da Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar a decisão da 1ª instância nas situações previstas no art. 662 nº1 CPC ( als a), b) e c) do nº1 do anterior art. 712 do CPC).

O Tribunal da Relação no âmbito de reapreciação e modificabilidade da decisão da matéria de facto tem autonomia decisória que lhe permite formar a sua própria convicção (livre valoração) reapreciando não só os meios probatórios constantes do processo, como determinar a renovação ou a produção de novos meios de prova. Sendo assim, para formar a sua própria convicção, pode a Relação proceder não só à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, como de todos aqueles que estejam adquiridos no processo.

Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova (art.607 CPC) o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, a Relação (tal como a 1ª instância) indique os fundamentos suficientes (convicção motivada) para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão (concepção racional da prova).

Decorre directamente da lei e está consolidada na jurisprudência a afirmação de que o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito e não julga de facto, a não ser em situações excepcionais, conforme impõe o art.46 da Lei nº62/2013 de 26/8 (“Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece da matéria de direito” ).

Na verdade, o art.662 nº4 do CPC é claro e imperativo ( “ Das decisões da Relação previstas nos nº1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” ), bem como o disposto no art.674 nº3 ( primeira parte) CPC ( “ O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista” ) e ainda o art.682 nº2  CPC (“ A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no nº3 do artigo 674” ).

Por isso, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça está limitada aos casos previstos no art.674 nº3 ( 2ª parte) e 682 nº3 CPC, ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ( isto é, violação das regras direito probatório material) , reenvio do processo para ampliação dos factos ( devido ao vício da insuficiência )ou contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica.

Daqui resulta que o Supremo Tribunal de Justiça não pode interferir no juízo que a Relação faz com base na reapreciação dos meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como os depoimentos testemunhais, documentos sem força probatória plena ou uso de presunções judiciais.

No entanto, constitui jurisprudência prevalecente no sentido de que ao Supremo Tribunal de Justiça compete decidir se o uso de presunções judiciais ofende qualquer norma legal de proibição de presunções, se padece de manifesta ilogicidade ou se parte (base da presunção ) de factos não provados ( cf., por ex., Ac STJ de 24/10/2019 ( proc. nº 6/14.9T(VNF), Ac STJ de 19/10/2021 ( proc. nº 295/20.3T8VRL ), todos disponíveis em www dgsi.pt ).

Note-se que a orientação jurisprudencial sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer da manifesta ilogicidade parece ter subjacente uma interpretação extensiva do art.674 nº3 CPC, pois esta norma possibilita o conhecimento apenas “quando haja ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”, não cabendo na letra da lei  o ilogicismo.

É conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária, incidindo aquela directamente sobre o facto probando, enquanto esta – também chamada de prova “circunstancial”, “de presunções”, de “inferências” ou “aberta” – reporta-se sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.

As presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência (art.349 do CC ), não são, em rigor, verdadeiros meios de prova, mas antes “ meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência” ( VAZ Serra, RLJ ano 108, pág.352 ), ou, noutra formulação, “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios” (ANTUNES VARELA, RLJ ano 123, pág. 58), reconduzindo-se, assim, a simples “prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade. Na definição legal, são ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica.

Não podendo o Supremo Tribunal de Justiça sindicar o juízo de valoração feito pela Relação (quando a apelação incide sobre a impugnação de facto) já lhe compete verificar se nesse juízo foram violadas as regras de direito probatório material.

Neste contexto, verifica-se que os Revistantes questionam o uso das presunções utilizadas pela Relação, quanto à sua admissibilidade e ilogicidade.

A este propósito, é manifesto ser legalmente admissível no caso concreto o uso de presunção judicial, por força do art.351 CC, já que, dada a natureza da acção, não há qualquer restrição à admissão da prova testemunhal.

Considerando a noção da presunção judicial, já definida, está em causa aferir o nexo lógico da presunção e que se traduz no elemento de ligação entre o facto conhecido (facto base) e o facto desconhecido, e esse liame decorre do reconhecimento de uma máxima da experiência. Ora, as máximas da experiência comum que possibilitam o raciocínio inferencial assumem carácter geral e seguem um padrão de normalidade para o raciocínio inferencial, atentas as particularidades do caso concreto.

