Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P4593
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MAIA COSTA
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
TESTEMUNHA
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
CONVERSA INFORMAL
ARGUIDO
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
DIREITO AO SILÊNCIO
INQUÉRITO
SUSPEITO
Nº do Documento: SJ200702150045935
Data do Acordão: 02/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.
II - Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas.
III - Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.
IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP).
V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.
VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.
VII - O que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se
refere o art. 249.º do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. RELATÓRIO
AA, carpinteiro, solteiro, filho de … e de …, nascido a 09 de Abril de 1980, na freguesia de Nossa Srª da Graça, concelho da Praia, Cabo Verde, residente na Rua do …, n° …, Santa Luzia, Angra do Heroísmo e actualmente detido no Estabelecimento Prisional dessa cidade
foi condenado no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Angra do Heroísmo, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º, nº 1 do DL nº 15/93, de 22-1, na pena de 5 anos e 10 meses de prisão.
Inconformado, interpôs recurso que foi recebido para subir directamente a este STJ, por tratar apenas questão de direito.
Concluiu o recorrente as suas alegações da seguinte forma:
I — Numa busca domiciliária efectuada à residência do arguido que partilha com o BB e emitida por alegada prática de crime sexual, foram encontradas numa arrecadação anexa 350,05 gramas de heroína e uma balança de precisão marca “Tantra” modelo 1479.
II – O tribunal “a quo” deu como provado que o estupefaciente e a balança de precisão apreendidos eram pertença do arguido baseando-se em depoimentos de “ouvir dizer”, designadamente o do agente da PSP CC prestado em audiência de julgamento e que procedeu à busca.
III – Depoimento este que se reporta a afirmações produzidas extraprocessualmente pelo arguido.
IV – Sendo que a douta acusação deduzida pelo Ministério Público foi contestada pelo arguido.
V – Ora, o depoimento da testemunha CC carecia do exercício do contraditório por parte do arguido, conforme o preceituado no Art°. 129° n° l do Código de Processo Penal.
VI – Sendo certo que assiste ao arguido o direito ao silêncio como pressuposto de não colaboração com a sua própria condenação, consubstanciado no privilégio da não auto-incriminação.
VII – O tribunal “a quo” deu como não provado que o arguido comercializava ou pretendia comercializar o estupefaciente apreendido.
VIII – Foi ainda relevado pelo tribunal “a quo” que o arguido tem três filhos todos de relações diferentes e todos com poucos meses de idade, salientando-se que na prisão, onde tem mantido comportamento adequado, tem tido apoio das mães dos seus filhos, dos familiares e dos amigos.
IX – Não tem antecedentes criminais conotados com o tráfico de estupefacientes, tendo sido apenas condenado a 70 dias de multa por condução em estado de embriaguez.
X – É um operário da construção civil, integrado no mercado de trabalho nas áreas de carpintaria, pintura e servente de pedreiro, não sendo consumidor de produtos estupefacientes.
XI – O tribunal “a quo” entendeu por bem aplicar-lhe a pena de quase 6 anos de cadeia numa moldura abstracta de 4 a 12 anos de prisão.
XII — O arguido, ora recorrente, contesta a douta opinião do tribunal “a quo” que dá como adquirido que a versão do agente da PSP CC é inatacável.
XIII – Quando é certo que não foi escrutinada pelo acusado, sendo nula a credibilidade da testemunha em causa, ao sustentar peremptoriamente a vadiagem do arguido a despeito dos depoimentos da entidade patronal e colegas de trabalho e das quotizações efectuadas até Abril de 2005.
XIV – Pelo que a prova dada como assente, independentemente dos meios que a ela conduziram de ordem testemunhal e documental, está inquinada por uma investigação deficiente e incompleta que lançou nas mãos do julgador o dever de punir sem curar de saber dos limites da dúvida razoável.
XV - Sem conceder, a douta decisão ora em recurso mostra-se excessiva no que tange à dosimetria penal aplicada pelo tribunal “a quo”.
