Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
16/23.9GGPTG-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO DIAS
Descritores: HABEAS CORPUS
IDENTIDADE DO ARGUIDO
PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO
INTÉRPRETE
TRADUÇÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. As questões invocadas na petição deste habeas corpus (quando o peticionante sustenta, em síntese, que teve medo de represálias e, por isso, não forneceu a sua verdadeira identidade, que não percebia a língua inglesa e, portanto, não foram assegurados uma tradução e um interprete idóneos na língua materna e, teriam sido preteridos os seus direitos de defesa, concluindo que seria inválido o 1.º interrogatório judicial de arguido detido, bem como a aplicação da prisão preventiva, não produzindo esta quaisquer efeitos) deveriam ser colocadas (tempestivamente) durante o 1.º interrogatório judicial de arguido detido, como depois em sede de recurso dos despachos judiciais que ali fossem proferidos, e não neste habeas corpus que é providência inadequada para esse efeito (uma vez que essa matéria não integra qualquer dos fundamentos do art. 222.º do CPP, que são taxativos).

II. Não concordando com o entendimento do Magistrado Judicial que validou a sua detenção e lhe aplicou a prisão preventiva a que ficou sujeito, deveria ter recorrido da respetiva decisão, não sendo a providência de habeas corpus o meio próprio para discutir o mérito daquela decisão.

III. A detenção do arguido foi motivada por facto que a lei permite (detenção por crime cometido em flagrante delito) mantendo-se dentro do prazo legal (na sequência de decisão judicial, proferida nos termos legais).

IV. Tudo revelando que foi feito um uso claramente abusivo desta providência excecional, pode concluir-se que a petição de habeas corpus é manifestamente infundada, justificando-se a condenação nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório

1. O peticionante, que se identifica com o nome de AA, através do seu Advogado, requereu esta providência de Habeas Corpus (ao abrigo do art. 222.º, n.º 2, al. b), do CPP), alegando ser arguido no inquérito n.º 16/23.9GGPTG, tendo sido detido ilegalmente em 13.02.2023, embora com a identificação do seu irmão mais novo BB, com o qual é parecido, pedindo, em consequência, a sua imediata restituição à liberdade.

Para tanto, invoca, em síntese, no que aqui interessa, o seguinte (transcrição sem negritos, nem sublinhados):

1. No pretérito dia 13 de fevereiro de 2023, o aqui Arguido viajava em direção a ... tendo a sua marcha sido interrompida, por volta das 23 horas e 30 minutos, no âmbito de uma operação de controlo rodoviário organizada pela Guarda Nacional Republicana[1].

2. No âmbito dessa operação os órgãos de polícia criminal da G.N.R (doravante, OPC) dirigiram-se ao mesmo pedindo os seus documentos, os quais o Arguido não logrou encontrar porque não estavam na sua posse, sendo que em seguida, sem qualquer razão, a não ser o facto de o arguido ser estrangeiro e desconhecer a língua e a lei portuguesa, revistaram-lhe o interior do seu veículo.

3. No banco traseiro do veículo encontrava-se uma mala que continha pertences pessoais do Arguido, e ainda os documentos de identificação do seu irmão mais novo BB; no porta-bagagens do veículo encontrava-se uma caixa de cartão selada com fita-cola.

4. Os militares da GNR espalharam os bens que se encontravam na mala no banco traseiro pelo pavimento da estrada e encontraram os documentos de identificação que pertencem ao irmão mais novo do Arguido.

5. Nesta senda, abriram - sem qualquer auxílio, pedido ou intervenção por parte do Arguido – a fita-cola que vedava a caixa que se encontrava no porta-bagagens do veículo, tendo sido descoberto produto estupefaciente que estava nesta acondicionado.

6. Importa mencionar que nenhum dos militares da GNR que contactou com o Arguido naquela noite falava alemão, a sua língua materna, nem sequer falavam inglês, pelo que qualquer tentativa de comunicação encontrava-se logo frustrada a priori.

7. Os militares da GNR identificaram o Arguido através da referida documentação apreendida em nome do seu irmão mais novo com o qual, de facto, é parecido.

