Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P3457
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
NON BIS IN IDEM
Nº do Documento: SJ200512200034575
Data do Acordão: 12/20/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: PROVIDO PARCIAL
Decisão: AUDIÊNCIAS ORAIS
Sumário :
I - Estando em causa tio e sobrinho, sendo eles ligados por um vínculo de parentesco que vai além do segundo grau, não vigorando nenhuma das demais circunstâncias do art. 177.º, n.º 1, do CP, o crime sexual em causa não pode ser considerado com a agravação decorrente daquele preceito legal.
II - A consideração em sede de quantificação da pena das circunstâncias levadas em conta na definição abstracta da moldura penal viola o princípio da proibição da dupla valoração das circunstâncias, ne bis in idem, consagrado nomeadamente no n.º 2 do art. 71.º do CP: «na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime…».

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. No processo comum colectivo nº .../01.4GCCLD, do ...º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Caldas da Rainha, foi submetido a julgamento o arguido AA, acusado, pelo Ministério Público, da prática de três crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.s. 172º, nº 2 e 177º, nº 1, al. a), do C. Penal.
Contra o arguido, foi formulado pela assistente BB na qualidade de representante legal do seu filho menor CC, pedido cível de indemnização, a título de danos não patrimoniais, no montante de € 25.000, 00.
Realizado o julgamento, foi decidido:
- Absolver o arguido da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.s. 172º, nº 2 e 177º, nº 1, al. a), do C. Penal.
- Condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.s. 172º, nº 2 e 177º, nº 1, al. a), do C. Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
- Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização cível deduzido, condenando o arguido/demandado a pagar a BB na qualidade de representante legal do seu filho menor CC, a quantia de € 25.000, 00, a título de reparação por danos não patrimoniais.
Inconformados com a decisão, dela interpuseram recurso para Relação de Lisboa o Ministério Público e o arguido, o primeiro pedindo a agravação da pena para oito anos de prisão e o segundo, além de impugnar a matéria de facto que, a seu ver, deveria conduzir à absolvição, impetra, a não ser assim a redução da pena para próximo do «limite mínimo», além de que a indemnização fixada não deveria ultrapassar os €15.000.
Mas aquele tribunal superior, por acórdão de 16/6/2005, negou provimento a ambos os recursos.

De novo irresignado, recorre agora ao Supremo Tribunal de Justiça o arguido traçando deste jeito conclusivo o objecto do recurso [transcrição]:
1. O Tribunal da Relação, ao decidir como decidiu, nos termos constantes do douto acórdão, pugnando pela manutenção da decisão de 1.ª instância, violou assim o disposto nos artigos 40.º, 71.º, n.ºs 1 e 2, e 72.º do Código Penal.
2. Na determinação da medida da pena à face dos parâmetros legais, a mesma é fixada em função da culpa e das exigências de prevenção, intervindo ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, agravam ou atenuam a responsabilidade penal, nos termos do art.º 71.º, n.º 1 e 2, do C.P.; por seu turno os fins das penas visam a protecção de bens jurídicos e a reinserção social do agente.
3. A culpa é o juízo de censura dirigido ao agente do crime pelo mau uso que fez do seu livre arbítrio, no sentido de que podia e devia dirigir a sua conduta no sentido do lícito.
A personalidade é o mais idóneo substracto a que pode ligar-se a culpa no sentido jurídico-penal acabado de transcrever.
4. Para além desta regra geral para determinação da medida da pena, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, temos ainda que atender aos concretos factores da medida da pena, constantes do elenco não exaustivo, do n.º 2 do art.º 71.º do C.P. e ainda as constantes do art.º 72.º do mesmo Código.
5. O acórdão recorrido na parte que ora se recorre, limitou-se à apreciação da decisão da 1.ª instância, não apreciando nem se pronunciou sobre a alegação do recorrente, designadamente no tocante ao decurso do tempo sobre a data da prática dos factos e a presente data, factor este que pode funcionar como atenuação especial em favor do ora recorrente.
6. Entre a data da prática dos factos de que foi condenado, isto é, 9 de Setembro de 2001, até à do acórdão, perfaz cerca de 3 anos, mantendo-se o agente, em liberdade e de boa conduta, que se traduziu, quer no cumprimento das medidas de coacção e demais limitações impostas, quer ainda pela inexistência de quaisquer comportamentos censuráveis pela lei.
7. É certo que entendeu o Tribunal recorrido que é elevado o grau de ilicitude da conduta praticada e intenso se apresenta o dolo (dolo directo) que presidiu à sua conduta.
8. Também é certo que o recorrente não prestou declarações em julgamento sobre os factos de que foi condenado, sendo o direito ao silêncio um direito que lhe assiste, que não pode ser utilizado em seu desfavor, ou ser o recorrente “punido” e censurado pelo exercício de um direito que lhe assiste.
9. Tal não legitima no entanto a concluir, e salvo o devido respeito pelo acórdão recorrido, que não tenha havido arrependimento do arguido, até porque atenta a natureza do crime em causa, e o pudor social inerente a este tipo de crimes, gerou no recorrente um certo mal estar e até mesmo vergonha de falar no mesmo.
10. Havia ainda que atender ao facto de o recorrente ser uma pessoa humilde, proveniente de um meio rural, tenso apenas o 4.º ano de escolaridade, e ainda o facto de que, desde que saiu do Estabelecimento Prisional onde esteve detido preventivamente se encontra a trabalhar, encontrando-se inserido e tendo sido aceite na sociedade.
11. Ora a pena em si, qualquer que ela seja, visa desde logo a protecção de bens jurídicos, mas tem também em vista a reinserção do agente na sociedade e não a sua exclusão.
12. Aplicar ao recorrente uma pena de prisão efectiva de 6 anos e 6 meses de prisão, se por um lado preenche o fim da prevenção geral, por outro lado prejudica a outra finalidade das penas – a de prevenção geral (sic) – pondo em causa uma futura e eficaz reinserção do sujeito na sociedade, frustrando assim o objectivo decorrente da aplicação das penas num estado social e democrático de direito.
13. Pelo que se entende que a pena aplicada é desajustada, devendo a mesma ser reduzida, e situar-se mais próximo do limite mínimo legal.

