Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2567/09.9TBABF.E1.S1
Nº Convencional: 7º SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO MORTE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL - FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.
Doutrina:
- A. Varela, “Código Civil” Anotado, 4ª ed., vol. I, pág. 501.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 494.º, 496.º, 566.º, N.ºS1 E 3.
DL N.º 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO, NA VERSÃO DO DL N.º 83/2006, DE 3 DE MAIO: - ARTIGO 21.º, N.º2, AL. B).
PORTARIA Nº 377/2008, DE 26 DE MAIO, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA PORTARIA Nº 679/2009, DE 25 DE JUNHO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 7 DE OUTUBRO DE 2010 (PROC. N.º 839/07.6TBPFR.P1.S1, E DE 4 DE MARÇO DE 2014, PROC. 856/07.6TVPRT.P1.S1, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT ).
-DE 31 DE JANEIRO DE 2012 (PROC. Nº 875/05.7TBILH.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT )
-DE 19 DE ABRIL DE 2012 (PROC. Nº 3046/09.0TBFIG.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT )
-DE 31 DE MAIO DE 2012, (PROC. Nº 14143/07.6TBVNG.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT )
Sumário :
I - Nos termos do art. 21.º, n.º 2, al. b), do DL n.º 522/85, de 31-12, sobre o FGA só recai a obrigação de ressarcir os danos patrimoniais quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz.

II - Uma vez que no caso dos autos se desconhece a identidade do responsável pelo acidente de viação, ficam excluídos da obrigação de indemnizar, por parte do FGA, os aludidos danos patrimoniais como sejam o valor do motociclo e capacete.

III - São indemnizáveis tanto o dano da morte da vítima, como os danos não patrimoniais sofridos pelos pais deste, nomeadamente o decorrente da perda do seu filho.

IV - Vem-se consolidando na jurisprudência o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida – direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos – deve situar-se, com algumas oscilações, entre os € 50 000 e os € 80 000.

V - Resultando dos autos que a vítima tinha 20 anos, era solteiro, vivia com os pais e uma irmã, tinha começado a trabalhar recentemente como motorista, se encontrava numa fase pujante da vida e que foi embatido na sua faixa de rodagem por um veículo que se pôs de imediato em fuga, é adequado o montante indemnizatório de € 80 000, pela perda do direito à vida, tal como fixado pela Relação.

VI - É adequada a indemnização de € 20 000, atribuída pela Relação a cada um dos pais da vítima, para os ressarcir do sofrimento causado pela morte de um filho com apenas 20 anos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. - Relatório:


AA e BB instauraram no Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira a presente acção, com processo ordinário, contra o Instituto de Seguros de Portugal (Fundo de Garantia Automóvel), pedindo a sua condenação no pagamento de € 75.000,00 a título de danos não patrimoniais pelo sofrimento do seu falecido filho; de € 100.000,00 a título de indemnização pelo valor vida; de € 100.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais pelo sofrimento dos autores; e, bem assim, de € 93.833,02 a título de indemnização por danos patrimoniais, quantias acrescidas dos juros de mora que se vencerem desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Pediram ainda a condenação do réu no pagamento das custas do processo, bem como demais encargos e gastos decorrentes do processo, designadamente as despesas e honorários com o mandatário, valor a calcular e a liquidar em execução.

Alegaram, em síntese, que no dia 23 de Novembro de 2006 o sinistrado CC, seu filho, transitava no seu motociclo pela EN 395 no sentido de marcha Albufeira/Ferreiras, dentro da sua faixa de rodagem, a qual foi invadida por um veículo Pick Up 2500, que circulava em sentido oposto. Esta viatura embateu no motociclo e de imediato se pôs em fuga. O CC ficou prostrado, vindo a falecer.

O acidente de viação ficou, pois, a dever-se à culpa única e exclusiva do condutor do veículo, cuja identidade acabou por não se conseguir apurar, pelo que compete ao Fundo de Garantia Automóvel garantir a satisfação das compensações devidas, a título de indemnização, pelos danos emergentes do acidente de viação.


Na contestação o Fundo Garantia Automóvel alegou haver outros lesados, já que o acidente foi, simultaneamente, de trabalho, e requereu a intervenção principal da Companhia de Seguros DD, SA.