8. O Arguido ainda disse ao militar da GNR que se chamava AA, todavia, não lhe foi atribuída qualquer credibilidade, pois quando afirmou que o seu nome era AA, aquela autoridade policial não lhe deu qualquer atenção a este facto, ignorando-o por completo, eventualmente poderão até nem ter compreendido por não dominarem qualquer língua estrangeira.

9. Estando em total estado de choque por estar a ser detido e por não compreender de forma alguma a língua portuguesa, e assim, não conseguir comunicar completa e integralmente com os militares da GNR, o Arguido teve receio de desmentir perante autoridade judiciária a identidade que lhe foi atribuída – a identidade do seu irmão mais novo – sob pena de sofrer represálias adicionais àquelas que já sabia serem esperadas.

10. Nunca durante as revistas e buscas policiais foi concedido qualquer intérprete ao Arguido, nem sequer lhe facultado qualquer documento traduzido do que lhe foi transmitido ou das diligências levadas a cabo.

11. A estes factos acresce que, quando mais tarde, para efeitos de Tribunal, foi questionado acerca da língua em que pretendia prestar declarações, o Arguido esclareceu que pretendia que fosse na língua alemã por ser a sua língua materna (alemão) e, assim, aquela na qual se conseguiria expressar de forma completa e clara.

12. Deste modo, o Arguido aguardou por mais de uma hora para que fosse encontrado um intérprete de língua alemã para estar presente no 1.º Interrogatório.

13. Todavia, quando finalmente foi encontrado um alegado intérprete, verificou-se que o mesmo não era fluente em alemão, tendo o mesmo chegado a dizer ao Arguido que não era capaz de traduzir um documento que se encontrava em português, para a língua alemã, o que desde logo condicionou totalmente a comunicação entre o Arguido e o Tribunal.

14. Com efeito, foi levado a cabo um acto judicial – 1º interrogatório de Arguido detido, o qual, com o devido respeito, tratou-se de uma mera formalidade, sem conteúdo material, e sobretudo em manifesta derrogação dos mais elementares direitos de defesa do Arguido, na medida em que o Arguido teve de se contentar com um tradutor que se expressava em inglês e nem sequer de forma fluente.

15. Assim, o Arguido que desde o primeiro momento quis colaborar, primeiro com as autoridades policiais e depois com o Tribunal, dentro das suas limitadas possibilidades atenta a barreira linguística, não conseguiu exprimir nem dizer o que pretendia sobre os factos.

16. Isto porque a factualidade que lhe foi imputada nem sequer foi integralmente compreendida pelo Arguido – desde logo por a mesma lhe ter sido deficientemente traduzida em língua inglesa que não era bem dominada pelo intérprete, nem é a língua materna do Arguido.

17. Em momento algum foram traduzidos para a sua língua materna os documentos elaborados, seja auto de notícia, seja a indiciação dos factos que lhe são imputados, seja mesmo a decisão judicial que lhe determinou a medida de coação mais gravosa de prisão preventiva.

18. Pelo que, manifestamente, salvo melhor entendimento e com o devido respeito, entende-se que a prisão preventiva decretada é ilegal.

