Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3649/13.8TTLSB.S2
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: GONÇALVES ROCHA
Descritores: RESOLUÇÃO DO CONTRATO
JUSTA CAUSA
INCONSTITUCIONALIDADE DO Nº4 DO ARTIGO 394º DO CT
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 12/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO – CONTRATO DE TRABALHO / CONCESSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO / REVOGAÇÃO / EXIGÊNCIA DA FORMA ESCRITA / CESSAÇÃO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR / RESOLUÇÃO / DESPEDIMENTO POR FACTO IMPUTÁVEL AO TRABALHADOR / JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
-Baptista Machado, Tutela da Confiança, Obra dispersa, Volume I, p. 416;
-Cunha de Sá, Abuso de Direito, 454;
-Galvão Teles, Obrigações, 3ª edição, p. 6;
-Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, p. 63 ; RLJ, ano 87, p. 307;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1967, p. 217 e 296;
-Romano Martinez, Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, 2006, p. 1010 e 1011;
-Vaz Serra, RLJ, 111º, p. 296 ; abuso de direito, BMJ 68/253 ; MBJ 85, p. 326.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGOS 394.º, N.º 4 E 396.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 674.º, N.º 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 80.º, ALÍNEA C) E 86.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 23-05-1995, IN BMJ 447/271;
- DE 15-09-2010, PROCESSO N.º 234/07.7TTSTB.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-07-2011, PROCESSO N.º 105/08.0TTSNT.L1.S1, IN WWW.STJ.PT;
- DE 16-11-2011, PROCESSO N.º 203/08.0TTSNT.L1.S1;
- DE 02-04-2014, PROCESSO N.º 612/09.7TTSTS.P1.S1.
Sumário :

I) A justa causa de resolução do contrato por iniciativa do trabalhador pressupõe que da actuação imputada ao empregador resultem efeitos de tal modo graves, em si e nas suas consequências, que se torne inexigível ao trabalhador a continuação da prestação da sua actividade.

II) Integra justa causa de resolução do contrato de trabalho pela trabalhadora a não inclusão, durante cerca de dez anos, dos valores relativos a comissões de vendas na retribuição de férias, subsídio de férias e de Natal, tendo aquela, três meses antes da cessação do contrato, alertado a sua empregadora para a necessidade de solução desta realidade e para a situação difícil em que se encontrava, resultante duma diminuição de rendimentos advinda de redução da clientela e consequente baixa de valor das comissões auferidas.

III) O nº 4 do artigo 394º do Código do Trabalho não viola o princípio fundamental da "liberdade de iniciativa e de organização empresarial" e o dever do Estado de "incentivar a actividade empresarial", consagrados nos artigos 80º, alínea c) e 86º, nº 1, respectivamente da CRP, pois a justa causa de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador constitui a solução encontrada pelo legislador para uma situação de crise contratual imputável ao empregador.

IV) Tendo a trabalhadora, três meses antes da cessação do contrato, alertado a sua empregadora para a falta de pagamento integral da retribuição das férias, e dos subsídios de férias e Natal, por não inclusão da média das comissões auferidas, o que se verificava já desde há cerca de dez anos, e para a necessidade de resolver a situação, para o que se manifestava receptiva, a resolução do contrato com justa causa por esse motivo não integra abuso de direito. 

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1----

AA intentou a presente acção com processo comum, emergente de contrato de trabalho, contra

BB, SA, peticionando que se reconheça que resolveu o contrato de trabalho vigente entre as partes com fundamento em justa causa e que a R lhe pague a indemnização de antiguidade no montante de 39.453,31 euros, uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 3.500 euros, bem como outros créditos laborais em dívida.

Alegou para tanto que, mantendo um contrato de trabalho com a R, comunicou-lhe a resolução com justa causa em virtude de não lhe serem pagas determinadas quantias, de lhe ter sido reduzida a retribuição, de lhe ter sido comunicada a mudança unilateral de local de trabalho, bem como uma alteração do horário, com o que sofreu também danos morais.

Na contestação, a Ré veio impugnar a justa causa invocada para a resolução do contrato, mais alegando que, na data da cessação da relação laboral, todos os créditos laborais devidos à trabalhadora lhe haviam sido pagos. E deduzindo reconvenção, pediu a condenação da A no pagamento da quantia de 50 000 euros para compensar os danos alegadamente causados na imagem da loja de ... resultantes das suas atitudes de falta de zelo e de profissionalismo.

Realizada audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença que:

a)      Absolveu a Ré de todo o peticionado pela Autora;

b)      Absolveu a Autora do pedido reconvencional formulado pela Ré.

Inconformada, apelou a A, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa acordado em julgar a apelação parcialmente procedente, vindo assim a:

1)      Modificar a decisão de facto;

2)      Condenar a Apelada no pagamento à Apelante:

a)      Da quantia de trinta e três mil e oitocentos euros e sessenta e sete cêntimos (33.800,67 euros, valor que foi posteriormente alterado para 33.131,3 7 euros), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a data de vencimento das prestações relativas a férias e subsídios de férias e de Natal até integral pagamento;

b)      Da quantia de catorze mil e sessenta e cinco euros (14.065,00), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4% desde 2/10/2013 até integral pagamento.

3)     Revogar, em conformidade, a sentença, designadamente, reconhecendo a licitude da resolução do contrato de trabalho promovida pela A. com justa causa.

        

Inconformada, veio a R interpor recurso de revista e arguir a nulidade do acórdão, questão que foi parcialmente deferida pela Relação, vindo a alterar-se o ponto 2- a) do decisório nos seguintes termos:

- Condenar a Apelada no pagamento à Apelante:

Da quantia de trinta e três mil cento e trinta e um euros e trinta e sete cêntimos (33.131,3 7 euros), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a data de vencimento das prestações relativas a férias e subsídios de férias e de Natal até integral pagamento.