Admitida a intervenção, a Companhia de Seguros DD, S.A., pediu a apensação aos autos de uma acção por si proposta contra o Fundo Garantia Automóvel em Março de 2010.

Apensada tal acção em 24-10-2011, o julgamento veio a efectuar-se em conjunto.

A sentença final terminou com a seguinte decisão:

«Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção, e, em consequência:

- Condeno o réu Fundo de Garantia Automóvel no pagamento aos autores AA e BB, do montante de € 112.326,00 (cento e doze mil trezentos e vinte e seis euros) acrescida dos respectivos juros de mora, contados desde a data da citação e até integral e efectivo pagamento;

- Absolvo o Reu Fundo de Garantia Automóvel dos demais pedidos formulados pelos autores e pelo interveniente principal».


Apelaram os autores e o réu, tendo o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 19 de Junho de 2014, proferido a seguinte decisão:

«Nos termos expostos, na procedência parcial dos recursos dos autores AA e BB e do Fundo Garantia Automóvel altera-se a decisão recorrida nos seguintes termos:

- Condena-se o réu Fundo de Garantia Automóvel no pagamento aos autores AA e BB, na indemnização por danos patrimoniais no montante de € 2.326,00 (dois mi trezentos e vinte e seis euros) acrescida de juros de mora contados desde a citação;

- Condena-se o réu Fundo de Garantia Automóvel no pagamento aos autores AA e BB, na indemnização por danos não patrimoniais no montante de €120.000 (cento e vinte mil euros) acrescida de juros de mora, contados desde a data da sentença proferida em 1ª Instância».


Ainda inconformado, recorreu de revista o réu Fundo de Garantia Automóvel, formulando na sua alegação a seguinte síntese conclusiva:

I - No que concerne à lei aplicável, está dado como provado que o acidente dos autos ocorreu no dia 23 de Novembro de 2006. Nessa data, vigorava o D.L. 522/85 de 31/12, que deve ser o diploma aplicável aos presentes autos, porquanto, conforme extractos de jurisprudência que supra se reproduziu, a lei aplicável aos acidentes de viação é a que está em vigor na data da sua ocorrência.

II - No que à condenação por danos decorrentes de lesões materiais concerne, não pode o FGA conformar-se com tal condenação, pois foi o FGA condenado, a título de danos patrimoniais, a pagar aos AA., a quantia de 2.326,00 Euros, sendo 1.226,00 Euros de despesas de funeral; 1.000,00 Euros pela destruição do motociclo; e 100,00 Euros pela destruição do capacete.

III - Apenas a quantia de 1.226,00 Euros relativa às despesas de funeral são consideradas danos patrimoniais decorrentes de lesões corporais e o valor de 1.100,00 Euros remanescente, correspondente à destruição do ciclomotor e do capacete são danos patrimoniais decorrentes de lesões materiais.

IV - Na data do sinistro, dispunha o art. 21.°, n.º 2 /b) do D.L. 522/85 de 31/12, que o FGA garante a satisfação das indemnizações por "lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz."

V - Consequentemente, o Tribunal condenou o FGA, numa quantia de 1.100,00 Euros, que estão fora do seu âmbito, isto é, à luz da legislação então aplicável, no caso de responsável desconhecido, o FGA não suportava o pagamento de lesões materiais, isto é, de lesões em coisas. Mostra-se, pois, quanto a essa quantia de 1.100,00 Euros, relativas ao motociclo e ao capacete violado o referido art. 21.º, n.º 2, aI. b), devendo o FGA ser absolvido desta parte da condenação.

VI -No que toca aos Danos Não Patrimoniais dos pais da vítima, entende o FGA que, de acordo com a Portaria de Proposta Razoável, que constitui uma referência para a valorização dos danos, é relativamente excessiva a indemnização por danos morais próprios dos pais da vítima.

VII - Entende-se, assim, que o valor actualizado razoável e equitativo por cada progenitor, para os ressarcir dos seus danos não patrimoniais será de 16.500,00 Euros, num total conjunto de 33.000,00 Euros, e não de 20.000,00 por cada progenitor (40.000,00 Euros no conjunto), conforme decidido.

