Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1082/17.1T8VCT.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SINISTRADO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
COMPENSAÇÃO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / RECURSO PER SALTUM PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 678.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 495.º E 496.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º6/2014, IN DR DE 22-05-2014;
- DE 28-03-2019, PROCESSO Nº. 1120/12.4TBPTL.G1.S1.
Sumário :
I - O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.6/2014 (publicado no Diário da República de 22.05.2014), não tem aplicação expressa ao pedido de indemnização por danos morais dos filhos menores do sinistrado sobrevivente de um acidente de viação.
Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. AA, BB e CC propuseram a presente ação em tribunal[1] contra o Fundo de Garantia Automóvel e DD, visando ser ressarcidos pelos RR dos danos não patrimoniais que sofreram em virtude das graves ofensas à integridade físico-psíquica sofridas pelo seu pai. Peticionaram o pagamento de €30.000,00 cada um[2], acrescida de juros à taxa legal até ao respetivo pagamento.

Alegaram, resumidamente, que em consequência do acidente sofrido pelo respetivo pai [EE], causado pelo segundo réu, o sinistrado sofreu politraumatismos com traumatismo crânio encefálico grave; apresenta deformidade grosseira do crânio ao nível da região fronto-temporo-occipital direita, não mobiliza os membros, mantém a boca aberta e a língua desidratada. É alimentado por sonda gástrica, está traqueostomizado permanentemente, embora sem necessidade de apoio ventilatório e usa fralda. Nunca mais falou, não interage com as pessoas, nem cumpre ordens, apenas abrindo espontânea e ocasionalmente os olhos. E, a final, ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 100 pontos, sendo as sequelas de que padece impeditivas para o exercício de qualquer atividade profissional. Os AA. alegaram, assim, factos que entendem configurar danos de natureza não patrimonial particularmente graves, merecedores da tutela do direito.

Acrescentam os AA. que todos os factos por si narrados foram dados como provados por sentença de 08.11.2016, proferida no processo 1997/15.1T8VCT – Instância Central de Viana do Castelo, Secção Cível J3, cuja matéria de facto não foi objeto de recurso.

A também autora, entretanto falecida, FF, alegou que vivia em condições análogas às dos cônjuges com EE. Vivência essa que se iniciou após o casamento contraído por ambos em 22.08.1998, depois dissolvido por divórcio, decretado por sentença de 04.12.2000 (transitada em julgado em 14-12-2000). Não obstante o divórcio, realizado de forma imponderada, a vivência em comum nunca cessou, mantendo-se de forma contínua e ininterrupta.

Da vivência em comum entre a falecida autora e o sinistrado EE, nasceram os três filhos, autores nos presentes autos.

Acrescentam os AA. que, nos termos do n. 1 do art. 62º do Dec. Lei nº 291/2007, “As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade”.

Assim, a responsabilidade pelo pagamento das indemnizações devidas, em virtude dos danos verificados, impende sobre o R. DD, como responsável direto pelos mesmos, nos termos do artigo 483º nº 1 do Código Civil. Mas tal responsabilidade também impende sobre o R. Fundo de Garantia Automóvel, dado que o condutor do veículo que vitimou EE não era titular de seguro válido.

Os autores juntaram, com a sua petição, cópia da sentença proferida nos autos com o n.1997/15.1T8VCT da Instância Central de Viana do Castelo, que o sinistrado EE moveu contra o FGA e DD [que condenou os RR a pagar, solidariamente, ao autor as quantias de €149.834,00 e €250.000,00 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais], na qual se dão como provados factos que sustentam a responsabilidade do 2º réu pelo acidente que vitimou gravemente o pai dos autores e se dá também como provado que esse réu não se encontrava habilitado à condução de qualquer veículo motorizado.

2. O Fundo de Garantia Automóvel contestou, dizendo, em síntese, que do disposto no art. 483º n.1 do Código Civil resulta que em caso de responsabilidade civil extracontratual o lesado é o titular do direito que é violado pela conduta do agente. Estão aqui apenas incluídos, em princípio, os danos causados diretamente pela conduta do agente. Por outro lado, tendo o legislador definido quais os familiares que têm direito a serem indemnizados em caso de morte da vítima, não o fez para o caso de a mesma não haver falecido, o que também aponta para a interpretação no sentido de não ter querido admitir a ressarcibilidade deste tipo de danos. Foi assim uma opção consciente do legislador. Conclui o FGA dizendo que, sendo os danos não patrimoniais alegados como tendo sido sofridos pelos aqui Autores reflexos ou indiretos em relação aos danos sofridos pelo lesado EE e não estando aqueles danos integrados nos previstos no n.2 do artigo 495º do CC, não podem os mesmos ser ressarcidos, devendo assim improceder in totum o pedido formulado na presente ação.