19. Para a matéria releva o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 20.12.2018[2]:

1 – A Directiva, nº 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Outubro de 2010 relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal tem aplicação directa em Portugal desde 28-10-2013. A Directiva nº 2012/13/EU relativa ao direito à informação, tem igualmente aplicação directa em Portugal desde 02-06-2014. 2 - Aquela primeira estabelece em simultâneo:- um catálogo de “minimum rights” de compreensão da linguagem falada e escrita no processo para qualquer cidadão confrontado com qualquer tribunal no espaço comunitário; e - um conjunto de obrigações mínimas comuns vinculando os Estados na disponibilização do direito à informação/interpretação/tradução de forma gratuita na UE. (…) 7 - A Directiva 2010/64/UE consagra dois direitos conceptualmente distintos, provenientes de uma mesma intenção: o direito à interpretação e o direito à tradução, englobados sistemáticamente num só direito. O nº 1 do artigo 1º é de uma cristalina simplicidade: «A presente directiva estabelece regras relativas ao direito à interpretação e tradução em processo penal e em processo de execução de mandados de detenção europeus.» 8 - A previsão legal é agora clara e abrangente. Estatui o nº 2 do mesmo preceito que tal direito “é conferido a qualquer pessoa, a partir do momento em que a esta seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro, por notificação oficial ou por qualquer outro meio, que é suspeita ou acusada da prática de uma infracção penal e até ao termo do processo, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infracção, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado”. 9 - As Directivas impõem uma obrigação positiva de facere sobre os tribunais nacionais, desde logo sobre a necessidade de nomeação de intérprete e/ou tradutor, até ao controlo da qualidade da interpretação/tradução. (…) 11 - A nova directiva é clara ao estabelecer um catálogo de actos que devem ser objecto de tradução, definidos como “direitos mínimos” sendo o artigo 3º da Directiva (“Direito à tradução dos documentos essenciais”) muito claro no seu nº 1 quando determina que os “Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo”. 15 - Assim somos levados - em dois patamares - a concluir (no primeiro) que este mínimo da Directiva se impõe directamente ao Estado português e que os seus tribunais se vêm obrigados a determinar que como regra geral é de determinar a tradução de todas as “decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças”. A que acrescem os documentos a integrar na cláusula geral do artigo 3º, nº 3 da Directiva como supra referido.”

20. Não só estipulou o Tribunal da Relação de Évora, em semelhança aos demais tribunais em Portugal, que esta Diretiva se impõe diretamente na ordem jurídica portuguesa, bem como estipulou que os arguidos estrangeiros têm direito a uma interpretação completa e clara de todos os documentos em português, para a sua língua materna, como têm direito a um intérprete que garanta uma tradução adequada, sendo obrigação dos próprios tribunais assegurar a qualidade dessa tradução.

21. Ora, como se referiu, na sessão em que decorreu o 1.º Interrogatório Judicial do Arguido, o dito tradutor nomeado pelo Tribunal admitiu perante o Arguido e perante o Mmº Juiz de Direito que não conseguia traduzir um documento de português para alemão, por forma a que o Arguido entendesse o seu conteúdo.

22. Nesse mesmo interrogatório, e a título meramente exemplificativo, o Arguido expôs, durante aproximadamente 5 minutos, ao intérprete nomeado, um conjunto de factos relevantes para a sua defesa, sendo que a tradução do intérprete para o Tribunal bastou-se numa mera frase (naturalmente não compreendida pelo Arguido, mas que atendendo à gigantesca diferença de tempos não se tratava de uma tradução fiel), o que em nada se compatibiliza com a tradução de um discurso de 5 minutos, o que choca a sensibilidade de qualquer sujeito processual.

23. Ainda no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora podemos ler na secção de fundamentação do Tribunal:

Sendo claro que uma Directiva, em princípio, só produz efeitos após a sua transposição, a jurisprudência do Tribunal de Justiça, hoje da União Europeia, considera que uma directiva que não foi objecto de transposição pode produzir directamente determinados efeitos, caso: a) não tenha sido efectuada a sua transposição para a legislação nacional ou tenha sido objecto de transposição incorrecta; b) as disposições da directiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; c) as disposições da directiva confiram direitos a particulares; d) Esteja esgotado o prazo de transposição.”

24. E ainda:

Nesta área, é sabido que o tribunal europeu e o T.E.D.H dão o devido relevo à prática judiciária tal como ela resulta da interpretação do direito interno realizada pelos tribunais do Estado-Membro. Isto é, não basta a "law in books", é essencial acrescentar-lhe a "law in action". E por isso se constata a falência da previsão normativa no direito interno, já que a pobreza de previsão do artigo 92º do C.P.P. o limita à nomeação de intérprete para a intervenção activa do arguido. E pouco mais! O preceito não prevê sequer que ao arguido seja oralmente traduzida a acusação ou que esta lhe seja lida na sua língua materna. A prática judiciária é que supre tal falha legislativa. Mais, a previsão da tradução de documentos limita-se aos documentos apresentados em língua estrangeira existentes no processo e sem tradução autenticada.”

