Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
035539
Nº Convencional: JSTJ00008223
Relator: AZEVEDO FERREIRA
Descritores: CHEQUE SEM PROVISÃO
CRIME DE PERIGO
REQUISITOS
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ198011200355393
Data do Acordão: 11/20/1980
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR Nº 86 IS 1981/04/13, PÁG. 933 A 936 - BMJ Nº 301, PÁG. 263
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ. EDUARDO CORREIA IN DIREITO CRIMINAL VI PAG287 VII PAG23. ALBERTO DOS REIS IN CPC ANOTADO VV.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMONIO.
Legislação Nacional: CPP29 ARTIGO 668 PARUNICO.
CPC67 ARTIGO 766 N3 ARTIGO 767 N1 N2 N3.
DL 13004 DE 1927/01/12 ARTIGO 22 ARTIGO 23 ARTIGO 24.
LUCH ARTIGO 3 ARTIGO 14 ARTIGO 17 ARTIGO 28.
DL 182/74 DE 1974/05/02 ARTIGO 2 ARTIGO 3.
CP886 ARTIGO 29 N5 ARTIGO 125 N4 PAR6.
CCIV66 ARTIGO 340 N1 N2 N3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1979/01/10.
ACÓRDÃO STJ DE 1945/12/04 IN COL OF VV PAG526.
ACÓRDÃO STJ DE 1978/05/31 IN BMJ N277 PAG158.
ACÓRDÃO RL DE 1974/10/25 IN BMJ N340 PAG264.
ACÓRDÃO STJ DE 1973/03/21 IN BMJ N225 PAG165.
Sumário :
O crime de emissão de cheque sem cobertura e um crime de perigo, para cuja consumação basta a consciencia da ilicitude e da falta da provisão para a ordem do pagamento dada.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em sessão plenaria, os juizes do Supremo Tribunal de Justiça.

O reu A, casado, de 51 anos, comerciante, residente na Rua ..., ..., ... direito, veio, nos termos do artigo 668 do Codigo de Processo Penal, interpor recurso do Acordão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 1979, proferido nos autos de recurso penal provindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que ele era ai recorrente e foram recorridos o Ministerio Publico e a assistente B, ja melhor identificada, fundando-se em que, no dominio da mesma legislação, deu aquele acordão solução oposta a que foi ditada relativamente a mesma questão fundamental de direito, pelo Acordão deste mesmo Tribunal proferido em 4 de Dezembro de 1945, publicado no volume V, pagina 526, do Boletim Oficial do Ministerio da Justiça e junto por fotocopia certificada de folha 17 a folha 19.
O recurso foi admitido e, produzidas alegações, decidiu-se, em plenario da secção criminal, pelo Acordão de 11 de Julho de 1979, que existia a oposição de acordãos invocada e justificativa de recurso extraordinario para o tribunal pleno, ordenando-se, por isso, o prosseguimento dos termos desse recurso.
E, de conformidade com o disposto nos ns. 1, 2 e 3 do artigo 767 do Codigo de Processo Civil, aplicavel por remissão do paragrafo unico do artigo 668 do Codigo de Processo Penal, foi o mesmo recurso doutamente alegado pelo recorrente e pelo digno agente do Ministerio Publico, correndo, depois, os vistos legais.
Cumpre agora decidir.
Mas porque o acordão do plenario da secção criminal não vincula o tribunal pleno (artigo 766, n. 3, do Codigo de Processo Civil), tera de ser reexaminada a questão preliminar. E so havera conflito de jurisdição, pretende dizer-se, conflito de jurisprudencia, quando os arestos em confronto tenham resolvido, em sentido contrario, a mesma questão juridica fundamental (J.
