Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
605/11.4TTLRA.C1.S1
Nº Convencional: 4ª. SECÇÃO
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: REAPRECIAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA
FORMAÇÃO DA CONVICÇÃO
PODERES DO STJ
PROVA PERICIAL
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
Data do Acordão: 07/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. V, 143.
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª Edição, 233.
- António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2016, 3.ª Edição, 367 e ss., 241 e ss..
- Antunes Varela e Pires de Lima, “Código Civil” Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Julho de 1979, 316.
- José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 645 e ss..
- Miguel Teixeira de Sousa, no Comentário que redigiu sobre “Prova, Poderes da Relação e Convicção: a lição de epistemologia”, 32 e ss..
- Rita Gouveia, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, 882 e 883.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 389.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 489.º, 494.º, N.º2, 662.º, N.ºS 3 E 4, 674.º, N.º1, AL. B), N.º3, 682.º.
LEI N.º 41/2013, DE 26 DE JUNHO: - ARTIGO 7.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 30/12/1977, IN BMJ., Nº 271, PÁG. 185.
-DE 15/01/2004, PROCESSO N.º 03B3504, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
-DE 24/09/2014.
-DE 17/12/2015, PROCESSO N.º 1391/13.9TTCBR.C1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
-DE 30/06/2016, PROCESSO N.º 506/12.9TTTMR-A.E1.S1.
-DE 07/07/2016, PROCESSOS N.º 802/13.8TTVNF.P1.G1.S1 E N.º 487/14.4TTPRT.P1.S1.
Sumário :
I. De acordo com as regras processuais vigentes os poderes do Supremo Tribunal de Justiça, em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, são muito restritos, limitando-se, neste domínio, ao controlo que emerge dos arts. 674º, nº 3 e 682º, nº 3, ambos do NCPC, designadamente, quando entenda que as instâncias omitiram pronúncia sobre matéria de facto pertinente para a integração jurídica do caso ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.

 II. Os poderes do Supremo nesta matéria abarcam, ainda, o controlo da aplicação da lei adjectiva em qualquer das tarefas destinadas à enunciação da matéria de facto provada e não provada – art. 674º, nº 1, al. b) – com a limitação que emerge do disposto no art. 662º, nº 4, que exclui a sindicabilidade do juízo de apreciação da prova efectuado pelo Tribunal da Relação e a aferição da formação da convicção desse Tribunal a partir de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação.

III. A prova pericial está sujeita à livre apreciação pelas instâncias, sendo fixada livremente pelo Tribunal conforme prescreve expressis verbis o art. 389º do CC. Tratando-se de prova gerada a partir da emissão de juízos de ordem técnica elaborados por especialistas, a sua livre apreciação apresenta naturais limitações mas não a transforma em prova plena que tenha um valor tal que seja insindicável pelas instâncias e a que estas estejam vinculadas.

IV. Estando em causa neste processo um acidente de trabalho, em que o sinistrado, um futebolista, foi submetido a exame médico, com intervenção de peritos médicos, cujo parecer foi junto aos autos, não existe impedimento legal a que o Tribunal da Relação fixe um entendimento divergente daquele, perante motivos de ordem técnica ou probatória que apontem para a sua rejeição ou modificação do seu resultado.
V. Em tal circunstância, impõe-se à Relação que ao alterar a matéria de facto provada ou não provada, e ao rejeitar as conclusões do parecer, fundamente devidamente a sua convicção através da ponderação da análise crítica da prova produzida e que, em seu entender, conduziu a uma conclusão diversa.

VI. O reforço dos poderes conferidos ao Tribunal da Relação na apreciação e modificação da decisão da matéria de facto, com a publicação do Novo Código de Processo Civil, tem precisamente a virtualidade de colocar os Juízes Desembargadores num plano decisório que, tanto quanto possível, é equivalente ao do Juiz da 1ª instância que presidiu ao exame pericial e realizou o julgamento do caso.

VII. Não se verificando, no caso sub judice, a violação de qualquer preceito de natureza adjectiva ou de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova em resultado da exclusão, pela Relação, de alguma matéria inserida pela 1ª instância nos pontos fácticos provados, improcede o recurso de revista na parte em que se impugna a decisão da matéria de facto.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – 1. AA

Instaurou a presente acção especial de acidente de trabalho contra:

SEGURO BB

Pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe:
a) A pensão anual e vitalícia, anualmente actualizável, a partir de 22.07.2003, calculada com base no salário anual do sinistrado e na I.P.P. de que é portador, em virtude do acidente de trabalho que sofreu, em 17-1-2003;
b) Os juros moratórios vencidos e vincendos sobre a pensão que lhe vier a ser reconhecida, devidos desde o dia seguinte ao da alta e até integral e efectivo pagamento;
c) A quantia de € 38,00, a título de despesas efectuadas com deslocações obrigatórias ao Tribunal e ao GML.

Alegou, para tanto e em síntese, que foi vítima de um acidente, em 2003, enquanto trabalhava como jogador profissional de futebol, sob as ordens, direcção e fiscalização de “CC ­ – Sociedade Desportiva de Futebol, S.A.D.”

À data do sinistro o A. auferia a retribuição de € 150.000,00 (€ 12.500,00 x 12 meses/ano) e a SAD transferiu a sua responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho para a Ré Seguradora, sendo, por isso, a Ré responsável pelo pagamento das quantias peticionadas.

2. O Autor foi submetido a exame médico na fase conciliatória, tendo-lhe sido atribuída uma incapacidade permanente parcial de 10%.

3. Na tentativa de conciliação efectuada, a Ré Seguradora não aceitou pagar-lhe qualquer pensão por entender que, para além de ter caducado o direito de acção, o sinistrado se encontrava curado, sem qualquer desvalorização, desde 21/7/2003.

4. Aberto apenso para fixação de incapacidade, o Tribunal proferiu a seguinte decisão:


“Nos presentes autos de acção emergente de acidente de trabalho, com processo especial, em que é sinistrado AA e ré SEGURO BB, todos melhor identificado nos autos, foi determinado se abrisse apenso tendo em vista a fixação de eventual incapacidade de que o sinistrado seja portador.
Foi designada data para a realização de exame médico.
Efectuado o exame, conforme fls. 36 a 38, os Srs. peritos médicos concluíram por unanimidade que o sinistrado apresenta instabilidade residual em valgo e amiatrofia da coxa de 1 cm e subjectivos dolorosos do joelho esquerdo, atribuindo-lhe a IPP de 7,5% desde 21.07.2003.
Responderam ainda que, tendo em conta o tipo de actividade do sinistrado, que implica permanente esforço, carga e equilíbrio dos membros inferiores, as sequelas resultantes do acidente determinaram uma diminuição da função necessária e imprescindível ao bom desempenho da sua actividade.
Não existem razões para duvidar da conclusão a que chegaram os Srs. peritos (por unanimidade), sendo que não possuímos conhecimentos ou competências técnico-científicas bastantes que nos habilitem a pôr em causa o laudo pericial.
Decisão:
Pelo exposto o Tribunal decide que:
- O sinistrado apresenta instabilidade residual em valgo e amiatrofia da coxa de 1 cm e subjectivos dolorosos do joelho esquerdo, sendo de atribuir a IPP de 7,5% desde 21.07.2003.
- Tendo em conta o tipo de actividade do sinistrado, que implica permanente esforço, carga e equilíbrio dos membros inferiores, as sequelas resultantes do acidente determinaram uma diminuição da função necessária e imprescindível ao bom desempenho da sua actividade”.

5. Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, cuja parte dispositiva tem o seguinte conteúdo:

“Pelo exposto, declaro que o autor sofre da I.P.P. de 7,5%, desde 22.07.2003.
  Condeno a seguradora a pagar ao sinistrado:
a) a pensão anual e vitalícia, anualmente actualizável, de € 7.875,00, reportada a 22.07.2003;
b) os juros moratórios vencidos e vincendos sobre tal pensão, devidos desde o dia seguinte ao da alta, até integral e efectivo pagamento;
c) a quantia de € 38,00, a título de despesas efectuadas com deslocações obrigatórias ao Tribunal e ao GML.
 Custas pela seguradora
 Valor da acção: o preceituado no art. 120º do C.P.T”.