25. Ora a situação dos presentes autos é, mutatis mutandis, a mesma, pois que a alegada “existência” de um tradutor nos presentes autos, por não se tratar de um intérprete na língua materna do Arguido equivale à inexistência do mesmo!

26. Tratando-se por isso da violação do dever de diligência que recaía sobre o Tribunal de garantir que o Arguido tinha um intérprete idóneo para efetuar uma tradução correta e completa da língua materna do Arguido para a língua portuguesa e vice-versa.

27. Tratando-se de 1.º Interrogatório Judicial, do qual emanou decisão que impôs uma medida de coação privativa da liberdade, deveriam ter sido assegurados todos os direitos de defesa do Arguido, desde logo, os mais elementares como a comunicação na integra dos factos imputados em documento traduzido para a sua língua materna, tal como o direito a prestar declarações na sua língua materna, a língua que permite a expressão completa e sem reservas, e o direito a ter como intérprete um sujeito idóneo a traduzir de forma correta e integra essas mesmas declarações.

28. Por não estar competentemente representado por intérprete, o 1.º Interrogatório Judicial de Arguido é um acto inválido, porque procedeu-se a um conjunto de actos em língua portuguesa e até inglesa, línguas que o Arguido não domina, o que não garante os seus direitos a uma defesa justa e equitativa.

29. Pelo que igualmente inválida e de nenhum efeito é a decisão de prisão preventiva que foi aplicada ao Arguido.

30. Na verdade, todos os atos processuais praticados depois e durante a realização do 1.º Interrogatório Judicial devem ser declarados ineficazes, não produzindo os seus efeitos na sua totalidade, e, em consequência, deve o Arguido ser restituído imediatamente à liberdade.

2. O Senhor Juiz prestou a informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos (transcrição sem negritos, nem sublinhados):

Exmo. Senhor Juiz Conselheiro

Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

O arguido BB[3] nestes autos, requereu ao Supremo Tribunal de Justiça a providência extraordinária de habeas corpus, em virtude de prisão ilegal, com fundamento no artigo 222.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Processo Penal.

Nos termos do artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal informa-se que o arguido BB, foi detido em 13-02-2023, pelas 23:00 (cf. fls. 5 e 6 – auto de notícia) e encontra-se preso preventivamente desde 15-02-2023 (cf. fls. 59 a 60 – auto de interrogatório de arguido; mandado de condução devidamente certificado a fls. 82) à ordem dos presentes autos, na sequência de submissão a 1.º interrogatório judicial de arguido detido.

Mais se informa que, tal com resulta do teor do despacho de aplicação de medida de coação vertido no auto de primeiro interrogatório de arguido detido, o arguido encontra-se fortemente indiciado pela prática de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, tendo sido aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191.º n.º 1, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º alíneas a) e c) e 204.º alíneas a) e c), todos do Código de Processo Penal.

Ademais, informa-se ainda que, tal como resulta do teor do auto de primeiro interrogatório de arguido detido, no decurso da mencionada diligência processual, a fim de exercer as funções de intérprete, encontrou-se presente CC, o qual afirmou (I) exercer profissionalmente as funções de professor de inglês e que, (II) após ter conversado previamente com o arguido, pode assegurar que o mesmo compreende perfeitamente a língua inglesa.

Sob prisma diverso, consigna-se que, ouvida a gravação do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, para além do mencionado em (I) e (II), o identificado intérprete (III) afirmou ter domínio pleno da língua inglesa e (IV) o arguido identificou-se, no que tange ao seu nome, como BB, (V) tendo respondido quanto à sua identidade, após questão formulada em inglês, de modo imediato.

É o que me cumpre informar, aditando-se apenas que a situação de prisão preventiva se mantém na presente data.


***


Remeta-se de imediato, assegurando-se do recebimento, a (I) petição de habeas corpus e a (II) presente informação ao Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, acompanhada de certidão das seguintes peças processuais: (III) fls. 5 e 6 – auto de notícia; (IV) fls. 59 a 60 – auto de interrogatório de arguido; (V) fls. 82 – mandado de condução devidamente certificado; (VI) fls. 93 e 94 – declaração do arguido quanto à identidade; (VII) CD com cópia integral da gravação do primeiro interrogatório judicial de arguido detido.