         E rematou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1 - O acórdão recorrido incorre em erro material, já que, de acordo com documentos juntos aos autos, o Recorrente é uma sociedade anónima e não limitada.

2 - O acórdão recorrido, tal como consta do requerimento de interposição de recurso padece da nulidade prevista no artigo 615º, n.° 1, ali. c) do CPC, pois os seus fundamentos encontram-se em oposição  com  a  decisão,  na medida em que  apenas  responsabiliza  a Recorrente a partir de Setembro de 2002, mas veio a condená-la a pagar montantes de diferenças de retribuições relativamente a todo o ano de 2002.

3 - De acordo com o documento da Segurança Social junto aos autos em Janeiro de 2015, os montantes dos diferenciais de férias, subsídios de férias e de Natal por repercussão das comissões por vendas e trabalhos técnicos efectuados pela A, encontram-se pagos, pelo menos, no montante de € 11.631,78, sendo que o acórdão recorrido desconsiderou este documento autêntico, que faz prova plena dos montantes pagos e a que título, apenas relevando outro documento da Segurança Social que não tem essa virtualidade (por só se referir a valores globais e não discriminados), tendo violado as regras de produção da prova constantes dos artigos 362º e seguintes do CCivil.

4 - Encontra-se pois, junto aos autos documento que, nos termos do artigo 616º, n.º 2, alínea b), impunha decisão diversa da constante do douto acórdão recorrido.

5 - Ao desconsiderar o documento autêntico da Segurança Social acima referido, o douto acórdão recorrido violou, igualmente, o Código Contributivo da Segurança Social, que fixa a base de incidência, e respectivos códigos de valor.

6- Deste modo, o acórdão recorrido incorreu em erros de direito e violação de normas e princípios jurídicos, sendo sindicável, nos termos dos artigos 616º e 674º, ambos do CPC, pelo STJ.

 7- Por outro lado, o douto acórdão recorrido plasma, integralmente, a contabilidade efectuada pela A. para condenar o R. no pagamento de € 33.800,67, sendo que tais contas estão erradas, mesmo da perspectiva do acórdão recorrido, não sendo, mesmo nesta perspectiva, que não se aceita, devido este montante.

8 - A resolução do contrato de trabalho foi efectuada pela recorrida sem justa causa, razão por que o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 394º, nº 2, alínea a) e nº 4, com referência ao artigo 351º, nº 3, ambos do CT;

9 - A interpretação do nº 4 do artigo 394º do Código do Trabalho, sufragada pelo Tribunal recorrido, viola o princípio fundamental da "liberdade de iniciativa e de organização empresarial" e o dever do Estado de "incentivar a actividade empresarial", consagrado nos artigos 80º, alínea c) e 86º, nº 1, respectivamente da CRP, de harmonia com o princípio da interpretação da lei em conformidade com a Constituição.

10 - Admitindo, sem conceder, que a recorrida tivesse o direito de resolver o contrato, jamais teria direito à indemnização prevista no artigo 396º, do CT, por existir abuso de direito, tal como vem definido no artigo 334º do Código Civil, o qual é de conhecimento oficioso.

Pede assim que se conceda a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e absolvendo-se a recorrida.

        A recorrida também alegou pugnando pela confirmação do julgado.

        O Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos de artigo 87º/3 do CPT, no sentido da improcedência da revista, que, devidamente notificado, não suscitou qualquer resposta das partes.  

         Cumpre assim decidir.

2----

         Para tanto, a Relação fixou a seguinte matéria de facto:

1-A sociedade BB, SA dedica-se à actividade de prestação de serviços de cabeleireiro, “manicure”, pédicure, massagem, estética e actividades de manutenção física, possuindo e explorando comercialmente múltiplos estabelecimentos de cabeleireiro, sob a insígnia CC;

2-A A é cabeleireira e foi admitida em 01.02.1992, para desempenhar essas funções na empresa José e CC, Ld.ª que à data explorava a marca CC Cabeleireiros;

3-A A esteve ao serviço dessa entidade até 17 de Setembro de 2002;

4- Dessa empresa referida em 2), eram sócios DD e CC (docs. 2 e 3);

5- A A, entre 01.02.1992 e 17.09.2002, trabalhou na loja de ... que, à data, era explorada por aquela sociedade;

6- A partir de Setembro de 2002, a A passou a trabalhar na loja da Ré sita no ...;

7- Com data aposta de 18.09.2002, foi outorgado entre a Autora e a sociedade “Cabeleireiro CC, Ld.ª”, o contrato denominado de "Contrato Individual de Trabalho" cujo teor é o que consta de fls. 39 e ss. designadamente:

"(-)

CLÁUSULA SEGUNDA

(Local de Trabalho)

2.O Segundo Outorgante exercerá a sua função em qualquer lugar onde a firma exerça a sua actividade, dentro do território nacional.

3.Inicialmente o Segundo Outorgante exercerá a sua actividade profissional no Concelho de Lisboa.

4.O Segundo Outorgante aceita expressamente, dando, desde já, a sua autorização para que lhe seja alterado o local de trabalho, suportando a Primeira Outorgante as despesas acrescidas e directamente impostas pela mesma transferência.

(...)

CLÁUSULA TERCEIRA

(Duração do Trabalho)

(...)

2. O Horário de Trabalho será definido, nos termos legais, pela Entidade Empregadora.

(...)

CLÁUSULA NONA

(Antiguidade)

Os Outorgantes acordam que, para efeitos de antiguidade e para salvaguarda dos direitos e deveres de ambas as partes, a Segunda Outorgante é considerada trabalhadora do Primeiro Outorgante desde o dia 01 de Fevereiro de 1992.

Local de Trabalho: ... - …, … … - Loja … …

(...)

Data da Celebração do Contrato (...): 18 de Setembro de 2002.