A. dos Reis, Codigo Anotado, volume V, pagina 260).
E pois necessario, do ponto de vista tecnico-juridico, que o problema seja o mesmo e tenha obtido soluções diversas, ou seja, com vantagem se diz no Acordão deste Tribunal de 31 de Maio de 1978, Boletim, n. 277, pagina 158, que os mesmos preceitos legais em que se tenham fundamentado as decisões apontadas como em oposição tenham sido interpretadas e aplicadas diversamente a factos identicos e que uma das decisões tenha estabelecido, de forma expressa, doutrina e consequente solução contraria a fixada no outro acordão, não se tendo como suficiente que nem possa ver-se a aceitação tacita da doutrina expressa no outro, quer dizer-se, da doutrina contraria a enunciada no outro, o que quer dizer que a aceitação, tem de ser expressa e não tacita.
Isto posto, a modos de exordios, e momento de ver se se verificam ou não os pressupostos que condicionam o prosseguimento do recurso.
Os acordãos ditos em oposição são, como se disse, o de 4 de Dezembro de 1945 e o de 10 de Janeiro de 1979.
A data em que foi proferido o primeiro vigorava o Decreto-Lei n. 13004, de 12 de Janeiro de 1927.
No seu artigo 23 declara-se quando e criminosa a emissão de um cheque, ou seja, define-se o tipo legal de crime de emissão de cheque sem cobertura; no artigo 24 enunciam-se as condições objectivas da punibilidade do mesmo crime e indica-se a pena em abstracto aplicavel.
Tais preceitos vigoram, ainda, excepto quanto a medida da pena que o artigo 2 do Decreto-Lei n. 182/74, de
2 de Maio, elevou para a de dois a oito anos de prisão maior.
Os cheques, que foram objecto de apreciação juridico-criminal no acordão recorrido foram emitidos em 31 de Julho de 1974. Nos termos do seu artigo 3, aquele diploma entrou imediatamente em vigor. Dai que, havendo o crime sido cometido na vigencia da lei nova, a respectiva punição se ela houvesse sido submetida.
Sera tal alteração o suficiente para que deva ou tenha de concluir-se que os acordãos ditos em oposição não foram proferidos no dominio da mesma legislação? Entende-se que não.
E que não basta a pluralidade de diplomas legais ao reger o mesmo caso concreto para que tenha forçosamente de concluir-se que se não esta no dominio da mesma legislação.
Para tanto seria necessario que as regras de direito enquadradas no Decreto n. 13004 integrassem um sistema juridico diferente das que o foram no Decreto-Lei n. 182/74. Não e, manifestamente, o caso. Mantem-se a mesma definição legal do crime. Simplesmente se entendeu, por razões de politica criminal e garantia mais eficaz da circulação do cheque, como meio de pagamento e patrimonial dos beneficiarios exacerbar a pena aplicavel a emissão criminosa do cheque. O sistema juridico criminal manteve-se o mesmo.
E o que manifestamente resulta do artigo 2 do referido decreto, segundo cujos termos "o crime de emissão de cheque sem cobertura previsto no Decreto n. 13004, de
12 de Janeiro de 1927, passa a ser punido com pena de dois a oito anos de prisão maior".
Quer dizer, que tudo se manteve como dantes, excepto a pena, que se agravou com fins imediatos de persuasão e dissuasão, bem assim de tutelar mais eficazmente a circulação do cheque na sua função economica-juridica como titulo de credito, meio de pagamento e garantia patrimonial dos beneficiarios.
Tem de se concluir, assim, que os Acordãos do Supremo tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 1945 e o de 10 de Janeiro de 1979 foram proferidos no dominio da mesma legislação.
Tambem não pode duvidar-se de que um e outro recairam sobre a mesma questão fundamental de direito, a emissão criminosa de cheques prevista nos artigos 23 e 24 do Decreto n. 13004, sendo o ultimo proferido no artigo 2 do Decreto-Lei n. 182/74, de 2 de Maio.
E um e outro dos referidos acordãos assentaram sobre soluções opostas.