5. Interposto recurso de apelação, foi revogada a sentença e a Ré Seguradora absolvida do pedido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

6. Irresignado, o A. interpôs recurso de revista, no qual formulou as seguintes conclusões:


A) O aresto em crise viola, entre outras, as normas constantes na al. f), do nº 1, do art. 59°, da CRP, assim como o disposto no art. 607º, na al. b), do nº 2, do art. 662º, do CPC e, ainda, o disposto nos arts. 341º, 342º e 388° do CC.
B) No Acórdão recorrido existiu ofensa de disposição expressa de lei que exigia certa espécie de prova para a existência do facto, assim como de normativo que fixa a força de determinado meio de prova.
C) O caso sub judice reporta-se a direitos indisponíveis por emanar de acidente de trabalho (art. 35º, da Lei 100/97, de 13/09).
D) De forma a assegurar o Direito Constitucional dos trabalhadores à assistência e justa reparação dos acidentes de trabalho de que sejam vítimas, o legislador regulamentou um processo especial, no qual estão consagradas a realização de duas perícias médicas, uma singular e de carácter obrigatório, e uma colegial.
E) A prova pericial assume um papel fundamental nas acções emergentes de acidentes de trabalho, o que se justifica pela especial complexidade da matéria de facto em apreciação, i.e., a avaliação médico-legal de dano corporal.
F)No caso em apreço, a simples análise da posição dos senhores peritos médicos, quer do perito que realizou o exame singular, quer dos três médicos que integraram a Junta Médica, impõe decisão diversa da que foi proferida.
G) Todos os peritos médicos que observaram o sinistrado, no âmbito destes autos, sem excepção, consideraram que do acidente ocorrido, em 17/01/2003, resultaram lesões, das quais resultaram sequelas que reduziram a capacidade de trabalho e de ganho do sinistrado.
H) Ou seja, reconheceram todos os peritos médicos que realizaram os exames médicos previstos na lei que existe nexo de causalidade entre as sequelas que o sinistrado actualmente apresenta e as lesões resultantes do acidente que sofreu, em 17/01/2003.
I) Contudo, o Tribunal da Relação fez tábua rasa da opinião dos peritos médicos, tendo formulado a sua convicção exclusivamente com base no depoimento de uma testemunha apresentada pela Recorrida, Prof. DD, antigo director do IML de Coimbra.
J) A falta de fundamentação da posição sufragada pelos peritos médicos não determina que não sejam valoradas as respostas por aqueles formuladas.
K) Acresce que a perícia por Junta Médica foi presidida pelo MMº Juiz da 1ª Instância, que teve oportunidade de colocar todas as questões que se lhe afiguraram pertinentes, escutar as respostas e solicitar todos os esclarecimentos necessários à boa decisão da causa.
L) Já o Tribunal recorrido não teve tal oportunidade. Tendo constatado a falta de fundamentação, devia o Tribunal da Relação ter ordenado a notificação dos senhores peritos médicos para que fundamentassem as suas respostas, de acordo com o disposto na al. b), do nº 2, do art. 662°, do CPC.
M) Ou, poderia ter determinado a devolução dos autos ao Tribunal de 1ª instância, para que este levasse a cabo as diligências necessárias à obtenção da fundamentação das respostas formuladas pelos peritos médicos.
N) E assim é porque a Lei atribui ao Julgador, nos processos emergentes de acidentes de trabalho, um especial poder dispositivo com vista ao apuramento da verdade dos factos e da busca da verdade material, uma vez que se tratam de direitos indisponíveis.
O) A livre apreciação da prova pericial não significa prova arbitrária.
P)Existindo prova pericial, o Julgador está amarrado ao juízo pericial, sendo que sempre que dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação.
Q) Com o devido respeito, o Tribunal recorrido violou esse dever de fundamentação que se encontra consagrado no artigo 607º do CPC.
R) Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou de igual forma o espírito normativo subjacente aos processos emergentes de acidentes de trabalho.
S)Da violação das citadas normas e princípios resultou a prolação de uma decisão ilegal.
T)Nestes termos, e nos demais de direito, que este Tribunal Superior suprirá, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o Acórdão recorrido, julgando-se a acção totalmente procedente, ou caso assim não se entenda, ser ordenada a devolução do processo ao Tribunal recorrido para que este ordene a notificação dos peritos médicos, que realizaram o exame singular e a Junta Médica, para que fundamentem as respostas que deram aos quesitos apresentados pela Companhia de Seguros.

7. Pela Ré Seguradora foram apresentadas contra-alegações reiterando a posição defendida nos presentes autos, e que se sintetizam nos seguintes termos:
a) Contrariamente ao que diz pretender, o Recorrente não pugna pela reparação de qualquer ofensa pelo Tribunal recorrido de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
b) O que o Recorrente não aceita é a avaliação da prova que, correcta e justamente, fez o Tribunal recorrido, o que não pode ser fundamento do presente recurso de revista, que, por isso, não pode ser admitido, ou, então, terá de improceder, em consonância com o art. 674º do CPC.
c) Inexiste igualmente qualquer violação de normas como as dos arts. 341º, 342º e 388º do C. Civil, 607º e 662º do CPC.
d) Foram cumpridas as regras processuais sobre a produção de prova e sobre a repartição do respectivo ónus, cabendo ao sinistrado a prova do nexo de causalidade entre as lesões do acidente e a incapacidade permanente observada mais de dez anos depois.
e) Também foi observada a regra da submissão do sinistrado a avaliação por perícia colegial, submetida ao poder de livre apreciação pelo Tribunal, ponderando os diversos elementos disponíveis nos autos.
f) Ao fazer uma apreciação conjugada dos depoimentos das diversas testemunhas inquiridas, do relatório pericial da junta médica e da opinião médico-legal trazida aos autos pela entidade responsável, o Tribunal da Relação procedeu a uma análise crítica das provas e especificou em termos de meridiana clareza os fundamentos pelos quais entendeu decidir, como decidiu, pela procedência do recurso de apelação, após modificação da resposta à matéria de facto, concluindo pela não verificação de prova sobre o nexo de causalidade a que se alude na Conclusão 4ª.
g) Não pode ser reconhecido ao sinistrado o direito de estar anos e anos a fio a praticar futebol, vindo exercer o seu pretenso direito à reparação de acidente de trabalho apenas quando mais lhe convém, independentemente de terem decorrido dez, quinze ou vinte anos sobre a data da alta clínica recebida, com o singelo argumento da falta de entrega do boletim de alta.
h) Se tal fosse admissível, sairiam gravemente afrontados os princípios de natureza e ordem pública que informam o processo especial para determinação dos direitos por acidente de trabalho, traduzidos na celeridade, urgência e oficiosidade da tramitação, na descoberta da verdade material, numa palavra, na busca de urna decisão no mais curto prazo, como é constitucionalmente assegurado.
i) Tais princípios relevam do interesse do sinistrado em ser rapidamente ressarcido dos prejuízos do infortúnio com vista à salvaguarda da sua subsistência económica.
j) Não pode admitir-se que, numa situação como a dos autos, o sinistrado possa não ter interesse na definição dos seus direitos no prazo de um ano, após a cura clínica, estando anos e anos sem os exercer, dificultando ou impedindo a produção de prova sobre factos e danos.
k) Mais chocante é admitir que tal sinistrado possa vir a beneficiar de um processo com tramitação urgente e oficiosa, depois de vários anos de uma ponderada inércia processual, e tudo isso ser possível apenas pela eventual falta de prova de entrega de um papel.
l) O Autor, sem justificar a sua demora, nem alegar falta de conhecimento dos pressupostos do seu alegado direito, apenas quando já atingira os quarenta e dois anos de idade veio, descansadamente, arguir a falta de entrega do boletim, sem deixar de se arrogar portador de fortes dores no joelho direito e a padecer de limitações graves ao nível da mobilidade, que, estoicamente, teria suportado sem queixas, durante tantos anos.
m) É manifesto que um tal procedimento do ora Autor apenas se justifica pelo seu interesse no prosseguimento da carreira, sem os inconvenientes do reconhecimento de qualquer incapacidade a influenciar negativamente o seu percurso profissional.
n) A ordem jurídica não pode funcionar como prémio e incentivo à inércia processual.
o) A conduta do Autor, traduzida no arrastar do exercício do seu alegado direito durante o número de anos que entendeu, além de violar a lei e os seus princípios informadores, sempre funcionaria como forma de a defraudar, permitindo-lhe um resultado não previsto, na aparência do seu cumprimento.
p) Nestes termos, e sempre com o indispensável suprimento, deverá ser julgado não admissível o recurso de revista; ou, quando assim se não entenda, deverá o mesmo recurso ser julgado improcedente, sendo confirmada a douta decisão do Tribunal da Relação, aqui recorrida.

