Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1578/11.9TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: USUCAPIÃO
LOTEAMENTO
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
NULIDADE
POSSE
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
NORMA IMPERATIVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/06/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE.
Doutrina:
- CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 291, nota 731.
- DURVAL FERREIRA, Posse e Usucapião, 3.ª ed., 501.
- MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 418.
- MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais (sumários das Lições ao Curso de 1966-1967), 98.
- MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 470.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil” Anotado, vol. I, 263; vol. III, 65.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 286.º, 294.º, 305.º, N.º 1, 1258.º, 1259.º, 1287.º, 1288.º, 1292.º, 1296.º, 1316.º, 1317.º, AL. C).
DECRETO-LEI N.º 289/73, DE 09 DE JUNHO.
DECRETO-LEI N.º 448/91, DE 29-11 (REGIME JURÍDICO DOS LOTEAMENTOS URBANOS), NA REDACÇÃO DADA PELO DECRETO-LEI N.° 334/95, DE 28/12.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 27-06-2006, IN CJ/STJ, TOMO 2/2006, 133.
-DE 26-01-2016, PROC. N.º 5434/09.2TVLSB.L1.S1 ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (arts. 1287.º e 1316.º do CC) que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse. Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC).

II - A usucapião serve, além do mais, para “legalizar” situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa.

III - A eventual nulidade decorrente de ilegal fraccionamento de um prédio não constitui, por si só, fundamento para recusar a usucapião, porquanto nenhum dos diversos e sucessivos diplomas legais sobre a matéria do loteamento urbano, veio impedir a possibilidade de invocação da usucapião sobre os lotes de terreno resultantes do loteamento ilegal.

IV - Os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são, em regra, nulos (art. 294.º do CC), podendo a nulidade ser, em princípio, invocada a todo o tempo por qualquer interessado e até ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286.º do CC); porém, a não fixação de um prazo para a sua arguição não afecta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião.

V - Entender que a posse, baseada em acto ou facto proibido por normas imperativas do loteamento urbano (ou do destaque), é insusceptível de conduzir à aquisição da propriedade por usucapião abstrai da realidade económica e social do nosso país, onde especialmente no interior norte e centro, uma boa parte das partilhas entre maiores, nomeadamente de imóveis constitutivos dos acervos das heranças, ainda é ou era feita “de boca” e posteriormente “legalizada” com suporte na usucapião.

VI - Por conseguinte, tendo a posse dos réus sobre a parcela de terreno em litígio nos autos se consolidado por usucapião e não resultando provado que a mesma tenha sido “destinada à construção” nem imediata nem subsequentemente à concretização da divisão física do prédio original, mas antes que se encontra há mais de 20 anos a ser utilizada como parque de estacionamento automóvel, não pode deixar de se reconhecer aos réus/reconvintes o direito de propriedade sobre tal parcela.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

O Banco AA, S.A.., com sede na Rua …, nº …, em Lisboa, instaurou, em 16 de fevereiro de 2011, na então 2.ª Vara de Competência Mista de …, acção declarativa ordinária contra BB e esposa CC, residentes na Travessa …, … -1º, em … - Vila Nova de Gaia, e contra BB, S.A., com sede na Av. …, em …, pedindo:

a) - seja reconhecido o direito de propriedade do A. sobre o prédio urbano, sito no lugar de …, da freguesia de …, com a área de 5 300 m2, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º 16…/19… e inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia de … sob o artº 63…, incluindo a parcela pretensamente adquirida pelos 1.ºs R.R. e ocupada pela 2.ª Ré;

b) - sejam todos os R.R. condenados a reconhecer aquele direito de propriedade do autor e a desocuparem a referida parcela, entregando-a devoluta e livre de pessoas e bens;

c) - seja declarada nula a escritura de justificação celebrada pelos 1ºs R.R. em 11 de Fevereiro de 1998, no 2º Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia;

d) - seja ordenado o cancelamento do registo a favor dos 1.ºs R.R. sobre o prédio urbano constituído por terreno para construção, sito no lugar de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artº 53…, da freguesia de … e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 32…/23…, e ordenada a extinção das inscrições e descrições respectivas;

e) - sejam os R.R. condenados, solidariamente, a pagarem ao A. a uma indemnização diária de € 500,00, por lucros cessantes, desde a citação até à efectiva entrega da parcela aludida.

Alegou, para tanto, em síntese, ter adquirido, em venda judicial, realizada em 26 de Outubro de 2004, o prédio urbano descrito sob o n.º 16…/19… (…), que possui, por si e seus antecessores, há mais de vinte anos, ininterruptamente, de forma pública, pacífica, sem oposição de ninguém e de boa fé; que, na parte norte e em cerca de 2100 m2, o prédio encontra-se ocupado pela 2.ª Ré sociedade, que utiliza essa parte para estacionamento de automóveis; que, apesar de instada, a Ré recusa-se a entregar-lhe essa parcela do seu prédio; que, tendo por objecto a dita parcela de terreno, foi outorgada pelos 1ºs R.R., em 11-02-1988, uma escritura de justificação, em que os mesmos declararam, falsamente, serem donos e legítimos possuidores da mesma; que, na impossibilidade de prosseguir com o processo de licenciamento de construção previsto para o seu prédio face à conduta dos R.R., está prejudicada em largos milhares de euros e não pode obter o rendimento diário de € 500,00, que lhe garantiria o arrendamento da referida parcela de terreno.  