Remuneração Eur: 374,10 (trezentos e setenta e quatro euros e dez cêntimos) mensais, mais subsídio de alimentação. A que acresce uma comissão variável por objectivos.

(...)

Instrumento de Regulamentação Colectiva: Contrato Colectivo de Trabalho aplicável ao sector e celebrado entre o Sindicato de Trabalhadores Barbeiros, cabeleireiros e Ofícios Correlativos e a Associação dos Cabeleireiros e Barbeiros do Sul (actual Associação Portuguesa de Barbearias, Cabeleireiros e Institutos de Beleza) publicado no BTE n° 28 de 29 de Julho de 1977, com as alterações introduzidas pelas revisões do mesmo, publicadas nos BTEs:

-        n.° 9 de 8 de Março de 1991

-        n.° 28 de 29 de Julho de 1986

-        n° 28 de 29 de Julho de 1988

-        n.° 5 de 8 de Fevereiro de 1994

-        n.° 16 de 29 de Abril de 1996

-        n° 25 de 8 de Julho de 1997 -n.° 25 de 8 de Julho de 1998

-        n.° 29 de 8 de Agosto de 1999

-        n.° 8 de 28 de Fevereiro de 2001, sendo aplicável ao trabalhador todos os direitos e obrigações que decorrem do mesmo.”

8- A Ré sempre pagou à Autora uma retribuição mista, composta por montante fixo e um montante variável;

9- O montante fixo variava de acordo com a RMMG e o montante variável correspondia a comissões calculadas de acordo com as vendas efectuadas no mês respectivo, quer de champôs, quer de artigos de cosmética capilar, quer trabalhos técnicos efectuados para as clientes da Ré;

10- Além dos valores referidos em 8) e 9), a Ré sempre pagou à Autora um subsídio de alimentação por cada dia de trabalho prestado;

11- Era a Ré quem emitia e processava os recibos de vencimento de acordo com o seu programa de facturação;

12- Nos recibos de vencimento emitidos pela Ré surgem diversas designações nestes apostas, nomeadamente, prémio de produtividade/serviços, prémio de produtividade/produtos, prémio de produtividade/responsável" (docs. de fls. 67 a 103 e ss);

13- Ao longo de toda a relação laboral a R sempre pagou à A, a título de férias, subsídio de férias e de natal, o valor correspondente à RMMG;

14- Em Janeiro de 2013, a Ré propôs à Autora que passasse a desempenhar as funções de cabeleireira em ..., tendo-lhe sido remetida por correio a missiva (com data aposta de 16/01/2013) que constitui o documento n° 4 junto com a petição e que se dá aqui por integralmente reproduzido;

15- A Ré viu-se forçada a proceder à reorganização das suas lojas, nomeadamente a de … e a de ..., por razões relacionadas com a crise financeira e a redução em pelo menos 25% da facturação daquela;

16- A Ré pretendia reajustar os custos dos funcionários de …. sem proceder a despedimentos;

17- A A não se opôs a essa transferência para a loja de ...;

18- A Ré informou a A de que deveria gozar 11 dias de "descanso" e apresentar-se na loja de ... em 16.02.2013;

19- No dia 17 de Janeiro de 2013, a A foi apresentar-se, acompanhada pela sua filha, na loja do ...;

20- Pela responsável daquela loja foi-lhe transmitido que já não pertencia àquele estabelecimento pelo que deveria sair;

21- Na sequência de uma breve troca de palavras entre as partes a A abandonou aquele local;

22- No dia 16.02.2013, a A apresentou-se ao serviço na loja de ... onde permaneceu até 02.10.2013;

23- Na loja de ..., a A efectuava um horário de trabalho das 1l h às 20h, com folga semanal às terças-feiras;

24- A A, através da sua mandatária, remeteu à Ré uma carta datada de 26.06.2013, e recebida pela ré em 28.06.2013, que constitui o documento n° 7 junto com a petição inicial, e que se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

25- A Autora remeteu à Ré em 30.09.2013, mas com data aposta de 01.10.2013, por fax e correio registado com aviso de recepção, a carta que constitui o documento n° 9, com vista à Resolução do Contrato de Trabalho com justa causa, junto com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

26- Tal carta foi recebida pela Ré, por fax, em 30.09.2013, e por correio, em 01.10.2013;

27- Na loja de ..., sendo uma loja de rua, o dia de encerramento semanal era o Domingo;

28- Por força da crise económica que atingiu Portugal entre 2010 e 2013 ocorreu uma quebra na procura dos serviços de cabeleireiro que provocou diminuição das receitas da Ré;

29- Durante o período em que esteve na loja de ..., a Autora auferia valores monetários (de montante não apurado) mas inferiores aos auferidos na loja do ...;

30- Para colmatar eventuais necessidades de preenchimento de horários a Ré recorre aos serviços externos de cabeleireiras;

31- As lojas de ... e de ... continuam a revelar tendência para a diminuição da procura de cliente;

32- A Ré solicitou à Autora que apresentasse os comprovativos das despesas de deslocação efectuadas para a loja de ... (doc. n° 6 junto com a contestação);

33- Após a resolução do contrato de trabalho mantido com a Ré a Autora foi trabalhar para o cabeleireiro EE no ....

34- Com data aposta do dia 31.10.2013, a Ré emitiu em nome da Autora um cheque sacado sobre o banco FF, no valor de 1.339,29 euros, valor esse que fez constar do recibo de vencimento do mês de Outubro de 2013.