Respondeu a assistente em defesa do julgado.

Subidos os autos, manifestou-se o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto promovendo a remessa dos autos para julgamento.

A única questão a decidir prende-se com a medida concreta da pena que o recorrente quer ver situada próximo do «mínimo legal», além do quantum indemnizatório fixado.

2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.

Vejamos os factos provados

O arguido AA, nascido a 20/10/1972, casou em 4 de Junho de 1997, com DD, a qual é irmã de BB.
A BB ficou viúva de EE em 27/11/1999 e tem dois filhos, o FF, com 15 anos de idade e o CC, nascido em 25/08/1994, sendo aquela a responsável pelos cuidados, saúde e educação destes.
A mesma trabalha como ajudante de lar na Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã, auferindo, mensalmente, cerca de € 450 e realizando turnos de fim-de-semana, noites e horas extraordinárias.
Após ter ficado viúva e atenta as suas dificuldades económicas, a assistente, juntamente com os seus filhos, foram viver para casa dos seus pais, sita na Rua ..., nº 1, lugar e freguesia de M..., concelho da Lourinhã.
Quase todos os fins-de-semana, o arguido, a esposa e a filha de ambos (a GG, nascida em 22/10/2000), deslocavam-se a M..., na Lourinhã, onde vivem a BB, os seus pais e os seus filhos, sendo que, antes do nascimento da sua filha, o arguido e a esposa, igualmente, ali se deslocavam.
Enquanto a esposa convivia com os familiares, o arguido costumava ausentar-se para as praias dos concelhos da Lourinhã, Peniche e Óbidos, onde habitualmente pescava à linha.
Atendendo à relação de afinidade de confiança que se havia estabelecido entre o arguido e os seus sobrinhos menores, o FF e o CC, aquele passou a levá-los consigo para a praia, quando ia pescar.
Assim, os menores passaram a acompanhar o tio, ora arguido, quer à praia, quer aos cafés da localidade, sendo que, passado algum tempo, o FF deixou de acompanhar o tio e o irmão, passando, assim, o arguido apenas a levar para a praia o seu sobrinho CC.
No dia 9 de Setembro de 2001, na sequência do já referido em 4° a 7° supra, o arguido AA levou o CC, na altura com 7 anos de idade, para a praia do “Rio Cortiço”, sita no concelho de Óbidos, área da comarca de Caldas da Rainha.
Ali chegados, já na areia, despiram-se ambos e foram tomar banho e dar algumas corridas, entrando e saindo da água várias vezes.
Por cerca das 17 horas, dirigiram-se para uma zona da praia protegida por uma rocha e fora dos olhares e alcance da vista de quem estivesse no areal.
Encontrando-se o menor CC deitado de costas na areia, e estando o arguido por cima do peito do menor, para este virado, com as pernas abertas e de joelhos fixados na areia, com o pénis em erecção, introduziu-o na boca do menor, seu sobrinho, estabelecendo uma relação de coito oral.
Tal foi presenciado por HH e II, os quais passavam por cima da arriba, sendo que, ao observarem o constante em 11° supra, começaram a gritar e o II atirou umas pedras para o areal (sem que as mesmas tenham atingido alguém), com o objectivo de dissuadirem o arguido de prosseguir com aquela conduta.
O menor, apercebendo-se da presença daqueles comunicou tal ao arguido e, sem que este tivesse virado a cara para cima, ambos vestiram os calções de banho e, correndo, dirigiram-se para o local onde se encontrava estacionado o veiculo automóvel do arguido (na parte de cima da arriba), da marca “Fiat”, modelo “Palio Weekend”, com o número de matricula ..., de cor azul escuro, cuja propriedade se encontrava registada em nome do arguido, sendo tal veiculo por este utilizado no seu dia-a-dia.
Apercebendo-se que as pessoas que os tinham visto na praia também já se encontravam perto de tal local – para onde haviam corrido com o objectivo de verem qual era o veiculo do arguido – este e o menor entraram rapidamente no mesmo, tendo o arguido ligado o motor e abandonado o local em grande velocidade. Porém, ainda assim, aquelas conseguiram tirar o número da matrícula do aludido veículo conduzido pelo arguido. Na altura, nem o arguido, nem o menor, traziam consigo quaisquer utensílios de pesca.
O arguido sabia qual a idade do menor, tanto mais que o conhece desde que nasceu (pois já nessa altura namorava com a actual esposa), sendo que, foi ele quem levou a BB ao Hospital, aquando do parto do CC.
Sabia ainda que com a sua conduta e que supra se descreveu, estava a limitar gravemente a liberdade e a autodeterminação sexual do menor CC, bem como estava a prejudicar o desenvolvimento da sua personalidade, sem se preocupar com os prejuízos e os danos irreparáveis que a esta causava.
O arguido tinha ainda conhecimento da débil condição socioeconómica do menor e do agregado familiar onde este se encontrava inserido, aproveitando-se da mesma e da situação de dependência e de confiança do CC perante si, assim como do facto daquele ser órfão de pai, facto que o tornou mais indefeso.
O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção conseguida de satisfazer os seus instintos libidinosos, apesar de conhecer o carácter proibido da sua conduta.
O menor CC é o mais novo de uma fratria de dois elementos e, quando nasceu, o seu progenitor já se encontrava gravemente doente, sujeito a hospitalizações sucessivas e prolongadas, tendo vindo a falecer, quando o CC contava com 5 anos de idade. Assim, com o pai, o CC nunca estabeleceu uma relação vinculativa, tendo vivenciado durante a sua primeira infância, a ansiedade e a angústia que os elementos mais velhos da família (mãe e irmão) vivenciaram pelo desgaste emocional provocado pela doença do progenitor e posterior situação de luto, após o falecimento deste.
Durante este período conturbado da sua infância, a figura masculina mais significativa, em termos de identificação afectiva e educativa, foi o seu avô materno, com quem mantém ainda hoje uma relação privilegiada. Após o falecimento do seu progenitor, surge como mais presente o seu tio (o aqui arguido), estreitando-se entre ambos a relação já existente, que se podia avaliar como substantiva e compensadora de uma perda afectiva, sendo o adulto em causa, sentido como pessoa de confiança por parte da família. Também devido à situação de viuvez da progenitora, a família integrou o agregado dos avós maternos do CC, estreitando-se os vínculos afectivos entre ambos.
