Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
23707/19.4T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANO CAUSADO POR COISAS OU ATIVIDADES
PRESUNÇÃO DE CULPA
NEXO CAUSAL
ÓNUS DA PROVA
FRAÇÃO AUTÓNOMA
INUNDAÇÃO
DEVER DE VIGILÂNCIA
Data do Acordão: 04/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - O artigo 493º, nº1, do CCivil, consagra uma presunção de culpa quanto aos danos causados por coisas, móveis ou imóveis, que recai sobre quem tem o dever de vigiar o seu estado, de forma que não causem danos a terceiros;

II - No entanto, é ao autor que cabe provar a ocorrência do dano e o nexo causal entre o mesmo e a coisa sujeita a vigilância;

III – Assim, e pese embora a presunção de culpa do nº1 do art. 493º, se a autora não logrou provar que os danos na sua fracção tiveram origem, foram causados, pelas obras realizadas na fracção da ré, a acção de indemnização está votada ao insucesso.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB, em que com fundamento nos prejuízos que sofreu em resultado das obras que a Ré realizou na fração de que é proprietária, pede a condenação da Ré a:

-  suportar os custos com a reparação de todos os danos verificados nas duas frações da A., em consonância com a perícia requerida;

- a suportar o custo da habitação ou hospedagem da A. durante o tempo de execução das obras, bem como o custo da deslocação, armazenamento e guarda dos respetivos bens, em valor a liquidar;

- a pagar à A. € 2.238,60 correspondentes aos custos por si suportados a título de serviços de peritagem, engenharia civil e desinfestação;

- a pagar à A. € 5 000,00 por danos não patrimoniais.


Regularmente citada, a R. contestou.

 

Instruída a causa, com a realização de prova pericial e após audiência de julgamento, foi proferida sentença que absolveu a Ré da totalidade dos pedidos.

Inconformada, a Autora apelou da sentença.

Por acórdão da Relação de Lisboa de 29.09.2022, com voto de vencido, foi o recurso julgado improcedente e confirmada a sentença.

Ainda inconformada, a Autora interpôs recurso de revista, finalizando a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. Recorrente não concorda com a decisão do Acórdão sobre recurso.

2. O regime dos vigilantes, previsto no artigo 493.ºdoCódigo Civil estabelece de modo inequívoco uma presunção de culpa, sobre os sujeitos obrigados ao dever de vigilância, relativamente a danos provocados pela coisa imóvel objeto desse dever.

3. Ficou demonstrado que a Recorrida é proprietária da fração superior (3.º piso) à da Recorrente, nomeadamente, nos pontos 1 e 2 dos factos provados, na qual se inclui e faz parte integrante o terraço.

4. Enquanto proprietária, a Recorrida tem o dever de vigilância sobre sua fração, para efeitos do preenchimento do âmbito subjetivo doartigo493.º, n.º 1 do Código Civil.

5. Ficou demonstrado, nomeadamente nos pontos 14 a 18 dos factos provados, que para além de terem ficado provadas as infiltrações e os danos por elas causados, ficou também provada a possibilidade das mesmas resultarem do deficiente isolamento das várias floreiras com terra e plantas existentes no terraço do 3.º piso, assim como da deficiente impermeabilização do pavimento desse terraço, bem como do passadiço e das varandas das traseiras e escoamento das águas pluviais no mesmo e floreiras.

6. A Recorrida não logrou afastar a presunção de culpa que sobre si recaía, enquanto responsável pela coisa imóvel nos termos do artigo 493.º, n.º 1 do Código Civil, apesar de ter ficado demonstrado que as infiltrações no quarto a tardoz, corredor, casa de banho contíguos, lavabo e cozinha que dão para o saguão podem resultar da violação de deveres inerentes ao dever de vigilância que impende sobre si.

7. A Recorrente produziu a prova necessária para a presunção de culpa recair sobre a Recorrida, contrariamente ao entendimento do douto Tribunal, mostra-se preenchido o ónus da prova que lhe cabia.

8. Estatuindo o 493.º, n.º 1 do Código Civil uma inversão do ónus da prova, cabia à Recorrida apresentar uma contraprova para afastar a presunção legal.