Neste sentido, LUIS FILIPE DE SOUSA, ao discorrer sobre as presunções judiciais, refere que “o nexo lógico não é um facto, mas um juízo de probabilidade qualificada que assenta e deriva de uma máxima da experiência, tida por aplicável ao caso, segundo a qual, perante a ocorrência de um facto, gera-se uma probabilidade qualificada que se tenha produzido outro” (Direito Probatório Material, 2020, pág. 69).

Conforme Ac STJ de 11/4/2019, em wwwdgsi.pt- “Para aferir da ocorrência de uma tal ilogicidade, importa, assim, indagar se da decisão de facto e/ou da respetiva motivação constam, ou não, os factos instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede dos factos essenciais, nos termos dos artigos 349º do C. Civil e 607º, nº4 do Código de Processo Civil”. Na verdade, “o erro sobre a substância de um tal juízo presuntivo só será sindicável pelo Tribunal de Revista em caso de manifesto contra senso e/ou desrazoabilidade” (Ac STJ de 24/11/2020 ( proc. nº2350/17.8T8PRT), em wwwdgsi.pt ).

O acórdão recorrido, depois de afirmar que “os documentos não foram apresentados como reveladores de facto pessoal do herdeiro” e que, por isso, os recibos são de livre apreciação, apresentou a seguinte motivação:

“Sendo assim, os recibos são indícios a considerar, com a cautela de que possam ter sido realizados para prejudicar os outros interessados.

Quanto aos depoimentos dos interessados reclamantes (sendo certo que as testemunhas não relevam):

Ao contrário dos outros dois, EE afirma que houve pagamentos depois dos recibos realizados. Mais afirma que a mãe guardava o dinheiro numa carteirinha e que o mesmo terá desaparecido no hospital.

Todos os depoentes disseram desconhecer o paradeiro do dinheiro que alegaram ter pago à inventariada, embora a sua mãe, em momento coincidente ou muito próximo, estivesse aos seus cuidados.

Pese embora os valores em causa, os depoentes nada fizeram para tentar descobrir o seu paradeiro. Veja-se que ocorre, segundo as suas afirmações, o desaparecimento de cerca de 370.000 € (em poucos meses).

Não há notícia de que a inventariada tenha sido alvo de furto, roubo ou burla, e nem eles, nem qualquer testemunha, conheciam à inventariada hábitos de prodigalidade, vícios, despesas extraordinárias ou dívidas que justificassem tal gasto.

Não se nos afigura verosímil o pagamento em numerário de quantias de tal grandeza, nem a guarda avulsa de tais quantias (em notas de 20, 50 ou 500 €) numa carteira de senhora.

Note-se que, a certa altura, os Reclamantes pedem a prorrogação de um prazo para proceder ao pagamento de tornas, invocando a necessidade de cumprir formalidades bancárias. Porém, neste particular, não há apoio de qualquer documento bancário (ou de outra natureza).

Os documentos juntos aos autos, designadamente declarações fiscais, não comprovam a capacidade financeira dos interessados para proceder ao pagamento de tais tornas.

Assim, cabendo o ónus da prova do pagamento aos Reclamantes, no referido contexto de grave dúvida sobre a declaração e o pagamento, essa prova fica por fazer.

Uma nota final: o facto essencial em julgamento é o pagamento. Os factos invocados pelos Recorrentes são instrumentais ou meios de prova (os recibos e as declarações). Os mesmos foram julgados, mas para concluir pelo não pagamento, não sendo necessário exará-los como factos autónomos.

Pelo exposto, julga-se improcedente a impugnação da matéria de facto.”


A primeira objecção no sentido de que a Relação se pronunciou sobre o valor probatório dos recibos juntos sem que tenha admitido a sua existência, não tem consistência, porque a fundamentação é clara quanto à sua apreciação, tendo concluído pela falta de força probatória plena, estando sujeitos à livre apreciação.

Depois, também não releva a ampliação de facto ( descrição dos recibos), porque são documentos e não factos, e, além disso, foi alegado facto essencial– o pagamento das tornas.

Sendo legalmente admissível o uso de presunções judicias, na acepção definida, a Relação indicou na motivação as razões (factos instrumentais) para o juízo de inferência, com a indicação dos depoimentos de parte, das regras da experiência comum e dos documentos juntos ao processo.

Não podendo o Supremo Tribunal de Justiça sindicar o juízo de valoração da prova, levado a cabo pela Relação, a verdade é que de modo algum o juízo inferencial se evidencia manifestamente desrazoável ou ilógico.