Com efeito, enquanto no Acordão de 4 de Dezembro de 1944 se decidiu que e material ou de resultado o crime de emissão de cheque sem cobertura do artigo 23 do Decreto n. 13004, pelo que pode ser elidida a presunção de dolo neste artigo estabelecida, ou seja, que para a verificação do crime se exige um certo resultado, que o sacador ou emitente do cheque actuou com a intenção de defraudar os beneficiarios e, consequentemente, com dolo especifico. No Acordão de 10 de Janeiro decidiu-se que a emissão do cheque sem provisão não e um crime de resultado, não e necessario que o sacador o emita para prejudicar os beneficiarios e, em consequencia, a circulação do cheque como meio de pagamento e moeda boa para o realizar. Basta o perigo de lesão de interesse digno da tutela juridica para que, de forma presumida, se consuma o crime de emissão de cheque sem cobertura.
Trata-se, pois, de um crime de perigo abstracto, bastando para a integração do elemento subjectivo o simples dolo generico, ou seja, a vontade de emitir o cheque com a consciencia da falta ou insuficiencia de provisão e da ilicitude de tal conduta.
Pode, assim, concluir-se que os dois acordãos estão efectivamente em oposição sobre a mesma materia de direito, no dominio da mesma legislação, sendo de presumir o transito em julgado do acordão proferido anteriormente ao recorrido.
Bem se decidiu, pois, a questão preliminar, entendendo-se que havia oposição de acordãos justificativa de recurso ordinario para o tribunal pleno.
Nada obsta, pois, a que se aprecie o objecto do recurso.
O cheque e um titulo de credito, com as caracteristicas da literalidade e autonomia que revestem os demais.
Supõe um deposito bancario. Com efeito, o cheque e sacado sobre um banqueiro que tenha fundos a disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou tacita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque (artigo 3 da L. U.). Traduz-se, afinal, numa ordem de pagamento dada pelo sacador ao banco pagavel a favor de determinada pessoa e transmissivel ao sacado a favor do tomador.
O cheque estipulado pago por via de endosso, que transmite todos os direitos resultantes desse cheque (artigo 14 e 17 da referida lei).
Destina-se a funcionar como meio de levantar e transferir dinheiro, a efectuar pagamentos a terceiros.
E, como se diz na portaria do Ministerio das Finanças de 21 de Fevereiro de 1953, "um dos principais titulos de credito a realizar na economia nacional larga e proveitosa função no plano das liquidações e facilidades de pagamentos, pela redução das exigencias de circulação".
Traduz-se num meio de movimentação de fundos e capitais e de evitar despesas que o pagamento em dinheiro representaria, quer quanto a contagem, quer quanto ao selo de quitação.
E, sintetizando, uma ordem de pagamento destinada a circular como se de moeda se tratasse e, em consequencia, fiduciariamente e com poder liberatorio.
Para o preenchimento cabal de tais fins, necessario se tornava adoptar medidas de protecção juridico-penal do cheque que assegurassem o direito patrimonial dos tomadores ou beneficiarios da sorte, que a sua boa fe e confiança não ficassem iludidas com a recusa do pagamento por falta da provisão bancaria quando apresentado, para o efeito, no banco sacado ou atraves da camara de compensação e, predominantemente, o interesse geral e publico da respectiva circulação fiduciaria com poder liberatorio.
Para assegurar essa tutela juridica foi publicado o Decreto-Lei n. 13004, de 12 de Janeiro de 1927, que, alem do mais, estabelece:
Artigo 23: E considerada criminosa a emissão de um cheque que, apresentado a pagamento no prazo do artigo 12 do presente decreto-lei (hoje artigo 29 da L. U.), não foi integralmente pago por falta de provisão.
Artigo 24: ao sacador de um cheque cujo não pagamento por falta de provisão tiver sido verificado, nos termos e no prazo prescritos nos artigos 21 e 22 do presente decreto (hoje artigo 40, ns. 2 e 3, daquela lei), sera aplicada, a pedido do portador do cheque, a pena de seis meses e dois anos de prisão correccional.