Na sua contestação-reconvenção, os RR. excepcionaram a ilegitimidade da Ré sociedade e impugnaram parte dos factos alegados pelo autor, concluindo pela procedência da excepção arguida e pela improcedência da acção, pedindo, em reconvenção, que:

a) - seja reconhecido o direito de propriedade dos 1.ºs RR. sobre o prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de … sob o nº 53… e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º 32…/23… ; ou em alternativa,

b) - sejam declaradas nulas as escrituras de compra e venda e de dação celebradas, respectivamente, em 25 de Novembro de 1983, no Cartório Notarial de Espinho, e de 27 de Setembro de 2004, no Cartório Notarial do Porto;

c) - seja reconhecido o direito de propriedade dos 1.ºs RR. sobre o prédio urbano actualmente inscrito na matriz da freguesia de …, sob o nº 63… e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia,  sob o n.º 16…/23….

Replicou o A., impugnando os factos alegados pelos R.R. relativamente ao pedido reconvencional, concluindo pela sua improcedência.

Teve lugar uma audiência prévia, durante a qual foi proferido o despacho saneador, no qual se julgou, de forma tabelar, as partes legítimas, identificando-se depois o objecto do processo e enunciando-se os temas de prova.

Foi designado dia para a audiência de discussão e julgamento.

Realizado este, foi proferida sentença, em 3 de junho de 2015, a julgar a acção parcialmente procedente, reconhecendo o A. como proprietário do prédio urbano, sito no lugar de Arcos de Sardão, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 63… e descrito na 2.ª Conservatório do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º 16…/19…, com a área de cerca de 3200 m2; e integralmente procedente a reconvenção, reconhecendo os 1ºs R.R. como proprietários da parcela de terreno, com cerca de 2100 m2, que se encontra fisicamente delimitada, a norte, por um prédio pertencente a BB, a nascente pela Avenida dos …, a poente por um prédio pertencente a DD, Lda, e, a sul, pelo Autor.

Inconformado, o Autor apelou para o Tribunal da Relação de Porto, que, por acórdão de 17 de Maio de 2016, revogando a sentença recorrida, reconheceu o direito de propriedade do Autor sobre o prédio urbano descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º 16…/19…, com a área de 5300 m2, nele se incluindo a parcela de terreno com 2100 m2 objecto da escritura de justificação notarial celebrada em 11-02-1998; condenou os Réus a desocuparem a parcela ocupada, entregando-a ao Autor devoluta e livre de pessoas e bens; declarou nula, e sem qualquer efeito, a escritura de justificação celebrada pelos 1.ºs Réus, em 11 de Fevereiro de 1998, e ordenou o cancelamento do registo a favor dos 1.ºs Réus sobre o prédio urbano constituído por terreno para construção, descrito, sob o n.º 32…/23… (…), assim como a extinção da sua descrição e inscrição; julgando, por fim, improcedente a reconvenção deduzida pelos R.R.

Inconformados agora os Réus, recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo na respectiva alegação, concluído, essencialmente, da forma seguinte:

a) O fracionamento do prédio levado a efeito pelos 1.ºs Réus não constitui uma operação de loteamento urbano, uma vez que a parcela separada não foi destinada a construção.

b) Os interesses e finalidades públicas protegidos pelas normas de direito de ordenamento do território não podem ser elevadas à categoria de fonte de direitos subjectivos patrimoniais privados.

c) A parcela de terreno, com a área de 2100 m2, sempre foi possuída pública, pacífica e continuadamente pelos 1.ºs Réus.

d) Pela escritura de 27.09.2004, o A. apenas acedeu à propriedade do prédio urbano descrito, sob o n.º 16…/19…, com a área de cerca de 3200 m2.

e) O reconhecimento da usucapião deve sobrepor-se sobre o fraccionamento ilegal do prédio.

f) As normas da Lei n.º 31/2014 não se aplicam directamente à resolução de conflitos entre direitos subjetivos patrimoniais privados.

g) Na referida escritura, a declaração de que o terreno tem a área de 5300 m2 é inválida, uma vez que não existia na esfera do alienante.

h) A parcela de 2100 m2 está excluída, sob pena de venda alheia, inexoravelmente nula.

i) O acórdão recorrido viola os art.ºs 62.º da Constituição da República Portuguesa, 1251.º, 1258.º a 1263.º, 1287.º, 1288.º, 1293.º a 1297.º, 286.º, 289.º e 892.º, todos do Código Civil, 7.º do Código do Registo Predial, 4.º, 5.º e 82.º da Lei n.º 31/2014.

Contra-alegou o Autor, pugnando pelo improvimento da revista.

Cumpre apreciar e decidir.


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Objecto do recurso

Como é sabido, são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso [art.ºs 635º n.º 4, 639º n.ºs 1 e 3 e 641º nº 2 al. b) todos do novo C.P. Civil], não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Assim, as questões suscitadas no recurso consistem em saber se o acórdão recorrido enferma de erro de direito, ao concluir que o fraccionamento do prédio levado a efeito pelos 1ºs Réus constituiu operação de loteamento (ou destaque) urbano ilegal e, bem assim, que a invocação da usucapião em sede de reconvenção não devia sobrepor-se à nulidade desse fraccionamento, recusando, em consequência, reconhecer aos 1ºs R.R. o direito de propriedade sobre a parcela de terreno em litígio nos autos.