35- A A recebeu os seguintes valores relativos às prestações mencionadas nos pontos 8 e 9, nos seguintes anos:

1993 - € 6.515,20;

1994 - € 5.925,29;

1995 - € 6.085,42;

1996 - € 6.470,38;

1997 - € 6.750,86;

1998 - € 7.397,25;

1999 - € 7.856,26;

2000 - € 15.636,29;

2001 - € 16.259,47;

2002 - € 8.888,04;

2003 - € 16.436,26;

2004 - € 17.276,95;

2005 - € 18.106,62;

2006 - € 19.029,95;

2007 - € 21.180,13;

2008 - € 20.669,47;

2009 - € 20.214,23;

2010 - € 18.975,28;

2011 - € 19.154,63;

2012 - € 18.118,45, sendo que o valor pago a título de RMMG ascendeu aos seguintes valores, nos seguintes anos:

1993 - 47.400$00,       

1994 - 49.300$00,

1995 - 52.000$00,

1996 - 54.600$00,

1997 - 56.700$00,

1998 - 58.900$00,

1999 - 61.300$00,

2000 - 63.800$00,

2001 - 67.000$00,

2002 - 69.770$00/€ 348,01,

2003 - € 356,60,

2004 - € 365,60,

2005 - € 374,70,

2006 - € 385,90,

2007 - € 406,00,

2008 - € 426,00,

2009 - € 450,00,

2010 - € 475,00,

2011 - € 485,00,

2012 - € 485,00 (Art° 31° da PI).

36 - Enquanto responsável pela gestão dos seus estabelecimentos, a R estava ciente do número de clientes que os frequentavam, da evolução desse número e da facturação ao longo do tempo, das tendências do mercado e das necessidades de mão-de-obra nesses estabelecimentos, se são necessárias mais cabeleireiras ou se são dispensáveis algumas (Art° 51° da PI).

37 - A A dependia dos rendimentos que auferia ao serviço da R para custear todas as suas despesas pessoais e familiares (Art° 94° da PI).

38 - Tinha a sua vida pessoal e familiar organizada na expectativa de continuar a auferir o nível de rendimentos que auferia antes de Fevereiro de 2013 (Art°95°da PI).

39 - Por causa da redução violenta dos seus rendimentos, a A teve que reduzir os seus gastos pessoais com alimentação, vestuário, saúde e actividades lúdicas (Art° 96° da PI).

40 - Com o agravar da situação desde Fevereiro de 2013 em diante, passou a ser incapaz de satisfazer todos os compromissos financeiros assumidos, em especial, a renda de casa, vendo-se obrigada a recorrer à ajuda de terceiros, normalmente as irmãs, para lograr pagá-la (Art° 98° da PI).

41- Em consequência, passou a sentir-se deprimida, triste, angustiada e com incerteza quanto ao seu futuro.

42- A A, através da sua mandatária, remeteu à R. carta datada de 26/6/2013, recebida pela R. em 28/6/2013, que constitui o documento 7 junto à PI e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

3----

         A A veio pedir a condenação da R no pagamento da parte variável da sua retribuição das férias e dos subsídios de férias e Natal, alegando que a empregadora nunca a incluíra na remuneração desses meses; e veio pedir que se reconheça que resolveu o contrato com justa causa, com a consequente condenação da empregadora no pagamento da respectiva indemnização.

        As instâncias divergiram totalmente na solução dada a estas matérias, pois a 1ª instância considerou que a trabalhadora não havia feito prova credível da existência dos créditos que reclamara. E quanto à justa causa, julgou insubsistentes os motivos invocados para a resolução do contrato.

        Por seu turno a Relação, alterando significativamente a matéria de facto, considerou que eram devidas diferenças na retribuição das férias e dos subsídios de férias e de Natal desde 2002, por falta de inclusão dos valores respeitantes à parte variável (comissões) dessa retribuição. E quanto à justa causa da resolução do contrato invocada pela trabalhadora,

considerou-a procedente, vindo a condenar a R na indemnização de 14.065,00 euros.        

        A recorrente questiona na revista a bondade desta posição da Relação, constatando-se, face ao teor das conclusões, que suscita as seguintes questões:

         Nulidade do acórdão;

         Alteração da matéria de facto;

         A justa causa da resolução do contrato;

         Abuso do direito;

Inconstitucionalidade material do nº 4 do artigo 394º do Código do Trabalho, na interpretação que dele faz o Tribunal recorrido, por violação do princípio fundamental da "liberdade de iniciativa e de organização empresarial" e do dever do Estado de "incentivar a actividade empresarial", consagrados nos artigos 80º, alínea c) e 86º, nº 1, respectivamente da CRP.

Sendo estas as questões a apreciar, vejamos então cada uma delas.

3.1---

         Quanto à nulidade do acórdão:

A recorrente, no requerimento de interposição do recurso, veio arguir a nulidade do acórdão da Relação, alegando, em síntese, que o mesmo contém um erro material no que se refere à sua denominação, e que os fundamentos estão em oposição com a decisão, porquanto tendo-se considerado que a Recorrente apenas é responsável pelas retribuições desde Setembro de 2002, veio, no entanto, a condená-la em montante que inclui todo o ano de 2002.

Em acórdão, e pronunciando-se sobre estas matérias, decidiu a Relação deferir parcialmente a reclamação, alterando o ponto 2-a) do decisório nos seguintes termos:

- Condenar a Apelada no pagamento à Apelante:

Da quantia de trinta e três mil cento e trinta e um euros e trinta e sete cêntimos (33.131,3 7 euros), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a data de vencimento das prestações relativas a férias e subsídios de férias e de Natal até integral pagamento.

Constatamos assim que a Relação já apreciou estas questões, satisfazendo a pretensão da recorrente.

Efectivamente, e quanto à identificação da R, esta é denominada como sociedade anónima.

E quanto à dedução dos diferenciais dos meses anteriores a Setembro de 2002, data a partir da qual começou a vigorar o contrato de trabalho da A com a R, o acórdão rectificativo já procedeu às alterações pretendidas.

Assim sendo, fica prejudicado o conhecimento desta primeira questão.