Apesar das falhas na interacção familiar que foram caracterizando o seu percurso de vida, nomeadamente de índole emocional e ao nível de identificação, o processo de desenvolvimento do CC foi decorrendo de forma adaptada, quer ao nível cognitivo, quer de sociabilização, passando por um período de integração no ensino pré-escolar isento de problemas, quer em termos de aprendizagem, quer de comportamento.
Na entrada para o 1° Ciclo do Ensino Básico, verificam-se alterações no comportamento do CC, que se têm vindo a agravar desde há cerca de 2 anos (com referência a 27/06/2003, data da elaboração do Relatório de Observação do menor CC, elaborado pelo IRS e junto aos autos a fls. 165 a 169). Na escola verificou-se alteração dos hábitos de convívio e de relacionamento interpessoal, passando a preferir o isolamento e, perante algum conflito ou problema, o recurso à agressividade é privilegiado, tanto para com os seus pares, como para os adultos, como para objectos (pontapés em móveis, partir). Passou também a manifestar dificuldades de atenção e concentração, encontrando-se comprometido o sucesso escolar, não tendo atingido os objectivos mínimos para transitar de ano em 2003, sendo que, só em 2004 transitou para o 3° ano do 1° ciclo. A propósito do seu processo de escolarização, a família detém uma expectativa muito negativa.
Em casa, verificaram-se alterações nos hábitos de sono (maior inquietação durante o dormir, insónia, recusa em dormir sozinho, comportamento que já tinha adquirido), nos hábitos alimentares (redução do apetite, recusa em alimentar-se), manifestação de comportamentos agressivos para com os elementos da família (mãe, irmão e avós) com quem mantinha uma relação bastante vinculativa, diminuição da autonomia (não querer sair sozinho para ir comprar algo, situação que acontecia anteriormente, ou ir a casa de um colega), recusa em envolver-se em actividades de tempo livres, afastamento dos amigos e de adultos, privilegiando a relação com a mãe, apresentação frequente de verbalizações de ideação e intenção suicida e de fuga do domicilio, factor gerador de elevada instabilidade na família, verbalização de medos vários, sem serem especificados.
Sobre os acontecimentos que deram origem ao presente processo, o CC recusa-se a falar e, perante uma situação que associe a tal facto – ida à consulta de psicologia, tribunal – procura desviar a atenção e manipular os outros com discurso de ideação suicida, exigindo dos adultos uma predisposição para o escutar muito tolerante e de espera, o que determinou que a família e o menor fossem encaminhados para o acompanhamento terapêutico, que nesta data já foi iniciado nos Serviços de Psicologia do Centro de Saúde da Lourinhã.
Da avaliação psicológica do menor CC foi possível avaliar os seguintes aspectos:
A estruturação da personalidade do CC está a ser significativamente condicionada por diversos contextos e acontecimentos, alguns deles que se podem avaliar como traumáticos, tendo em conta os indicadores comportamentais. Surge como uma criança muito instável a nível emocional, com um índice de desajustamento social elevado, factores que se avaliam como potenciadores de risco no seu desenvolvimento.
A nível cognitivo encontra-se na média do seu grupo etário, muito embora o seu desempenho não esteja de acordo com o seu potencial, com as suas capacidades, indiciando tal facto a interferência de factores emocionais. Todavia, as dificuldades apresentadas pelo próprio, especialmente aos níveis da atenção, concentração, autonomia, descentração, não invalidam a avaliação que efectua da realidade exterior.
A avaliação que efectua sobre si próprio, bem como o seu conceito de eficácia, são negativos, revelando sentimentos de desistência, de desvalorização, de baixa autoconfiança, procurando sobressair pela negativa, confrontando de forma sistemática as regras e os outros.
Com as pessoas em geral e, os adultos em particular, mantém uma atitude de desconfiança, muito embora não detenha imagens negativas, quer de homens, quer de mulheres, apenas prefere criar ele próprio o distanciamento, a resistência em envolver-se afectivamente. O seu mundo afectivo está povoado de diversos medos, que tem dificuldades em verbalizar, que por si só, comprometem o relacionamento interpessoal e implicam a apresentação de comportamentos desajustados, como forma de minimizar o sofrimento interno. Daí as ameaças constantes de fuga do domicílio, ou a ideação suicida, especialmente quando está numa situação que avalia como ameaçadora para si, ou é confrontado com algo que não quer fazer. Apesar de tais comportamentos e atitudes não parecerem radicar em sintomatologia depressiva, radicam na elevada ansiedade e medo que sente face ao exterior e são indicativos da elevada instabilidade e até desequilíbrio emocional, vivenciados pelo CC.
Assim, conclui-se de tal avaliação psicológica, assim como, do relatório clínico junto aos autos a fls. 394 e 395, que a alteração verificada nas atitudes e comportamento do CC referida pela família, bem como o elevado nível de instabilidade observado, o tipo de comportamentos que apresenta, a ansiedade manifestada, as graves perturbações de sono, com pesadelos constantes, os medos que têm conduzido à adopção de condutas fóbicas (a presença de facas que o menor passou a ter debaixo da sua cama), postura defensiva e medo de retaliação, sugerem a vivência, por parte do CC, de acontecimentos traumáticos, nomeadamente, os que se relacionam com o abuso sexual.
O arguido é oriundo de um agregado familiar de média condição socio-económica, sendo o 2° elemento masculino mais novo de uma fratria de três. O desenvolvimento do arguido processou-se num enquadramento familiar estável caracterizado pela coesão, inter-ajuda e investimento laboral centrados na assumpção de uma melhoria das condições de vida material de todos os elementos do agregado.