Por razões de politica criminal e natureza economica, designadamente como se diz no relatorio "para intensificar o uso do cheque como meio de pagamento e de impedir a saida abusiva de fundos do sistema bancario", foi publicado o Decreto-Lei n. 182/74, de 2 de Maio, que dispos no seu artigo 2: "O crime de emissão de cheque sem provisão previsto no Decreto n. 13004, de 12 de Janeiro de 1927, passa a ser punido com a pena de dois a oito anos de prisão maior."

E a tanto se circunscreve a tutela juridico-penal do cheque.
Nestes termos, a emissão do cheque sem provisão traduz a violação de um interesse juridicamente tutelado.
So que, em teoria juridico-penal, para a estruturação do facto tipico se exige, por vezes, a lesão efectiva do interesse juridicamente tutelado: por outras, contenta-se a lei com a coloração desse interesse em simples perigo de lesão. E temos assim os crimes de lesão e os crimes de perigo. Neste segundo caso pode a lei exigir a verificação efectiva do perigo de lesão e teremos, neste caso, em delito de perigo concreto ao pressupor esse perigo de lesão, e estaremos face a um delito de perigo presumido ou abstracto (cf. o Professor Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 287).
Mas sera o crime de emissão de cheque sem provisão um crime de dano ou um crime de perigo e, neste ultimo caso, um crime de perigo concreto ou um crime de perigo presumido ou abstracto?
A resposta tera de encontrar-se na letra e no espirito da lei que acima se enunciou e estabelece a protecção juridico-penal do cheque.
Ora, apos longo e exaustivo trabalho jurisprudencial que a doutrina não descurou, chegou-se a um consenso, por assim dizer geral, e neste Supremo Trbunal de Justiça uniformemente aceite, de que o tipo legal de crime definido nos artigos 22 e 23 do Decreto-Lei n. 13004 se preenche com os elementos seguintes que essencialmente o integram: preenchimento do cheque com a assinatura do sacador; a falta ou insuficiencia de fundos no banco sacado; a entrega do cheque ao tomador ao beneficiario. Estes são os elementos objectivos.
São seus elementos subjectivos: o conhecimento por banda dosacador ou emitente daquela falta ou insuficiencia de fundos; a vontade de praticar o facto, sabendo que o mesmo e proibido, ou seja, a consciencia da falta de provisão e da ilicitude da conduta.
Deste requisitorio podem extrair-se varias conclusões.
A simples subscrição do cheque sem provisão não integra a previsão legal de emissão de cheque sem cobertura.
E necessario que ele saia do poder do sacador ou emitente e entre na esfera patrimonial do tomador ou beneficiario e no seu poder da livre disposição. A actividade criminosa do sacador emitente consuma-se com essa entrega. Não e necessaria qualquer lesão de interesse juridicamente protegido.
Logo não e um crime de dano. Mas criou-se um perigo de lesão de interesses juridicamente protegidos. Trata-se, consequentemente, de um crime de perigo. Ele consuma-se, independentemente de qualquer resultado no mundo exterior ou evento. Mas sera necessario que se crie um perigo concreto?
Entregue ao tomador pelo emitente um cheque por ele subscrito sem fundos ou com fundos insuficientes no banco sacador, para cobrir a ordem de pagamento, logo ficou criado o perigo de circular fiduciariamente como titulo de credito transmissivel, por via de endosso, como meio de pagamento e sem poder liberatorio, defraudando os fins de protecção visados pelo sistema juridico-penal de tutela. Pressupõe-se ou presume-se o perigo de lesão dos intesses juridicamente protegidos quando o agente pratica o facto que conclui o crime, sabendo que o e.
Por isso e de concluir que o crime de emissão de cheque sem provisão e um delito presumido ou abstracto.