3.2---

         Quanto à alteração da matéria de facto:

        Sustenta a recorrente na conclusão 3ª que, de acordo com o documento da Segurança Social junto aos autos em Janeiro de 2015, os montantes dos diferenciais de férias, subsídios de férias e de Natal por repercussão das comissões por vendas e trabalhos técnicos efectuados pela A encontram-se pagos, pelo menos, no montante de € 11.631,78, tendo o acórdão recorrido desconsiderado este documento autêntico.

Atenta esta alegação, vejamos se tem razão.

O acórdão recorrido deu como provado que a Ré sempre pagou à Autora uma retribuição mista, composta por um montante fixo e um montante variável (facto nº 8); que o montante fixo variava de acordo com a RMMG e o montante variável correspondia a comissões calculadas de acordo com as vendas efectuadas no mês respectivo, quer de champôs, quer de artigos de cosmética capilar, quer trabalhos técnicos efectuados para as clientes da Ré (facto nº 9).

Apesar disso, deu-se também como provado que ao longo de toda a relação laboral a R sempre pagou à A, a título de férias, subsídio de férias e de Natal, o valor correspondente à RMMG (facto nº 13).

Nesta linha, e tendo considerado que os valores recebidos pela A respeitantes a comissões integram a sua retribuição, concluiu o acórdão que a média anual dos valores auferidos a este título devem integrar a remuneração das férias, e dos subsídio de férias e de Natal.

E como calculou estes valores?

Diz-nos o aresto que “[S]abendo-se que a A auferiu, anualmente, os valores mencionados no ponto 35° do acervo factual e que desses valores uma parte correspondia ao montante da retribuição de base, apura-se a diferença de valor pago a título de comissões. Este valor, dividido por 12, dá-nos a média mensal paga a este título. Será essa média a que se considerará para efeitos de acréscimo a título de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal”.

E partindo dos valores anuais auferidos pela trabalhadora que constam do ponto 35, deduzido o montante anual da RMMG, chegou-se ao quantitativo de 33.131,3 7 euros de diferenciais respeitantes à retribuição não paga nas férias e nos subsídios de férias e Natal.

        Sustenta porém a recorrente na mencionada conclusão 3ª que desses diferenciais se encontra pago, pelo menos, o montante de € 11.631,78, tendo o acórdão recorrido desconsiderado o documento da Segurança Social junto aos autos em Janeiro de 2015, que é um documento autêntico.

         Mas não podemos dar-lhe razão.

Efectivamente, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não é objecto do recurso de revista (conforme

consagra o artigo 674º, nº 3 do CPC), pois só o será se houver violação expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, ou que fixe a força de determinado meio de prova, conforme se colhe da parte final do preceito.

Donde resulta que, enquanto tribunal de revista, o Supremo só pode alterar a matéria de facto apurada pelas instâncias, quando esteja em causa a violação de direito probatório material, pois só neste caso é que está em causa um juízo sobre uma questão de direito. E por isso, não pode sindicar a forma como foram valoradas pelas instâncias as provas não sujeitas a formalidade especial.

No caso presente, a Relação para dar como provada a matéria constante do ponto 35 socorreu-se do doc. nº 3, junto com a PI (fls 46 a 48), e que corresponde ao extracto anual de remunerações emitido pela Segurança Social, bem como dos recibos de vencimento que a trabalhadora também juntou.

Ora, o documento junto pela R em Janeiro de 2015 (fls. 529 e seguintes), não contraria o juízo da Relação.

Efectivamente, estamos perante o “extracto de remunerações” mensais respeitantes à A e que foram registadas na Segurança Social entre 2002 e 2012, tendo sido com base no somatório destes quantitativos parcelares que a mesma entidade chegou aos valores anuais que declarou no documento nº 3 junto pela A.

Alega a recorrente que se constata pela análise do documento da Segurança Social junto aos autos em Janeiro de 2015, que, a título de diferenças de remuneração por referência a montantes pagos em função da retribuição base e a título de subsídios não mensais, foi pago à A./Recorrida, pelo menos, o montante de € 11.631, 78.

Mas esta pretensão improcede, pois embora se trate dum documento autêntico, ele não prova que a R tivesse pago à trabalhadora valores diferentes dos que constam do facto 35 a título de RMMG.

Efectivamente, resulta do artigo 371° do CC que tais documentos apenas fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela

autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.

Assim, a força probatória plena do documento não abrange a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas perante essa mesma autoridade ou oficial público, conforme sustentam Antunes Varela, M. Bezerra e S. e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, página 522.

Por isso, com os documentos juntos aos autos em Janeiro de 2015, a Segurança Social limita-se a certificar o que foi declarado pela entidade empregadora, ora recorrente, nada provando porém, quanto ao pagamento das quantias nele referidas, nem a que título foram pagas.

Improcede, portanto esta questão, pois não se encontra junto aos autos documento que imponha uma decisão diversa da constante do acórdão recorrido no que respeita à matéria de facto apurada.

3.3----

         Quanto à justa causa de resolução do contrato:

         Tendo a A resolvido o seu contrato de trabalho com invocação de justa causa por declaração de vontade que chegou ao conhecimento da R em 30.09.2013, a questão da justa causa tem que ser apreciada tendo em conta o regime do Código do Trabalho de 2009, que é o aplicável.

Conforme resulta dos seus artigos 340º, alínea g), e 394º, uma das formas de cessação do contrato de trabalho consiste na sua resolução por iniciativa do trabalhador e com invocação de justa causa.

Fazendo uma breve abordagem sobre a evolução mais recente da legislação nesta matéria, constatamos que o legislador não fornece um conceito de justa causa para a resolução do contrato por iniciativa do trabalhador, limitando-se a indicar alguns comportamentos do empregador susceptíveis de a integrar.