VIII - No que ao Dano Perda da Vida concerne, arbitrou o Venerando Tribunal da Relação uma indemnização de 80.000,00 Euros, a título de perda do direito à vida, sendo tal montante, salvo o devido respeito, manifestamente excessivo à luz, quer da jurisprudência para casos análogos, quer da Portaria de Proposta Razoável (portaria 679/2009), que, ainda que não sendo de aplicação obrigatória, estabelece critérios, tratando de forma igual, situações semelhantes.

IX - À luz da citada Portaria, o montante justo e adequado seria o de 61.500,00 Euros, valor que deverá ser o atribuído.

Contra-alegaram os autores, pugnando pela manutenção do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. - Fundamentos:

De facto:

Dos factos julgados provados, após a eliminação dos que se encontravam repetidos e a organização sequencial possível dos mesmos, embora respeitando a identificação seguida nas Instâncias, relevam para a decisão do recurso os seguintes:

A) No dia 18 de Dezembro de 2006, o Autor AA declarou, perante Notário, que o seu filho CC faleceu no dia 23 de Novembro de 2006 sem descendentes, sucedendo-lhe como únicos herdeiros os seus pais AA e BB.

C) No dia 23 de Novembro de 2006, pelas 06h35, ocorreu um acidente de viação em que intervieram o motociclo de matrícula …-…-JT, conduzido por CC, e um outro veículo cujo condutor não foi identificado.

D) Nessa altura, CC circulava na Estrada Nacional n.º 395, no sentido de marcha Albufeira-Ferreiras.

E), AT) Ao chegar a um entroncamento existente junto do restaurante “A Cocheira”/”Campo Real”, ao Km. 60,970 da EN 395, CC foi embatido por um veículo.

F), AX) Após o embate, o condutor desse veículo abandonou de imediato o local, pondo-se em fuga.

G) O referido veículo circulava na outra hemi-faixa de rodagem da Estrada Nacional n.º 395, junto do entroncamento a que se alude em E).

AV) Invadiu a semi-faixa de rodagem contrária.

AY) E foi embater violenta e frontalmente no motociclo …-…-JT, que circulava em sentido contrário.

H), I), J) No momento em que ocorreu o acidente, o estado do tempo era bom, o piso encontrava-se em boas condições e havia boa visibilidade.

K) No momento em que ocorreu o acidente, a densidade do trânsito era reduzida.

L), M) No local onde ocorreu o acidente, a via tem dois sentidos de marcha e configura uma recta.

N) Nesse local, a faixa de rodagem tem uma largura não inferior a 7 metros.

P) A referida hemi-faixa de rodagem foi invadida pelo veículo a que se alude em E).

Q) Esse veículo embateu no motociclo conduzido por CC.

R) Em consequência do embate, CC foi projectado vários metros, para a frente, ficando prostrado no solo.

BM) Tendo ficado caído na berma direita.

BK) Após o acidente o motociclo ficou imobilizado na berma direita, perto do restaurante "Campo Real"/2Cocheira”.

BA) No local do embate ficaram vestígios do sangue do CC.

BB) E a grelha da frente e partículas de vidro da óptica da frente do veículo Automóvel.

BC) Apurou-se que a grelha e os vidros de óptica deixados no local pertenciam a uma carrinha Pick Up B2500, de cabine dupla ou simples.

BD) Foram efectuadas diligências junto das casas de sucata e de venda de peças, para se averiguar se alguém ali se dirigira para comprar material para aquele tipo de veículo, mas sem êxito.

BE) Foram verificados veículos daquela marca e modelo, mas apurou-se que não apresentavam quaisquer vestígios de terem sido intervenientes no acidente.

BF) Foi contactada a EE em Faro, empresa que vende este tipo de veículos, para se saber se tinha aparecido alguém a comprar tais peças, mas sem êxito.

BN) No acidente, o CC sofreu:

- Hematoma occipital extenso do couro cabeludo; Extensas escoriações, cobrindo a parte anterior do flanco esquerdo, escoriações do dorso das mãos, do dorso dos 2 pés com extensas lacerações do Dorso interno do pé direito, escoriações anteriores das 2 pernas e dos 2 Joelhos, extensa escoriação da parte anterior da coxa direita;

- Infiltrações hemorrágicas do douro cabeludo, em especial frontal esquerdo e temporal direito;

- Hematomas e hemorragias nas meninges e encéfalo;

- Lesões traumáticas nas cavidades orbitarias e globos oculares;

- Infiltrações hemorrágicas da extremidade cervical da coluna;

- Fractura do terço externo da clavícula direita;

- Fracturas múltiplas das costelas;

- Contusão cardíaca;

- Hemoperitoneu extenso;

- Contusão ou laceração do mesentério;

- Laceração e perfuração do lobo direito e esquerdo do fígado;

- Contusão do rim esquerdo;

- Fracturas do punho esquerdo.