9. Estipula ainda o artigo 346.º do Código Civil que “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”

10. Não obstante, a Recorrida não apresentou qualquer contraprova que tornasse os factos provados pela Recorrente, nos quais se inclui o ponto 16 dos factos provados, “duvidosos”.

11. De facto, analisada a jurisprudência citada, a mesma tem seguido o entendimento de que, por um lado, há uma presunção de culpa sobre o proprietário do imóvel relativamente aos danos causados por infiltrações nos pisos ou apartamentos inferiores e que, por outro, os proprietários dos pisos inferiores não têm de provar a razão de ser dessas infiltrações.

12. A presunção de culpa baseia-se na postura do homem face à coisa objeto vigilância, na perspectiva de que o dano não se teria verificado, caso o sujeito cumprisse os deveres de custódia, conforme explica Vaz Serra, em Responsabilidade civil pelos danos causados por coisas ou actividades, BMJ 85, pág. 368.

13. Uma vez que há Recorrente bastava provar a existência dos danos provenientes das infiltrações, não tendo o Recorrido provado que actuou segundo os deveres que se lhe impõem enquanto proprietário da coisa sob vigilância, presume-se culpado.

14. Recorrente não estava, obrigada a provar “sub-causas” das infiltrações.

15. Havendo uma presunção legal sobre a Recorrida, incumbia-lhe afastá-la mediante contraprova, o que não sucedeu.

16. Assim deve dar-se como provada a existência de um nexo de causalidade previsto pelo artigo 563º do Código Civil.

17. Pelo exposto, deve ser procedente o pedido formulado pela Recorrente na sua petição inicial, nomeadamente, na parte em que pede a condenação a Recorrida no pagamento da indemnização correspondente ao custo da reparação dos danos acima referidos, cujo montante se relegaria para incidente de liquidação, dentro dos limites do pedido formulado, nos termos do artigo 609º, n.º 2 do Código de Processo Civil e a indemnização por danos patrimoniais fixada nos termos do artigo 496.º, n.º 4 do Código Civil.


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Contra alegou a Recorrida, pugnando pela não admissão do recurso; assim não se entendendo, deve o mesmo ser julgado improcedente.

Conclui do seguinte modo as suas alegações:

1. A Recorrente interpôs o presente recurso de revista alicerçado no disposto no artigo 671.º/1 e 3, do CPC.

2. Compulsadas as respetivas conclusões, pugna-se aí de que deveria ter sido julgada «como provada a existência de um nexo de causalidade previsto pelo artigo 563º do Código Civil.»

3. E, bem assim, pretende ainda a Recorrente que venha a ser julgado como provado a presunção de culpa da Recorrida, por ser aplicável ao caso concreto, o regime previsto no artigo 493.º do CC.

4. Ora, a decisão recorrida julgou aplicável ao caso concreto o regime previsto no artigo 493.º do CC, ao contrário daquele que foi o entendimento da primeira instância.

5. Todavia, o que a decisão recorrida não julgou como provado, foi o nexo causal entre os alegados danos na residência da Recorrente e a respetiva origem.

6. Neste ponto, a decisão recorrida limitou-se a confirmar a decisão da 1.ª instância.

7. Destarte, independentemente de ser aplicável ou não ao caso concreto, o regime geral da responsabilidade civil extracontratual ou o regime previsto no artigo 493.ºdoCC, a questão essencial e que já foi julgada com fundamentação essencialmente igual em ambas instâncias é a de que a Recorrente não logrou demonstrar o nexo causal, ónus da prova que lhe caberia a si, independentemente de haver lugar há prova da culpa ou de esta se achar presumida, consoante o regime aplicável.

8. Logo, sobre esta questão (pressuposto nexo de causalidade), há, de facto, uma dupla conforme, pois ambas instâncias julgaram que a Recorrente não logrou provar o nexo de causalidade; o que determina a inadmissibilidade legal do presente recurso de revista

9. Com efeito, entre a decisão recorrida e a fundamentação do voto vencido aí exarado, a única dissensão assenta precisamente nesse ponto.