Fundamentação

1) De facto:

No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. Mostra-se descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia de …, lugar de …, sob o n.º 16…, um prédio correspondente a terreno para construção, com a área de 5300 m2.

2. Tal prédio corresponde ao prédio outrora descrito, na mesma Conservatória, sob o n.º 535…, Livro B-138.

3. Mostra-se inscrito a favor do A., em 26/10/2004, o direito de propriedade sobre o mesmo prédio, por “ venda judicial”.

4. Da descrição do prédio consta que confronta, a norte, com EE, a sul, com caminho, a nascente, com FF e, a poente, com GG.

5. Sobre o mesmo prédio, mostram-se efectuadas as seguintes inscrições:

a) - Em 05/04/84 - aquisição a favor de HH, por compra aos 1.º s RR., II e JJ, pelo preço de 350 000$00;

b) - em 05/04/84 - aquisição a favor de KK, Lda, por compra a HH;

c) - em 09/12/93 - aquisição a favor de LL e mulher, por dação em cumprimento.

6. Por escritura pública, lavrada em 17/02/1981, no Cartório Notarial de Espinho, FF e MM declararam vender ao 1º réu BB e a II, em comum e partes iguais:

- a FF, um terreno para construção, com a área aproximada de 5300 m2, que é parte do prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de Oliveira do Douro sob o artigo 249, descrito na Conservatória sob o n.º 15928;

 - ao MM, um terreno para construção, com a área aproximada de 5300 m2, que é parte do prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de … sob o n.º 2…, descrito na Conservatória sob o n.º 535….

7. Por escritura pública, lavrada em 25/11/1983, no Cartório Notarial de Espinho, os 1.ºs RR. BB e mulher CC, e II e mulher JJ, declararam vender a HH, por 350 000$00, “um terreno a mato e pinheiros, destinado a construção urbana, denominado “Tapada …” com a área de 5300 m2, sito no lugar dos … (…) descrito na CRP sob o nº 535….”

8. Por escritura pública, lavrada em 13/02/1984, no Cartório Notarial de Espinho, HH e mulher declararam vender a KK, L.da, por 700 000$00, “um terreno a mato e pinheiros, destinado a construção urbana, denominado “Tapada …” com a área de 5300 m2, sito no lugar dos … (…) descrito na CRP sob o nº 535….”

9. Por escritura pública, lavrada em 28/10/1993, no 5.º Cartório Notarial do Porto, LL e mulher, o primeiro por si e sócio-gerente de KK, Lda, declarou que aquela sociedade para extinção/pagamento de dívidas dá em cumprimento a si e a sua mulher, o “prédio urbano, destinado a indústria, com área coberta de 800 m e terreno circundante com a superfície de 4500 m2, sito em … …, descrito na 2.ª CRP de VN Gaia sob o n.º 016…/14….”

10. No dia 11/02/1998, no 2.º Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, foi celebrada escritura de justificação, onde intervieram os 1.ºs RR. BB e mulher, como 1.ºs outorgantes e em que declararam serem “donos e legítimos de possuidores de um terreno destinado a construção urbana, com a área de 2100 m2, sito no Lugar dos …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, confronta do Norte com BB, sul com LL, nascente com Avenida A… e do poente com DD, Lda., (…), com o valor tributável de 10 500 000$00 (…) “que não são detentores de qualquer título formal que legitime o domínio do mesmo (…) mas adquiriram-no por usucapião (…)”, por sobre ele terem exercido há mais de vinte anos, posse de boa-fé, contínua e pública, à vista de toda a gente; pelos segundos outorgantes, BB, HH e NN foi dito que “são inteiramente verdadeiras e que confirmam as declarações que acabam de ser feitas pelos primeiros outorgantes”.

11. No dia 27/09/2004, no 4.º Cartório Notarial do Porto, o Banco OO declarou, no âmbito da execução n.º 192/1999, que corria termos na 9.ª Vara Cível do …, 3.ª secção, na qual era Exequente, e Executada, PP – Indústria de Marroquinaria e Confeção, L.da, outrora denominada QQ, L.da, comprar o prédio referido em 1. a RR, nomeado para a venda por negociação particular, pelo preço de € 210 000,00.

12. Em 26/10/2010, a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia certificou que, desde 1985, inclusive, “não houve pela mesma a aprovação por divisão por processo de loteamento ou outro suscetível de produzir o desmembramento do prédio descrito na 2.ª CRP de VNG sob o n.º 16…/19…, da freguesia de … (….) em dois novos prédios, um com área de cerca de 3200 m2 e outro com a área de 2100m2.”

13. Em 15/11/1985, HH e SS, este na qualidade de gerente, dirigiram ao chefe da 1.ª Repartição de Finanças de Vila Nova de Gaia requerimento, nos termos de fls. 51, onde se refere que “vendeu à firma KK…., Lda., um terreno com a área de 5300 m2 (…) afinal a área vendida foi apenas de 3200 m2, não podendo indicar a área de 3200 m2, por recusa do notário, pelo motivo dos interessados não terem feito o respectivo loteamento exigido por lei.”