Notifique o Ministério Público e o arguido.


3. Tendo entrado a petição neste Supremo Tribunal, após distribuição, teve lugar a audiência aludida no art. 223.º, n.º 3, do CPP, pelo que cumpre conhecer e decidir.


II - Fundamentação

1. Factos

1.1. Com interesse para a decisão deste habeas corpus, extrai-se da certidão junta aos autos, bem como da consulta feita ao processo, o seguinte:

- que o arguido foi detido no dia 13.02.2023, pelas 23:00h, no âmbito de uma operação de fiscalização levada a cabo pela GNR na auto estrada A6, ao quilómetro 179,800 (... - ...), quando foi dada ordem de paragem ao veículo de matrícula espanhola - ....LWG -, marca Nissan, preto, que então conduzia e no qual transportava, além do mais, produto estupefaciente, embalado nos moldes e quantidades assinaladas nos pontos 3 e 4 dos factos fortemente indiciados constantes do despacho proferido pela autoridade judicial competente, no final do seu 1.º interrogatório judicial, efetuado ao abrigo do art. 141.º do CPP, que teve lugar em 15.02.2023, pelas 10h53m, no juízo local criminal ..., Tribunal Judicial da Comarca ...;

- confrontando o auto de primeiro interrogatório de arguido detido com a audição da respetiva gravação, resulta dos mesmos, que no decurso da mencionada diligência processual, as funções de intérprete foram desempenhadas por CC, o qual prestou juramento e afirmou (I) exercer profissionalmente as funções de professor de inglês e que, (II) após ter conversado previamente com o arguido, pode assegurar que o mesmo compreende perfeitamente a língua inglesa (o que também se deduz da audição da gravação), que (III) o indicado intérprete afirmou ter domínio pleno da língua inglesa e (IV) o arguido identificou-se, no que tange ao seu nome, por três vezes, como BB, (V) tendo respondido quanto à sua identidade, após questão formulada em inglês, de modo imediato, demonstrando perceber o que lhe estava a ser perguntado;

- no final do arguido ter prestado declarações sobre os factos através do interprete nomeado, o Ministério Público pronunciou-se sobre a medida de coação (promovendo a aplicação de prisão preventiva, por não ser viável a aplicação de medida menos gravosa), assim como a defensora oficiosa (que requereu a aplicação de medida de coação menos gravosa que a prisão preventiva), tendo, após um intervalo, a Senhora Juiz proferido o respetivo despacho judicial que consta do mesmo auto de 1.º interrogatório judicial de arguido detido, concluindo que o arguido se encontra fortemente indiciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191.º n.º 1, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º alíneas a) e c) e 204.º alíneas a) e c), todos do Código de Processo Penal;

- entretanto, através do Estabelecimento Prisional, o arguido remeteu para o inquérito de que este habeas corpus é apenso, uma declaração dactilografada, feita no Estabelecimento Prisional ..., em 22.02.2023, que se diz ter sido por si assinada (apenas a assinatura sendo manuscrita), do seguinte teor:

Para efeitos tidos por convenientes, declaro que a minha identidade é AA, nascido em .../.../2001, na cidade ..., da República Federal Alemã, e com nacionalidade alemã, filho de DD e EE, atualmente detido no Estabelecimento Prisional ... desde 15/02/2023, por ordem do Processo de Inquérito n.º 16/23.9GGPTG, a correr termos no juízo local criminal ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., cujo mandado de condução foi emitido em nome de BB, meu irmão e cujos documentos apreendidos lhe pertencem.