10. Todavia, o julgamento sobre o nexo de causalidade, para além da verificada dupla conforme, esquiva-se ainda à competência decisória do Colendo Tribunal ad quem.

11. E, sem prejuízo do acima alegado e concluído, a verdade é só uma, a Recorrente aproveitando o facto de a Recorrida ter decidido reabilitar a sua fração, engendrou um plano visando, inicialmente, obter uma idêntica remodelação da sua fração a expensas da Recorrida.

12. Para tal forjou na PI uma «plêiade de patologias» tal como acertadamente se exarou na decisão da 1.ª instância, sendo certo que o relatório da prova pericial deitou por terra uma significativa parte dessas patologias.

13. Ademais, esse relatório deixou vítreo, conforme bem descreve a decisão recorrida, que «o que resultou na presente ação foi que não ficou determinada a origem das infiltrações na casa da A.», ou seja, caberia sempre à Recorrente ter de provar que entre as deficiências na sua fração e as obras realizadas pela recorrida se tenha estabelecido um nexo de causalidade adequado ao seu surgimento.

14. Em conclusão, não basta o relatório da prova pericial admitir a possibilidade (podem) sobre a causa de parte dos danos, para daí se julgar como provado o estabelecimento do nexo de causalidade.


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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


A questão a decidir resume-se em saber se se mostram preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar por responsabilidade civil extracontratual, previstos no art. 493º do CCivil.


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Fundamentação.


Vem provada a seguinte matéria de facto:

A.1 - Em 10-2-2017, a R. adquiriu, por compra, a fração designada pela letra “L” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 64 da freguesia ..., em ..., correspondente ao 3.º andar do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs 47 a 55, com entrada pelo n.º 49 (doc. 2 junto com a petição inicial).

2 - Em 28-3-2017, a A. adquiriu, por compra, as frações designadas pelas letras “I” e “H” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 64 da freguesia ..., em ..., correspondentes ao 2.º andar D do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs 47 a 55, com entrada pelo n.º 49 (doc. 1 junto com a petição inicial)

3 - A A. destinou as frações a sua habitação permanente.

4 - Entre o início de Março de 2017 e o fim de Julho de 2017, a R. fez realizar obras na fração “L”.

5 - Não há desnivelamento de paredes e pavimentos, exceto no teto da sala de estar, entre o teto de réguado de madeira e parede estucada e pintada.

6 - Existe fendilhação ligeira em paredes.

7 - Não se verificam estragos em soalhos, que se apresentam em bom estado de conservação.

8 - Verificam-se quebras e deformações em alvenaria na casa de banho com arco de tijolo muito antigo danificado e na cozinha há uma verga em pedra do vão do fogão partida.

9 - Há quebras e deformações em pinturas na suite, no quarto junto à fachada de tardoz e no pequeno lavabo junto à entrada.

10 - Existem pontos de luz sem corrente e o quadro elétrico encontra-se operacional, com todos os disjuntores ligados.

11 - Há uma portada de madeira, no vão da sala de estar de acesso à varanda, que não fecha em condições (as portadas dos vãos de janela da fachada principal são muito antigas, bem como as respetivas ferragens).

12 - Os vãos de janela e sacada são todos recentes, em caixilharia alumínio revestida a PVC com vidros duplos de isolamento acústico e térmico.

13 - Existem pequenas inclinações na sala de estar e saleta contigua, nas vergas dos vãos.

14 - Verifica-se no teto da suite, no quarto junto à fachada de tardoz, corredor e casa de banho contíguos ao mesmo, pinturas em mau estado, desagregação de rebocos e infiltrações.

15 - Existem infiltrações no quarto a tardoz, corredor, casa de banho contíguos, lavabo e cozinha que dão para o saguão e no teto da suite.

16 - Essas infiltrações podem resultar do deficiente isolamento das várias floreiras com terra e plantas existentes no terraço do 3.º piso, assim como da deficiente impermeabilização do pavimento desse terraço, bem como do passadiço e das varandas das traseiras e escoamento das águas pluviais no mesmo e floreiras; a causa da infiltração no teto da suite tem causa desconhecida.