14. Na mesma data, o réu II e HH dirigiram idêntica missiva ao chefe da 1.ª Repartição de Finanças de Vila Nova de Gaia, fazendo menção à compra e venda que celebraram entre si.

15. Em documento de 23 de fevereiro de 1984, a fls. 113, que termina com a inscrição manuscrita dos nomes de HH, TT e, por duas vezes, dos dizeres KK, Lda, consta a “declaração”: “HH e mulher como primeiro outorgantes e KK, Lda, declararam para todos os efeitos que rectificam a área do terreno a que respeita a escritura de compra e venda, celebrada nesta data, no Cartório Notarial de Espinho, que é de 3200 m2, (…)”.

16. O alvará de loteamento n.º 32/85 permite a constituição de dois lotes de terreno sobre o prédio referido em 6.

17. Em 1996, os 1.ºs RR. inscreveram o terreno objecto da escritura pública de justificação na matriz predial da freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, tendo-lhe sido atribuído o artigo 53….

18. No âmbito dos autos de execução ordinária nº 192/1999, em que a ora A. era exequente e PP -Indústria de Marroquinaria e Confecção, L.da executada referida consta, a fls. 257 a 260, requerimento/proposta do encarregado da venda do prédio referido em 1. e 11., no qual se junta o levantamento topográfico do prédio, onde constam as respetivas extremas, sendo-lhe atribuído a área de 2956 m2.

19. Ordenada a notificação ao Exequente do requerimento, respondeu “nada ter a opor à proposta apresentada”.

20. No lugar dos …, …, Vila Nova de Gaia, existe uma parcela de terreno, com cerca de 2100 m2, que se encontra delimitada, a norte, por prédio pertencente ao R., a nascente, pela Avenida … e, a poente, por prédio pertencente a DD, Lda., e, a sul, por terreno pertencente ao prédio referido em 1.

21. Tal parcela, pelo menos, até 25/11/1983, fazia parte integrante do prédio referido em 1.

22. A parcela encontra-se a ser utilizada pela 2.ª Ré, que nela instalou um parque de estacionamento automóvel.

23. A parcela corresponde ao prédio da escritura de justificação referida em 10. e ao que se mostra assinalado a amarelo na planta de fls. 102.

24. Os RR. recusam-se a entregar ao A. tal parcela.

25. O A., por si e antepossuidores, mantém a posse (pagando os impostos e taxas e praticando atos materiais) do prédio referido em 1., com referência a uma área aproximada de 3200m2, sita a sul da parcela referida em 20., e com exclusão desta, há mais de vinte anos, ininterruptamente, de forma pública e pacífica, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

26. Fá-lo no convencimento e com a intenção de estar no exercício dos poderes decorrentes de direito próprio de propriedade.

27. Aquando da celebração da escritura pública de compra e venda referida em 7., o 1º R. marido e HH, foram alertados, pelo notário, para a impossibilidade de transmitirem apenas parte do prédio referido em 1., sem prévio loteamento.

28. Ao proferirem as declarações que lhes são atribuídas nas escrituras públicas referidas em 7. e 8., não era intenção dos outorgantes vender e/ou comprar mais do que 3200 m2 do prédio referido em 1., sendo intenção de todos excluir dos negócios de compra e venda a parcela referida em 20.

29. Assim procederam por não lhes ter sido permitido, em tais actos, o fraccionamento do prédio.

30. Era intenção dos 1.º s RR., como outorgantes da escritura referida em 7., conhecida de todos os seus outorgantes, reservar para si a propriedade da parcela referida em 20.

31. Após a celebração dessa escritura, os 1.ºs RR, em data não apurada do final de 1983 e início de 1984, erigiram um muro na confrontação da parcela referida em 20., com os 3200 m2 “sobrantes” do prédio referido em 1., assim concretizando a divisão/fracionamento, que haviam acordado com os demais outorgantes da escritura pública referida em 7.

32. Aquando da celebração da escritura pública referida em 9., LL conhecia os factos referidos em 28., 29., 30. e 31., tendo aceite e respeitado os mesmos a partir de tal data.

33. Desde 25/11/1983 até ao presente, os 1.ºs RR. encontram-se a utilizar a parcela referida em 7., dela retirando todas as utilidades, fruindo e explorando, de forma pública e pacífica, no convencimento de que lhes pertence, como proprietários.

34. O documento referido em 15. foi subscrito por HH, TT e UU, que neles introduziram, pelo seu punho, os dizeres HH, TT e KK, Lda, respetivamente.

35. À data da aquisição referida em 11., o A. desconhecia os factos referidos em 28., 29., 30. e 32. (conforme modificação da Relação).

36. A parcela de terreno referida em 20 tem o valor locatício anual de cerca de € 5 200,00.

2) De Direito

O acórdão recorrido decidiu revogar a sentença de 1ª instância e, além do mais, reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o prédio urbano sito no Lugar …, da freguesia de …, com a área de 5.300m2, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n° 16…/19… e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o art. 63…, integrando a parcela de terreno com 2.100m2 que foi objecto de escritura de justificação notarial celebrada em 11.2.1998; parcela esta cujo direito de propriedade a 1ª instância, ao invés, havia declarado pertencer aos 1ºs R.R, julgando, por isso, procedente a reconvenção.