O arguido concluiu o 4º ano de escolaridade após duas retenções. Por decisão do próprio, aos 13 anos deixou a frequência escolar e iniciou o seu percurso laboral desempenhando funções na área da construção civil.
Com cerca de 24 anos, constituiu uma sociedade com o seu irmão mais novo denominada “M... e L... M..., Lda.”, no âmbito da pintura da construção civil. Actualmente e em virtude do arguido ter permanecido em prisão preventiva, à ordem destes autos e entre 28/03/2003 a 16/07/2003, o seu irmão constituiu uma nova firma “N...”, com outro sócio, no mesmo ramo de actividade, encontrando-se o arguido a trabalhar por conta destes, auferindo, em média e mensalmente (incluindo horas extraordinárias), entre 550 a 600 euros. Contudo, a anterior empresa nunca foi dissolvida e só foi considerada inactiva para efeitos fiscais.
O arguido sempre exerceu actividade laboral de forma regular e assídua, sendo conotado como bom trabalhador, assíduo, pontual e perfeito no que faz.
O arguido é casado desde Junho de 1997 e desse casamento tem uma filha, nascida a 22/10/2000. Residiam num apartamento que o casal adquiriu com recurso ao crédito bancário. A sua mulher encontrava-se desempregada, por ter sido essa a decisão do casal, de modo a que a menor pudesse ficar sob os cuidados da mãe a tempo inteiro.
O arguido encontra-se separado de facto desde 27/03/2003 e, por via de tal, durante a semana integra o agregado dos seus pais, persistindo um relacionamento de coesão entre o arguido e os restantes elementos da família de origem. A este nível, verifica-se a existência de um forte suporte afectivo e material por parte dos mesmos salientando-se ainda o papel da mãe que tem assegurado ao arguido apoio doméstico, nomeadamente no tocante à limpeza do seu espaço habitacional, bem como as refeições e tratamento de roupas.
A sua mulher e a sua filha foram viver com os pais da primeira, onde já reside a assistente e os filhos, sendo que, actualmente, a primeira é operária num matadouro, auferindo, mensalmente, cerca de € 300. Por seu turno, a mãe da sua mulher é doméstica e o pai trabalhador agrícola por conta de outrem.
Por acordo que foi judicialmente homologado, no âmbito dos autos de Regulação do Exercício do Poder Paternal nº .../03TBLNH do Tribunal Judicial da Lourinhã, o arguido obrigou-se a pagar a quantia mensal de € 120 a titulo de alimentos devidos à menor, sua filha, a qual foi confiada à guarda e cuidados de sua mãe.
É o arguido quem se encontra a pagar a mensalidade relativa ao empréstimo bancário contraído para a aquisição da casa de Torres Vedras, no montante de € 370,33, a que acrescem os seguros multiriscos e de vida, nos montantes mensais de € 14,39 e 20,99, respectivamente.
Da avaliação psicológica que lhe foi efectuada, salientam-se os seguintes aspectos:
O AA apresenta, até ao momento da sua detenção, um percurso de vida aparentemente isento de situações problemáticas, iniciadoras e promotoras de disrupção comportamental e emocional, surgindo como um indivíduo com uma tendência para se apresentar de forma favorável e convencional, procurando revelar uma personalidade atraente. Todavia, este modo de actuar, que tem essencialmente em vista a obtenção de satisfação pessoal, através da aceitação que recebe do exterior, pode conduzi-lo a dissimulação das suas dificuldades a nível pessoal, nomeadamente no que concerne à área afectivo – ­emocional.
Os mecanismos cognitivos encontram-se todos operantes, revelando-se a sua relutância em processar a complexidade dos estímulos, facto que contudo não o impede de efectuar relações causais e consequenciais, compreendendo a realidade exterior e o modo como o seu contributo a pode alterar.
Apesar de apresentar rigidez ao nível de crenças, valores e pensamento, que o conduz a tentar manter uma norma de vida estruturada e organizada, esta é mais notória a nível afectivo, optando pela superficialidade ao nível das relações interpessoais, privilegiando o formal em detrimento do emocional, situação que lhe confere maior bem-estar e segurança, não lhe exigindo em demasia, no que respeita ao dar-se ao outro. Deste modo, as expectativas acerca das relações são meramente formais, procurando corresponder ao convencional, procedendo à construção do mundo mediante regras e hierarquias, não deixando de estar fortemente dependente da opinião de terceiros e da sua aceitação, resistindo a qualquer tipo de introspecção acerca das suas dificuldades, dos seus sentimentos mais profundos, que por vezes são antagónicos às suas condutas socialmente correctas e dos sentimentos dos outros.
No que concerne às características estruturais da sua personalidade é de revelar a sua tendência para o evitamento de conflitos interpessoais, procurando ser afável e terno, mantendo a maioria das suas emoções sobre um estreito controlo. A sua carência de autoconfiança leva-o a ver-se a si mesmo como empreendedor, confiável e eficiente.
Procura negar os afectos internos que não recebem aprovação social, bem como os conflitos sociais e pessoais, confinando os impulsos proibidos sob elevado controlo. No entanto, a nível interno as representações são compostas por ideias simples, por pulsões imaturas de natureza infantil, verificando-se capacidade mínima para manipular e resolver situações stressantes e problemáticas, podendo tais aspectos conduzirem a atitudes adaptativas subdesenvolvidas e indiferenciadas. Associado a estes aspectos, encontra-se a rigidez de organização intrapsiquica, o que, cumulativamente e em diversas circunstâncias, poderá implicar comportamentos atípicos e inesperados que escapam ao controlo interno, que de forma tão excessiva tenta efectuar.
Em conclusão, o arguido AA apresenta uma estrutura de personalidade com características de imaturidade e dependência, revelando também rigidez quanto aos seus mecanismos de defesa, pensamentos e sentimentos. Encontram-se assegurados os mecanismos de controlo de impulsos.
O arguido é tido como uma pessoa pacífica, pacata e sossegada.
Não tem antecedentes criminais.
Em julgamento não prestou declarações.
O arguido nunca apresentou desculpas (pessoalmente ou por escrito) à mãe do menor.