XVI – Ora, na fixação das penas relevam fundamentalmente a culpa do agente, a ilicitude e as necessidades de prevenção de harmonia com o artigo 72° do Código Penal.
XVII - Sendo que, a prevenção geral, dita de integração, tem por função fornecer uma moldura de prevenção cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, no mínimo, fornecido pelas exigências irrenunciáveis da defesa do ordenamento jurídico, cabendo à prevenção especial encontrar o “quantum” exacto da pena, dentro dessa função que melhor sirva as exigências da socialização.
XVIII - De notar, que o tribunal “a quo” relevou que o estupefaciente apreendido originaria 815 doses individuais, e concluiu ser uma quantidade significativa atendendo ao mercado local, apesar de dar como não provado que o arguido pretendia comercializar o produto, que implica o desconhecimento do mercado a que se destinava (inter ou extra-insular).
XIX - Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, condenar um arguido primário a quase 6 anos de prisão, gerindo uma família de tipo “guineense/muçulmano” com três filhos menores, cultivando as virtudes do trabalho e sem vícios de consumo de droga, é lançar um jovem sem cadastro no mundo espúrio das nossas prisões, verdadeiras universidades do crime com estatuto reconhecido pelos cidadãos em geral e sistema prisional em particular.
XX - E ao visar a defesa da sociedade, não podem as penas ter um fim perverso, já que, em vez de ganhar um delinquente para o seu seio, o transformam num ser irrecuperável.
Termos em que, e com o imprescindível suprimento de Vossas Excelências, deve ser julgada nula a prova testemunhal obtida em audiência de julgamento por violação do disposto no artigo 129° nº l do CPP, com as legais consequências.
Caso assim se não entenda, deve ser derrogado o douto acórdão recorrido e ser proferida decisão adequada que faça Justiça em termos de dosimetria penal.
O MP contra-motivou na 1ª instância, sustentando a manutenção do decidido, nos seus precisos termos.
Neste STJ, o sr. Procurador-Geral Adjunto, no seu visto inicial suscitou, como questão prévia, a incompetência hierárquica e material deste Tribunal por o recorrente “pôr em causa a avaliação da prova produzida em audiência, questionando entre o mais a força do depoimento de uma testemunha cuja validade põe mesmo em causa”; e deste modo “está o recorrente a pôr em causa a matéria de facto dada como provada (…) assim demonstrando que o seu recurso visa mais do que o reexame da matéria de direito.”
Não procede, no entanto, a questão prévia. Na verdade, não é a matéria de facto que é directamente atacada pelo recorrente, mas sim a validade de um depoimento, por ser nulo, no seu entender, decorrendo naturalmente da nulidade consequências quanto à validade e subsistência da matéria de facto, não quanto ao seu teor. A apreciação de uma nulidade processual, como a suscitada, é uma questão de direito. Por isso, este STJ tem competência para apreciar a questão da nulidade do depoimento. No caso de ela proceder, isso implicará a nulidade do julgamento. Caso contrário, haverá que apreciar a restante matéria do recurso.
Nenhum obstáculo existe, assim, quanto ao conhecimento do recurso, em audiência.
Foi realizada audiência de julgamento, no decurso da qual o sr. Procurador-Geral Adjunto se pronunciou pela improcedência da primeira questão e pela redução da pena~, embora para medida não inferior a anos e 6 meses de prisão; por sua vez, o patrono do recorrente defendeu a procedência do recurso.
II. FUNDAMENTAÇÃO
É a seguinte a matéria de facto estabelecida na 1ª instância:
Factos provados
No dia 18 de Agosto de 2005, pelas 18.10 horas, foi efectuada busca domiciliária à residência do arguido, sita na Rua do …, n° …, freguesia de Santa Luzia, área do concelho e comarca de Angra do Heroísmo.