17 - Há casos de infiltrações que se distribuem um pouco por toda a área de ambas as frações do 2.º e 3.º andar e que podem ter origem nas degradações de coberturas, beirados e paramentos de empenas de alvenaria (algumas destas paredes estão revestidas a tela).

18 - O quarto, face às infiltrações verificadas, ao mau estado das paredes e teto, não se encontra em condições de habitabilidade.

19 - As obras realizadas pela R. no 3.º piso consistiram nos trabalhos a seguir descritos.

a. As casas de banho foram renovadas (2017), com divisão de uma casa de banho em duas, passando a 3 no total com novas canalizações, torneiras, equipamentos e aparelhos sanitários.

b. Renovação das aparelhagens de eletricidade, novo termoacumulador, equipamento de cozinha e iluminação.

c.  Colocação de divisória em pladur, de modo a dividir a casa de banho em duas;

d. Colocação de uma divisória em pladur (gesso cartonado), a separar as duas

casas de banho com acabamento integrados nas restantes paredes, não constituindo carga adicional significativa para o piso inferior da A..

e.  Abertura numa parede para colocação de uma porta de acesso à nova casa de banho.

f. Afagamento e envernizamento do soalho de madeira;

g. As portas de madeira estão acabadas com pintura a branco mate.

h. Nas duas casas de banho novas os mosaicos de pavimento e azulejos em paredes são novos.

i. Na casa de banho da suite o revestimento de chão e paredes aparenta ser original.

j. Substituição dos mosaicos do chão da cozinha com colocação sob o mesmo de um sistema radiante de aquecimento do pavimento com respetivo controlador na parede.

l. Picagem e substituição de estuque das paredes e tetos, com acabamento a pintura, com exceção na sala da fachada principal em que permanecem as pinturas com desenhos muito antigos.

m. O estuque e pintura apresentam-se em bom estado, com exceção da parede exterior da suite e as paredes do corredor e cozinha, que apresentam empolamentos da pintura, humidades e fendilhação.

n. Substituição do mobiliário encastrado da cozinha.

o.  As janelas foram substituídas por caixilharia de alumínio/PVC com vidros duplos, oscilobatentes.


20 - O edifício em causa é um edifício habitacional em banda com 5 pisos com mais de 200 anos, em regular estado de conservação, embora as escadas em madeira nas zonas comuns, evidenciem alguma degradação, com várias remodelações, patentes nas frações da Autora (2º andar) e R. (3º andar), resistindo relativamente bem ao passar do tempo e intempéries, com trafico automóvel reduzido, por ter um só sentido e estar localizado na Rua ... 49, próximo da parte mais elevada da rua.

21 - A zona onde está inserido o prédio é uma zona consolidada, com bom ambiente geotécnico.

22 - Nas duas frações do prédio objeto da perícia, tendo em atenção as compartimentações existentes nas plantas fornecidas com a perícia, não constam alterações estruturais relevantes, registando-se simplesmente a criação de uma parede divisória em pladur na criação das 2 casa de banho no 3º andar, sem qualquer efeito assinalável de excesso de carga na prumada da fração do 2º andar.

23 - Existem sinais de assentamentos de paredes tanto na fração do 2º como do 3º andar, bem visível nas vergas de algumas portas inseridas em paredes interiores que estão bastante inclinadas, pelas fendas obliquas existentes na caixa de escadas e ainda inclinação dos pavimentos na suite do 3ºandar.

24 - Não se notaram assentamentos de pavimentos no 2º andar admitindo que isso se deva ao facto de existir um duplo soalho neste piso, razão pela qual, esses assentamentos, que deverão existir, não são visíveis hoje em dia.

25 - Não se detetaram nos pisos 2.º e 3.º movimentações sistémicas, tais como fissuras e fendas em paredes e tetos e as fachadas do prédio encontram-se pintadas com aspeto recente.

26 - A dinâmica normal destes edifícios pombalinos e ou gaioleiros (1880-1940), deve ser devidamente acompanhada por intervenções periódicas a nível de manutenção das estruturas, canalizações, com modernização, sem afetar o estado do edifício.

27 - O prédio tem administração de condomínio, que assegura o normal funcionamento do mesmo.