Factos não provados:
1°. Num fim-de-semana de Julho ou Agosto de 2001, o arguido tivesse ido com o menor CC a uma praia sita entre a praia da Areia Branca e a praia do Paimogo, na Lourinhã (junto da qual existe um Posto da Guarda Fiscal) e que aí chegados o arguido tivesse lançado as linhas de pesca e que depois de algumas brincadeiras mantidas com o sobrinho, a este tivesse mostrado o seu pénis, dizendo-­lhe para mexer nele e lhe dar beijos.
2°. Em tal ocasião o CC hesitado, mas após novas insistências do arguido, tivesse acabado por ceder e por lhe acariciar e beijar o pénis ou que o arguido tivesse introduzido este na boca do menor, com ele mantendo uma relação de coito oral.
3°. Quando estava a atingir o orgasmo o arguido tivesse retirado o pénis do interior da boca do sobrinho e tivesse ejaculado para fora ou que o menor, não se apercebendo o que se estava a passar, tivesse perguntado ao arguido o que estava a fazer ou que este tivesse respondido que estava a urinar.
4°. Num fim-de-semana do Verão de 2001, o arguido tivesse ido com o menor à pesca para uma praia perto da praia do Paimogo, sita na Lourinhã e cujo o acesso é feito por um pequeno caniçal e que aí chegados o arguido tivesse começado por lançar as linhas de pesca ao mar e por brincar com o sobrinho ou que tivesse acabado por lhe perguntar se ele não queria outra vez “dar um beijo na sua pichota”.
5°. O menor se tivesse mostrado renitente ou que tivesse acabado por permitir que o arguido introduzisse o pénis na sua boca ou que mantivesse uma relação de coito oral ou ainda que quando estava a atingir o orgasmo o arguido tivesse retirado o pénis da boca do sobrinho e tivesse ejaculado para fora.
6°. Na ocasião referida em 2.1.8° a 11° supra o menor se tivesse deitado de costas na areia a sugestão do arguido ou que sempre que o menor tentava afastar-se do corpo do arguido e retirar o pénis da boca, este colocasse as mãos por detrás da cabeça do menor, empurrando-a de encontro à sua zona púbica.
7º. Na ocasião referida em 2.1.8° a 11° supra, o arguido, para convencer o menor a obedecer aos seus desejos, lhe tivesse dito que se não o fizesse (coito oral) o deixava ali e não o levava de regresso a casa, pelo que, teria de ir a pé até Miragaia.
8°. Já antes do casamento, o arguido e a sua mulher tinham estabelecido a casa de morada de família em Torres Vedras.
9º. A BB não dispusesse de meios para se deslocar para fora do lugar de Miragaia.
10°. Na ocasião referida em 2.1.8° a 11º supra, o menor CC tivesse oferecido resistência à prática de tal acto por parte do arguido ou que este, por qualquer forma, o tivesse ameaçado para concretizar o referido acto, ou ainda que tivesse fisicamente forçado o menor a manter coito oral.
11º. O menor CC vivesse uma situação de terror perante o seu tio, aqui arguido.
12°. Após o casamento e até ao nascimento da filha do arguido, este não tivesse frequentado a casa dos sogros devido a um mal-estar familiar com aqueles e com o seu cunhado, por questões de “partilhas” de um terreno.