- A Ré suscitou, também em recurso, a questão do abuso de direito e de fraude à lei por parte do Autor/Sinistrado, por este ter exercido “um pretenso direito”, que ainda por cima só alegou cerca de oito anos depois de ter retomado a sua actividade profissional de futebolista, e já muitos anos depois da alta, que o próprio Autor aceitou sem expressar qualquer queixa ou desacordo – cf. requerimento de fls. 501 e segts, do 2º Vol.

Recurso admitido por despacho da presente Relatora, nos termos que constam de fls. 533, 540 e 544, e após cumprimento do respectivo contraditório.

8. No exercício do contraditório veio o Autor insurgir-se contra o alegado abuso de direito deduzido pela Ré, defendendo que o direito por si exercido, enquanto sinistrado, não excede os limites impostos pela boa fé, nem pelos bons costumes, nem pelo fim social e económico desse direito – cf. fls. 548 e segts.

9. A Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal formulou Parecer sustentando, em síntese, a improcedência da revista porquanto:


* Resulta da lei que a prova pericial é livremente apreciada pelo Tribunal;
* A Relação fez uso adequado dos seus poderes no que respeita ao julgamento da matéria de facto, conforme se extrai inequivocamente da “cuidadosa fundamentação” da decisão recorrida.

A este Parecer nenhuma das partes ofereceu resposta.

11. Preparada a deliberação, cumpre apreciar as questões suscitadas nas conclusões da alegação do Recorrente, exceptuadas aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução entretanto dada a outras, nos termos preceituados nos arts. 608.º, n.º 2 e 679º, ambos do CPC.

Salienta-se, contudo, que não se confundem com tais questões todos os argumentos invocados pelas partes, aos quais o Tribunal não está obrigado a responder.[1]

II – QUESTÕES A DECIDIR        

- São as seguintes as questões que importa apreciar:


1. Modificabilidade da decisão de facto pela Relação: saber se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que reapreciou a matéria de facto e procedeu à sua alteração é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça e em que termos;
2. Qual a força probatória das respostas dos peritos;
3. Saber se, in casu, o acidente de trabalho é, ou não, ressarcível;
4. Aferir se o Autor/Sinistrado agiu com abuso de direito.

Analisando e Decidindo.

III – FUNDAMENTAÇÃO

1. A Ré nas suas contra-alegações argumentou, nomeadamente, que o que revela o recurso interposto pelo Autor/Recorrente é que este não aceita a reapreciação da prova efectuada pelo Tribunal da Relação, que conduziu à alteração dos factos provados. Ora, tal questão não pode servir de fundamento do presente recurso de revista, face ao disposto no art. 662º, nº 4, do NCPC, pelo que, por essa razão, o recurso do Autor não pode ser admitido ou então terá de ser julgado improcedente.

Tal questão, em nosso entender, prende-se com a elencada supra em 1º lugar, como constituindo o objecto do presente recurso, nomeadamente com a reapreciação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal da Relação, com a alteração do acervo fáctico provado e com os poderes do Supremo Tribunal de Justiça face ao preceituado no art. 674º, nº 3, do NCPC.

Por conseguinte, será versada e decidida no âmbito da análise daquela.

Destarte, para a sua decisão conjunta atender-se-á ao Novo Código de Processo Civil, resultante da entrada em vigor da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, por força do disposto no seu art. 7º, face à data da entrada da acção.

I – DE FACTO:

- Mostra-se provado o seguinte circunstancialismo fáctico:

A) Em 2003, o A. sofreu um acidente.

B) À data do acidente, encontrava-se em vigor a apólice nº …925, ramo “acidentes de trabalho”, celebrada entre a Ré e “CC – Sociedade Desportiva de Futebol, S.A.D.”, sendo nela o A. pessoa segura.

C) A retribuição anual global do A., à data, era de € 150.000,00 (€ 12.500,00 x 12 meses/ano), encontrando-se tal quantia declarada pela entidade empregadora à Seguradora para efeitos da cobertura do seguro de acidentes de trabalho.

D) O A. recebeu todas as indemnizações devidas por Incapacidades Temporárias sofridas.

E) A profissão de futebolista de alta competição é uma profissão de desgaste rápido, de baixa média etária, e a sua duração é bastante inferior à das demais carreiras profissionais.

F) O A. nasceu em 13-3-1969.

G) O acidente referido em A), ocorreu em 17-1-2003, tendo sido participado à Seguradora em 1-2-2003.

H) À data do acidente vigorava entre o A. e “CC – Sociedade Desportiva de Futebol, S.A.D.” um contrato de trabalho desportivo, nos termos do qual o A. se obrigou a prestar com regularidade a sua actividade de futebolista profissional ao serviço da “CC – Sociedade Desportiva de Futebol, S.A.D.”.

I) O contrato supra referido teve a duração limitada de 2 épocas desportivas, tendo sido convencionado o seu início em 1-7-2001 e o seu termo em 30-6-2003.

J) Em 17-1-2003, quando se encontrava a treinar conjuntamente com o restante grupo de trabalho, no Estádio do Restelo, em Lisboa, o A., ao tentar interceptar a bola, sofreu entorse no seu joelho direito.

K) O que o impediu de prosseguir o treino.

L) O A. foi, então, assistido pelo massagista do clube e, posteriormente, observado pelo Departamento Clínico deste.

M) O Departamento Clínico decidiu, então, que o A. iria realizar um tratamento conservador.

N) Os tratamentos de medicina física e de reabilitação não tiveram sucesso, tendo o A. continuado a sentir fortes dores no seu joelho direito.

O) Até que, no dia 26.02.2003, foi feita uma ressonância magnética ao joelho direito do Autor, que revelou uma desinserção supra meniscal do feixe profundo do ligamento lateral interno e laxidão do ligamento cruzado anterior.

P) O departamento clínico do clube decidiu então que o A. teria de ser sujeito a intervenção cirúrgica.

Q) Assim, no dia 25-3-2003, o Sinistrado foi sujeito a uma intervenção cirúrgica por via artroscópica ao seu joelho direito, e que decorreu no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa.

R) Durante a intervenção foi efectuada uma reinserção do menisco ligamentar do ligamento lateral interno e tensão do ligamento cruzado anterior do joelho direito.

S) No período que se seguiu à operação, e durante 12 semanas, o Sinistrado efectuou sessões diárias de fisioterapia, nas instalações do clube, sob a supervisão do seu departamento médico.

T) No entanto, o Sinistrado continuou sempre a sentir dores na zona da lesão e nunca recuperou totalmente a massa muscular do membro inferior direito.

U) O Sinistrado efectuava, então, treino muito condicionado, sendo autorizado a participar em alguns jogos oficiais sempre sob a vigilância clínica do departamento médico de “CC”.

V) O Sinistrado continua a sentir fortes dores no seu joelho direito e a padecer de limitações graves ao nível da sua mobilidade.

- Foram eliminadas, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, as alíneas X), Y), W) e Z), que constavam da matéria de facto dada por provada pela 1ª instância, cujo texto adiante se transcreve.

AA) Pelo que o sinistrado sofre de IPP de 7,5%, desde 22.07.2003.

BB) O A. despendeu a quantia de € 38,00, a título de despesas efectuadas com deslocações obrigatórias ao Tribunal e ao GML.

CC) Ao A. foi informalmente comunicada a data da sua alta clínica.

DD) O A. prosseguiu a sua prática desportiva, nomeadamente no Clube “CC”, até ao ano de 2005, tendo depois passado a jogador amador.