No Estabelecimento Prisional ..., vinte e dois de fevereiro de dois mil e vinte e três

O recluso:

2. Direito

2.1. Invoca o peticionante, em resumo, que se identificou à GNR com o nome do seu irmão mais novo, com o qual é parecido, por ter sido a documentação daquele que foi apreendida e não quis desmentir as autoridades, sequer quando esteve perante a autoridade judiciária, com medo de represálias, uma vez que a sua verdadeira identidade é AA (e não BB) ..., sustentando que deve ser libertado de imediato por não lhe ter sido nomeado um tradutor e um interprete na língua materna (alemão), o que inviabilizou que lhe fossem assegurados todos os seus direitos de defesa, sendo que a nomeação do interprete na língua inglesa que não dominava e que também não era pessoa idóneo para fazer uma tradução correta e integra das suas declarações e demais atos praticados, não garante os seus direitos a uma defesa justa e equitativa, tornando inválido o 1.º interrogatório judicial de arguido detido que foi feito - que se tratou de uma mera formalidade sem conteúdo material e, sobretudo, em manifesta derrogação dos seus direitos -, assim como da decisão de aplicação da prisão preventiva.

Pois bem.

2.2. Dispõe o artigo 222.º (habeas corpus em virtude de prisão ilegal) do CPP:

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

São taxativos os pressupostos do habeas corpus (que também tem assento no art. 31.º da CRP), o qual não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste.

Aliás, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Lisboa: Editorial Verbo, 1993, p. 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.

Convém ter presente, como se refere no art. 31.º, n.º 1 CRP, que “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (art. 31.º, n.º 2, CRP), tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.

 De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determinou a aplicação da medida de coação mais gravosa, neste caso prisão preventiva, nem tão pouco eventuais erros procedimentais ou meros lapsos (cometidos v.g. pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

3. Apreciação

E, o que é que se passa neste caso concreto?

O arguido do inquérito n.º 16/23.9GGPTG, de que este habeas corpus é um apenso, foi detido em 13.02.2023, pelas 23:00 horas, por elementos da GNR, na auto estrada A6, ao quilómetro 179,800 (... - ...), no circunstancialismo descrito no despacho judicial que consta do auto do 1.º interrogatório judicial efetuado ao abrigo do art. 141.º do CPP, realizado em 15.02.2023, encontrando-se fortemente indiciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, tendo-lhe sido aplicada, pelos motivos ali indicados que aqui se dão por reproduzidos, a medida de coação de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191.º n.º 1, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º alíneas a) e c) e 204.º alíneas a) e c), todos do Código de Processo Penal.

Da análise do auto de 1.º interrogatório judicial de arguido detido e da audição da gravação dessa diligência, verifica-se que, ao contrário do que é alegado na petição desta providência excecional que é o habeas corpus e que não se confunde com um recurso, o arguido que foi detido em 13.02.2023 e que esteve presente no auto de interrogatório judicial efetuado pelo juiz competente em 15.02.2023, ali foi acompanhado pelo interprete que lhe foi nomeado e aceitou, sendo tais funções desempenhadas por CC, o qual prestou juramento e afirmou (I) exercer profissionalmente as funções de professor de inglês e que, (II) após ter conversado previamente com o arguido, pode assegurar que o mesmo compreende perfeitamente a língua inglesa (o que também se deduz da audição da gravação), que (III) o indicado intérprete afirmou ter domínio pleno da língua inglesa, a que acresce que (IV) o arguido identificou-se, no que tange ao seu nome, por três vezes, como BB, (V) tendo respondido quanto à sua identidade, após questão formulada em inglês, de modo imediato, demonstrando perceber o que lhe estava a ser perguntado.

Ouvindo integralmente a gravação das declarações do arguido, percebe-se claramente que este dominava perfeitamente a língua inglesa, compreendendo bem o interprete (com quem dialogava com à vontade, entendendo-se ambos nas perguntas e respostas feitas e dadas respetivamente) e exprimindo-se em inglês com naturalidade, como se fosse a sua própria língua.

Além disso, se posteriormente e, agora também neste habeas corpus, vem identificar-se com outra identidade (AA) isso é matéria que terá de ser averiguada no respetivo inquérito.

Assim, o que resulta claramente do auto de interrogatório judicial de arguido detido articulado com a audição da gravação da respetiva diligência, é que ao arguido foram assegurados os direitos de defesa, o que incluiu, desde logo, (I) a nomeação de interprete em língua inglesa, que o arguido dominava, tendo compreendido bem o ato processual em que participou (como se percebe ouvindo todas as declarações que prestou) e (II) a nomeação de defensora oficiosa, que durante todo o ato processual, não suscitou a violação de qualquer direito de defesa do arguido que estava a ser ouvido perante um Juiz, garante das liberdades, sendo-lhe igualmente assegurada a garantia da equidade no processo.