BO) A causa da morte do CC foram as lesões traumáticas vasculares, raquimedulares e fracturas múltiplas com choque hemorrágico e traumático.

S) CC faleceu em consequência das lesões que lhe foram provocadas por causa do acidente a que se alude em C).

V) CC vivia com os pais e com a irmã na casa daqueles.

BR) CC nasceu em 7 de Julho de 1986, era solteiro e irmão de FF.

X) Os Autores pagaram as despesas do funeral de CC no montante de € 1.226,00.

Y) Em consequência do acidente o motociclo ficou totalmente destruído.

Z) À data do acidente, o referido motociclo valia € 1.000,00.

AA), AB) No momento em que ocorreu o acidente, CC tinha consigo um telemóvel no valor de € 75,00, que foi recuperado.

AC) Em consequência do acidente, o capacete de CC ficou inutilizado.

AD) Tal capacete valia € 100,00.

AG) Os Autores suportaram o pagamento da quantia de € 219,94 com a outorga da escritura a que se alude em A).

AI) Após o acidente, a Autora BB esteve cerca de quinze dias em casa.

AJ) Durante esse período a Autora tomou calmantes e antidepressivos.

T) CC tinha começado a trabalhar, como motorista de veículos ligeiros, para a sociedade comercial HH, Ldª., no dia 13 de Novembro de 2009.

U) CC auferia um salário anual de € 6.342,00.

AK), AL) Em 23.11.2006 CC era empregado da “A. e HH,. Lda”, tendo a profissão de ajudante de motorista.

AN) No dia 23.11.2006, pelas 6H35, o CC deslocava-se da sua residência para o seu local de trabalho.

AP) Fazendo o percurso habitual.

B) Em 23.11.2006 a “A. e HH,. Lda” tinha transferido a responsabilidade pelo pagamento das prestações devidas em consequência de acidentes de trabalho de que fossem vitimas os seus empregados para a autora, mediante contrato titulado pela apólice n.º 1408286.

BQ) Em 13/01.2008, a autora pagou a título de retribuição anual do sinistrado ao Fundo de Acidentes de Trabalho o montante de €19.026,00.


De direito:

Delimitado, como está, o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente, importa decidir se, em face do quadro normativo aplicável, são indemnizáveis os danos decorrentes da destruição do motociclo e do capacete da vítima e se o montante das indemnizações arbitradas pelos danos não patrimoniais sofridos pelos recorridos, pais da vítima, e, bem assim, pela perda do direito à vida são excessivos, devendo ser reduzidos.

1. Como se assinalou na sentença da 1ª instância, os autores, ora recorridos, pretendem o ressarcimento de danos sofridos em consequência de um acidente de viação, que consistiu no embate de uma viatura automóvel não identificada, que de imediato se pôs em fuga, no ciclomotor conduzido pelo filho de ambos, CC, que teve como consequência, directa e necessária, a sua morte.

A pretensão indemnizatória dos autores radica na responsabilidade civil extracontratual, cujos pressupostos se encontram enunciados no artigo 483º do Código Civil, não se questionando a sua verificação no caso presente.

Com efeito, o Fundo de Garantia Automóvel insurge-se, em primeiro lugar, contra a sua condenação no pagamento da indemnização de € 1.100,00, correspondente ao valor do motociclo – € 1.000,00 – e do capacete – € 100,00 –, pertencentes à vítima e que ficaram destruídos no acidente, pugnando pela sua absolvição neste particular, sustentando que o estatuído no artigo 21º nº 2 al. b) do DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro, vigente ao tempo em que ocorreu o acidente de viação, não consente a sua responsabilização pelo ressarcimento de tais danos.