EE) O A. teve sempre ao seu dispor os meios técnicos e humanos do departamento clínico do clube, recebendo toda a informação sobre a evolução do seu tratamento e tendo perfeito conhecimento da sua condição clínica.

FF) Pelo que sabia que, ao receber alta, o médico assistente o considerava clinicamente curado.

GG) O médico do Departamento Clínico do Clube deve informar o jogador de que lhe foi dada alta.

                   

II – DE DIREITO

1. Reapreciação da matéria de facto pela Relação e os poderes do STJ:

1.1. Resulta das conclusões da revista que o Autor fundou o seu recurso, essencialmente, na questão da impugnação da matéria de facto, insurgindo-se contra a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que, conhecendo dessa matéria, decidiu eliminar factos que tinham sido dados por provados pela 1ª instância.

Relativamente a esta primeira questão – que, de acordo com a versão defendida em sede recursória, incide sobre a matéria de facto provada – considera o Autor que o Tribunal da Relação, ao assim proceder, fê-lo indevida e ilegalmente.

Os factos aqui em causa – que a Relação de Coimbra decidiu eliminar – são os que se foram elencados na sentença da 1ª instância com as letras X), Y), W) e Z). Com o seguinte conteúdo:

“X) O Sinistrado é actualmente portador das seguintes sequelas: instabilidade do joelho direito com atrofia muscular da coxa direita (1 cm – sinistrado dextro), rigidez do joelho direito com ligeira limitação dos movimentos passivos de flexão, limitação da hiperextensão, limitação da flexão em carga do joelho direito, crepitação no joelho direito com os movimentos, agravamento das alterações degenerativas e gonalgia esquerda.

Y) Para além disso, o Sinistrado apresenta como sequelas: “Membro inferior direito: Dor articular (interlinha interna e externa) laxidez moderada do LLI e ligeira do LCA e flexão limitada a 120º, sem amiotrofia ou derrame articular.

W) Apresentando gonalgia residual com laxidez antero interna moderada.

Z) Pelo que tendo em conta o tipo de actividade do Sinistrado que implica permanente esforço, carga e equilíbrio dos membros inferiores, as sequelas resultantes do acidente, determinaram uma diminuição da função necessária e imprescindível ao bom desempenho da sua actividade”.
Argumenta o Autor, em síntese, que tratando-se de factos relativos a prova pericial, “a falta de fundamentação da posição sufragada pelos peritos médicos não determina que não sejam valoradas as respostas por estes formuladas”, pois sempre o Julgador “está amarrado ao juízo pericial”, não podendo, por isso, e sem mais, ser objecto de alteração pelo Tribunal da Relação. E sempre que a Relação dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação”.
Conclui no sentido de que deve, por isso, o STJ revogar o Acórdão recorrido.

Sobre tal matéria a Ré suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso (ou, em alternativa, a sua improcedência) com base nos argumentos que se prendem com a pretensão veiculada pelo Autor de que o Tribunal da Relação não podia alterar o acervo fáctico provado, pois considera que uma vez que o juízo sobre tal matéria está vedado por lei ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 662º, nº 4, do CPC, a revista não devia ser admitida.

Conforme se referiu no ponto anterior, entendemos que tal questão deve ser tratada conjuntamente com a primeira elencada como objecto do presente recurso, centrando-se nos efectivos e legais poderes do Supremo Tribunal de Justiça, pelas razões que de seguida serão aduzidas.

Assim sendo, temos que:

1.2. De acordo com as regras processuais vigentes os poderes do STJ, em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, são muito restritos.

Em regra, a este Supremo Tribunal de Justiça apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (art. 682º, nº 1, do NCPC), assim se distinguindo das instâncias encarregadas também da delimitação da matéria de facto e modificabilidade da decisão sobre tal matéria.

Esta restrição, contudo, não é absoluta, como decorre da remissão que o nº 2 do art. 682º do NCPC faz para o art. 674º, nº 3, do mesmo Código, norma que atribui ao Supremo a competência para sindicar o desrespeito de lei no que concerne à violação de norma expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Outra possibilidade de intervenção do STJ, neste domínio, é conferida pelo sistema que emerge do art. 682º, nº 3, do NCPC, de controlo da matéria de facto provada e não provada, designadamente para os casos em que entenda que as instâncias omitiram pronúncia sobre matéria de facto pertinente para a integração jurídica do caso ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.
Importa ainda considerar nesta análise normativa, e dada a sua importância, o controlo da aplicação da lei adjectiva em qualquer das tarefas destinadas à enunciação da matéria de facto provada e não provada (art. 674º, nº 1, al. b))[2], com a limitação que emerge do disposto no art. 662º, nº 4, aplicável às situações em que simplesmente está em causa a formação da convicção, por parte do Tribunal da Relação, a partir de meios de prova sujeitos a livre apreciação, casos em que não cabe recurso para o STJ, sendo insindicável o juízo de apreciação da prova por parte daquele Tribunal.

Por conseguinte, fora dos casos previstos na lei e supra assinalados, o STJ apenas conhece de matéria de direito.

A este propósito, pode ler-se em Amâncio Ferreira, o seguinte:

(…)”Presentemente, também o STJ não pode, a solicitação da parte interessada, exercer censura sobre o uso dos poderes por parte da Relação no que concerne ao julgamento da matéria de facto do tribunal de 1ª instância. E isto por a decisão da Relação que implemente tais poderes ser hoje insusceptível de recurso (nº 6 do art. 712º, aditado pelo DL nº 375-A/99 de 20 de Setembro)”.[3]

Nesta matéria Abrantes Geraldes[4] explicita:

“No capítulo da apreciação das provas, a regra contida no nº 3 (do art. 674º), conexa com as funções prioritárias atribuídas ao Supremo, é a de que este órgão não pode interferir na decisão da matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias. Tal regra está em consonância com a tramitação processual do recurso de revista, por comparação com o recurso de apelação que integra, como um dos pilares fundamentais, a intervenção da Relação na reapreciação da decisão da matéria de facto, nos termos dos arts. 640 e 662º.

E acrescenta:

“Todavia, sem embargo de outras intervenções previstas nos arts. 682º e 683º, considerou-se que o Supremo não deveria ficar indiferente a erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, podendo constituir fundamento de revista a violação de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova ou que fixe a respectiva força probatória. Afinal, em tais situações, defrontamo-nos com verdadeiros erros de direito que, nesta perspectiva, se integram também na esfera de competências do Supremo – sublinhado nosso.

Daí que, a questão da prova pericial e da força probatória das respostas dos peritos, situando-se, embora, no domínio da apreciação e fixação das provas, nem por isso a sua análise fica arredada dos poderes do STJ, a quem cabe, in concreto, e no pleno uso da efectivação do referido controlo verificar se existiu, ou não, erro e/ou a ofensa de uma disposição expressa da lei, nos termos estabelecidos pelo nº 3, do art. 674º, do NCPC.

Destarte, caberá às instâncias a fixação da matéria de facto, mas a esses factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, por força do estatuído no nº 1 do art. 682º, conexionado com o seu nº 3, e com o art. 674º, nº 3, ambos do NCPC.

Tudo isto para concluir que, pelas razões aduzidas, entendemos que o recurso de revista que seja interposto com tais fundamentos, em que se questione a decisão do Tribunal da Relação sobre a apreciação e modificabilidade da matéria de facto, pode e deve ser admitido.

Para que o STJ possa sindicar se a Relação, no uso que fez dos seus poderes, ofendeu qualquer norma legal expressa nos termos estabelecidos pelo nº 3 do art. 674º.

Neste sentido se decidiu igualmente no Acórdão do STJ, desta Secção, datado de 17 de Dezembro de 2015[5], onde se exarou o seguinte sumário:

“I – Ao Supremo Tribunal de Justiça, em regra, apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (art. 682º, nº 1, do NCPC), assim se distinguindo das instâncias encarregadas também da delimitação da matéria de facto e da modificabilidade da decisão sobre tal matéria.
II – Esta restrição não é absoluta, como decorre da remissão que o nº 2 do art. 682º faz para o art. 674º, nº 3, norma que atribui ao Supremo a competência para sindicar o desrespeito de lei no que concerne à violação de norma expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou à inatendibilidade de meio de prova dotado de força vinculada. (…)”

Sobre a presente matéria esta Secção do Supremo Tribunal de Justiça já teve oportunidade de expressar o seu entendimento, nomeadamente nos Acórdãos datados de 07/07/2016[6], incidindo a sua análise sobre a modificabilidade da decisão de facto pela Relação, mediante a reapreciação dos meios de prova produzidos e sujeitos ao princípio da livre apreciação do Tribunal, bem como dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça face ao estatuído nos arts. 674º, nº 3, 682º, nº 1 e 662º, nº 3, todos do NCPC, que, nessa parte, se reitera.