Nesta matéria de facto não se vislumbram vícios capazes de afectarem a sua validade, nomeadamente os do artigo 410.º, nº 2, do Código Penal, que, de resto lhe não vêm assacados. Há que tê-la por definitivamente adquirida.

A questão de direito
A – medida da pena

A tal propósito discorreu o tribunal recorrido:

«…Insurge-se o arguido quanto à medida da pena que lhe foi cominada pela decisão recorrida, pretendendo que a mesma seja fixada próximo do seu limite mínimo (conclusões 11 a 15).
Por seu turno, a Ex.ma Procuradora da República entende que a pena aplicada peca por extrema benevolência, devendo ser fixada em 8 anos de prisão (conclusões 1 a 5).
Vejamos.
Ao ilícito praticado corresponde a moldura legal abstracta de pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses (arts. 172º, nº 2 e 177º, nº 1, al. a), do CP).
O tribunal recorrido quantificou a pena que aplicou ao arguido em 6 anos e 6 meses de prisão, sediando-a, pois, mais próxima do limite mínimo do que do limite máximo.
Quanto à suposta severidade da pena, o que se impõe desde logo dizer é que os actos de benevolência são para quem os merece, o que não é, seguramente, o caso do recorrente.
O arguido, que praticou um crime, como ele bem sabe, decidiu remeter-se ao silêncio.
É, pois, legítimo concluir que não houve, por banda do arguido, qualquer pingo de arrependimento, patenteando assim uma clara insensibilidade pelos valores, aqui, juridicamente tutelados, indiciadora de que naqueles é capaz de reincidir.
Por outro lado, sendo o mesmo crime punível, abstractamente, com uma pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses, aplicar-se-lhe, como pretende, a pena próxima do seu limite mínimo, pergunta-se, que justiça ficaria, então, reservada para aqueles que, ante o preenchimento do mesmo tipo de crime, confessam os factos, manifestam o seu arrependimento, e denotam vontade de se conformarem com os valores jurídica e socialmente reinantes!?
Diz o art.º 40º, nº 1, do CP que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
Por outro lado, dispõe o art.º 71º, nº 1, do mesmo diploma, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo ainda o tribunal, na determinação concreta daquela, atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente as referidas nas várias alíneas do seu nº 2.
O Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, notícias editorial, 1993, pág. 214, diz que culpa e prevenção são os termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida da pena.
Como bem se disse, v.g., no Ac. do STJ de 15-02-95, in CJ (Acs. do STJ), Ano III, Tomo I, pág. 217, as disposições do art.º 72º (hoje 71º) são afloramentos do princípio da culpa, que através das mesmas disposições se manifesta na medida da pena. O direito criminal é estruturado com base na culpa do agente, e este princípio é indispensável, exercendo uma função fundamentadora e limitadora da mesma pena. Só depois é que intervêm as exigências do fim da prevenção especial e da prevenção geral.
Para Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”.
Diz-se ainda no citado Acórdão que o procedimento tendente à determinação da pena é considerado como um conjunto complexo de operações que exige em medida variável uma estreita cooperação – mas, também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão nítidas quanto possível entre o legislador e o juiz, e que, segundo Figueiredo Dias, ob. cit. (Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime), pág. 195, apresenta especialidades notáveis face ao procedimento comum de aplicação do direito. Não enquanto o juiz é nele necessariamente reenviado para normas jurídicas não escritas, conceitos normativos e indeterminados, e mesmo puras valorações, mas já sim na medida em que se vê obrigado a traduzir os critérios jurídicos de determinação numa certa quantidade de pena, em que ele não pode, por outras palavras, furtar-se a uma quantificação exacta das suas valorações.
Citando-se R. Saleilles, in “La individualisation de Ia Peine, Étude de Criminalité Sociale”, Paris, 1927, pág. 267, “ (...) em nenhum outro momento o juiz incorpora tão dramaticamente a justiça como quando fixa a pena aplicável”.
Ainda para Figueiredo Dias, ob. e pág. cits., o momento da fixação concreta da pena é a fase da juridificação, e nela cabe ao juiz uma tripla tarefa: - Determinar, por um lado, a moldura penal abstracta cabida aos factos dados como provados no processo; - encontrar dentro desta moldura penal o “quantum” concreto da pena em que o arguido deve ser condenado; - escolher a espécie ou o tipo de pena a aplicar concretamente, sempre que o legislador tenha posto mais do que uma à disposição do juiz.
Fazendo-se uso dos critérios atrás expostos, sendo o crime punível, abstractamente, como se referiu, com uma pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses, dir-se-á:
É elevado o grau da ilicitude da conduta praticada e intenso se apresenta o dolo (dolo directo) que presidiu a essa conduta.
E a relevada circunstância de o ofendido ser sobrinho do arguido e para mais com apenas 7 anos à data dos factos, acentua a defeituosa personalidade do arguido, a qual se alcança dominada por desígnios sexuais primários e insensibilidade moral.
Não se mostrou arrependido, nem assumiu a gravidade do que cometeu.
É irrelevante a ausência de antecedentes criminais, atento o tipo de crime.
São prementes as necessidades de prevenção geral em ilícitos desta índole, maxime pela reprovação social que provocam.
De resto, a sua alarmante frequência apela para juízos de censura rigorosos.
A favor do arguido, o ser tido como pessoa trabalhadora, pacífica, pacata e sossegada, encontrando-se plenamente inserido no meio onde vive e trabalha.
Ponderados os mandamentos dos citados arts. 40º, nºs 1 e 2 e 71º, nºs 1 e 2, do CP e dentro da margem de liberdade que se situa entre o já adequado à culpa e o ainda adequado à culpa, não justifica qualquer reparo a dosimetria da pena aplicada ao arguido.»