Pertença do arguido, numa arrecadação existente no pátio anexo à referida habitação, foi encontrado um saco de plástico branco contendo no seu interior:
- sessenta sacos em plástico contendo heroína, com o peso líquido de 296,647 gramas;
- três sacos em plástico contendo heroína, com o peso líquido de 14,737 gramas;
- três sacos em plástico contendo heroína, com o peso líquido de 14,766 gramas;
- três sacos em plástico contendo heroína, com o peso líquido de 14,755 gramas;
- dois sacos em plástico contendo heroína, com o peso líquido de 10,045 gramas;
- uma balança de precisão de marca "Tanta", modelo 1479 .
No quarto ocupado pelo arguido na referida residência foi ainda encontrada e apreendida uma pistola de alarme, de calibre nominal de 8 mm, de marca BBM, de modelo 315 Auto, com o respectivo carregador, sem munições.
Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, foi efectuada revista ao arguido que tinha na sua posse:
- um telemóvel de marca Samsung, modelo SGH-E820, com Imei 353801/00/426869/8, cartão de cor cinzenta e azul escura;
- um telemóvel de marca Samsung, modelo SGH-E300, com Imei 353225/00/578421/6, cartão com o número …, Pin …, de cor cinzenta e preta;
- € 320 (trezentos e vinte euros) em notas do Banco Central Europeu;
- dois papéis manuscritos;
- um fio entrelaçado contendo uma chapa, ambos de cor amarela, com 57 gramas de peso;
- um anel de cor amarela contendo uma moeda datada de 1962, com 19 gramas de peso ;
- um anel de cor amarela contendo uma pedra de cor branca, com 4 gramas de peso;
- dois brincos de formas arredondadas , de cor amarela;
- dois brincos de formas achatadas , de cor amarela, com 3 gramas de peso;
- um cartão de carregamento da operadora móvel TMN, relativo ao número ….;
- um cartão de carregamento da operadora móvel TMN, relativo ao número ….;
- um cartão de carregamento da operadora móvel TMN, relativo ao número ….;
- dois cartões TMN com os n°s 60000148719162 e 0000147740813.
A heroína apreendida ao arguido gerava cerca de 815 doses.
O arguido, que agiu livre, voluntária e conscientemente, conhecendo a natureza e características estupefacientes da heroína que detinha, sabia que a sua detenção, a qualquer título, era proibida e punida pela lei penal.
Mais se provou que o arguido nasceu no seio de uma família numerosa - tem onze irmãos - , com relacionamento familiar harmonioso, e economicamente equilibrado.
Com a separação dos pais ficou a viver com a mãe, com quem estabeleceu um relacionamento mais afectuoso.
Tem o 5º ano como habilitações literárias e abandonou a escola por falta de motivação tendo passado a ajudar o pai na oficina de carpintaria.
Aos 20 anos de idade foi viver para Lisboa, onde já se encontrava o pai que o ajudou a integrar-se, nomeadamente no mercado de trabalho.
Integrado numa empresa de construção civil foi trabalhar para a ilha do Pico, quer como servente de pedreiro, quer como pintor.
Por ter pessoas amigas na ilha Terceira veio para esta ilha onde passou a trabalhar, essencialmente, na área da carpintaria, situação que se manteve, seguramente, até Abril de 2005, auferindo um rendimento mensal de cerca de € 1.000.
Nesta ilha manteve várias relações amorosas, todas de carácter esporádico, das quais tem três filhos, todos com poucos meses de idade e todos de relações diferentes.
No estabelecimento prisional tem mantido comportamento adequado, cumprindo com as regras instituídas.
Tem tido apoio, quer das mães de seus filhos, quer de familiares e amigos.
Não é consumidor de produtos estupefacientes.
Por sentença de 23 Maio 2005, foi condenado em 70 dias de multa, pela prática, em 17 de Maio de 2005, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Não evidenciou arrependimento.
Não ficou provado que:
- os papéis manuscritos encontrados na posse do arguido eram relativos ao tráfico de estupefacientes;
- a heroína encontrada ao arguido havia por este sido adquirida, na zona da Reboleira, em Lisboa, a um indivíduo de identidade desconhecida, e pretendia vendê-la, mediante um preço a combinar, a pessoas indeterminadas que, para o efeito, o procurassem;
- DD comprou "heroína" ao arguido, pelo menos, até ao mês de Maio de 2005;
- o arguido utilizava a balança de precisão para proceder à pesagem da heroína e sua divisão em doses individuais, para desse modo a vender e obter proventos económicos realizando mais valias;
- os bens e valores apreendidos ao arguido eram provenientes da venda de heroína em que o arguido se encontrava empenhado.