 3. No despacho saneador, com base no art.595, n.1, al. a) do CPC, a primeira instância conheceu do mérito da causa e concluiu pela improcedência da ação, com a fundamentação que se transcreve:

«A respeito dos danos não patrimoniais, o Estudo/ Projeto de Vaz Serra, incluía, no artigo 759.º, o § 5 (que se pode ver no BMJ, n. 101, página 138), assim redigido: “No caso de dano que atinja uma pessoa de modo diferente do previsto no § 2.º, têm os familiares dela direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado. Aplica-se a estes familiares o disposto nos parágrafos anteriores; mas o aludido direito não pode prejudicar o da vítima imediata”. Este texto não passou para o Código Civil, sendo ignorado nos artigos 483º nº 1 e 496º. No n.º 3 (agora nº 4) deste último consignou-se mesmo que: “… no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior”. Face ao constante do projecto e, bem assim, ao acabado de transcrever, podemos mesmo inferir que a lei trouxe consigo a opção consciente pela recusa relativamente à tutela de direitos não patrimoniais de pessoa diferente da vítima, quando esta se mantém viva.

Logo, porém, Vaz Serra (RLJ, Ano 103, 14) defendeu interpretação extensiva dos, então recentes, preceitos legais em ordem a manter-se a orientação que revelara no texto do projecto. Entretanto foi decorrendo o tempo e intensificou-se o entendimento no sentido de que o mencionado artigo 496º e, bem assim, os preceitos com ele relacionados, devem ser interpretados em ordem a encerrarem, pelo menos nos casos mais graves, a compensabilidade dos danos não patrimoniais sofridos por pessoa diferente da vítima, quando esta se mantém viva.

Numa visão, os danos não patrimoniais sofridos por pessoa diferente da vítima sobrevivente são encarados sempre como “reflexos”, “indirectos” ou “por ricochete”. Haveria o “lesado directo” e o “lesado indirecto”. Noutros entendimentos, porém, o leque de direitos desta pessoa diferente da vítima sobrevivente já abrangeria o direito a uma relação plena, saudável, com a mesma, de sorte que, com o atingimento desta, se desenharia um quadro de ofensa directa aos direitos daquela. Os danos não seriam “reflexos”, mas “directos” e não se deveria falar em “lesado directo”, contraposto a “lesado indirecto”.

Casos há, efectivamente, em que a relação entre o dano provocado a uma pessoa que se mantém viva e o sofrimento também infligido a outra é tão estreita, que se pode dizer que o atingimento desta tem lugar, se não necessariamente, pelo menos em regra.

Apontam-se como exemplo as situações em que alguém presencia ofensa de intensa gravidade a pessoa relativamente à qual tem uma relação de muita afectividade ou em que um cônjuge vê o outro sexualmente afectado. Neste entendimento, quando o artigo 483º nº 1 do Código Civil alude a “outrem”, abrangeria os casos em que o atingimento duma pessoa também provocava danos noutra. A abrangência não determinava sequer interpretação extensiva deste ou do nº 1 do artigo 496º, tudo repousando na relação de causalidade.

Não pode “abrir -se” a compensabilidade a todos os que, chegados ao lesado, sofram com o que aconteceu a este.

No reverso, não pode questionar-se que, para além do cônjuge, outros podem e devem beneficiar da tutela deste tipo de danos.

O Tribunal tem de concordar com o FGA: sendo os danos não patrimoniais alegados como tendo sido sofridos pelos aqui Autores reflexos ou indirectos em relação aos danos sofridos pelo lesado EE e não estando aqueles danos integrados nos previstos no nº 2 do artigo 495º do CC, não podem os mesmos ser ressarcidos.

Da matéria de facto alegada, não resulta que algum dos aqui AA. esteja “…vinculado a um dever de auxílio e assistência…” e, bem assim, que tenha sido alegado que os AA. viram “…drasticamente comprometidas as suas normais possibilidades de realização pessoal, em termos de tal afectação traduzir lesão de um direito subjectivo próprio de personalidade - a qual fundamenta, em termos bastantes, a atribuição da indemnização pelo dano moral próprio sofrido".