«Ao ilícito praticado corresponde a moldura legal abstracta de pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses (arts. 172º, nº 2 e 177º, nº 1, al. a), do CP)», segundo afirma, como se viu, o tribunal recorrido.
Isto significa que o crime agravado por que o arguido foi condenado leva em conta na definição da moldura penal que lhe corresponde a circunstância de o ofendido ser «ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela».
Porém, aqui surge logo uma dificuldade: estando em causa, tio e sobrinho, e sendo eles ligados por um vínculo de parentesco que vai além do segundo grau, pois, como é sabido, tio e sobrinho são parentes em terceiro grau, (1) não vigorando nenhuma das demais circunstâncias do artigo 177.º, n.º 1, do Código Penal, o crime não pode ser considerado com a agravação que lhe colaram as instâncias.
Assim, a moldura abstracta em causa é a moldura do tipo simples, prevista no artigo 172.º, n.º 2 – 3 a 10 anos de prisão e não a que foi indicada, de 4 anos a 13 anos e 4 meses.
Porém, ainda que assim não fosse, sempre seria inaceitável considerar que influía na concretização da pena, a nível da ponderação das circunstâncias do artigo 71.º do Código Penal, «…a relevada circunstância de o ofendido ser sobrinho do arguido e para mais com apenas 7 anos à data dos factos…», pois claramente são circunstâncias já levadas em conta na definição abstracta da moldura penal respectiva, pelo que uma segunda consideração delas em sede de quantificação da pena violaria o princípio da proibição da dupla valoração das circunstâncias «ne bis in idem», consagrado, nomeadamente no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal: «na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime…».
Ora, ao invocar a circunstância de o ofendido ser sobrinho do arguido para daí inferir uma circunstância de pendor agravativo em sede de quantificação da medida da pena, o tribunal estaria a valorar uma segunda vez essa relação de parentesco e a idade do ofendido, uma vez que tias circunstâncias, declaradamente já fazem parte do tipo, e, como tal, já foram chamadas pelo legislador para delimitar a moldura penal abstracta.
Sendo assim, e tendo em conta as circunstâncias do caso – onde avulta o elevado grau da culpa na forma de dolo directo, mas em que a ilicitude surge algo mitigada uma vez que apenas vem provado um acto de consumação do tipo – tudo caldeado com a falta de arrependimento extraída não apenas do deliberado silêncio do arguido em julgamento, que, sendo um direito, não impede o tribunal de dele extrair os dados de facto tidos por pertinentes, como, objectivamente, o decurso de tanto tempo sem um pedido de desculpas, ou, o sempre possível e mais que justificado pagamento voluntário da indemnização, ainda que parcelar, tendo em conta ainda que o decurso do tempo é pouco significativo, tanto mais que tendo o arguido pendente o seu julgamento não cairia na imprudência de reincidir no mesmo tipo de actuação, tudo ponderado, têm como mais adequada ao caso a pena de 4 anos de prisão.