Motivação :
A convicção do tribunal resulta da apreciação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com os restantes elementos de prova constantes dos autos, tudo apreciado à luz das regras de experiência comum.
O arguido, fazendo uso de um direito que lhe assiste, não prestou qualquer declaração .
As testemunhas EE e FF, ambos inspectores da Polícia Judiciária, afirmaram que tinham uma queixa contra o arguido pela eventual prática de um crime de abuso sexual de criança pelo que, no decurso do inquérito respectivo e munidos do competente mandado de busca, foram a casa do arguido tendo em vista a obtenção de elementos de prova da prática de tal crime.
Afirmaram que o arguido se encontrava em casa sozinho e que lhes disse qual era o quarto que ocupava bem como qual era o quarto ocupado por GG, a outra pessoa que habitava a casa.
Esclareceram que nesta diligência foram coadjuvados por agentes da PSP local, nomeadamente a testemunha CC .
Esta testemunha afirmou que já estava a decorrer um inquérito em que o ora arguido, juntamente com o seu companheiro de habitação, eram suspeitos da prática de crime de tráfico de estupefacientes.
Referiu também ter encontrado, num barracão existente num anexo ao pátio da casa, um saco contendo ferramenta diversa e também a heroína apreendida, que se encontrava acondicionada em vários sacos plásticos, bem como a balança, tudo no interior do tal saco com ferramenta, tal como melhor se pode ver através das fotos de fls. 94 a 99.
A testemunha GG disse que, nesse mesmo dia, se tinha ausentado da ilha, com destino a Cabo Verde, onde pretendia permanecer cerca de um mês, como veio efectivamente a acontecer e que quem o tinha levado ao aeroporto tinha sido o arguido.
Disse conhecer a existência, quer da ferramenta, quer do saco onde esta estava guardada a heroína e que estava surpreendido por esta substância ter sido encontrada na referida arrecadação, local onde havia vários meses já não ia, tanto mais que desconhecia que o arguido estivesse, por qualquer forma, relacionado com o tráfico de produtos estupefacientes.
Afirmou ainda esta testemunha que o saco da ferramenta que continha a heroína não era seu mas sim do arguido.
Do que acima fica exposto temos que:
- a PSP local tinha já notícias/suspeitas que o arguido se encontrava envolvido na prática de tráfico de produtos estupefacientes;
- a heroína foi encontrada na casa por ele habitada;
- o saco onde o produto estupefaciente foi encontrado é do arguido;
- o outro habitante da casa se ausentara pelo período previsível de um mês.
Tendo em consideração estes elementos considerou o tribunal que o arguido era, pelo menos, o detentor do produto estupefaciente apreendido.
Na realidade, equacionando a possibilidade da heroína ser propriedade do GG (o segundo dos dois habitantes da casa, sobre quem também recaíam suspeitas de estar ligado à prática deste tipo de actividade ilícita), atentas as regras de experiência comum, não é usual, para não dizer mesmo extremamente improvável, o “dono da droga” a deixar “abandonada” por tanto tempo, sem que esteja ao cuidado de alguém, razão pela qual o tribunal concluiu que o arguido era, pelo menos, o detentor de tal produto estupefaciente.
Se dúvidas existissem, que não é o caso do tribunal, elas seriam dissipadas pelas declarações dos agentes policiais que efectuaram a busca à residência do arguido.
Referiu a testemunha CC que, logo após ter sido encontrada a heroína, foi o arguido confrontado com tal “achado” e, perguntado a quem pertencia, de imediato o arguido afirmou que era sua.
Apesar das declarações da testemunha CC, confirmadas pelos agentes da polícia judiciária já acima referidos, bem como as da testemunha GG - que negou que quer o saco da ferramenta quer a heroína fossem sua propriedade - , o arguido não prestou qualquer esclarecimento.