Assim sendo, decide-se julgar totalmente improcedente a ação, absolvendo os RR. integralmente do pedido

4. Inconformados com a decisão, os Autores interpuseram recurso de revista per saltum, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
a) « O douto saneador-sentença do qual se recorre foi insensível à argumentação dos autores, que era respaldada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 16-01-2014, proferido no âmbito dos autos 6430/07.0TBBRG.S1 - o qual foi, desde logo invocado no introito da petição -, julgando a acção improcedente, concluindo, enfim, ser de “inferir que a lei trouxe consigo a opção consciente pela recusa relativamente à tutela de direitos não patrimoniais e de pessoa diferente da vítima, quando esta se mantém viva”, não podendo “abrir-se a compensabilidade a todos os que, chegados ao lesado, sofram com o que aconteceu a este”.

b) No seu labor argumentativo – que de forma genérica faz eco das declarações de vencido exaradas no mencionado AUJ - o Tribunal a quo frisou a sua concordância com o réu FGA, no sentido de que “sendo os danos não patrimoniais alegados como tendo sido sofridos pelos autores reflexos ou indirectos em relação aos danos sofridos pelo lesado EE e não estando aqueles danos integrados nos previstos no n.º 2 do artigo 495.º do C.C., não podem os mesmos ser ressarcidos”, sustentando ainda que “da matéria de facto alegada, não resulta que algum dos aqui AA. esteja vinculado a um dever de auxílio e assistência e, bem assim, que tenha sido alegado que os AA. viram drasticamente comprometidas as suas normais possibilidades de realização pessoal, em termos de tal afectação traduzir lesão de um direito subjectivo próprio de personalidade – a qual fundamenta, em termos bastantes, a atribuição de indemnização pelo dano moral próprio sofrido”.

c) Este último trecho, que constitui o remate do douto saneador-sentença, encerra uma manifesta inverdade a até deslealdade para com tudo quanto se alegou na petição, cuja súmula se aduziu no corpo das alegações, conforme melhor descrito nos artigos 55.º a  88.º, da petição, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

d) Com o devido respeito, a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo traduz uma afronta à interpretação atualista dos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil, tal como preconizada no mencionado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência datado de 16-01-2014, proferido no processo 6430/07.0TBBRG.S1.

e) O que é tanto mais delicado na medida em que “os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência, conquanto não tenham a força obrigatória geral que era atribuída aos Assentos pelo revogado art. 2º do CC, têm um valor reforçado que deriva não apenas do facto de emanarem do Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, como ainda de o seu não acatamento pelos tribunais de 1ª instância e Relação constituir motivo para a admissibilidade especial de recurso, nos termos do art. 629º, nº 2, al. c), do CPC” – vd., a este propósito, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12-05-2016, Proc. 982/10.4TBPTL.G1-A.S1., disponível em www.dgsi.pt.

f) No caso concreto, impunha-se acatar o entendimento alcançado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência datado de 16-01-2014, proferido no processo 6430/07.0TBBRG.S1, no qual se sumariou que “os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”.

g) Com efeito, como superiormente discorrido no mencionado AUJ, a função dinamizadora e modeladora do direito, assim como a orientação seguida nesta matéria noutros países com os quais temos particular afinidade, justifica que se vá para uma interpretação actualista do n.º 1 do artigo 483.º e do n.º 1 do artigo 496.º, em ordem a considerar tutelados os danos reivindicados pelos autores nos artigos 55.º a 88.º da petição.

h) Sublinhando-se que, tal como referido no douto saneador-sentença recorrido – com o que se concorda – não pode questionar-se que, para além do cônjuge, outros podem e devem beneficiar da tutela deste tipo de danos, em particular, os autores AA, BB e CC, filhos do malfadado EE.

i) Toda a argumentação que justifica a interpretação actualista assumida no AUJ em causa, tem como pressuposto que os danos do lesado sejam particularmente graves e que tenham determinado no(s) outro(s) sofrimento muito relevante, o que se alegou, respectivamente, nos artigos 22.º a 36.º e 55.º a 88.º da petição, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

j) Não podendo deixar de se salientar que os factos atinentes à situação de saúde do EE - assim como aqueles que concretizam a dinâmica do acidente e a culpa na sua produção, narrados nos artigos 3.º a 21.º da petição -, foram dados como provados por sentença datada de 08-11-2016, proferida no processo 1997/15.1T8VCT – Instância Central de Viana do Castelo, Secção Cível J3, notificada às partes em 09-11-2016, sendo certo que nos subsequentes recursos de apelação não se pugna por qualquer alteração da matéria de facto (vd. artigos 3.º a 21 e 37.º da petição).

