Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1021/16.7T8CSC.L2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: PROCURAÇÃO
CONTRATO DE MANDATO
MANDATO FORENSE
FORMALIDADES
ADVOGADO
DOCUMENTOS PASSADOS EM PAÍS ESTRANGEIRO
DOCUMENTO PARTICULAR
MANDANTE
ASSINATURA
MEIOS DE PROVA
PATROCÍNIO JUDICIÁRIO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITDO EM JULGADO
Sumário :
I. Procuração e mandato não se confundem: o mandato é um contrato; a procuração é um acto unilateral. O primeiro impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta de outrem; o segundo confere o poder de os celebrar em nome de outrem.

II. Porém, o mandato e a procuração podem coexistir ou andar dissociados: aquele sem esta, esta sem aquele.

III. O que, efectivamente, origina os poderes existentes no mandatário não é a procuração; a procuração, no sistema do CC actual, mais não é que o meio adequado para exercer o mandato; representa apenas a exteriorização do poder negocial que é conferido ao mandatário pelo mandante através do mandato.

IV. Não há motivos para distinguir as formalidades a que obedece uma procuração passada em Portugal de uma procuração passada em França a constituir o mandato forense. Em ambas as situações, apenas ao advogado mandatário compete certificar-se, a si próprio, da identidade e dos poderes do mandante, não podendo terceiros exigir-lhe qualquer documento comprovativo da autoria da assinatura ou dos poderes do signatário.

V. As formalidades previstas no artº 440º do CPC não se aplicam a documentos que servem para a demonstração do patrocínio judiciário, abarcando tal normativo apenas documentos apresentados como meio de prova.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.



I – RELATÓRIO

1. AA intentou acção declarativa de condenação, com a forma de processo comum contra a “Massa Insolvente de Bravos Reais – Compra e Venda de Imóveis, Unipessoal, Ldª, na pessoa da administradora da insolvência BB, e CC e cônjuge, DD, pedindo:

- Que, por ter sido falsamente fabricada a escritura na qual se diz que EE declarou vender a “Bravos Reais – Compra e Venda de Imóveis, Unipessoal Ldª a fracção autónoma designada pela letra “W” do prédio urbano sito na Avenida das ...., nºs. … e … A,  ...., freguesia do  ...., concelho de ..., descrito na … Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº …58, inscrito na matriz predial da União das Freguesias de ... e  ...., seja declarado que é juridicamente inexistente e ineficaz a referida escritura, ordenando-se o cancelamento da inscrição de propriedade objecto da Ap … de 17/9/2010.

- Que, em consequência da procedência do anterior pedido, seja reconhecia e declarada a nulidade e ineficácia da compra e venda objecto da escritura exarada de fls. 19 a 20 vº do Livro de Notas para escrituras diversas número 399, de 7/10/2010, pelo qual a “Bravos Reais – Compra e Venda de Imóveis, Unipessoal, Ldª” declarou vender ao R. CC a aludida fracção, ordenando-se o cancelamento da inscrição do respectivo direito de propriedade a favor deste objecto da Ap. … de 7/10/2010.

- Que, em consequência da procedência dos pedidos anteriores, os R.R. sejam condenados a restituir a fracção aos seus legítimos proprietários, livre e devoluta.

2. Em 7/12/2017 foi proferido o seguinte

Despacho:

“Pelo exposto, verificada a irregularidade da Procuração de fls. 334, sem que o ilustre Mandatário, para tanto notificado, tenha vindo suprir a falta, nos termos do artº 48º nº 2 do CPC declara-se sem efeito tudo o que foi praticado pela autora nestes autos, incluindo a petição inicial.

Condena-se o Ilustre Mandatário da A. nas custas do processo (artº 48º nº 2 do CPC), fixando-se à acção o valor de €50.000,01”.

3. A A. recorreu de tal decisão e o Tribunal da Relação de Lisboa, entendendo não estar verificada a notificação pessoal daquela, decidiu em 28/6/2018:

“Revoga-se a decisão impugnada, devendo os autos prosseguir com a notificação da autora e posterior decisão.