Não obstante tal facto, impõe-se retomar aqui parte das considerações vertidas com incidência analítica na questão jurídica dos poderes do Julgador, extraindo as respectivas consequências nos presentes autos tendo em conta as questões elencadas.

1.3. Contudo, desde já se adianta que, o que antecede, no domínio da prova e do princípio da livre apreciação pelo Tribunal não sofre alteração quanto à prova pericial.

2. A Prova Pericial e a sua força probatória:

2.1. Com efeito, a prova pericial, tal como a prova testemunhal, está sujeita à livre apreciação pelas instâncias como expressamente prescrevem os arts. 389º e 396º, ambos do CC.

É claro que tratando-se de uma prova gerada a partir da emissão de juízos de ordem técnica elaborados por especialistas, a sua livre apreciação apresenta naturais limitações mas não a transforma em prova plena que tenha um valor tal que seja insindicável pelos Tribunais e a que estes estejam vinculados.

Tais cautelas são especialmente visíveis quando, como ocorre no caso concreto, se trata de matéria reportada a um acidente de trabalho, em que houve intervenção de peritos médicos, cujo parecer deve, em regra, ser acatado, o que não impede, porém, que possa suscitar por parte das instâncias um entendimento divergente daquele, perante motivos de ordem técnica ou probatória que apontem para a sua rejeição ou modificação do seu resultado.

No caso concreto, e ao contrário do que alega o Autor Recorrente, o Tribunal da Relação, ao alterar a matéria de facto provada/ou não provada, não se limitou a rejeitar as conclusões do parecer dos peritos sem aduzir fundamentos para tal.

Ao invés, confrontou o parecer com o depoimento de um especialista não menos qualificado na matéria da medicina legal, atenta a sua experiência profissional como médico dessa área e, além disso, Director do Instituto de Medicina Legal.

A decisão da Relação encontra-se motivada e devidamente fundamentada e não se vislumbra qualquer motivo que seja, v.g., indiciador de incoerência, deficiência ou obscuridade na ponderação e análise crítica da prova produzida de modo a assacar à mesma a violação, quer de normas de direito adjectivo quer de normas de direito substantivo, que implicassem um resultado diverso.

A concessão ao Tribunal da Relação de amplos poderes na apreciação (e modificação) da decisão da matéria de facto tem precisamente esse objectivo que é o de corrigir erros decisórios que encontram a sua raiz na circunscrição da matéria de facto. Pois se no sistema anterior a 1995/96 era praticamente vedado à Relação essa intervenção correctiva, o reforço dos poderes nesta área e, acima de tudo, a gravação da audiência tem precisamente a virtualidade de colocar os Exmºs Juízes Desembargadores num plano decisório que, tanto quanto possível, é equivalente ao do MMº Juiz da 1ª instância que presidiu ao exame pericial e que realizou o julgamento do caso.

Daí os poderes que lhe foram conferidos pelo legislador, hoje consagrados no art. 662º do Novo CPC, relativamente à modificabilidade da decisão de facto, onde não se distinguiu qualquer meio ou modalidade de prova desde que esteja a coberto de tal princípio e não se trate de prova vinculada.

Tendo sido reiterado o princípio legal de que a prova pericial é livremente apreciada pelo Tribunal, nos termos preceituados nos artigos 389º do CC e 489º do NCPC (cf. tb. art. 494º, nº 2).

2.2. É consensual a Doutrina e a Jurisprudência quando interpretam os poderes atribuídos ao Tribunal da Relação com a reforma processual civil operada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Novo CPC e regulou a modificabilidade da decisão de facto no seu art. 662º.

Através deste normativo foi concedida ao Tribunal da Relação uma autonomia decisória, há muito reclamada, em sede de reapreciação e modificabilidade da decisão da matéria de facto.

Para formar a sua própria convicção pode a Relação proceder não só à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, mas também a todos aqueles que se mostrem acessíveis nos autos e abarcados pela previsão do art. 662º.

Nos mesmos termos expressou o seu entendimento Miguel Teixeira de Sousa, no Comentário que redigiu sobre “Prova, Poderes da Relação e Convicção: a lição de epistemologia”[7], onde se pode ler, em reforço do que se enunciou, o seguinte:

O Princípio que rege a apreciação da prova é o da livre valoração: sempre que a prova não tenha um valor legal ou tarifado, a prova é apreciada segundo a prudente convicção do juiz (art. 607º, nº 5, do CPC).

Isto significa que o juiz tem de formar uma convicção subjectiva sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando – ou seja, tem de adquirir um estado psíquico de convicção sobre essa verdade ou plausibilidade – baseado numa convicção objectiva – isto é, num conjunto de razões que permite afirmar que um facto é verdadeiro ou é plausível.

Comentando um Acórdão do STJ, datado de 24/09/2014, relatado por Azevedo Ramos, com o qual concorda nesta parte, refere o Ilustre Mestre ainda o seguinte:

“(…) Segundo o Acórdão, a Relação não pode limitar-se a verificar se algum erro ou procedimento probatório inquina a convicção do juiz da 1ª Instância, antes tem de formar uma nova convicção sobre as provas produzidas na 1ª instância o que implica que a Relação, em vez de se limitar a controlar a legalidade da produção da prova realizada na instância a quo, tem de formar uma convicção própria e controlar o mérito dessa mesma apreciação.[8]

E acrescenta de forma clara e elucidativa:

A prova judiciária é uma realidade interdisciplinar. A prova pode ser vista numa perspectiva estritamente jurídica, mas também pode ser analisada, entre outras, numa perspectiva histórica, argumentativa (retórica), psicológica, filosófica ou epistemológica. Estas perspectivas podem ser aplicadas às duas vertentes distintas em que se desdobra a prova: a sua produção pelas partes e a sua apreciação ou valoração pelo Tribunal.

(…) O juiz só pode dar como provado (…) o (...) facto se acreditar que ele é verdadeiro.”

2.3. Importa, por fim, ter presente que o princípio da livre apreciação da prova que rege este meio de prova não é um princípio inovador nesta área, nem foi introduzido na prova pericial pelo Novo Código de Processo Civil, como bem se extrai da norma de direito substantivo por nós citada e que estatuiu a força probatória das respostas dos peritos: art. 389º do CC.

Aliás, já Antunes Varela[9] alertava para a importância de tal facto, podendo ler-se, a este propósito, que:

“O princípio da prova livre… vigora no domínio da prova pericial (ou por arbitramento), da prova por inspecção e da prova por testemunhas.

Prova livre não quer dizer prova arbitrária, “mas prova apreciada pelo Juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom senso, com inteira liberdade, sem estar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais.[10]

E complementa a explicitação referindo:

“O art. 578º do CPC anterior à revisão operada pelo Decreto-Lei nº 47690, consagrava já o princípio da livre apreciação da prova pericial, mas obrigava a fundamentar a sua conclusão sempre que se afastasse do parecer dos peritos.

Mas agora (reportando-se ao ano de 1979) “o Tribunal pode afastar-se livremente do parecer dos peritos, sem necessidade de justificar o seu ponto de vista, quer porque tenha partido de factos diferentes dos que aceitou o perito, quer porque discorde das conclusões dele ou dos raciocínios em que elas se apoiam, quer porque os demais elementos úteis de prova existentes nos autos invalidem, a seu ver, o laudo dos peritos”.