Apesar disso, já se entendia no domínio da LCCT (DL nº 64-A/89 de 27/2) que era à luz do conceito de justa causa que vinha plasmado no seu artigo 9º, nº 1, que deveria ser apreciado se os motivos invocados pelo trabalhador justificavam a resolução imediata do contrato, apontando neste sentido o nº 4 do artigo 35º, que mandava apreciar a justa causa invocada pelo trabalhador com base nos critérios que a lei estabelecia para a justa causa invocada pela entidade empregadora[1].

No domínio do Código do Trabalho de 2003, que vigorou a partir de 1/12/2003, a justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador continuou a assentar nos mesmos pressupostos, conforme se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 15/9/2010[2], alicerçando-se na ideia de inexigibilidade da manutenção da relação laboral, a apreciar, com as necessárias adaptações, nos termos do nº 2 do artigo 396º do mesmo Código.

Na mesma linha, se integra ainda o acórdão desta Secção Social de 11 de Maio de 2011, proferido no processo n.º 273/06.5TTABT.S1, de cuja doutrina se colhe que «[c]omo é entendimento reiterado deste Supremo Tribunal, a dimensão normativa da cláusula geral de rescisão exige mais do que a simples verificação material de um qualquer dos elencados comportamentos do empregador: é necessário que da imputada/factualizada actuação culposa do empregador resultem efeitos de tal modo graves, em si e nas suas consequências, que seja inexigível ao trabalhador – no contexto da empresa e considerados o grau de lesão dos seus interesses, o carácter das relações entre as partes e as demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes – a continuação da prestação da sua actividade».

Esta mesma doutrina continua válida face à disciplina do Código do Trabalho de 2009, conforme já decidiu este Supremo Tribunal no seu acórdão de 2 de Abril de 2014, processo n.º 612/09.7TTSTS.P1.S1, 4.ª Secção.

Efectivamente, a resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador com fundamento em justa causa encontra-se disciplinada nos artigos 394.º e seguintes, resultando do n.º 1 daquele preceito que, ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato, enunciando o n.º 2, de forma meramente exemplificativa, vários comportamentos do empregador que poderão integrar justa causa de resolução do contrato, só esta situação lhe conferindo o direito a indemnização, conforme determina o nº 1 do artigo 396º.

Donde termos de concluir que o Código do Trabalho 2009 também não consagra uma noção de justa causa de resolução do contrato por iniciativa do trabalhador que possa funcionar como cláusula geral relativamente à aferição dos pressupostos daquela forma de extinção da relação de trabalho, tal como faz o n.º 1 do artigo 351.º para a justa causa disciplinar.

Impõe, no entanto, o nº 4 do artigo 394º que na sua apreciação devem ser tomadas em consideração as circunstâncias enunciadas no n.º 3 daquele artigo 351º.

Por isso, a resolução do contrato com justa causa e por iniciativa do trabalhador respeita a situações anormais e particularmente graves, em que deixa de ser-lhe exigível que permaneça ligado à empresa por mais tempo.

E assim, só existirá justa causa para o trabalhador se despedir, quando a conduta do empregador satisfizer estes três requisitos:

um de carácter objectivo, traduzido num ou vários comportamentos deste que violem as garantias legais do trabalhador ou ofendam a sua dignidade;

outro de carácter subjectivo, consistente no nexo de imputação desta conduta a culpa exclusiva do empregador;

mas para além disso, exige-se ainda que esta conduta do empregador gere uma situação de imediata impossibilidade de subsistência do contrato, tornando inexigível ao trabalhador que permaneça vinculado por mais tempo à empresa.

Donde termos de concluir que para ocorrer justa causa tem que existir um comportamento ilícito do empregador, que seja violador dos deveres que lhe são impostos e das garantias do trabalhador, e que o seu grau de culpa condicione de tal forma a relação laboral que não lhe seja exigível que se mantenha vinculado à empresa.

Daí que, nem toda a violação de obrigações contratuais por parte do empregador confira ao trabalhador o direito de resolver o contrato.

Na verdade, e seguindo Romano Martinez, in Direito do Trabalho, 3.ª ed., Almedina, 2006, págs. 1010/11, «sempre que o empregador falta culposamente ao cumprimento dos deveres emergentes do contrato estar-‑se-á perante uma situação de responsabilidade contratual; e, sendo grave a actuação do empregador, confere-se ao trabalhador o direito de resolver o contrato. No entanto, nem toda a violação de obrigações contratuais por parte do empregador confere ao trabalhador o direito de resolver o contrato; é necessário que o comportamento seja ilícito, culposo e que, em razão da sua gravidade, implique a insubsistência da relação laboral.»

Doutrina que também vem sendo acolhida por este Supremo Tribunal, nomeadamente no supramencionado acórdão de 2 de Abril 2014, proc. n.º 612/09.7TTSTS.P1.S1, onde se reitera que a justa causa de resolução do contrato por iniciativa do trabalhador pressupõe, em geral, que da actuação imputada ao empregador resultem efeitos de tal modo graves, em si e nas suas consequências, que se torne inexigível ao trabalhador a continuação da prestação da sua actividade, sendo de atender, na ponderação da inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho, ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre as partes e às demais circunstâncias relevantes, tendo o quadro de gestão da empresa como elemento estruturante de todos esses factores.

Não é assim um qualquer conflito entre os sujeitos do contrato de trabalho que poderá justificar a resolução imediata do contrato, sendo exigível que esse conflito, além de imputável a culpa da entidade patronal, seja de tal modo grave que provoque a ruptura imediata do contrato por não ser exigível ao trabalhador que permaneça por mais tempo ligado à empresa.

Alinhadas estas considerações gerais sobre a matéria, vejamos então o caso presente.


3.3-1---

         Conforme resulta do artigo 398º, nº 3 do CT, na acção em que for apreciada a justa causa de resolução do contrato o tribunal apenas poderá atender aos factos que tenham sido invocados pelo trabalhador na comunicação que, para tanto, dirigiu ao empregador.