Considerou, para tanto, o acórdão da Relação, designadamente o seguinte:

«Ora, resulta desta factualidade que do prédio com o n° 16…, dispondo da área de 5.300m2 e mencionado em A), foi destacada uma parcela de 2.100m2, destinada a construção urbana, a que se reporta a escritura de justificação notarial de 11.2.1998 e que se encontra descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n° 32…/19….

Tal constitui operação urbanística que, conforme flui dos autos, não foi antecedida por qualquer procedimento administrativo que possa configurar um loteamento urbano ou sequer um destaque legalmente admissível.

Na altura da celebração da escritura de justificação notarial — 11.2.1998 — vigorava o Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 448/9:1, de 29.11, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 334/95, de 28/12, que procedeu à sua republicação.

De acordo com esse diploma, conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.1.2016, "manteve-se o regime que vinha de trás e que sujeitava obrigatoriamente a licenciamento municipal as operações de loteamento, então entendidas no artigo 3.°, alínea a), como: "todas as acções que tenham por objecto ou por efeito a divisão em lotes, qualquer que seja a sua dimensão, de um ou vários prédios, desde que pelo menos um dos lotes se destine imediata ou subsequentemente à construção urbana".

Para além disso, relativamente aos aglomerados urbanos e áreas urbanas admitia-se o destaque, dispensando-se o mesmo de sujeição a licenciamento municipal, desde que assegurado o cumprimento das condições previstas no respectivo artigo 5.°, ou seja, do destaque não poderiam resultar mais de duas parcelas que confrontem com arruamentos públicos e a construção a erigir na parcela a destacar teria de dispor de projecto aprovado pela câmara municipal.

A falta de observância destas normas, sob a forma de ausência de menção, designadamente, nos títulos de arrematação, ou outros documentos judiciais ou nos instrumentos notariais, do número e data de emissão do alvará era cominada com a nulidade dos actos jurídicos praticados, nos termos dos artigos 53.°, n.° 1 e 56.°, n.° 1 do referido Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos."

Voltando ao caso "sub judice" verifica-se que a escritura de justificação notarial de 11.2.1998, que se referiu a um terreno destinado a construção urbana, foi celebrada sem que tivesse sido feita qualquer menção à existência de um alvará de loteamento, nem qualquer referência à existência de um projecto de construção aprovado pela câmara municipal.

E seguidamente no âmbito dos presentes autos, em que se aprecia a aquisição por usucapião da parcela a que respeita esta escritura, não se provou que a operação urbanística da qual resultou a divisão do prédio não estivesse sujeita a licenciamento municipal por não se tratar de um loteamento urbano, nem que se tratasse de um destaque que reunia as condições do art. 5.° do Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos, designadamente, por os 1°s réus disporem de um projecto aprovado pela câmara municipal.

Por conseguinte, não se encontram preenchidos, face ao referido regime legal, os pressupostos para que possa ser considerada válida a operação urbanística que decorre da escritura de justificação por usucapião em causa nos autos, pelo que deve a mesma ser considerada nula.(…)

Muito embora, face à factualidade dada como provada, possam ocorrer actos de posse susceptíveis de conduzir à aquisição por usucapião da parcela referida nos autos por parte dos 1°s réus, certo é que esta não se poderá verificar.

Com efeito, não podem os actos de posse baseados num facto proibido pelas normas administrativas de ordenamento do território relativas à validade das operações urbanísticas como o loteamento ou o destaque permitir que se concretize uma aquisição por usucapião. Isto porque tais actos são contrários a disposições de carácter imperativo, o que determina a nulidade da escritura de justificação notarial que neles se funda (art. 294° do Cód. Civil)».

Os recorrentes discordam, obviamente, desta decisão, pugnando pela repristinação da sentença da 1ª instância, sustentando, em síntese, que o fraccionamento do prédio levado a efeito pelos 1ºs R.R. não constitui «operação de loteamento urbano» e que, de qualquer forma, a eventual ilegalidade desse fraccionamento não pode sobrepor-se e prevalecer sobre a usucapião invocada em sede de reconvenção.

E a nosso ver, adiantamo-lo já, têm razão.

Em primeiro lugar e desde logo, porque efectivamente, contrariamente ao que se concluiu no acórdão recorrido, a parcela em litígio não foi «destinada à construção», nem imediata nem subsequentemente, já que desde 19…, data em que se concretizou a divisão física do prédio (e até à propositura da acção já lá vão cerca de 28 anos) se encontra a ser utilizada como parque de estacionamento automóvel (vide nº 22 dos factos provados). Sendo certo que o Decreto-Lei n.º 448/91, de 29-11 (Regime Jurídico dos Loteamentos urbanos), na redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 334/95, de 28/12, que procedeu à sua republicação, o que proibia, declarando-os nulos, de harmonia com o seu artº 56º nº 3, eram os actos jurídicos praticados em violação do disposto no artº 53º, nomeadamente aqueles de que resultasse, directa ou indirectamente, a divisão em lotes nos termos da al. a) do artigo 3º, ou seja, as operações de loteamento, sem licenciamento municipal, aí entendidas como: "todas as acções que tenham por objecto ou por efeito a divisão em lotes, qualquer que seja a sua dimensão, de um ou vários prédios, desde que pelo menos um dos lotes se destine imediata ou subsequentemente à construção urbana" (sublinhado nosso).