Custas a final pela parte vencida”.

4. Tendo os autos regressado à 1ª instância, foi aí ordenada, em 24/10/2018, a notificação pessoal da A. para os termos do despacho de 27/9/2017, o qual havia concedido àquela “o derradeiro” prazo de dez dias para juntar Procuração e ratificar o processado.

5. A A. foi notificada por carta registada com aviso de recepção, o qual veio devolvido, devidamente assinado.

6. A A. não juntou Procuração.

7. Assim, em 25/1/2019, foi proferido o seguinte Despacho:

“Refªs. 115869574 e 3578662:

Considero a autora notificada pessoalmente da decisão judicial proferida em 29.09.17.


*


Renovo o despacho proferido em 09.12.17” (a referência a 9/12/2017 é um manifesto lapso, pois o despacho foi proferido em 7/12/2017 – cfr. fls. 341 a 344).


8. Inconformados com esta decisão, dela recorreram a A. e o seu Advogado.

9. Em Acórdão da Relação de Lisboa, de 10.11.2020, foi julgada a apelação improcedente e confirmada a decisão recorrida.

10. De novo inconformados com o decidido pela Relação, vieram a Autora e o seu advogado

FF interpor “recurso de revista excecional”, com sustento em que “está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, se deve considerar claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – artº 672º nº 1 do CPC”.

Subidos os autos à Formação (dada a existência de dupla conforme), foi ali decidido que a revista deveria ser admitida, prosseguindo os autos em conformidade.

As alegações de recurso terminam com as seguintes

CONCLUSÕES:

a) O mandato judicial pode ser conferido por mero documento particular nos termos do artº 43º do CPC e artº 116º nº 1 a contrario do Código do Notariado, conjugados com o Decreto-Lei 267/92 de 28/11;

b) A Autora através de documento particular conferiu ao advogado signatário o mandato consubstanciado na procuração de fls. 132;

c) Um documento particular apenas carece de ser assinado pelo seu autor, considerando-se verdadeira a sua assinatura desde que não impugnada, - artºs 373º e 374º nº 1 do Código Civil;

d) A veracidade da assinatura da A. constante da procuração de fls. 132 não foi impugnada nos termos do nº 2 do artº 374º do CC, limitando-se os RR. a suscitarem questões de ordem formal relativamente à procuração;

e) Tal assinatura deve, pois, ter-se como verdadeira, carecendo de fundamento a exigência objeto das decisões das instâncias no sentido de que da mesma constasse a forma como o signatário verificou a identidade da outorgante bem como a sua própria assinatura;

f) O artº 90º nº 2 alínea c) do EOA tão somente determina que o advogado deve verificar a identidade do cliente, não imponto o meio que deve ser usado para tal verificação, cabendo ao advogado, face aos elementos que tenha por bastantes, ter a identidade como demonstrada;

g) O signatário teve por suficiente – tal não tinha, repete-se, que constar do documento – a cópia certificada pela GG do cartão nacional de identidade da Autora;

h) Não carecendo de intervenção notarial, como resulta do disposto no DL 267/92 de 18/11 as procurações para a prática de atos que envolvam o patrocínio judiciário não lhes é aplicável o disposto no artº 46º nº 1 alínea d) do Código do Notariado, como erradamente entendeu o acórdão recorrido, também não se imponha que a procuração fosse assinada pelo próprio mandatário;

i) À fotocópia do cartão de identidade da Autora, a ser necessária para comprovar como é que o signatário verificou a respetiva identidade (que o não era) não é aplicável a exigência do artº 440º do CPC, pois que a mesma não visava a utilização em processo a que seja aplicável o Código do Processo Civil, tendo sido considerada como bastante pelo advogado signatário;

j) Imputa-se ao Acórdão recorrido a errada interpretação e aplicação do disposto nos artºs 43º e 440º do CPC, 373º e 374º do CC, 46º e 116º nº 1 do Código do Notariado, artigo único nº 1 do DL 267/92 de 28/11 e artº 90º nº 2 alínea c) do EOA, a interpretar e aplicar nos termos propugnados nestas alegações e conclusões, nomeadamente no sentido de que