Nesta conformidade, na carta em que formalizou a resolução do seu contrato de trabalho com justa causa, a trabalhadora invocou, para além doutras circunstâncias que foram consideradas irrelevantes pela Relação, a falta de pagamento de parte das retribuições de férias, subsídios de férias e Natal, vencidas entre 1994 e 2013, porquanto na base de cálculo das mesmas não fora incluída a média das comissões auferidas num período de referência de 12 meses.

Não tendo a trabalhadora reagido contra esta posição do acórdão recorrido, apenas temos que apreciar se este motivo por si invocado constitui justa causa de resolução do contrato.

Por outro lado, considerou o acórdão, sem que a recorrente tenha impugnado este segmento, que as comissões pagas à trabalhadora integram o conceito de retribuição.

E nesta linha, condenou-a a pagar-lhe a quantia de 33.131,37 euros resultante dos diferenciais que lhe são devidos desde Setembro de 2002.

Foi com base na falta de pagamento reiterado da retribuição integral das férias, dos subsídios de férias e Natal desde aquela data que a Relação considerou verificada a justa causa de resolução do contrato pela trabalhadora, argumentando para tanto que:

“Significa isto que não pode deixar de se ponderar o grau de lesão dos interesses do trabalhador, o carácter das relações entre as partes e demais circunstâncias que sejam relevantes.

Ora, a lesão, como se apurou é substancial - estão em dívida várias dezenas de milhar de euros. Por outro lado, prolongou-se por diversos anos. Por outro lado ainda, a matéria de facto dá-nos conta de uma carta enviada pela mandatária da A. à R. onde se alertava para a situação de não inclusão de todas as prestações no cálculo da retribuição de férias e subsídios ao longo de toda a relação laboral. Esta carta foi enviada em 26/06/2013 e ali se pedia que fossem tomadas medidas adequadas à correcção da situação retributiva, concedendo-se, contudo, na possibilidade de negociar a extinção do posto de trabalho. Não obstante, nada foi feito e a ora Apelante veio a pôr termo ao contrato em 30/09/2013. Daí que entendamos que a violação em apreciação assume uma gravidade tal que não é exigível outra via senão a da ruptura, estando plenamente justificada.”

 

Contrapõe a recorrente que a falta de pagamento total da retribuição das férias e dos subsídios de férias e de Natal não impossibilitaram a subsistência do vínculo laboral, pois durante a longa vigência da relação laboral nunca a recorrida questionou tal falta de pagamento integral das retribuições, só o fazendo após a sua transferência para a loja de ..., ocorrida em Fevereiro de 2016, através da carta da sua mandatária recebida em 28/06/2013.

É certo que não se provou que a trabalhadora alguma vez tivesse suscitado perante a empregadora a questão da falta de pagamento integral das retribuições das férias e dos subsídios de férias e Natal.

De qualquer forma, fê-lo na carta de Junho de 2013, onde lhe era concedido um prazo de 10 dias para a empregadora se pronunciar sobre esta e outras matérias que apresentou nessa carta. E além disso, a trabalhadora alertava, desde logo, a sua empregadora para se pronunciar neste prazo, “atentas as necessidades económicas actuais e urgentes” da sua situação, advinda da transferência de local de trabalho de que resultara um aumento de despesas e uma diminuição de rendimentos.

Ora, conforme se colhe da matéria de facto constante do ponto 29) esta diminuição de rendimentos foi real, pois durante o período em que esteve na loja de ... a Autora auferiu valores monetários (de montante não apurado) inferiores aos auferidos na loja do ..., que era o seu local de trabalho anterior.

 E embora a Relação não tenha considerado que esta redução salarial tenha advindo duma violação culposa de deveres ou garantias por parte da empregadora, o certo é que ela existiu, tornando mais difícil a situação para a trabalhadora.

Por isso se compreende que não tendo a empregadora dado qualquer tipo de resposta até finais de Setembro de 2013, à carta que lhe enviara em Junho, não restasse à recorrida outra atitude senão a de resolver o contrato.

Efectivamente, a recorrente ignorara completamente o teor da sua carta, nomeadamente a abertura que a trabalhadora nela manifestara para solucionar a situação retributiva, mostrando-se até receptiva à possibilidade de negociar a extinção do seu posto de trabalho.

Concordamos assim com o juízo da Relação que concluiu que a violação dos direitos da trabalhadora, assumiu uma gravidade tal que não lhe restava outra via senão a da ruptura contratual, face à atitude da empregadora, aos elevados montantes em dívida e aos longos anos de violação reiterada dos seus direitos.

E assim, temos de considerar que a resolução do contrato de trabalho pela trabalhadora foi efectuada com justa causa, encontrando-se preenchido o requisito da impossibilidade de subsistência da relação laboral.

3.3.2---

Sustenta ainda a recorrente que a interpretação do nº 4 do artigo 394º do Código do Trabalho, sufragada pelo Tribunal recorrido, viola o princípio fundamental da "liberdade de iniciativa e de organização empresarial" e o dever do Estado de "incentivar a actividade empresarial", consagrados nos artigos 80º, alínea c) e 86º, nº 1, respectivamente da CRP (conclusão 9ª).

Procurando no corpo alegatório as razões em que a recorrente se fundamenta para tal violação, constatamos que se limita a invocar os mencionados preceitos constitucionais, nada mais acrescentando para lá do que consta da conclusão 9ª.

Mas a recorrente não tem razão nesta sua pretensão, pois constituindo a justa causa de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador a solução encontrada pelo legislador para uma situação de crise contratual imputável ao empregador, não vislumbramos em que medida o nº 4 do artigo 394º do CT coloque em causa os valores constitucionais invocados pela recorrente.

Improcede assim esta questão.

3.3.3----

         Quanto ao abuso do direito:

Na 10ª conclusão, alega a recorrente que, ainda que a recorrida tivesse o direito de resolver o contrato, jamais teria direito à indemnização prevista no artigo 396º do CT, por existir abuso de direito tal como vem definido no artigo 334º do Código Civil.