Mais recentemente, sobre o alcance do princípio da prova livre estatuído pelo art. 389º do CC, pode ler-se o seguinte comentário:

“A liberdade dessa apreciação pelo Juiz das respostas dos peritos não se traduz na substituição daqueles pelo juiz, mas antes na valoração que este deve fazer dessas respostas considerando a respectiva fundamentação, a sua coerência lógica, a diligência adoptada pelos peritos na realização da perícia e as demais provas produzidas. Esse juízo crítico não poderá consistir num exercício arbitrário de afastamento ou desconsideração do relatório pericial, mas numa cuidada apreciação dos pressupostos e conclusões da perícia para, em consequência, justificar a adesão ou rejeição, no todo ou em parte, dessas conclusões”. [11]

Quer isto dizer que o Juiz pode valorar a prova pericial sem obediência a nenhum critério predeterminado. Desde que, naturalmente, fundamente a sua convicção, alicerçando-a, criticamente, nos restantes elementos de prova produzidos nos autos.

Entendimento que foi secundado ao longo destes anos pela Jurisprudência, como é disso exemplo o Acórdão do STJ, datado de 15/01/2004 [12], onde se decidiu que:

“(…) A questão não é a de saber se os peritos avaliaram bem ou mal e sim a de averiguar se o Tribunal fixou adequadamente os factos. Este julgamento é sindicável pelo Tribunal da Relação, nos termos do art. 712° do C. P. Civil. Mas está vedado a este Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 722° nº 2 e 729° nº 2 do mesmo Código, voltar a pronunciar-se sobre tais factos.

O Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar questões jurídicas conexas com a produção da prova como a preterição de formalidades legais ou o flagrante ilogismo da ilação.

 No entanto, a adesão das instâncias aos critérios dos peritos é matéria de convicção, que aqui não pode ser revista. A Relação podia-o fazer, como aliás o fez, dado que se verificava a hipótese do art. 712° nº 1 alínea a) – tinha todos os elementos de prova que serviram de base à decisão, ou seja os referidos laudos. Ao Supremo Tribunal, porém, só lhe é permitido debruçar-se sobre o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos, se estivermos perante um facto de prova vinculada – art. 722° n 2. O que não é a hipótese dos autos”.[13]

Acórdão que ilustra bem como tal entendimento se tem mantido mesmo na vigência do anterior Código de Processo Civil, já que o então art. 712º do CPC, citado neste aresto, reportava-se exactamente aos poderes do Tribunal da Relação quanto à modificabilidade da decisão da matéria de facto.

Ora, sabido que a actual norma do NCPC sobre tal matéria – art. 662º – veio ampliar os poderes do Tribunal da Relação nesta temática, dúvidas não se suscitam nem sobre tais poderes nem sobre a interpretação a dar ao normativo legal em análise e ao real alcance do princípio da livre apreciação da prova que rege a prova pericial.

3. O caso dos autos:

3.1. Posto isto e cotejados os autos constata-se que, conforme se salientou no ponto que antecede, o Tribunal da Relação de Coimbra motivou a sua decisão de eliminação de tais factos provados fundamentando de forma desenvolvida e analítica toda a prova produzida nesta matéria.

Fazendo-o nos termos que a seguir se transcrevem:

“Entende a apelante que se devem considerar como não provados os pontos X), Y), W), Z) e AA), assim também pondo em causa, para os efeitos do artº 140º, nº 2,do CPT, a decisão proferida no apenso.

Pretendendo, com isso, demonstrar que o Autor não logrou demonstrar a existência de nexo de causalidade, directo, certo e total, entre o evento (entorse do joelho direito) sofrido em 2003 e a situação clínica que lhe foi diagnosticada em 2011, na ausência de qualquer informação clínica relativa a esse período de oito anos.

Vejamos:

Importa, antes de mais, sublinhar que, no nosso ordenamento jurídico vigora, o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação quanto à natureza de qualquer delas, e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido.
Assim sendo, o tribunal da 2ª instância ao reapreciar a prova não tem de procurar uma nova convicção mas preocupar-se em saber se a convicção expressa pelo tribunal da 1ª instância tem suporte razoável nos elementos de prova constantes do processo.

Como já referimos em inúmeras decisões proferidas é reconhecida, fora de qualquer dúvida, a necessidade e a importância das juntas médicas, cuja realização é imposta pela própria lei como modo de melhor permitir ultrapassar a discordância de qualquer das partes em relação ao parecer do perito singular.

É sabido, por outro lado, que a decisão final cabe ao juiz, que, embora grandemente ajudado por pareceres de peritos especialistas, não está vinculado a eles, cabendo‑lhe ter em conta todas as circunstâncias que no caso sejam pertinentes (cf. art. 389º do C. Civil).
Como refere Leite Ferreira (Cód. Proc. Trabalho, 1989, 540) as asserções e conclusões dos peritos não vinculam o julgador. O princípio da livre apreciação das provas tem aqui perfeito cabimento. Por isso, pode o magistrado exercer sobre elas a sua actividade crítica, movendo‑se, na sua apreciação, com inteira liberdade e sem outros limites que não sejam os que lhe são impostos pela sua convicção íntima ou pelo seu próprio juízo.

Porém, o julgador, na decisão sobre tais matérias, não deve proceder a uma determinação arbitrária, antes se lhe impondo, mesmo dentro do princípio da prova livre, que ele haja de valorar convenientemente o resultado dos exames médicos e os demais elementos auxiliares de diagnóstico que possam existir. Aliás, tais exames são, na esmagadora maioria dos casos, o único elemento à disposição do julgador.

Tais tipos de questões são de natureza essencialmente técnica, sendo os peritos médicos as  entidades  mais vocacionadas para se pronunciarem sobre elas, só devendo o juiz divergir dos respectivos pareceres quando disponha de elementos que lhe permitam, seguramente, fazê‑lo.

De acordo com o nº 8 da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro, a junta médica deve fundamentar devidamente as suas respostas, de modo explícito e claro por forma a que o julgador possa de todo captar as razões e o processo lógico que conduziu à resposta.

Acresce que, sendo a junta médica presidida pelo juiz (artº 139º do CPT) impõe-se que este interpele os peritos médicos no decurso desse exame, formulando novos quesitos ou pedindo esclarecimentos sobre aquela matéria, ou, se necessário, que determine a realização de exames e/ou pareceres complementares, sob pena de no momento da elaboração da sentença não estarem reunidos – como não estão – todos os elementos de facto necessários para a fixação do grau de desvalorização do sinistrado.

Como se refere no Ac. da Relação de Lisboa de 10/5/2006, proc. 1958/06-4, in www.dgsi.pt, e para cuja fundamentação exaustiva remetemos, nada obsta a que o julgador se desvie dos pareceres de alguns peritos e até dos pareceres da maioria dos peritos que foram chamados a pronunciar-se sobre a situação clínica do sinistrado e opte por um parecer de apenas dois peritos. Apenas se exige, nesses casos, que o juiz deixe consignada nos autos a sua motivação, isto é, os fundamentos ou razões por que o fez e que seja convincente nessa motivação. Exige-se, sobretudo, que o julgador, nesses casos, esclareça as razões que o levaram a basear a sua convicção num parecer que não se encontra fundamentado e a desprezar todos os demais pareceres.

Na sua contestação, a Ré indicou, para efeitos da realização de junta médica, a que se procedeu no apenso, os seguintes quesitos:

“1º ) Que lesões ou sequelas vieram a decorrer para o autor do acidente de trabalho sofrido em 01/02/2003?

2º) A actual situação nosológica do autor é, toda ela, decorrente do referido acidente de trabalho?

Pede-se resposta fundamentada e discriminada.

3º) O autor é portador de alterações degenerativas, pré-existentes à data do acidente? E supervenientes à mesma data? Em caso afirmativo, pede-se resposta fundamentada.

4º) O autor é hoje portador de alguma incapacidade permanente?

5º) Em caso de resposta afirmativa ao quesito anterior, tendo em consideração que o autor teve alta clínica em 21/07/2003, após os tratamentos que efectuou por força do referido acidente, é possível afirmar com segurança que tal eventual incapacidade era já existente naquela data?

6º) Em face dos elementos de que os autos disponham, é de admitir que, à data da alta, o autor estivesse recuperado e em condições de retomar a sua actividade profissional?

7º) Em caso de resposta afirmativa ao quesito anterior, à data da alta o autor estava curado e sem qualquer desvalorização?”.