E assim sendo, não e necessaria a existencia do proposito ou intenção de prejudicar, defraudar por parte do emitente do cheque para a estruturação do facto tipico ou seja, o dolo especifico. E suficiente o dolo generico, a intenção do agente de praticar o facto que constitui o crime, sabendo que o e, o mesmo que e dizer, a consciencia da falta de provisão e da ilicitude da conduta.
A apresentação do cheque a pagamento no prazo legal e a oposição da nota de falta ou insuficiencia de provisão são actos posteriores a consumação do crime.
A actividade do emitente do cheque cessou com a entrega dele ao tomador. E este que vai apresenta-lo a pagamento no banco sacado ou atrves da comarca de compensação, os quais, na falta ou insuficiencia de provisão, aporão a referida nota.
Como manifestamente resulta do texto do artigo 24 do Decreto-Lei n. 13004, não são elementos integrantes do crime, mas simples condições objectivas da punibilidade.
Ha que observa-los se o portador do cheque pretender dar conhecimento do facto em juizo para efeitos de procedimento criminal.
No cheque pagavel a vista considera-se como não escrita qualquer menção em contrario.
O cheque apresentado a pagamento, antes do dia indicado como data da emissão, e pagavel no dia da apresentação (artigo 28 da L. U.).
Nestes termos, os cheques não são documentos de constituição da divida ou da garantia de incumprimento de obrigações. Eles traduzem sempre uma ordem de pagamento dada pelo sacador ao banco sacado que so a pode recusar na falta ou insuficiencia de fundos (artigo 3 da lei citada).
E deve cumprir ordem no dia da apresentação, mesmo que anterior seja, pretende dizer-se, mesmo que seja antes do dia indicado como data da emissão.
E sempre um meio de pagamento que, como tal, a lei acautela e defende no interesse do tomador e no geral e comum pela fe publica que o cheque tem de ter para preenchimento da sua função juridico-economica.
Tambem não significa ausencia de dolo pelo lado do sacador emitente o conhecimento antecipado do tomador de que o cheque não tem provisão.
E que tal elemento subjectivo consiste justamente no conhecimento ou consciencia dessa falta e da ilicitude.
Não e so o interesse do tomador que esta em causa, mas tambem, e predominantemente, o geral e publico da circulação do cheque, como meio de pagamento e demais funções. Quando muito podera entender-se que emitente e tomador se concluiram no sentido de frustrar a função economica-juridica do cheque, fazendo este seu o dolo daquele (ut Acordão da Relação de Lisboa de
25 de Outubro de 1974, sumariado no Boletim, n. 340, pagina 264).
A mesma doutrina e de entender aplicavel ao tomador que, conhecendo a falta de provisão do cheque emitido a seu favor e devidamente entregue, se tenha comprometido perante o emitente, igualmente sujeito passivo dessa aplicação, e, por escrito a so o apresentar a pagamento depois de verificada determinada condição suspensiva.
Para alem das razões ja aduzidas, e manifesto que o consentimento dado pelo tomador, na hipotese do ofendido, a semelhante conceito, para alem de defraudar as funções economica-juridicas do cheque e os interesses que, com a tutela, juridica se visa acautelar, e juridicamente irrelevante.
Ja se decidiu, com efeito, no Acordão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 1973, no Boletim, n. 225, pagina 165, que "no crime de emissão de cheque sem provisão não deixa de se verificar a incriminação pela circunstancia de o tomador ter sido informado da falta de provisão, uma vez que o cheque e um titulo destinado a circulação, e outros interesses alem dos do tomador são ou podem ser lesados".
Sem considerar mesmo o que se dispõe no n. 5 do artigo
29 do Codigo Penal, o consentimento do ofendido so tem relevancia nos precisos termos do artigo 340 e seus numeros do Codigo Civil. E em especial necessario que o consentimento do ofendido no acto lesivo verse sobre direitos de que seja portador exclusivo e, em consequencia, disponiveis cf. o Professor Eduardo Correia,
Direito Criminal, II, 23).