2.8.- A determinação de novo mapa da partilha

A Relação, julgando procedente o recurso subordinado, ordenou “ a feitura de novo mapa da partilha, para determinação do excesso nos quinhões dos aqui Recorridos, com a consequente lavra de mapa informativo com as tornas a pagar e a receber pelos respetivos interessados”.

Os Recorrentes objectam, dizendo não ser legalmente admissível o mapa informativo, dada a ausência dos pressupostos do art.1376 nº1 e 1377 CPC e “no caso dos presentes autos, as tornas a pagar não provêm de qualquer excesso de bens doados, legados ou licitados, mas de uma quantia que diz respeito a créditos supostamente não pagos de tornas em inventário anterior, pelo que não estava o escrivão obrigado a elaborar mapa informativo”.

O acórdão recorrido justificou a decisão com base no acordo sobre a forma à partilha por todos os interessados na conferência de interessados de 6/7/2020 ( cf. fls. 1335 e 1336).

Na verdade, verifica-se que na conferência de interessados acordaram por unanimidade “na adjudicação das verbas a partilhar, pela seguinte forma e que para efeitos se considera a relação de bens de fls. 741 e 742.

Relativamente às verbas 1, 2, 3 ( direitos de crédito), 4 e 5 acordaram na adjudicação conforme exarado.

E acordaram ainda que “ os interessados DD, EE e HH enquanto sujeitos passivos dos créditos constante das verbas 1, 2, 3, 4 e 5 pagarão os valores que resultarem do mapa informativo, o excesso sobre os seus quinhões sobre a forma de tornas”.

O processo de inventário tem natureza mista ( de jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária ), e  a deliberação dos interessados assume um papel primordial, maxime nos inventários facultativos.

Considerando a natureza disponível dos direitos e finalidade do processo de inventário, nada obsta à materialização do acordado, já que o mapa informativo destina-se a saber quais as tornas a pagar e a receber, como, de resto, se afirma no acórdão ( “trata-se de definir que os montantes devidos aos interessados credores sejam satisfeitos internamente ( no processo) sob a forma de tornas” ).

Por outro lado, os Recorrentes estiveram presentes na conferência e acordaram sobre tal procedimento, pelo que revelam até um comportamento contraditório.


2.9. – Síntese conclusiva

a) O Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito e não julga de facto, a não ser em situações excepcionais, conforme impõe o art.46 da Lei nº62/2013 de 26/8 (“Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece da matéria de direito” ).Por isso, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça está limitada aos casos previstos no art.674 nº3 ( 2ª parte) e 682 nº3 CPC, ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ( isto é, violação das regras direito probatório material) , reenvio do processo para ampliação dos factos ( devido ao vício da insuficiência )ou contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica.

b) O Supremo Tribunal de Justiça não pode interferir no juízo que a Relação faz com base na reapreciação dos meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como os depoimentos testemunhais, documentos sem força probatória plena ou uso de presunções judiciais.

c) Contudo, ao Supremo Tribunal de Justiça compete decidir se o uso de presunções judiciais ofende qualquer norma legal de proibição de presunções, se padece de manifesta ilogicidade ou se parte (base da presunção) de factos não provados.

d) Os factos instrumentais, polibásicos da presunção judicial, podem constar da motivação do julgamento de facto.

e) No inventário do cônjuge supérstite, em incidente contra a relação de bens, em que foi relacionado o direito de crédito das tornas devidas por alguns interessados àquele, no âmbito do primeiro inventário, por pré-falecimento do marido, a declaração assinada a rogo pela inventariada mulher na qual declara ter recebido em mão as tornas, cujo teor foi impugnado, não constitui força probatória pela do efectivo pagamento, sendo de livre apreciação.

f) A confissão extra-judicial escrita só vincula o confitente ( e través dele o juiz) quando dirigida à parte interessada, se for feita a um terceiro ou ainda se contida em testamento será de livre apreciação.

g) Deve ser havido como terceiro, para o efeito, o interessado herdeiro, cabeça de casal, a quem a declaração não é dirigida (por não ser devedor das tornas) e que relaciona tais créditos de tornas como créditos da herança.



III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar os Recorrentes nas custas.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Novembro de 2022.


Os Juízes Conselheiros

Jorge Arcanjo ( Relator )

Isaías Pádua

Manuel Aguiar Pereira