Por outro lado, é o seguinte o teor dos pontos 9, 10, 13, 15, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 da base instrutória:

“9- Os tratamentos de medicina física e de reabilitação não tiveram sucesso, tendo o autor continuado a sentir fortes dores no seu joelho direito?

10- Até que, no dia 26.02.2003, foi feita uma ressonância magnética ao joelho direito do autor, que revelou uma desinserção supra meniscal do feixe profundo do ligamento lateral interno e laxidão do ligamento cruzado anterior?

13- Durante a intervenção foi efectuada uma reinserção do menisco ligamentar do ligamento lateral interno e tensão do ligamento cruzado anterior do joelho direito?

15- No entanto, o sinistrado continuou sempre a sentir dores na zona da lesão e nunca recuperou totalmente a massa muscular do membro inferior direito?

17- O sinistrado continua a sentir fortes dores no seu joelho direito e a padecer de limitações graves ao nível da sua mobilidade?

18- O sinistrado é actualmente portador das seguintes sequelas: Instabilidade do joelho direito com atrofia muscular da coxa direita (1 cm – sinistrado dextro), rigidez do joelho direito com ligeira limitação dos movimentos passivos de flexão, limitação da hiperextensão, limitação da flexão em carga do joelho direito, crepitação no joelho direito com os movimentos, agravamento das alterações degenerativas e gonalgia esquerda?

19- Para além disso, o sinistrado apresentas como sequelas: “Membro inferior direito: Dor articular (interlinha interna e externa) laxidez moderada do LLI e ligeira do LCA e flexão limitada a 120º, sem amiotrofia ou derrame articular?,

20- Apresentando gonalgia residual com laxidez antero interna moderada?

21- Pelo que tendo em conta o tipo de actividade do sinistrado que implica permanente esforço, carga e equilíbrio dos membros inferiores, as sequelas resultantes do acidente, determinaram uma diminuição da função necessária e imprescindível ao bom desempenho da sua actividade?

22- Pelo que o sinistrado sofre de IPP de 10% desde 22.07.2003?

Foram as seguintes as respostas dos Srs. peritos:

- aos referidos pontos da base instrutória:

“9º - Sim.

10º - Sim.

13° - Sim.

15°-Sim.
17° - As sequelas que o sinistrado apresenta são as acima descritas.

18° - Respondido no ponto anterior.

19° - Respondido no ponto 17°.

20º -  Respondido no ponto 17°.

21° - Sim.

22° - I.P.P. de 7,5% desde 2 1/07/2003”.

- aos quesitos formulados pela seguradora:

“1 - As descritas a fis. 80 dos autos principais.

2 - Sim de acordo com elementos disponíveis nos autos.

3 - Desconhecemos qualquer alteração degenerativa à data do acidente.

4 - Sim.

5 - Não.

6 - Sim com limitação.

7 - Estava curado com as sequelas acima descritas determinantes da I.P.P. atribuída”.

Por sua vez, a fls. 80 consta exame efectuado no gabinete Médico-Legal de Leiria do Instituto Nacional de Medicina Legal, de onde consta designadamente o seguinte:

“A informação sobre o evento, a seguir descrita, foi prestada pelo examinado, que é dextro.

A.. SITUAÇÃO ACTUAL (descrição das lesões e respectivas sequelas anatómicas e disfunções)

O sinistrado refere ter sido vítima de acidente de trabalho no dia 17.01.2003 quando se encontrava a treinar, torceu o joelho direito, que lhe desencadeou fortes dores que o impediram de prosseguir com o treino.

Iniciou tratamento conservador no departamento clínico do clube, os quais se revelaram infrutíferos. Realizou uma RMN que revelou desinserção suprameniscal do feixe profundo do LU e laxidão do LCA, bem como alterações degenerativas do menisco interno.

A 25.03.2003 foi sujeito a artroscopia no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa, tendo sido sujeito a tensão do LCA e reinserção do LU, seguida de fisioterapia intensiva.

Veio a ter alta curado sem desvalorização em 21.07.2003

A RMN efectuada em Fevereiro de 2011 revela alterações degenerativas meniscais, laxidão do LCA e espessamento do LLI.

ESTADO ACTUAL

Actualmente refere dificuldade em subir e descer escadas (+ + na subida), sensação de pressão constante sobre o joelho; o joelho incha-lhe com frequência; dor localizada ao joelho que agrava com as mudanças de tempo e com o início da marcha; nunca mais voltou a jogar futebol, pois não conseguia obter o mesmo rendimento, ao fim de 10 minutos fica logo cansado. Dificuldade em correr, acocorar-se e ajoelhar-se. Dificuldade na condução prolongada. Sensação de instabilidade.

Foi solicitada a observação por consultor em ortopedia, cujo relatório se anexa e aqui se dá por reproduzido na íntegra.

Actualmente apresenta as seguintes sequelas: gonalgia residual com laxidez antero interna moderada”.

Ora o que ressalta logo das referidas respostas e laudo de fls. 80 é a total ausência de fundamentação em relação aos motivos pelos quais os Srs. peritos entenderam que as lesões que o sinistrado apresenta se devem ao acidente pelo mesmo sofrido e, sobretudo, que das mesmas resulta a incapacidade fixada, nada referindo acerca de um facto que nos parece assaz relevante, quiçá decisivo: o sinistrado não ter – pelo menos não o alegou-, durante  cerca de 8 anos  recorrido aos serviços clínicos da seguradora ou a quaisquer outros, incluindo  do clube – O Belenenses, ao serviço do qual sofreu o acidente, como seria curial que acontecesse. Tanto mais que, enquanto jogador de futebol, continuou a desempenhar a sua actividade – ponto DD) da matéria de facto.

Já tal aspecto é devidamente valorado naquele que nos parece ser um depoimento rigoroso de quem tem um percurso profissional nacionalmente reconhecido no âmbito da avaliação do dano corporal – a testemunha DD, médico, presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses durante 13 anos, e previamente director do Instituto de Medicina Legal de Coimbra.

Tal médico, embora não tenha observado directamente o sinistrado, teve acesso a toda a documentação clínica do mesmo.

Do seu completo e rigoroso testemunho há que reter as seguintes passagens, que reflectem as ideias e ponderações pelo mesmo exaustivamente expressos:

- “Não tenho qualquer dúvida em considerar que um entorse do joelho pode produzir o tipo de lesões que foram observadas na altura, pode eventualmente produzir o tipo de sequelas que hoje a pessoa manifesta. Depois tem que haver uma adequação entre a sede do traumatismo e a sede da lesão”;

-“Agora depois o que tem que haver também é o encadeamento anátomo-clínico e uma adequação temporal, tal como uma exclusão de uma causa … estranha ao traumatismo. Isto é que não se cumpre. Não há um encadeamento anátomo-clínico. Nós não poderemos ligar uma situação onde há 8 anos de intervalo silencioso, sem nenhum tipo de queixa, sem nenhum tipo de exame complementar de controle, continuando a pessoa a exercer a sua profissão, e seguramente praticando dezenas de jogos porque era atleta profissional e num clube que na altura, penso eu, admitiria até, na 1ª Divisão, ou na 2ª, não sei mas, mas que jogava na liga profissional, uma pessoa não pode estar 8 anos com um interregno total e passado 8 anos … Não há encadeamento anátomo-clínico”;

-“(...) não há ao longo destes anos, pelo menos não encontrei no processo, mas se aparecer e se houver, eu aí poderei, obviamente, rever a minha posição, se houvesse ao longo destes anos vigilância periódica daquele joelho, ressonâncias periódicas, queixas periódicas, exames médicos, era porque alguma coisa se tinha mantido, e aí sim, haveria uma relação entre a situação actual que foi progredindo ao longo do tempo, e esta situação verificada em 2011. Agora um silêncio absoluto, um intervalo clínico absoluto, uma total ausência de queixas de elementos clínicos, de análises, de exames complementares durante estes 8 anos e ao fim de 8 anos aparecer, depois de dezenas … dezenas, imagino eu, de jogos profissionais, praticados entretanto, valha-me Deus, não há encadeamento. Não há adequação … temporal, não há também, não há também a possibilidade de excluirmos uma outra causa estranha ao traumatismo”;

- “É que muitas vezes nós estamos a analisar a situação mas apenas com base nas declarações do sinistrado, daquilo que se ouve, sem termos todo historial, sem termos toda a documentação, sem termos todo este background, e por exemplo, se eu aqui não soubesse que havia aqui um intervalo de 8 anos, com prática desportiva, com o exercício da actividade, etc., isto já poderia condicionar uma avaliação e a pessoa pensar que de facto, houve sempre uma continuidade sintomatológica e só por aquilo que se ouviu, e não ter elementos que são fundamentais aqui para uma apreciação correcta e imparcial”.