Mas não e manifestamente o caso. O consentimento do ofendido no acto lesivo do seu interesse - emissão e entrega de um cheque sem provisão com o seu conhecimento de que a não tinha - não versa sobre direitos de que seja titular exclusivo. Ora, o interesse juridico que com a incriminação tutelam os artigos 23 e 24 do Decreto n. 13004 não e apenas o patrimonial dos tomadores ou beneficiarios, mas antes o interesse publico e geral da circulação do cheque como meio de pagamento para preenchimento dos fins da redução de circulação fiduciaria da moeda e saida de fundos do sistema bancario.
Logo não obsta a incriminação o conhecimento antecipado do tomador de que o cheque não tem provisão e mesmo o compromisso tomado de mutuo acordo e por escrito de que o cheque so seria apresentado a pagamento depois de verificada determinada condição suspensiva.
Tais considerações não ficam invalidadas pelo facto de o artigo 24 do falado Decreto n. 13004 fazer depender o procedimento criminal da denuncia do portador do cheque. Tal não significa que o interesse patrimonial do portador do cheque sobreleve o geral do preenchimento total da sua função economico-juridica.
E pura questão de politica criminal. Procurou-se, por um lado, incentivar o uso do cheque como meio de pagamento, dando aos portadores para lhes captar a confiança a garantia da aplicação de severas penas para os emitentes que lançassem na circulação cheques sem provisão. Mas, por outro lado, e prevenindo a hipotese de recusa do pagamento por falta de provisão, procurou-se uma solução conciliatoria que não comprometesse irremediavelmente o interesse patrimonial do tomador e a liberdade do emitente. Consistiu precisamente essa solução em deixar o procedimento criminal dependente da denuncia do portador, reservando-lhe o seu perdão ao emitente remisso que honrar a ordem de pagamento, efectuando-o antes do transito em julgado da sentença condenatoria, caso em que fica extinto tal procedimento (artigo 125, n. 4, e paragrafo 6 do Codigo Penal).
Mas não e isenta de criticas tal solução. Facilita, sobretudo, em prejuizo do interesse geral da circulação do cheque como meio de pagamento, circulação eminentemente fiduciaria, frequentes convivios entre o portador e o emitente do cheque, em que aquele, para obviar ao prejuizo total ou parcial, da quitação por quantias inferiores acompanhadas do perdão.
Mostra-se, assim, que bem se decidiu no acordão recorrido, considerando o crime de emissão de cheque sem provisão como um delito de perigo presumido ou abstracto com as consequencias dai adversientes.
Nega-se, por todo o exposto, provimento ao recurso, condenando-se o recorrente em 3500 escudos de imposto de justiça e 2000 escudos de procuradoria.

E para resolução do conflito de jurisprudencia lavra-se o seguinte assento:
O crime de emissão de cheque sem cobertura e um crime de perigo, para cuja consumação basta a consciencia da ilicitude da conduta e da falta da provisão para a ordem do pagamento dada.

Lisboa, 20 de Novembro de 1980

Augusto de Azevedo Ferreira - Antonio Acacio de Oliveira Carvalho - Francisco Bruto da Costa - Rodrigues Bastos -
- Daniel Ferreira - Abel de Campos - Antonio Furtado dos Santos - Henrique da Rocha Ferreira - Manuel Arelo Ferreira Manso - Avelino da Costa Ferreira Junior - Anibal Aquilino Ribeiro - Carlos Alberto da Costa Soares - Rui Corte Real - Alberto Alves Pinto - Sebastião de Barros e Sa Gomes - Amilcar Moreira da Silva - Jose Henriques Simões - João Augusto Pacheco e Melo Franco - João Solano Viana - Orlando de Paiva Vasconcelos de Carvalho - Joaquim Augusto Roseira de Figueiredo - Jose Luis Pereira - Americo Fernando de Campos Costa - Manuel Santos Victor.