É pacífico nos autos que os prejuízos em questão revestem a natureza de danos patrimoniais, porquanto está em causa a lesão de bens materiais que integravam o património da vítima, CC, danos que, não impossibilidade de restituição in natura, são indemnizáveis pelo correspondente valor pecuniário (artigo 566º nº 1 do Código Civil), cujo montante não vem, aliás, posto em crise.

Não está, igualmente, em causa a determinação do quadro normativo aplicável, por força da sucessão no tempo dos diplomas legais relativos ao regime do seguro obrigatório, posto que o acórdão recorrido considerou, e bem, ser aplicável o identificado DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na versão do DL n.º 83/2006, de 3 de Maio, em vigor na data do acidente – 23 de Novembro de 2006 –, posição que é sufragada pelo recorrente.

A divergência do recorrente incide, por conseguinte, sobre a interpretação do segmento normativo contido no artigo 21º nº 2 al. b) do citado DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

Quanto ao âmbito da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel, estabelece este preceito que:

«1 - Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais.

2 - O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por:

a) Morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz, ou for declarada a falência da seguradora;

b) Lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz;».

No caso vertente, não é conhecido o responsável pelos danos provocados no motociclo e no capacete do falecido CC – lesões materiais –, uma vez que, de acordo com a facticidade provada, não foi identificado o condutor da viatura causadora do acidente, ao qual o mesmo foi exclusivamente imputável, apenas se tendo apurado em face dos vestígios deixados no local que se tratar-se de uma carrinha Pick Up B2500, de cabine dupla ou simples.

Ora, de harmonia com o estatuído na citada al. b) do nº 2 do artigo 21º só recai sobre o Fundo de Garantia Automóvel a obrigação de ressarcir danos patrimoniais quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz.

Não estando verificado tal pressuposto legal, no caso concreto, dado ser desconhecida a identidade do responsável pelo acidente de viação, está excluída, a sua obrigação de indemnizar os aludidos danos patrimoniais, no montante global de € 1.100,00.

Diversa seria a solução à luz do regime do seguro obrigatório instituído pelo DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, o qual prevê no artigo 49º nº 1 al. c) a ressarcibilidade de «danos materiais», sendo desconhecido o responsável, quando o Fundo deva satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, entendendo-se como tal, designadamente, a lesão corporal que determine a morte (nº 2).

Procede, assim, o recurso do Fundo de Garantia Automóvel neste particular.


2. O recorrente questiona, igualmente, o quantum indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais, alegando ser relativamente excessiva a indemnização arbitrada quer a título de danos morais próprios dos pais da vítima, quer pela perda do direito à vida, considerando a Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho, a qual, não sendo de aplicação obrigatória, constitui uma referência para a valorização dos danos.

Sustenta, assim, que o valor actualizado razoável e equitativo para ressarcir cada progenitor pelos danos não patrimoniais sofridos será de € 16.500,00 – no total € 33.000,00 –, e não de € 20.000,00 – no total € 40.000,00 –, conforme decidido.

E, no que tange ao dano perda da vida, avaliado pelo Tribunal da Relação em € 80.000,00, defende ser justo e adequado, também à luz da citada Portaria, o montante de € 61.500,00.

Está fora de dúvida que o dano da morte é indemnizável, assim como os danos não patrimoniais sofridos pelos autores, nomeadamente, o decorrente da perda do seu filho, todos abrangidos pelos nºs 1 e 2 do artigo 496º do Código Civil, preceito que confere tutela jurídica aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade a mereçam.

No caso em apreço, apenas se discute o montante indemnizatório a fixar.

Como é sabido, os danos não patrimoniais resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (tais como a integridade física, a saúde, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a tranquilidade, etc.), de muito difícil reparação e quase impossível quantificação, razão pela qual a indemnização devida por aqueles, não podendo destinar-se a fazer desaparecer o prejuízo, visa, na perspectiva do lesado, proporcionar-lhe meios económicos que de algum modo o compensem da lesão sofrida.

Não podendo apurar-se o valor exacto de tais danos, atenta a sua natureza, o respectivo montante deverá ser fixado pelo tribunal segundo critérios de equidade, de acordo com o preceituado no nº 3 do artigo 566º do Código Civil, fazendo apelo a “...todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” (A. Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I, pág. 501) e tendo em atenção a extensão e gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso (artigos 496º nº 3, 1ª parte, e 494º do Código Civil).