28 - O sistema de pavimentos é constituído por réguas de madeira assentes em barrotes diretamente nas paredes no sentido do menor vão.

29 - O facto de este ser o sistema estrutural não é potenciador de deficiências como as encontradas.

30 - Não se verifica:

- fendilhação generalizada em paredes, especialmente junto aos tetos e pavimentos;

- fendilhação de tectos, paredes e pavimentos em alinhamentos transversais entre a fachada principal e posterior do edifício;

- enfilamentos e deformações em paredes e tectos falsos;

- tomadas e interruptores em mau estado;

- estragos na porta da entrada;

- portadas desniveladas e empenadas, com ferragens a entortar e descair;

- desnivelamento e desencaixe das estruturas de alumínio das janelas;

- estragos em aduelas e ferragens de portas e janelas;

- estragos nas pedras, revestimentos, bases de duche e torneiras das casas de banho.

31 - Durante a realização de obras para reparações a A. não terá nem de arrendar uma outra casa, nem de custear a mudança e um armazém para guardar os seus pertences.

32 - As deficiências da fração da A. não se devem à falta de manutenção da mesma, nem à circunstância de as frações do edifício terem configurações internas diferentes entre si, resultantes das alterações introduzidas por antigos proprietários, ao longo de mais de dois séculos.

33 - Quando a filha da A. se desloca a Portugal não pode permanecer em casa da mãe, por força da falta de condições do quarto que lhe estava destinado.

34 - Por força do estado do quarto o filho da A., quando se desloca a Portugal, não pode permanecer em casa da mãe.

35 - A circunstância de os filhos não terem quarto em condições de habitabilidade em sua casa gera tristeza na A..

36 - Por força do ocorrido, a A. evita receber visitas.

37 - O estado da casa gera tristeza e desgaste emocional na A..

38 - Foi instalado um painel de isolamento do piso radiante, apenas na cozinha e apenas para ar quente, em cima de cimento.

39 - No local que estaria destinado a quarto dos filhos da A. existiu uma cisterna, tendo aquela área sido reconvertida.

40 - Quando a anterior proprietária do imóvel decidiu construir o deck o então proprietário da fração procedeu à impermeabilização do terraço.


B . Foi julgado não provado:

. que as obras tenham decorrido com vibração constante e ruído insuportável.

. que tenha havido estragos a óleo por força de calor.

. que as obras realizadas pela R. tenham ocasionado uma infestação de insetos rastejantes.

. que por força do ocorrido a filha da A. tenha passado a habitar de forma permanente em casa do pai, mas sim que quando a filha da A. se desloca a Portugal não pode permanecer em casa da mãe, por força da falta de condições do quarto que lhe estava destinado.


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Fundamentação de direito.


Cumpre verificar antes de mais se a revista deve ser admitida, questão suscitada pela Recorrida que alega verificar-se uma situação de dupla conforme.

A revista vem interposta de um acórdão da Relação proferido sobre decisão da 1ª instância que conheceu do mérito da causa; trata-se, por conseguinte, de decisão recorrível nos termos do nº1 do art. 671º do CPC.

Nos termos do nº3 da citada disposição, “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”  


Consagra a norma citada a chamada dupla conforme, que visa restringir e racionalizar acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, cuja existência depende de três requisitos:

a) a confirmação pela Relação, do sentido decisório (condenatório ou absolutório do pedido ou da instância);

b) decisão confirmativa da Relação tirada sem qualquer voto de vencido;

c)  fundamentação (jurídica) das duas decisões essencialmente idêntica. 


No caso vertente, a Relação confirmou a improcedência da acção decretada na sentença, embora com diferente fundamentação, e não de forma unânime.

Com efeito, a sentença aplicou ao caso o regime da responsabilidade civil extracontratual previsto no art. 483º do CCivil; já a Relação considerou que a situação deve ser enquadrada no art. 493º, que prevê a responsabilidade civil pelos danos causados por coisas, animais ou actividades.

Em qualquer dos casos a responsabilidade não prescinde do requisito culpa fixado no art. 483º.

Simplesmente, enquanto na responsabilidade civil subjectiva (art. 483º), incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (art. 487º, nº1 do CCivil), o art. 493º estabelece uma presunção de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou de animais ou exerce uma actividade perigosa.