- não é necessário que a procuração forense contenha a referência pelo advogado constituído mandatário à forma como por si próprio foi verificada a identidade dos outorgantes;

- também não é necessário que a procuração forense contenha a assinatura do próprio advogado mandatado;

- não se tornava necessário in casu que o documento que o advogado teve por bastante para ter como verificada a identidade da A. – fotocópia certificada por uma autarquia francesa – contivesse a legalização prevista no artº 440º do CPC;

k) A presente revista deverá, consequentemente, ser concedida, revogando-se o acórdão recorrido com as legais consequências.

Assim se decidindo e com tanto quanto V. Exªs doutamente suprirem, será feita a habitual Justiça!

Houve contra-alegações, ali se pugnando pela improcedência do recurso.

Vistos os autos, cumpre apreciar.


II – Delimitação do objecto do recurso

Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são:

1. Se era necessário que da procuração forense em causa nos autos constasse que o mandatário verificou a identidade do cliente e bem assim a forma como ele próprio verificou tal identidade;

2. Se era necessário que o documento que o advogado teve por bastante para ter como verificada a identidade da sua cliente/Autora contivesse a legalização prevista no artº 440º do CPC.

3. Da litigância de má fé dos Recorrentes.


III - Fundamentação


III. 1. Matéria de facto assente nos autos e com relevância para o seu mérito

A. A factualidade que já consta do relatório supra.

B. Ainda a seguinte:

§ A presente acção foi instaurada em 6/4/2016 e, com a petição inicial, o Mandatário da apelante não juntou a devida Procuração.

§ Já após a Contestação, em 19/5/2016, e não se encontrando ainda nos autos a aludida Procuração, o Tribunal notificou o Advogado subscritor da petição inicial para a juntar e, se necessário, a ratificar o processado.

§ Veio a ser junta (a fls. 132) uma Procuração datada de 10/5/2016, outorgada por “AA” a favor do Exmº advogado, com declaração de ratificação do processado e com a assinatura de “HH”.

§ Em 19/5/2017 foi proferido despacho a ordenar a junção de nova Procuração, com ratificação do processado, “na qual ateste que verificou a identidade da Autora e por que meio e bem assim a veracidade da assinatura daquela, a veracidade do mandato e a extensão dos poderes que lhe são conferidos, com a designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado ou assinado, o nome de quem nele interveio e a sua qualidade, a referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes e a assinatura”.

§ Foi junta, em 2/6/2017, nova Procuração outorgada por “AA” a favor do Exmº advogado, datada de 26/5/2017 (fls. 334), com a menção “II, 26 de Maio de 2017” e a assinatura de “HH”. O Exmº advogado exarou no final: Declaro que verifiquei a identidade e a assinatura da mandante em confronto com fotocópia do cartão de identidade supra-referido certificado pela GG em 16 de Setembro de 2010[1].

§ Nas folhas seguintes seguem fotocópias da frente e verso de um cartão de cidadão francês de “AA”. Nessas fotocópias consta um carimbo da “GG” a declarar a cópia conforme. Sobre o carimbo consta uma rubrica. Esse reconhecimento está datado de 16/9/2010.

§ Por despacho de 29/9/2017 foi determinado que a nova Procuração junta, com ratificação do processado, não preenche os requisitos legais, não cumprindo com o determinado pelo despacho de 19/5/2017, sendo concedido um “derradeiro prazo” para que a irregularidade fosse sanada, sob pena de ficar “sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário”.

§ O Exmº advogado não juntou nova Procuração.

§ Em 7/12/2017 foi proferido despacho, acima referido, a declarar a irregularidade da Procuração de fls. 334, declarando-se “sem efeito tudo o que foi praticado pela autora nestes autos, incluindo a petição inicial”.