Nos parâmetros gerais a ter em conta considerou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 19 de Abril de 2012 (proc. nº 3046/09.0TBFIG.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj) serem ainda de destacar a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente à União Europeia e o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, e, bem assim, que a jurisprudência deste mesmo Supremo Tribunal tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização em causa deve constituir um lenitivo para os danos suportados e não ser orientada por critérios hoje considerados miserabilistas, por forma a, respondendo actualizadamente ao comando do artigo 496°, traduzir uma efectiva possibilidade compensatória para os danos suportados e a suportar.

Importa ainda nesta matéria ter em atenção, como dá nota o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 31 de Maio de 2012, (proc. nº 14143/07.6TBVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt/jstj), citando o acórdão também deste Supremo Tribunal, de 31 de Janeiro de 2012 (proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, in www.dgsi.pt/jstj), que «os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição.»

Vem-se consolidando na jurisprudência o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, deve situar-se, com algumas oscilações, entre os € 50.000,00 e € 80.000,00 (por todos, o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2012).

No caso vertente, a vítima tinha 20 anos e era solteira. Tinha começado a trabalhar, como motorista de veículos ligeiros, para a sociedade comercial HH, Ldª., no dia 13 de Novembro de 2006. Vivia com os pais e com a irmã na casa daqueles.

Nada se provou quanto ao estado de saúde do CC, à sua alegria e interesses ou actividades pessoais à data do acidente que o vitimou. Mas a sua juventude permite afirmar que estava numa fase pujante da vida, com todas as perspectivas em aberto e um futuro à sua frente, que lhe foi coarctado por um acidente de viação a que foi alheio, exclusivamente imputável ao condutor de um veículo automóvel, ambos não identificados, que o foi atingir mortalmente na meia faixa por onde circulava no seu motociclo, quando se dirigia, às 06h35, para o seu local de trabalho, veículo que se pôs de imediato em fuga e o deixou caído, prostrado no solo.

Perante esta facticidade, em especial a juventude da vítima e a culpa grave do condutor do veículo automóvel, e verificados que estão os pressupostos legais do recurso à equidade para a fixação do valor da indemnização, não suscita qualquer reparo o juízo equitativo do Tribunal da Relação, na ponderação que realizou do caso concreto, para fixar em € 80.000,00 a indemnização pela perda do direito à vida, montante que não excede os limites da razoabilidade e adequação.

Igualmente, se tem por isenta de censura a atribuição aos autores, pais do falecido CC, de indemnização no valor de € 40.000,00 – € 20.000,00 para cada um – para os ressarcir do sofrimento que lhes causou a morte de um filho com vinte anos, que vivia ainda com eles e a irmã.

Sendo tal sofrimento insusceptível de ser apagado ou minimizado, reduzir aquele montante frustraria a finalidade compensatória da indemnização, igualmente fixada de acordo com a equidade e reveladora de adequada ponderação dos respectivos pressupostos na avaliação do caso em concreto.

O valor das indemnizações arbitrado pelos danos não patrimoniais em análise mostra-se consentâneo com os factos apurados e com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, não justificando as objecções da recorrente qualquer censura aos montantes fixados.

Os critérios e valores constantes da Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho, invocados pelo recorrente são, como o próprio reconhece, meramente orientadores e não afastam o juízo prudencial formulado no acórdão recorrido relativamente ao valor das indemnizações em apreço.

Aliás, vem-se afirmando neste Supremo Tribunal corrente jurisprudencial segundo a qual, por não envolver a resolução de uma questão de direito, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»” (a título de exemplo, Acórdãos de 7 de Outubro de 2010, proc. n.º 839/07.6TBPFR.P1.S1, e de 4 de Março de 2014, proc. 856/07.6TVPRT.P1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt/jstj).

O que significa que, recorrendo as instâncias na fixação da indemnização à equidade como critério de quantificação da mesma não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista, sindicar o valor exacto do montante concretamente arbitrado, cingindo-se a sua apreciação ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado. 

Pressupostos que, no caso vertente, foram observados.


3. Decisão:

Termos em que se nega a revista e se confirma o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 18 de Junho de 2015


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Pires da Rosa

Maria dos Prazeres Beleza