Depois, porque o fraccionamento do primitivo prédio não se operou propriamente com a escritura de justificação aludida sob o nº 10 dos factos apurados, mas antes por via da construção do muro referido no nº 31 dos mesmos factos provados e subsequentes actos de posse efectiva e exclusiva praticados pelos 1ºs R.R. Embora, para o efeito, isso se revele, a nosso ver, irrelevante, na medida em que aquilo que o Dec. Lei nº 289/73, de 09 de Junho, então em vigor, proibia no seu artº 27º nº 2 era igualmente a operação de loteamento, sem licença municipal, definida no artº 1º como sendo: «A operação que tenha por objecto ou simplesmente tenha como efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais, e destinados imediata ou subsequentemente à construção…» (sublinhado nosso).

Por último, porque recusamos aceitar que a posse baseada em acto ou facto proibido por normas imperativas do loteamento urbano (ou do destaque) seja insusceptível de conduzir à aquisição da propriedade por usucapião. Não que se questione que os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo sejam, em regra, nulos, de acordo com o estatuído no artº 294º do C. Civil, como se afirma no acórdão recorrido. Nem que se tenha por indiscutível que a nulidade pode ser, em princípio, invocada a todo o tempo por qualquer interessado e pode (até) ser declarada oficiosamente pelo tribunal ( art.º 286º do C. Civil ).

Só que a não fixação de um prazo para a sua arguição «não afecta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião» (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. I, pag 263).

«A possibilidade da sua invocação perpétua (da nulidade) pode, porém, ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva (usucapião)». (MOTA PINTO, in Teoria Geral do Direito Civil, pag 470). No mesmo sentido se pronunciando o Prof. CASTRO MENDES, in Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pag. 291, nota 731.

E esta era também a doutrina já sufragada no domínio do anterior Código Civil, relativamente às nulidades absolutas. Como então ensinava o Prof. MANUEL DE ANDRADE: «o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de acção, ser invocada a todo o tempo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva» (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol.II, pag 418).

Daí que, no caso, a eventual nulidade da operação de loteamento ou destaque não pudesse afectar os actos de posse praticados pelos 1ºs R.R. sobre a parcela de terreno com a área de 2.100m2 em litígio nos autos e, consequentemente, obstar à sua consolidação por usucapião.

Só assim não poderia suceder se alguma norma dos diversos e sucessivos diplomas legais sobre a matéria do loteamento urbano, desde o Dec. Lei nº 46 673, de 29 de Novembro de 1965, até, pelo menos, àquele supramencionado Decreto-Lei n.º 448/91, de 29-11, tivesse vindo impedir a possibilidade de invocação da usucapião sobre os lotes de terreno resultantes de loteamento ilegal.

E isto porque, como decorre do artº 1287 º do C. Civil: «A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião» (sublinhado nosso).

Mas nenhum desses diplomas, repete-se, o fez.

De modo que a eventual nulidade decorrente de ilegal fraccionamento do prédio não constituía nem poderia constituir, por si só, fundamento para recusar a usucapião.

Ademais até, porque, como decorre dos art.ºs 1259º e 1296º do C. Civil, o facto de a posse não ser titulada ou de boa fé apenas influi no prazo necessário à verificação da usucapião [Neste sentido, MANUEL HENRIQUE MESQUITA, in Direitos Reais (sumários das Lições ao Curso de 1966-1967), pag 98].   

A nulidade (substancial ou formal) do título, ou até a falta de título, não maculam a posse, como posse boa para usucapião: apenas podem interferir com o tempo exigível para a posse ser posse prescricional (DURVAL FERREIRA, in Posse e Usucapião, 3ª ed. pag. 501).

Ou - como se afirma no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-6-2006, in CJ/STJ, Tomo 2/2006, pag. 133 - invocada a usucapião como forma de aquisição, justamente porque de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa  para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial.

E não se argumente - como faz o acórdão recorrido, com apoio no, aliás, douto aresto deste Supremo, de 26-01.2016, proferido no proc. 5434/09.2TVLSB.L1.S1 acessível in www.dgsi.pt/, que segue de perto - com o interesse público que as leis referentes ao loteamento visam satisfazer. É que também as regras da usucapião são determinadas por razões de interesse público consistente na defesa da paz pública e por - como assinalam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. III, pag 65 - «ponderosas razões de ordem económico-social».

Nem se afirme, por outro lado (como neste último douto Acórdão, citando um tratadista sobre esta problemática), que, diferentemente das normas sobre loteamento, os interesses subjacentes à usucapião não afectam terceiros, reduzindo-se apenas aos próprios interessados, em cada caso concreto. Porque isso é esquecer, salvo o devido respeito, que a usucapião também pode ser invocada «pelos credores e por terceiros com legítimo interesse na sua declaração, ainda que o devedor a ela tenha renunciado», como explicita o artº 305º nº 1 do C. Civil, aplicável ao instituto da usucapião por força do estatuído no artº 1292º do mesmo Código.

Mais grave, porém, a nosso ver, é tais argumentos abstraírem por completo da realidade económica e social do nosso País onde, especialmente no interior Norte e Centro, uma boa parte das partilhas entre maiores, nomeadamente de imóveis constitutivos do acervo das heranças, ainda é ou era feita «de boca» e posteriormente «legalizada» com suporte na usucapião.