É conhecida a falta de unanimidade jurisprudencial relativamente ao valor probatório das declarações prestadas por agentes da autoridade em audiência de julgamento, relacionadas com afirmações efectuadas por arguidos e não reduzidas a escrito.
Entende o tribunal que, nas concretas circunstâncias ora em apreço, não estamos perante depoimento indirecto.
Dispõe o artº 129º, nº 1, do CPP, que
1. Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a outras pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fize , o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por …”.
Tem vindo a ser entendido, pelo menos por parte da jurisprudência do nosso mais alto Tribunal que, em situações como a agora em apreço - arguido que não presta declarações em audiência de julgamento e agentes da autoridade que relatam as conversas com ele havidas no decurso das diligências em que participaram, sendo que não lhes tomaram declarações no decurso da instrução do processo - não estamos perante depoimento indirecto na medida em que o que se visa com este preceito legal é permitir o exercício do contraditório por parte da defesa do arguido. Este, tendo-se os agentes reportado a afirmações por ele feitas, bem poderia ter exercido tal direito, só o não tendo feito porque assim o entendeu.
Por outro lado, também o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido que, em situações como esta, o exercício do direito ao silêncio por parte do arguido, “…não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.”
No que respeita aos restantes bens e valores encontrados na posse do arguido, teve o tribunal em consideração as declarações prestadas pelos já acima referidos agentes policiais e ainda nos autos de apreensão que se encontram a fls. 37.
Quanto à natureza do produto apreendido e características dos restantes bens apreendidos, teve o tribunal em consideração os exames realizados pelo Laboratório de Polícia Científica, cujos relatórios se encontram a fls. 264, 290 e 299.
No que concerne às condições sociais e pessoais do arguido teve o tribunal em consideração o relatório social que se encontra junto aos autos e as declarações das testemunhas HH, II e GG, todos colegas de trabalho do arguido, sendo também esta última testemunha indicada, como já foi referido, a pessoa que partilhava a habitação com o arguido.
Relativamente à situação económica do arguido há que referir que a testemunha CC afirmou não lhe conhecer qualquer ocupação, na medida em que o via a deambular pelas ruas da cidade a horas que, normalmente, são de trabalho.
As testemunhas HH, II e GG, todas colegas de trabalho do arguido, afirmaram que este sempre trabalhou com regularidade até ao dia da sua prisão.
Contudo, como se pode verificar pelo documento que se encontra junto a fls. 482 e segs, os descontos para a segurança social apenas foram efectuados até ao mês de Abril de 2005, não tendo estas testemunhas apresentado qualquer explicação, minimamente credível, para o facto do arguido trabalhar e não serem efectuados os descontos respectivos nos meses subsequentes até à data da sua prisão, razão pela qual se deu como provado que o arguido trabalhou apenas até Abril de 2005.
No que respeita à factualidade dada como não provada resulta de absoluta falta de prova, nomeadamente no que respeita à alegada venda de heroína pelo arguido, bem como que os bens e valores que lhe foram encontrados eram provenientes de tal actividade.
Questões a apreciar:
Duas são as questões colocadas pelo recorrente: a primeira é a da violação do art. 129º do CPP, porque o tribunal, ao considerar provado que o estupefaciente era pertença do recorrente, se teria baseado em depoimentos de “ouvir dizer”, nomeadamente o depoimento da testemunha CC. A segunda questão é a medida da pena, que o recorrente pretende que seja reduzida, sem mais especificar.
1ª Questão
Muito discutido tem sido a questão do alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer” que o CPP consagra no art. 129º. A jurisprudência não tem sido uniforme. Mas podemos considerar adquirido, para o que agora importa, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.
Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas.
Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido. A partir da constituição do arguido enquanto tal, ele assume um estatuto próprio, com deveres e direitos, entre os quais, o de não se auto-incriminar. A partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.
Contudo, de forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia. Compete então às autoridades, nos termos do art. 249º do CPP, praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infracção, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial devam praticá-las mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249º, nº 1).
Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo (pode até não vir a haver, como por exemplo se o crime for semi-público e não for apresentada queixa).
Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.
O que o art. 129º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP.
Clarificado, assim, o alcance do art. 129º do CPP, cabe agora analisar se foi violado pelo acórdão recorrido. Segundo o recorrente, o tribunal recorrido teria dado como provado que o estupefaciente e a balança de precisão eram sua pertença com base no depoimento da testemunha CC, agente da PSP, que seria um depoimento de “ouvir dizer”, uma vez que se reporta a afirmações por si proferidas extraprocessualmente.
Analisada a fundamentação da matéria de facto, acima transcrita, constata-se que as afirmações a que o recorrente se refere foram feitas logo no acto de apreensão do estupefaciente, ou seja, na fase prévia à instauração do inquérito, na fase de aquisição da notícia do crime (detenção de estupefaciente), em que as autoridades policiais devem, nos termos do citado art. 249º do CPP, recolher todas as informações possíveis para assegurar os meios de prova. Foi precisamente o que aquele agente policial fez: perante a descoberta do estupefaciente dentro da casa onde o recorrente morava, sendo certo que outro indivíduo ali residia, impunha-se a pergunta ao recorrente, que se encontrava presente e só ele, sobre a propriedade da droga. Não se tratou uma “conversa informal”, mas de uma recolha de informação, já que o recorrente não tinha ainda o estatuto de arguido.
Acresce que o depoimento daquela testemunha de acusação não serviu propriamente de base à convicção do tribunal quanto à propriedade da heroína por parte do recorrente, mas antes de elemento confirmativo de outros elementos de prova, como resulta da motivação da matéria de facto, onde, depois de se considerar assente aquele facto, se acrescenta: “Se dúvidas existissem , o que não é o caso do tribunal, elas seriam dissipadas pelas declarações dos agentes policiais que efectuaram a busca à residência do arguido.” Incontestável é, pois, que este depoimento nem sequer serviu como elemento de prova essencial do facto referido.
Por outro lado, mostra-se irrelevante o depoimento da mesma testemunha na parte referente do comportamento do recorrente, e nomeadamente à sua “vadiagem”. Na verdade, não só não consta da matéria de facto que o arguido se dedicasse à vadiagem, como, na motivação, não é referido o depoimento da testemunha CC como tendo contribuído para a fixação da matéria de facto quanto às condições sociais e pessoais do recorrente.
Em resumo, não foi violado o art. 129º do CPP, pelo que improcede a primeira questão colocada pelo arguido.
2ª Questão
Contesta também o arguido a medida da pena, que considera exagerada.
Recordemos o circunstancialismo da infracção. O arguido detinha, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas acima, cerca de 350 gramas de heroína. É tudo quanto se provou, já que ficou por provar a intenção de venda desse produto e qualquer actividade anterior de venda de estupefacientes.
A ilicitude do crime caracteriza-se por dois factos de valor contraditório. Por um lado, a quantidade de heroína é substancial. Por outro, nada mais se provou para além da detenção do estupefaciente. Nomeadamente, não se provou que o recorrente destinasse o estupefaciente para venda, ou que já tivesse procedido a alguma venda anteriormente. Sendo assim, podemos dizer que a ilicitude se situa num grau mediano.
Quanto às demais circunstâncias atendíveis, terá de ter-se em conta que o arguido não mostrou arrependimento, mas que, por outro lado, tem pautado a sua vida, apesar de uma acentuada instabilidade familiar, pela inserção social e laboral, pelo menos até Abril de 2005, ou seja, quatro meses antes dos factos.
Este conjunto de circunstâncias aponta para uma redução da pena em que foi condenado na 1ª instância.
III. DECISÃO
Nestes termos, concede-se parcial provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido quanto à medida da pena, que se fixa em 4 anos e 6 meses de prisão.
Vai o recorrente condenado em 4 UC (art. 87º, nº 1, a) do CCJ).

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2007
Maia Costa (Relator)
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Santos Carvalho