k) Pelo que se impunha, no caso vertente, produzir a competente prova, com vista a apurar se as lesões que o sinistrado sofreu foram efectivamente graves – entendendo nós, desde já, que foram gravíssimas, nos termos expostos –, com natural salvaguarda do valor de caso julgado, e apurar se foi grave o sofrimento que tais lesões determinaram relativamente ao cônjuge e filhos – entendendo nós, igualmente, que tal sofrimento foi, é e será, no caso dos autores menores, gravíssimo.

l) No caso dos danos como os que foram colocados à apreciação do Tribunal, estamos a lidar com sofrimentos intensíssimos, arrastando toda uma alteração de vida, com perda quase total de momentos positivos e de liberdade pessoal, no caso particular da autora FF (que conviveu cerca de dois anos e meio com esta situação – 19-03-2015 a 20-09-2017) e com forte trauma psicológico, angústia e privações severas, nomeadamente do acompanhamento, amparo, assistência, carinho e afecto por parte do pai sinistrado em relação aos autores menores, precisamente na idade em que estes mais precisavam daquele.

m) Produzida a respectiva prova, como certamente se promoverá, impor-se-á, indubitavelmente, a compensação.

n) Nos termos do n.º 1 do artigo 678.º do CPC, requer-se que o recurso seja admitido na modalidade de Recurso per Saltum para este Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que se encontram preenchidos os pressupostos legais enunciados no artigo 678.º do CPC, porquanto o valor da causa é superior à alçada do Tribunal da Relação, o valor da sucumbência é superior a metade da alçada da Relação, não pretendendo os recorrentes discutir, por ora, matéria de facto, suscitando, apenas, questões de direito, não existindo quaisquer questões interlocutórias suscetíveis de ser reapreciadas.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, em conformidade com as conclusões que antecedem, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA.»

5. O recorrido Fundo de Garantia Automóvel apresentou contra-alegações, não se opondo a que o recurso fosse interposto per saltum e sustentando, em síntese, a improcedência do recurso.

II. ADMISSIBILIDADE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. Admissibilidade do recurso:

Verificados os requisitos previstos no art.678º do CPC, o presente recurso de revista é admissível per saltum.

2. O objeto do recurso:

Destinando-se o presente recurso a dirimir apenas questões de direito, decorre das conclusões das alegações dos recorrentes, que a o objeto do recurso é o seguinte:

- Saber se os autores têm direito a compensação por danos não patrimoniais resultantes do grave estado de incapacidade em que ficou o seu pai, vitima do acidente de viação pelo qual os réus foram responsabilizados.

3. A factualidade apurada:

A factualidade relevante é a que resulta do relatório supra.

4. O direito aplicável

4.1. O dano moral invocado pelos autores não decorre direta e tipicamente de um ato ilícito praticado pelo réu condutor do veículo.

Decorre, sim, do sofrimento pelo sofrimento alheio, ou seja, resulta do facto de os autores (ainda menores) constatarem o estado de grave incapacidade e inerente sofrimento em que o seu pai ficou em consequência do acidente de viação, depois de consolidada a sua situação clínica. Os menores ficaram, assim, privados do convívio normal que teriam com o pai, se este não tivesse sofrido o acidente.

4.2. Antes de se poder aferir dos concretos danos alegados pelos autores, importa questionar se a correspondente tipologia de danos encontra acolhimento normativo no quadro legal que disciplina a matéria da responsabilidade por factos ilícitos.

Da leitura conjugada dos artigos 483º, 495º e 496º do CC não se identifica previsão normativa que, de modo expresso, contemple a hipótese em equação nos presentes autos.

Se o sinistrado tivesse falecido, o n.2 do art.496º conferiria aos autores o direito a serem indemnizados por danos não patrimoniais próprios. Como o sinistrado sobreviveu, embora tenha ficado numa situação de grave incapacidade, a lei não prevê expressamente a hipótese de outras pessoas, para além do próprio lesado, receberem compensação por danos morais.

Todavia, há que ter presente o decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.6/2014 (publicado no Diário da República de 22.05.2014), no qual se discutiu a possibilidade de compensação de um cônjuge pela afetação pessoal e sofrimento resultantes da grave situação em que se encontrava o outro cônjuge em consequência de um acidente de viação (embora sem, expressamente, tomar partido pela questão dogmática de saber se se trata de compensar um dano reflexo ou um dano próprio).