§ Na sequência de recurso havido desse despacho, o Tribunal da Relação de Lisboa dado o mesmo sem efeito e determinou que se devia notificar a recorrente do teor do despacho de 29/9/2017 (para lhe conceder prazo para sanar a irregularidade da Procuração), notificação que foi feita, nada tendo dito a Recorrente, razão pela qual em 25/1/2019 foi proferido despacho a repristinar aquele despacho de 7/12/2017 que declarou a irregularidade da Procuração de fls. 334.


III. 2. Do mérito do recurso

O cerne da revista consiste, afinal, em saber se o patrocínio judiciário se mostra, ou não, regularmente constituído, a fim de a acção poder seguir o seu curso normal. Ou seja, se a procuração junta pelo Sr. advogado, nos termos supra descritos, estava conforme às exigências legais.

Vejamos.

Diga-se, antes de mais, que a presente acção, por força do disposto no artº 40º nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil[2], pelo seu valor, está sujeito a patrocínio obrigatório.

Como tal, carece da pertinente procuração forense.

Procuração é um negócio jurídico pelo qual alguém confere a outrem poderes de representação e que pode, ou não, coexistir com um mandato[3].

O Código Civil português trata a procuração como negócio jurídico unilateral, fonte da representação voluntária.  Na terminologia do artº 262º, nº 1, do CC, procuração é “o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos”.

A procuração está disciplinada na parte geral do Código, desgarrada, portanto, dos contratos que lhe podem estar subjacentes, normalmente o mandato. Tal tratamento é o que é regra noutros ordenamentos civis próximos[4], nomeadamente no alemão e no italiano, e vem na sequência da teoria da abstracção da procuração com origens na pandectística alemã do séc. XIX, segundo a qual o poder de representação provém de negócio jurídico unilateral abstracto, autónomo do mandato ou de outra eventual relação subjacente que, de acordo com as posições mais extremas, pode até não existir[5]. A regulamentação autónoma da representação voluntária tem o mérito de distinguir figuras efectivamente distintas – negócio unilateral que confere poderes de representação e negócios que podem conferir-lhe razão de ser – embora pareça artificial a ideia de uma procuração desgarrada de qualquer outro negócio[6].

A procuração, sendo um negócio jurídico unilateral, implica liberdade de celebração e de estipulação e surge perfeita com uma declaração de vontade[7], que é interpretada segundo as regras previstas nos artigos 236.º e sgs. do CC.

A figura da procuração aproxima-se, assim, muito do mandato (artigo 1157º e seguintes do Código Civil). E de tal modo que as diferenças entre si são ténues.

ADRIANO VAZ SERRA[8] explicou assim a fronteira entre elas: «Efectivamente, o mandato não se identifica com a procuração, como claramente se verifica confrontando os arts. 262º e segs. e 1157º e segs. do CC (…).

A procuração é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa confere a outra poderes de representação, isto é, para, em nome dela, concluir um ou mais negócios jurídicos (art. 262º, nº 1; o mandato, diversamente, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (art. 1157º) (…)

A procuração é, pois, o acto pelo qual alguém confere a outrem poderes de representação, tendo por consequência que, se o procurador celebrar o negócio jurídico para cuja conclusão lhe foram dados esses poderes, o negócio produz os seus efeitos em relação ao representado (…)

O mandato é independente da procuração, podendo ser com representação (arts. 1178º e segs.) ou sem ela (arts. 1180º e segs.) (…) A procuração, salvo disposição legal em contrário, tem de revestir a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar (art. 262º, nº 2), ao passo que o mandato não está sujeito a forma especial, podendo, por isso, ser concluído livremente, nos termos gerais (CC, art. 219º)»[9].

Ainda batendo na distinção entre procuração e mandato, bastará atentar, por exemplo, que não é essencial à existência do mandato a outorga da procuração.

Há que atender, desde logo, à distinção entre mandato com representação ou mandato representativo – que se verifica quando ao lado do mandato, que impõe ao mandatário a obrigação de celebrar um acto por conta do mandante, existe a procuração, que uma vez aceita, obriga o mandatário procurador, em princípio, a celebrar o acto em nome daquele[10] - e mandato sem representação – aquele em que o mandatário age em seu próprio nome; aqui o mandante confia ao mandatário a realização em nome deste, mas no interesse daquele, a realização de uma acto jurídico relativo a interesses pertencentes ao primeiro, assumindo o segundo a obrigação de praticar esse acto[11].