Imagine-se o que seria agora, passados 30, 40 ou mais anos, os herdeiros intervenientes nessas partilhas ou os seus sucessores virem questionar judicialmente essas divisões materiais da propriedade com fundamento na invalidade do respectivo fraccionamento.

Ora, a usucapião serve também, além do mais, para « “legalizar” situações de facto ilegais» mantidas durante longos períodos de tempo -  como se diz na sentença da 1ª instância - inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa.

A usucapião é, efectivamente, um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (como decorre do citado art.ºs 1287º e do 1316º do C. Civil) que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse. E, quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art.º 1288º), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse [art.º 1317º al. c) do C. Civil].

Sendo que a posse, por sua vez, não dispensa a verificação simultânea dos seus dois elementos caracterizadores: o corpus (os actos materiais praticados sobre a coisa) e o animus (o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados).

A posse, por seu turno, segundo o art.º 1258º do C. Civil, pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta.

E, como já acima referimos, os caracteres da má fé ou da não titulação da posse somente influem no prazo necessário à verificação da usucapião.

Acrescendo que na falta de registo do título ou da mera posse, a usucapião de imóveis pode dar-se no termo de quinze anos se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (art.º 1296º do C. Civil).

Deste modo, em face da matéria fáctica apurada e supra discriminada sob os nºs 31 e 33, é irrecusável - ao invés do afirmado e decidido no acórdão recorrido - que a posse dos 1ºs R.R sobre a dita parcela de terreno se consolidou por usucapião, não podendo, por isso, deixar de se lhes reconhecer o direito de propriedade sobre a mesma.

Consequentemente, não poderá manter-se o acórdão recorrido, antes se justificando a repristinação da sentença da 1ª instância, como pedem os recorrentes.

Decisão

Nos termos expostos, acordam em conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, repristinando a sentença da 1ª instância.

Custas pelo recorrido.

                       

Lisboa, 6 de Abril de 2017

Nunes Ribeiro (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Olindo Geraldes (vencido, nos termos da declaração que se junta)

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DECLARAÇÃO DE VOTO

I – Manifestam os autos que o A. tem inscrito a seu favor, desde 26 de outubro de 2004, o direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito, sob o n.º 16…/19… (…), na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, por o ter adquirido, por compra e venda de 27 de setembro de 2004, nomeadamente no âmbito de um processo de execução.

Sendo certo que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define – art. 7.º do Código do Registo Predial (CRP) –, dispõe o A. do direito de propriedade de tal prédio e, como tal, deve ser reconhecido.

Como resulta da prova, no registo, o prédio está identificado como correspondendo a um terreno para construção, com a área de 5300 m2.

Embora o registo possa identificar o prédio pela sua área, com normas específicas, com vista à obtenção da sua harmonia, designadamente com a área identificada na inscrição matricial (arts. 28.º a 31.º do CRP), não tem por fim definir fisicamente o prédio. Com efeito, como decorre do art. 1.º do CRP, o registo predial destina-se, essencialmente, a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. O que interessa, pois, para a segurança jurídica, é a situação jurídica do prédio, nomeadamente no que se refere à definição dos direitos, ónus e encargos incidentes sobre o prédio.

De qualquer modo, no caso, interessa considerar a área de 5300 m2, apenas para melhor compreender a extensão do direito de propriedade reconhecido ao A.


Consta dos autos que, por escritura de 17 de fevereiro de 1981, o R. e outro compraram o prédio descrito, sob o n.º 16…/19… (…), na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia (a descrição, ao tempo, correspondia ao n.º 53…), respeitante a um terreno para construção, com a área aproximada de 5300 m2 (6.), prédio que, através de escritura pública de 25 de novembro de 1983, foi vendido a HH, com a declaração que respeitava a terreno destinado a construção urbana, com a área de 5300 m2 (7.), e mais tarde, por escritura de 13 de fevereiro de 1984, vendido novamente a outrem, igualmente com a declaração anterior.

Por outro lado, no mesmo local, existe uma parcela de terreno, com cerca de 2100 m2, fisicamente delimitada, que, pelo menos até 25 de novembro de 1983, integrava o prédio descrito sob o n.º 16…/19… (…), estando a ser utilizada pela 2.ª R., como instalação de um parque de estacionamento automóvel.

Foi sobre esta parcela de terreno que incidiu, exclusivamente, a escritura de justificação, outorgada em 11 de fevereiro de 1998, com a declaração de que o terreno, com a área de 2100 m2, se destinava a construção.

Face a este circunstancialismo, não podemos deixar de ter como certo, desde logo, que, em 25 de novembro de 1983, tal parcela integrava o prédio descrito no registo sob o n.º 16…/19…, adquirido em 17 de fevereiro de 1981, designadamente pelo R., tornando estranha a sua declaração, na escritura de justificação, de 11 de fevereiro de 1998, de não ser detentor “de qualquer título formal que legitime o domínio” do terreno “destinado a construção urbana, com a área de 2100 m2”.


Por outro lado, o fracionamento de parcela para construção, como declaradamente era o caso, está sujeito a legislação especial, dependendo de licença camarária (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, III, 2.ª edição, 1984, pág. 263).