A isto acresce que o acórdão não foi tirado por unanimidade, por um dos ilustres Desembargadores ter entendido que a Ré não ilidiu a presunção de culpa e daí que a acção deveria ter procedido pelo menos em parte.

Tanto basta para afastar a dupla conforme, sendo assim a revista admissível.


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No essencial, importa saber se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar nos termos do art. 493º do CCivil.

O acórdão recorrido manteve a improcedência da acção, decisão assim justificada:

“(…) não tendo a A. logrado provar que as infiltrações têm origem na fracção da R., como lhe competia nos termos do art.º 342º do Código Civil, não pode beneficiar da presunção de culpa desta, enquanto responsável pelos danos ocasionados pela coisa, com fundamento no art.º 493º, n.º 1 do Código Civil. De facto, a norma em causa não prevê uma dupla presunção.

Não logrando assim a A. provar a culpa da R., quer efectiva quer presumida, verifica-se que a pretensão da A. não pode proceder, mantendo-se em consequência a Sentença proferida, com a fundamentação supra, improcedendo em consequência o recurso.”


Dissentindo do assim decidido, a Recorrente defende a procedência da acção, posição que estriba nos seguintes argumentos essenciais:

- Ficou provada a possibilidade de as infiltração resultarem do deficiente isolamento das várias floreiras com terra e plantas existentes no terraço do 3.º piso, assim como da deficiente impermeabilização do pavimento desse terraço, bem como do passadiço e das varandas das traseiras e escoamento das águas pluviais no mesmo e floreiras; (concl. 5º);

- Havendo uma presunção legal sobre a Recorrida, incumbia-lhe afastá-la mediante contraprova, o que não sucedeu.

- Assim deve dar-se como provada a existência de um nexo de causalidade previsto pelo artigo 563º do Código Civil.


Vejamos se lhe assiste razão.

Dispõe o art. 493º do Código Civil:

1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que as coisas ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzidos ainda que não houvesse culpa sua.

2. (…).

Estabelece-se neste artigo a presunção de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou de animais, ou exerce uma actividade perigosa pela sua própria natureza, ou pela natureza dos meios utilizados (nº2), pelos danos que a coisa ou os animais causarem.

Esta responsabilidade civil especial, designadamente quanto aos danos causados por coisas, assente numa presunção de culpa, cabe a quem tiver em seu poder coisa, com o dever de a vigiar. Ao atribuir a responsabilidade a quem tiver a guarda coisa, o legislador admitiu o a presunção daquele que guarda a coisa ter culpa no facto causador do dano, quer por ter o dever de providenciar que tal não venha a verificar-se, quer também por estar em melhor posição para fazer a prova da culpa, pois estando à sua disposição deve saber se realmente foi cauteloso na sua guarda (Vaz Serra BMJ, nº 101, pag. 130 e sgs.) 

O dever que tem o proprietário de vigiar o estado de conservação do imóvel que é sua propriedade de sorte a impedir que nele se ocasionem focos danosos, sob pena de incorrer na obrigação de indemnizar os danos causados pelo mau estado de conservação do imóvel, tem sido afirmada em múltiplos arestos do STJ.

Sem preocupação de ser exaustivo, citam-se os seguintes:

Ac. 15.02.2005, P. 05B214 (Lucas Coelho):

Resultando dos factos provados que a produção dos danos na fracção autónoma dos autores foi devida a infiltrações de água a partir da contínua fracção dos réus, conclui-se terem estes actuado com negligência, uma vez que face aos indícios da proveniência das infiltrações, deviam e podiam ter averiguado a origem das mesmas e proceder às reparações necessárias, o que só não aconteceu por descuido e, até, desrespeito para com o demandante.


Ac. 14.09.2010. P.403/2001 (Salazar Casanova):

I - Se o autor prova que as águas que inundaram e danificaram o seu apartamento provieram do interior do apartamento dos réus, mostra-se preenchido o ónus da prova (art. 342º do CC), de que o facto danoso teve origem ou causa na coisa sob vigilância dos réus (art. 493º/1 do CC), não lhe cumprindo provar ainda que a razão (sub-causa) da inundação (uma eventual ruptura da canalização, uma torneira deixada a correr por incúria ou distracção, etc.)