Já no artº 1318º do CC de 1867 se confundia, ou, pelo menos, não se destrinçava, o mandato da procuração, ao dar ao contrato o nome de mandato ou procuração.

Ora, tal como o mandato se não identifica com a representação, também a procuração se não confunde com nenhuma dessas figuras jurídicas. A representação não pressupõe necessariamente a procuração, visto poder resultar doutros negócios jurídicos (prestação de serviço, sociedade, etc.), ou da lei (representação legal). Por sua vez, o mandato, como contrato celebrado entre mandante e mandatário, também se distingue da procuração, visto não ser essencial nele a atribuição de poderes representativos[12].

O mandato é um contrato; a procuração é um acto unilateral. O primeiro impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta de outrem. O segundo confere o poder de os celebrar  em nome de outrem. O mandato e a procuração podem coexistir ou andar dissociados: aquele sem esta, esta sem aquele[13].

O que, efectivamente, origina os poderes existentes no mandatário não é a procuração; a procuração, no sistema do CC actual, mais não é que o meio adequado para exercer o mandato.


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Feitas estas considerações mais de índole teórico/doutrinal, voltemos ao caso sub judice.

Em causa nos autos está, essencialmente, a forma da procuração forense, junta a fls. 132 dos autos, passada pela Autora A. AA a favor do seu advogado, para nos mesmos autos a representar.

O n.º 1 do art. 268.º do Cód. Civil refere que “diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos”.

Por sua vez, o nº 2 do artº 262º, do CC dispõe que as procurações devem revestir a forma exigida para o negócio que o procurador deve realizar.

No caso sob apreciação, a forma exigida é a decorrente da legislação vigente para o mandato forense.

O art. 44.º do C.P.Civil regula o conteúdo e alcance do mandato judicial, estipulando que ele “atribui poderes ao mandatário para representar a parte em todos os actos e termos do processo principal e respectivos incidentes”.

Trata-se, pois, de um mandato com representação, isto é, de um contrato de prestação de serviços em que o mandatário é simultaneamente representante do mandante. É um contrato de mandato atípico com poderes de representação, actualmente regido pelo estatuído nos artºs. 97º a 107º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9/9), 43º a 45º do Código de Processo Civil e 1157º a 1184º do Código Civil.

Em específico, no que respeita à forma como se confere o mandato judicial, reza o artº 43º do CPC (com redacção idêntica à do artigo 35º do anterior CPC):

O mandato judicial pode ser conferido:

a) Por instrumento público ou por documento particular, nos termos do Código do Notariado e da legislação especial;

b) Por declaração verbal da parte no auto de qualquer diligência que se pratique no processo.”[14].

Portanto, para o que no presente caso importa, o mandato forense tinha de ser conferido por documento particular nos termos daquele artº 43º, al. a) do CPC e artº 116º nº 1 do Código do Notariado[15] (aprovado pelo Decreto-Lei nº 207/95, de 14/8, com as alterações mais recentes aprovadas pela Lei nº 58/2020, de 31/8), conjugados com o Decreto-Lei 267/92 de 28/11 (este último diploma veio suprimir a necessidade de intervenção notarial nas procurações passadas a advogados para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário e regular o conteúdo das mesmas procurações quando atribuam poderes especiais).

O estatuto da Ordem dos Advogados, quanto à forma como deve ser conferido o mandato, não contém norma específica sobre a matéria, maxime nos artsº 97º a 107º que regem as “relações com os clientes”.

Assim, teremos de nos quedar pelo que vem plasmado no citado artº 43º, al. a) do CPC, ao impor que o mandato judicial seja conferido “por instrumento público ou por documento particular, nos termos do Código do Notariado e da legislação especial”.

Como dito supra, o DL 267/92 de 28/11 veio, designadamente, suprimir a necessidade de intervenção notarial nas procurações passadas a advogados para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário.