Em 1983, estava em vigor o DL n.º 289/73, de 6 de junho, nos termos do qual “a operação que tenha por objeto ou simplesmente tenha como efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais, e destinadas imediata ou subsequentemente à construção, depende de licença da câmara municipal da situação do prédio, ou prédios (…)” (art. 1.º). Nessa conformidade, prescrevia-se ainda que “as operações de loteamento referidas no artigo 1.º, bem como a celebração de quaisquer negócios jurídicos relativos a terrenos, com ou sem construção, abrangidos por tais operações, só poderão efetuar-se depois de obtido o respetivo alvará (…)” (art. 27.º, n.º 1). Na mesma linha, estipulava-se, também, que “nos títulos de arrematação ou outros documentos judiciais, bem como nos instrumentos notariais relativos a atos ou negócios referidos no número anterior, deverá sempre indicar-se o número e data do alvará de loteamento em vigor, sem que tais atos serão nulos e não podem ser objeto de registo” (art. 27.º, n.º 2).

Deste modo, o fracionamento da referida parcela porque não aprovado, por alvará camarário, é nulo, por ofensa ao disposto no art. 1.º do DL n.º 289/73, que, sendo uma norma de ordem pública, tem natureza imperativa (J. OSVALDO GOMES, Manual dos Loteamentos Urbanos, 2.ª edição, 1983, pág. 478 e segs.).

Com efeito, tratando-se de um terreno, declarada e reiteradamente, destinado à construção ou com aptidão edificativa, o fracionamento estava obrigatoriamente sujeito a licença camarária, a conceder mediante emissão de alvará.

Afirmar-se que tal parcela não foi destinada à construção não corresponde, manifestamente, à realidade emergente dos autos.

Assim, e por efeito do disposto nos arts. 294.º e 295.º, ambos do Código Civil, o ato de fracionamento padece de nulidade, não produzindo quaisquer efeitos jurídicos.

Na verdade, para satisfazer a necessidade de assegurar a salvaguarda do interesse público, previu-se a nulidade para os “atos de fracionamento e a celebração dos negócios jurídicos relativos a terrenos, compreendidos em loteamentos, sempre que, nas respetivas escrituras, instrumentos, títulos de arrematação ou outros documentos judiciais ou notariais, se não indique o número e a data do alvará em vigor”, tal como se destacou no preâmbulo do DL n.º 289/73.

A mesma especificidade e efeito jurídico mantiveram-se ainda com o DL n.º 400/84, de 31 de dezembro (art. 1.º), que revogou o DL n.º 289/73, e também com o DL n.º 448/91, de 29 de novembro (art. 1.º), que, por vez, revogou o DL n.º 400/84, não havendo alteração resultante da sucessão de leis no tempo relativa aos loteamentos urbanos.  

Assim, não pode deixar de se concluir que a parcela, não ganhando autonomia jurídica, continuou a fazer parte integrante do prédio descrito sob o n.º 16…/19… (…).


Perante a invalidade do fracionamento da parcela, naturalmente, só pode estar excluída a situação de usucapião, sendo indiferente que os 1.º s RR., desde 25 de novembro de 1983, a venham utilizando, retirando utilidades, fruindo e explorando, de forma pública e pacífica, no convencimento de que lhes pertence, como seus proprietários.

Com efeito, continuando a parcela integrada no prédio descrito no registo sob o n.º 16.../19..., em relação ao qual os 1.º s RR. não reivindicam o direito de propriedade, não há uma situação de posse, mas apenas de detenção ou mera posse, emergente dos atos materiais praticados.

Sem a posse, no sentido estrito (art. 1251.º do Código Civil), não pode haver usucapião, forma originária de aquisição do direito de propriedade, não obstante o lapso de tempo decorrido, e, por isso, não pode ser reconhecido, aos 1.º s RR., qualquer direito de propriedade, nomeadamente sobre a referida parcela de terreno.

No mesmo sentido, concluiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de janeiro de 2016, disponível em www.dgsi.pt (5434/09.2TVLSB.L1.S1).

Na verdade, no confronto entre o regime jurídico da usucapião e o regime jurídico do loteamento urbano, de natureza imperativa, com vista à salvaguarda dos fins públicos, prevalece o último, porquanto, desde há muito tempo, reveste maior relevância jurídica, atendendo nomeadamente aos fins de interesse público subjacentes às políticas de solos e de urbanismo (art. 335.º do Código Civil), enquanto na usucapião, geralmente, são interesses privados que estão envolvidos.

Não dispondo os 1.º s RR. de qualquer direito de propriedade, está prejudicada a invocação do direito tendo como pressuposto o reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela de terreno.


Assim, seria de concluir, designadamente, pelo reconhecimento do direito de propriedade do A. sobre o prédio descrito, sob o n.º 16…/19… (…), na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, com a exclusão de qualquer reconhecimento de direito de propriedade aos 1.º s RR.


II – Nestes termos, negando a revista, confirmaria o acórdão recorrido, tal como constava do projeto oportunamente apresentado, como primitivo relator.

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[1] Relator (por vencimento): Nunes Ribeiro
  Conselheiros Adjuntos: Dra Maria dos Prazeres Beleza e Dr. Olindo Geraldes