Por outro lado, salienta que a intervenção cirúrgica realizada em 25/3/2003 – factos Q) e R), conduziu  a que “que os ligamentos consolidaram e fixaram bem”, e “que a intervenção ficou muito bem feita”.”(...) é que nós temos aqui uma ressonância de 3/7/2004 que é absolutamente taxativa, que mostra, não evidencia qualquer patologia relevante, que evidencia apenas discretas alterações.

Resulta, assim, desse depoimento, que não é possível, face às dúvidas manifestadas e à impossibilidade de as desfazer, atento o período temporal decorrido, que as lesões sofridas pelo sinistrado no acidente tenham qualquer nexo causal com a incapacidade agora atribuída.

E a própria junta médica refere que não é possível afirmar com segurança que tal incapacidade era já existente àquela altura.

Acresce que as testemunhas EE e FF, fisioterapeutas do Belenenses, afirmaram que nada sabem acerca da situação clínica após o Autor ter deixado de jogar no clube; por sua vez, a testemunha GG, médico do Belenenses que operou o sinistrado declarou que não mais observou aquele.

O parecer junto pelo sinistrado com a participação também não aborda este relevante questão do período do temporal decorrido.

Assim sendo, e por ausência de uma prova minimamente segura, porque não baseada em pareceres ou relatórios clínicos devidamente fundamentados e inequívocos, há que julgar procedente a impugnação da matéria de facto, eliminando-se os referidos pontos X), Y), W), Z) e AA) da factualidade dada como provada” – (sublinhado nosso).

3.2. Resulta do exposto que, ao contrário do que foi alegado pelo Recorrente, a divergência expressa pelo Tribunal da Relação mostra-se fundamentada. Fundamentação elaborada de forma exaustiva e criticamente.

E como a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da decisão da matéria de facto, está limitada às situações previstas no art. 674º, nº 3 e 682º, nº 3, ambos do NCPC, v.g., em que ocorra ofensa do direito probatório material que, repete-se, não ocorreu, não pode proceder a revista quanto à pretendida alteração da decisão.

Acresce que a Relação sustentou a alteração da matéria de facto, e eliminação dos referidos pontos, na apreciação que fez da prova pericial e na demais produzida que, como se viu, é de livre apreciação do Juiz. E, no caso sub judice, de um colectivo de Juízes, pelo que não lhe pode ser vedada a possibilidade de proceder a essa apreciação e a criação de outra convicção.

Face à cuidada apreciação que foi feita pela Relação no total das provas produzidas, o resultado descrito a que o Tribunal da Relação chegou, no uso e observância legal dos seus poderes, é insindicável.


Destarte, e pelas razões aduzidas supra e que aqui se renovam, não podemos deixar de concluir que, in casu, não se verifica a violação de qualquer preceito de natureza adjectiva ou de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova em resultado da exclusão, pela Relação, de alguma matéria inserida pela 1ª instância nos pontos fácticos provados.

3.3. Por outro lado, apesar de estar em causa na presente acção um alegado acidente de trabalho, cujos direitos são tutelados por serem direitos indisponíveis, não altera o que se expôs no domínio da prova dos factos e da força probatória dos meios de prova envolvidos e carreados nos autos.

Com efeito, a indisponibilidade de um direito significa que o seu titular não pode privar-se dele, por simples acto da sua vontade, v.g., renunciando.

Trata-se de direitos de que o titular não pode dispor sendo inalienáveis devido à sua natureza e que a lei protege fixando o seu regime.

Porém, no caso concreto, nada na lei impede a prova desses direitos ou a limita, uma vez que a ressalva da confissão estabelecida legalmente para as situações em que esta é efectuada contra o confitente, e nos precisos termos estatuídos no art. 354º, alínea b), do CC, não está aqui em causa.

Por conseguinte, e sem necessidade de mais considerações, improcede o recurso na parte em que o Recorrente impugna a decisão da matéria de facto devido à alteração efectuada pelo Tribunal da Relação.

4. Quanto à ressarcibilidade do acidente:

4.1. O Autor centrou o seu recurso de revista essencialmente na questão da ilegalidade da reapreciação da matéria de facto pela Relação, que conduziu a que esta eliminasse os referidos pontos de facto, relativos à prova pericial realizada.

Pretendia ver alterado/reposto o circunstancialismo fáctico provado pela 1ª instância, nos seus precisos termos, para, posteriormente, alcançar uma solução diferente do presente pleito no âmbito da aplicação do direito, e que lhe fosse favorável.

Soçobrada a sua pretensão no ponto que antecede, e subscrevendo-se a circunstanciada fundamentação fáctica e jurídica que antecede, bem como o juízo decisório que nela se suporta, não se antolham razões jurídicas válidas para decidir diferentemente.

4.2. Falece, por consequência, a presente revista, improcedendo o recurso.

5. Nesta medida, prejudicadas ficam as restantes questões, nomeadamente a do abuso de direito.

IV – DECISÃO:

- Termos em que se acorda em negar a revista com os presentes fundamentos, confirmando-se o Acórdão recorrido.

- Custas pelo Recorrente, parte vencida.

- Anexa-se sumário do presente Acórdão.

Lisboa, 14 de Julho de 2016.

Ana Luísa Geraldes (Relatora)

Ribeiro Cardoso

Pinto Hespanhol

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[1] Cf. neste sentido, por todos, José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, Coimbra Editora, págs. 645 e segts., reiterando a posição anteriormente expressa por Alberto dos Reis, in “CPC Anotado”, Vol. V, pág. 143, e que se mantém perfeitamente actual nesta parte, em face dos preceitos correspondentes e que integram o Novo CPC.
[2] Pertencem ao Novo Código de Processo Civil todas as demais normas citadas sem qualquer outra indicação.
[3] Cf. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7ª Edição, pág. 233. Comentário com plena actualidade já que tal norma tem correspondência no art. 662º, nº 4, do NCPC.
[4] Neste sentido, cf. António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2016, 3ª Edição, págs. 367 e segts. Sublinhado nosso.
[5] Acórdão proferido no âmbito do processo nº 1391/13.9TTCBR.C1.S1, Relatado pela presente Relatora e disponível em www.dgsi.pt. Cf. tb, sobre a mesma matéria, o Acórdão desta Secção, do STJ, datado de 30 de Junho de 2016, proferido no âmbito da Revista nº 506/12.9TTTMR-A.E1.S1, da mesma Relatora.
[6]Acórdãos proferidos no âmbito dos processos nº 802/13.8TTVNF.P1.G1.S1 e nº 487/14.4TTPRT.P1.S1, ambos relatados pela aqui Relatora.
[7] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, fls. 32 e segts. Sublinhado nosso.
[8] No mesmo sentido, cf. António Santos Abrantes Geraldes, Ibidem, págs. 241 e segts.
[9] Neste sentido cf. Antunes Varela e Pires de Lima, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Julho de 1979, pág. 316. Sublinhado nosso.
[10] Citando neste sentido um Acórdão do STJ, datado de 30/12/1977, in BMJ., nº 271, pág. 185.
[11] Neste sentido, cf. Rita Gouveia, in “Comentário ao Código Civil – Parte Geral”, Universidade Católica Editora, 2014, págs. 882 e 883. Sublinhado nosso.
[12] Que se cita, a título exemplificativo, pela sua pertinência tendo plena actualidade não obstante se reportar a preceitos entretanto alterados pelo NCPC, mas cujos princípios se mantêm.
[13] Neste sentido, cf. Acórdão do STJ, supra citado, datado de 15/01/2004, proferido no âmbito do processo nº 03B3504, Relatado por Bettencourt de Faria e disponível em www.dgsi.pt.