Resulta, com efeito, do supracitado normativo que é ilegítimo o exercício dum direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito.

Vem-se defendendo, no entanto, que não basta um qualquer desvio do fim económico ou social ou uma qualquer ofensa à boa-fé e aos bons costumes, dado que aquele preceito não se basta com isso, pois exige que ocorra um excesso manifesto no exercício dum direito pelo seu titular.

Nesta conformidade a doutrina acentua a densidade da ofensa, exigindo um excesso manifesto e desproporcionado, pronunciando-se neste sentido Galvão Teles, Obrigações, 3ª edição, pgª 6; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, anotado, volume 1º, 3ª edição, pª 296; e Cunha de Sá, Abuso de Direito, 454.

Também Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 63, fala num exercício dum direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça; e Vaz Serra, abuso de direito, BMJ 68/253, exige também uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.

Assim, a teoria do abuso do direito serve de válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação, geral e abstracta, das normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado, conforme advogam Manuel de Andrade, in RLJ, ano 87, pg. 307, e Vaz Serra, MBJ 85, pg. 326.

Por isso, não basta que do exercício dum direito advenham prejuízos para outrem, sendo necessário que o seu titular exceda, visível, manifesta e clamorosamente, os limites que lhe cumpre observar, decorrentes da tutela da confiança e impostos pelos padrões morais de convivência social reinantes na comunidade de contexto, bem como pelo fim económico e social que justifica a existência desse direito, redundando numa injustiça flagrante (sem que seja exigível que tenha consciência disso, como resulta da concepção objectiva do instituto, acolhida no nosso ordenamento jurídico[3]).

Não é assim, um qualquer exercício excessivo de um direito que o torna, só por si, proibido, pois o que se exige é que o respectivo titular ultrapasse, manifesta e clamorosamente, os limites impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa-fé), quer pelos padrões morais de convivência social comummente aceites (bons costumes), quer, ainda, pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito.

Nesta conformidade, e conforme se diz acórdão deste Supremo Tribunal de 16/11/2011[4] “… existirá abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.”

Como figura integradora de comportamento típico do abuso do direito a doutrina costuma mencionar, entre outras, a do “venire contra factum proprium” que se caracteriza pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.

Por isso, Baptista Machado, in ‘Tutela da Confiança’, Obra dispersa, Vol. I, pg. 416, refere que o ponto de partida do venire é ‘uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira’.

Corresponde assim ao exercício dum direito em contradição com uma conduta anterior em que a outra parte tenha, de boa fé, confiado e, com base nela, programado a sua vida, conforme advoga Vaz Serra[5].

E voltando ao supra mencionado acórdão deste Supremo Tribunal de 16/11/2011, “na sua estrutura, o “venire” pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito.”

Por isso, nestas situações a paralisação do direito é justificada pela tutela da confiança, resultante da anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira, no dizer de Baptista Machado, acima citado.

Postas estas considerações, impõe-se verificar se, no caso em apreço, se justifica a paralisação do direito de resolver no contrato de trabalho com justa causa e com direito a indemnização.

         Para fundamentar a sua pretensão de exercício abusivo do direito por parte da trabalhadora alega a recorrente que, ao resolver abruptamente o seu contrato, a trabalhadora exerceu ilegitimamente este direito, tendo agido com manifesta má-fé e ao arrepio da confiança.

         Mas não tem razão, pois não se evidencia nenhuma situação que permita concluir, sem margem para dúvidas, que a actuação da trabalhadora seja manifestamente desconforme com a boa-fé.

         Na verdade, embora não se tenha apurado que, enquanto esteve ao serviço da R na loja do ..., a trabalhadora tivesse suscitado a questão da falta de pagamento integral da retribuição das férias, e dos subsídios de férias e Natal, nem por isso podemos considerar que tenha resolvido abruptamente o contrato, conforme pretende a recorrente.

Efectivamente, na carta de Junho de 2013, a recorrida alertou a empregadora para esta situação, tendo-lhe concedido um prazo de 10 dias para se pronunciar e apresentar soluções, a que estava receptiva.

Por outro lado, nessa carta a trabalhadora alertava a empregadora para a situação difícil em que se encontrava, pois da sua transferência de local de trabalho resultara um aumento de despesas e uma diminuição de rendimentos, tendo-se provado efectivamente, que durante o período em que esteve na loja de ..., a Autora auferiu valores monetários inferiores aos recebidos na loja de ....

Não se pode assim concluir que o exercício do direito de resolução do contrato com justa causa por iniciativa da trabalhadora tenha sido manifestamente excessivo.

Por isso, não podemos considerar integrada a figura do abuso do direito, pelo que improcede também esta questão.

E face a tudo o exposto, temos de concluir pela improcedência total da revista.

4----

         Termos em que se acorda nesta Secção Social em negar a revista.

         As custas do recurso são a cargo da R.  

 

          Anexa-se sumário do acórdão.

         Lisboa, 6 de Dezembro de 2017

Gonçalves Rocha (Relator)

Leones Dantas

Júlio Vieira Gomes


______________________
[1] Neste sentido se pronunciava a jurisprudência deste Supremo Tribunal, nomeadamente no acórdão de 23/5/95, BMJ 447/271.
[2] Processo nº 234/07.7TTSTB.S1-4ª secção, www.dgsi.pt. No mesmo sentido, veja-se ainda o acórdão deste Supremo Tribunal de 13/7/2011, Processo 105/08.0TTSNT.L1.S1-4ª secção (Revista), também acessível em www.stj.pt.
[3] Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 1967, pg. 217.
[4] Recurso nº 203/08.0TTSNT.L1.S1 (Pereira Rodrigues)
[5] Cfr. Vaz Serra, RLJ, 111º, pág. 296.