Das declarações do arguido também não resulta que tivesse feito qualquer pedido (v.g. relativo a lhe ser facultado qualquer documento traduzido), que não fosse satisfeito (cf. audição da gravação da diligência, inclusive as intervenções da Ilustre Defensora Oficiosa).

De qualquer modo, as questões que agora são invocadas na petição deste habeas corpus (quando vem sustentar, em síntese, que teve medo de represálias e por isso não teria fornecido a sua verdadeira identidade, que não percebia a língua inglesa e, portanto, não foram assegurados uma tradução e um interprete idóneos na língua materna e teriam sido preteridos os seus direitos de defesa, concluindo que seria inválido o 1.º interrogatório judicial de arguido detido, bem como a aplicação da prisão preventiva, não produzindo esta quaisquer efeitos) deveriam ser colocadas (tempestivamente) em sede do próprio ato processual em si, ou seja, durante o 1.º interrogatório judicial de arguido detido, como depois em sede de recurso dos despachos judiciais que ali fossem proferidos (v.g. que eventualmente negassem a nomeação de outro interprete, caso tivesse sido solicitado outro por o arguido não dominar o inglês de forma a compreender integralmente o que se estava a passar naquela diligência ou não lhe fossem facultados quaisquer documentos traduzidos que eventualmente tivesse solicitado), e não neste habeas corpus que é providência inadequada para esse efeito (uma vez que essa matéria não integra qualquer dos fundamentos do art. 222.º do CPP, que são taxativos).

E, se não concordava com o entendimento do Magistrado Judicial que validou a sua detenção e lhe aplicou a prisão preventiva a que ficou sujeito, deveria ter recorrido da respetiva decisão (havendo mecanismos próprios, como bem sabem os seus Ilustres Advogados, para impugnar tal medida de coação e, bem assim, suscitar quaisquer outras questões que pretendam colocar na 1ª instância), não sendo a providência de habeas corpus o meio próprio para discutir as questões que agora coloca ou o mérito daquela decisão.

De esclarecer, ainda, para que não restem dúvidas, que nem o Ministério Público, que é também um garante da legalidade, nem a Advogada, que assegurou a defesa do arguido detido, invocaram, durante aquele ato judicial (1.º interrogatório judicial efetuado ao abrigo do art. 141.º do CPP), que aquela diligência tivesse sido apenas uma aparência de um ato processual, onde foram derrogados direitos do arguido, ou tivesse sido uma “mera formalidade sem conteúdo material”, como alega o peticionante de forma abstrata, genérica, interessada e pessoal.

O peticionante não pode utilizar indevidamente este habeas corpus (que não é um recurso) nem pretender que, através dele, o STJ se pronuncie sobre matérias que extravasam os seus fundamentos, que são taxativos.

De resto, como acima já se viu, a detenção do arguido foi motivada por facto que a lei permite (detenção por crime cometido em flagrante delito) mantendo-se dentro do prazo legal (na sequência de decisão judicial, proferida nos termos legais).

Assim, não foram violados os princípios e/ou as disposições legais invocados pelo peticionante deste habeas corpus, antes tudo revelando que foi feito um uso claramente abusivo desta providência excecional, podendo concluir-se que a petição de habeas corpus é manifestamente infundada, justificando-se a condenação nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP.


III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus aqui em apreciação.

Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC`s, a que acresce, a condenação no pagamento da soma de 9 UC`s, nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP.

Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria, pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente da Secção.


Supremo Tribunal de Justiça, 08.03.2023


Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Pedro Branquinho Dias (Adjunto)

Teresa Almeida (Adjunta)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] Doravante, G.N.R.
[2] Proferido no âmbito do processo n.º 55/2017.9GBLGS.E1, no qual foi Relator o Mmº Juiz João Gomes de Sousa.
[3] Conforme resulta de fls. 93 e 94, em 22-02-2023, o arguido declarou que a sua verdadeira identidade corresponderá a AA.