Nesse acórdão foi formulado o seguinte segmento uniformizador de jurisprudência:

«Os artigos 483.º, n. 1 e 496.º, n. 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave».

4.3. Na sequência deste acórdão, várias decisões do STJ têm reconhecido ao cônjuge do sinistrado sobrevivente o direito a compensação por danos morais decorrentes da situação em que essa pessoa ficou após o acidente.

Veja-se, por exemplo, o ac. do STJ, de 28.03.2019 (relator Tomé Gomes), proferido no processo n. 1120/12.4TBPTL.G1.S1:

«Os danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge do lesado em acidente de viação sobrevivente só merecem a tutela do direito, a coberto do art. 496.º, n.º 1, do CC, à luz do firmado no AUJ do STJ n.º 6/2014, de 09-01-2014, em casos de elevada gravidade dupla, ou seja, quanto às lesões da vítima sobrevivente e quanto ao sofrimento do respetivo cônjuge

4.4. Será possível, no vigente quadro legal, ir mais longe e proceder a uma interpretação atualista dos art.483º e 496º, n.2, como defendem os recorrentes nas suas alegações de recurso, de modo a reconhecer também aos filhos menores do lesado sobrevivente o direito a indemnização por danos morais?

 Deve, desde já, afirmar-se que, se o critério decisório assentar apenas na existência do sofrimento de terceiros, a porta que a jurisprudência abrir para a compensação dos danos morais decorrentes do sofrimento dos filhos do lesado não pode ser fechada aos enteados, aos pais, aos irmãos ou a outras pessoas com profunda ligação vivencial e afetiva com esse lesado.   

As normais regras de experiência em sociedade permitem concluir que, em certos casos, o sofrimento causado aos familiares e amigos mais próximos de um sinistrado grave, decorrente do estado em que essa pessoa fica após o acidente, pode ser mais profundo do que o sofrimento causado pela morte.  Desde logo, por se tratar de um sofrimento permanente e prolongado, decorrente do convívio diário com aquela pessoa, que não é atenuado pelo decurso do tempo, como seria em caso de morte.

Todavia, como foi justificado na sentença recorrida, e como é aprofundadamente referido na motivação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.6/2014 (sem necessidade de aqui repetir essa argumentação), a questão não foi ignorada pelo legislador do Código Civil, que optou por não consagrar essa extensão indemnizatória (que havia sido proposta por Vaz Serra nos trabalhos preparatórios do CC).

De todo o modo, cabe indagar se a porta aberta pelo AUJ n.6/2014 ao cônjuge do lesado não pode ser aberta aos filhos (ou a outras pessoas), dado que esta decisão não excluiu tal possibilidade

Afirmou-se na fundamentação desse acórdão:
«Casos há, efetivamente, em que a relação entre o dano provocado a uma pessoa que se mantém viva e o sofrimento também infligido a outra é tão estreita, que se pode dizer que o atingimento desta tem lugar, se não necessariamente, pelo menos, em regra
Afirmou-se também: «(…) não pode questionar-se que, para além do cônjuge, outros podem e devem beneficiar da tutela deste tipo de danos. Todavia, não nos compete determinar aqui quais, dos chegados ao lesado, podem pedir compensação pelo sofrimento próprio. Estaríamos a ir para além do objeto do processo e a invadir terreno próprio do poder legislativo. O que temos de deixar bem claro é que a nossa referência ao cônjuge não pode ser interpretada como excluidora de outros»
E afirma-se ainda: «(…) Temos de ter sempre presente que estamos a abrir uma brecha na dogmática geral de que é a vítima, se sobreviver, a pessoa a indemnizar. (…) Por isso, entendemos dever reservar a extensão compensatória apenas para os casos de particular gravidade. Decerto que, com esta posição, fica uma linha delimitadora algo incerta. Nalguns casos a subsunção é evidente, mas noutros será sempre exigido esforço jurisprudencial. Contudo, cremos não poder nem dever ir mais além na tentativa, que seria vã, de procurar nitidez. O que cremos dever ser precisada é a exigência de particular gravidade em duas vertentes: uma, quanto aos ferimentos da vítima sobrevivente e outra quanto ao sofrimento do cônjuge. Geralmente uma determina a outra mas pode assim não ser e a argumentação no sentido da interpretação atualista só se concebe, verificadas as duas

4.5. Subjacente a esta solução excecional (assente na factualidade provada nesse caso) está a ideia de que a situação em que o cônjuge marido ficou, após o acidente, afetou gravemente aquilo que seria o curso normal da vida da sua mulher, nomeadamente pelo facto de esta lhe passar a prestar assistência permanente (afirmando-se, na factualidade provada, que ela passou a viver para o marido, o qual não tinha qualquer autonomia).