II - O proprietário que tenha o imóvel em seu poder tem o dever de vigiar o seu estado de conservação e responde pelos danos originados no imóvel (infiltrações de água, incêndios, etc), salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa (art. 493º, nº1 do CC).


Ac. 10.11.2016, P. 472/10 (Olindo Geraldes):

A responsabilidade civil especial, prevista no art. 493º, nº1 do CC, designadamente quanto aos danos causados por coisas, móveis ou imóveis, assente numa presunção de culpa, cabe a quem tiver em seu poder a coisa, com o dever de a vigiar.


Como decorre dos acórdãos citados, por constituir um pressuposto da obrigação de indemnizar (art. 483º do CC), o autor tem o ónus da prova de que os danos sofridos no imóvel de que é proprietário resultaram de inundações com origem no prédio do réu.

Não podia deixar de ser assim por força do nº1 do art. 342º do CC que consagra o princípio segundo o qual “aquele que invoca um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.”

O que o nº1 do art. 493º tem de particular é que, derrogando a norma do art. 487º, nº1 – “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa” -, estabelece uma presunção de culpa, ficando o réu com o ónus de ilidir a presunção de culpa que sobre ele recai. Não dispensa, todavia, o autor de provar que os danos cuja ressarcibilidade pretende tiveram origem na coisa sujeita a vigilância do réu.

Postos estes princípios, é altura de reverter ao caso dos autos, recordando o que se provou quanto ao estado da fracção da Autora:

Existe fendilhação ligeira em paredes; há quebras e deformações em alvenaria na casa de banho com arco de tijolo muito antigo danificado e na cozinha há uma verga em pedra do vão do fogão partida;  verificam-se também quebras e deformações em pinturas na suite, no quarto junto à fachada de tardoz e no pequeno lavabo junto à entrada.

No entanto, nada se provou que permita imputar às obras realizadas pela Autora na sua fracção os problemas descritos, tendo resultado não provado que “as obras tenham decorrido com vibração constante e ruído insuportável.”

Provou-se, aliás, que os danos são muito menores que os alegados pela Autora (cf. ponto 30 da matéria de facto)

Quanto às infiltrações, provou-se que:

- No teto da suite, no quarto junto à fachada de tardoz, corredor e casa de banho contíguos ao mesmo, pinturas em mau estado, desagregação de rebocos e infiltrações;

- Existem infiltrações no quarto a tardoz, corredor, casa de banho contíguos, lavabo e cozinha que dão para o saguão e no teto da suite.

Foi inconclusiva a prova quanto à causa das infiltrações: a infiltração no teto da suite tem causa desconhecida; as restantes, tanto podem resultar da deficiente impermeabilização do pavimento do terraço do 3º piso, como do passadiço e das varandas das traseiras e escoamento das águas pluviais no mesmo e floreiras; da degradação de coberturas, beirados e paramentos de empenas de alvenaria (algumas destas paredes estão revestidas a tela). (factos 16 e 17).

Era a Autora que tinha o ónus de provar (art. 342º/1 do CCivil), que o facto danoso ocorreu ou foi causado pela coisa sob vigilância.

 Prova que não fez.

Não podemos deixar de subscrever o seguinte excerto da sentença:

“Dos factos assentes não é possível retirar que a realização de obras no andar de cima tenha provocado assentamentos, fissuração, vãos quebrados ou outras patologias. As consequências de humidade/infiltrações são até mais notórias em paredes, o que aponta para uma origem de degradações de coberturas, beirados e paramentos de empenas de alvenaria. Não existindo água a correr diretamente do andar de cima para o andar de baixo, as desagregações parecem prender-se com os materiais próprios das paredes e teto e as humidades com a exteriorização de água acumulada. Não se alcança que essa água possa ter origem nas obras do andar de cima, mesmo compulsando, uma vez mais, o elenco construtivo.”


Com o que improcedem na totalidade as conclusões da Recorrente.


Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 13.04.2023


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Nuno Ataíde das Neves