B – Medida da indemnização

Disse sobre ela o tribunal da Relação
«Por fim, insurge-se o recorrente relativamente ao montante indemnizatório fixado, pretendendo que o mesmo seja fixado em € 15.000, 00.
A decisão recorrida fixou a indemnização, por danos não patrimoniais, no montante de € 25.000, 00, conforme o peticionado.
Vejamos.
Perfilhamos por inteiro os fundamentos avançados pelo tribunal “a quo” para justificar o montante indemnizatório que arbitrou.
Ajustada e criteriosamente foi ele fixado, face ao disposto nos dispositivos aplicáveis.
Apenas e tão só importa relevar que igualmente a indemnização cível pode e deve traduzir um juízo de censura a acrescer ao penal e, neste plano, moldada foi a indemnização em função da gravidade dos danos não patrimoniais que os factos ilícitos em causa determinaram e da tutela do direito que mereceram.
Não há, pois, que exprimir reserva, também nesta faceta, à decisão recorrida.»
Por seu turno a decisão de 1.ª instância assentava nestes fundamentos:
« Contudo, na indemnização a atribuir atender-se-á também aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito – cfr. artº. 496º, nº 1 do Código Civil.

Vaz Serra no B.M.J., 83º-83 entende que “a satisfação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização, mas tão só uma satisfação ou compensação pelo dano sofrido, uma vez que esta, sendo uma ofensa moral, não é susceptível de equivalente pecuniário.”

Por seu turno dispõe o artº. 494º do Código Civil que:

“Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem (sublinhado nosso).

Com efeito, conforme refere o Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª ed., pág. 601:

“O quantum indemnizatório correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser calculado sempre segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular do direito de indemnização (artº 496º, nº 3), aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc.”

Donde resulta que, no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista: “por um lado, visa reparar, da algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” (ob. cit., pág. 602).

A dificuldade de “quantificar” os danos não patrimoniais não pode servir de entrave à fixação de uma indemnização que procurará ser justa, correndo o risco, embora, de ser algo aleatória, tanto mais que, neste campo, repete-se, assume particular relevância a vertente da equidade.

Aqui, mais do que nunca, encontramo-nos “na incerteza, inerente a um imprescindível juízo de equidade”. Nos danos não patrimoniais, “a grandeza do dano só é susceptível de determinação indiciária fundada em critérios de normalidade.

É insusceptível de medida exacta, por o padrão ser constituído por algo qualitativo diverso como é o dinheiro, meio da sua compensação” (cfr. Leite Campos, “A indemnização do Dano Morte”, pág. 12).

Como escreve Delfim Maya de Lucena, in, “Danos não patrimoniais”, Coimbra, 1985, pág.22 “no domínio dos danos não patrimoniais, atendendo a que a reconstituição natural não é possível, como o não é a tradução em números do volume de dores, angustias e desilusões, o legislador manda logo julgar de acordo com a equidade (cfr. artº 496º, nº 3 do Código Civil que remete para o artº 494º do mesmo diploma), devendo o juiz procurar um justo grau de “compensação”).

Finalmente, fazendo nossas as doutas palavras do Ac. dd Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 1994, in, C.J., tomo V, 1994, pág .135 e 136 “(...) no âmbito dos danos não patrimoniais, já vai sendo tempo de se acabar com “ miserabilismos” indemnizatórios”.

Com efeito, a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance “significativo, e não meramente simbólico”- vd. o acórdão do S.T.J. de 23/04/98, in, C.J. acórdãos do S.T.J., ano VI, Tomo II, págs. 49 a 52.

Assim, à luz das considerações supra expostas e tendo em conta a matéria fáctica apurada a este título, que aqui evitamos de repetir, verificamos a prova da existência de danos não patrimoniais sofridos pelo menor CC (vd. 2.1.19. supra) e resultantes da conduta do arguido/demandado civil, que supra se descreveu. Na sua fixação, consideramos como equitativa, proporcionalmente ajustada e adequada ao caso sub júdice, a quantia peticionada, ou seja, € 25.000.

Diga-se, finalmente, que não se arbitram quaisquer juros sobre a quantia supra fixada por a demandante civil não ter peticionado os mesmos.»

Estas considerações não merecem qualquer censura, sendo certo que baseando-se m juízo de equidade, e não se mostrando a decisão violadora das regras da experiência e da vida, nem manifestamente desproporcionada no seu quantum, a decisão sempre seria irrecorrível como tem sido entendimento deste Supremo Tribunal em decisões recentes que ora seria despiciendo individualizar.
Procede apenas em parte o recurso do arguido.

3. Termos em que:
A. Concedendo parcial provimento ao recurso do arguido, revogam em parte o acórdão recorrido e, como autor de um crime do artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, condenam-no na pena de 4 (quatro anos) de prisão.
B. No mais, porém, negando-lhe provimento, confirmam a decisão recorrida.
O recorrente pagará pelo decaimento parcial no aspecto criminal, taxa de justiça que se fixa em 5 unidades de conta.
Vai ainda condenado no pagamento das custas cíveis correspondentes ao respectivo decaimento que é total.

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Dezembro de 2005

Pereira Madeira (relator)
Santos Carvalho
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa
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1- Cfr., por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, II, 5.ª edição, págs. 338-9.