Este tipo de afetação da vida do terceiro (que passa a ter o sinistrado a seu cargo) não tem correspondência no caso concreto, pois, pela diversidade de situações, os filhos menores da vítima não sofrem um tipo de afetação equiparável àquele que esteve subjacente ao AUJ n.6/2014.

Os filhos menores seguirão o seu desenvolvimento e formação, acompanhados por familiares ou tutores, como acontece no caso concreto. É, todavia, inquestionável que serão sempre afetados, de algum modo, no normal desenvolvimento da sua personalidade, pela privação do afeto e do amparo do pai no seu processo de crescimento. 

Todavia, este nível de afetação da vida dos terceiros não é aquele que está subjacente à doutrina emanada do AUJ n.6/2014, o qual exige uma alteração tipologicamente grave do modo de vida do terceiro afetado, como acontece com o cônjuge do sinistrado que passa a dedicar grande parte da sua vida a cuidar do sinistrado sobrevivente.

4.6. Caberá, em primeiro lugar, ao legislador a opção por ampliar o âmbito subjetivo de ressarcibilidade dos dados causados por atos ilícitos (e, nomeadamente, por acidentes de viação); tarefa que o legislador pós Código Civil ainda não reequacionou em termos amplos, embora tenha tido algumas intervenções pontuais, como, por exemplo, a recente intervenção no quadro da responsabilidade civil, acrescentando o art.493º-A ao Código Civil[3].

4.7. Abundante doutrina (que aqui não cabe reproduzir) tem debatido a questão da ressarcibilidade dos danos de terceiros, e um número significativo de opiniões têm propendido para a sua admissibilidade, escudadas em construções dogmáticas de maior ou menor elaboração técnica, mas nas quais se identifica uma ideia comum de que essa ampliação servirá um ideal de justiça para com os terceiros afetados.

À jurisprudência não cabe apoiar ou rebater construções doutrinais. Cabe-lhe fazer justiça, mas também ser prudente.

A ampliação do âmbito subjetivo dos terceiros beneficiários de compensação por danos morais decorrentes das consequências de um facto ilícito (ou de responsabilidade objetiva), sofridos por um familiar ou até por outra pessoa de grande proximidade afetiva, é uma tarefa que, pelas dificuldades próprias da delimitação das suas fronteiras, deve caber, em primeiro lugar, ao legislador.

Trata-se de uma matéria que não pode ser perspetivada apenas do ponto de vista da tutela dos lesados (diretos ou indiretos), mas também do ponto de vista de saber até onde se pretende levar a punição (em sentido amplo) dos lesantes.

Esta equação do equilíbrio dos fatores de tutela e de punição das relações em sociedade cabe, em primeiro lugar, ao legislador. Tal como deve caber ao legislador a definição dos mecanismos de compensação dos terceiros afetados: se a indemnização fica a cargo do património do lesante; se, e quando, é coberta por seguros; ou se deve existir um fundo nacional para prover a indemnização a esses terceiros.

Assim, embora se compreenda, numa perspetiva humanista, a situação dos autores, não existe, no quadro legal vigente, e face à jurisprudência emanada do AUJ n.6/2014, aplicada ao caso concreto, fundamento que permita reconhecer-lhes o direito à indemnização peticionada.

Decisão: Face ao exposto, nega-se a revista, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas: pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que possam beneficiar.

Lisboa, 17 de outubro de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] Os autores são irmãos entre si. A respetiva mãe – FF – foi também autora nos presentes autos, mas faleceu antes de ter sido proferida a sentença.
[2] A autora, entretanto falecida, unida de facto do sinistrado, tinha peticionado a quantia de €50.000,00 a título de danos morais.
[3] Estabelece o n.3 do art.493º-A: «No caso de lesão de animal de companhia de que tenha provindo a morte, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o seu proprietário tem direito, nos termos do n.º 1 do artigo 496.º, a indemnização adequada pelo desgosto ou sofrimento moral em que tenha incorrido, em montante a ser fixado equitativamente pelo tribunal» (aditado pela Lei n.8/2017). Naturalmente que não se pode ver nesta norma a consagração de uma extensão da indemnização de danos morais de terceiros, pois do ponto de vista da titularidade dos direitos de conteúdo patrimonial, o proprietário do animal lesado não pode ser considerado um terceiro.