Porém, a “simplificação de procedimentos” visada com esse diploma, não pode ser confundida com dispensa dos procedimentos legalmente exigidos para a outorga do mandato forense.

Assim, v.g., aquele DL 267/92 de 28/11 não veio, obviamente, revogar a referida norma da lei adjectiva civil (artº 43º, al. a)), que obriga seja observado o que o Código do Notariado preceitua sobre a conferência do mandato forense. Imposições ou exigências essas que visam, para além do interesse público, a salvaguarda do interesse do próprio mandante.

Reza aquele DL 267/92, de 28.11 (Artigo único):

1 - As procurações passadas a advogado para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário, ainda que com poderes especiais, não carecem de intervenção notarial, devendo o mandatário certificar-se da existência, por parte do ou dos mandantes, dos necessários poderes para o acto[16].

O que bem se compreende e aceita, tendo o Legislador desse Decreto-lei nº 267/92 justificado com o  circunstancialismo jurídico-social contemporâneo à produção da lei, invocando: (i) a celeridade que caracteriza o ritmo das sociedades de hoje, (ii) a atividade do advogado como elemento essencial na aplicação da justiça, (iii) o patrocínio judiciário como direito do cidadão em nome de quem a justiça é administrada e (iv) a suscetibilidade de tal direito ser posto em causa por formalismos desnecessários.

Porém – repete-se –, é apenas essa a interpretação que se extrai daquela expressão: que as procurações forenses apenas não carecem de intervenção notarial (ou seja, de serem elaboradas no notário). Mas, como dito já, não quer isso dizer (o que daquele normativo sempre resultava a contrario), de forma alguma, que não careçam das demais exigências legais. As regras legalmente exigidas para a elaboração das procurações forenses não podem deixar de ser escrupulosamente respeitadas, em respeito de interesse particular (do próprio mandante) e público. E nessa senda, e desde logo, este mesmo diploma veio deixar bem vincada uma exigência: de que o mandatário tem de “certificar-se da existência, por parte do ou dos mandantes, dos necessários poderes para o acto”.

Avancemos.

Em causa nos presentes autos está uma procuração forense passada em país estrangeiro.

No que à forma da mesma respeita, nada a observar, dado apenas ser exigido o documento particular (cit. artº 43º, al. a) CPC).

Há, porém, normas notariais que aqui têm se ser observadas, de entre as quais os artsº 3º[17], 46º (nºs 1, als a), c) d) e n)[18]) e 48º[19], delas resultando que o documento consubstanciado na procuração forense tem de conter (pelo menos e de forma expressa e clara): 1. A designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado ou assinado e, quando solicitado pelas partes, a indicação da hora em que se realizou; 2. o nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes; 3. A referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes (verificação essa, obviamente, a fazer pelo mandatário constituído); 4. As assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, e, é claro, a assinatura, do próprio advogado mandatado, enquanto certificante da forma como verificou a identidade do mandante, na medida em que essa certificação foi/seja por ele feita.

Como visto, nos presentes o Sr. advogado/mandatário da Autora apôs na Procuração que juntou aos autos a declaração de que verificou a identidade e a assinatura da mandante em confronto com fotocópia do cartão de identidade da “AA”, “certificado pela GG em 16 de Setembro de 2010 (constando desta fotocópia um carimbo da referida “GG”, com declaração de que a cópia estava conforme e com uma rubrica aposta nesse mesmo carimbo).

Com a procuração, juntou o referido mandatário essa fotocópia (frente e verso) do mesmo cartão de cidadão – da Autora/ cidadã francesa “AA”.


*


Ora bem.

A pergunta que se põe consiste, somente, em saber o facto de se tratar de procuração passada em França exige maiores formalidades do que as exigidas para as procurações passadas em Portugal, no que toca à certificação do documento (procuração) por advogado; ou seja, se nesse caso se exige, então, para a validade dessa certificação, mais do que a fotocópia do cidadão do mandante.

Sendo passada em Portugal, não há qualquer dúvida que o facto de não ser exibido o bilhete de identidade do mandante para reconhecimento da respectiva assinatura nas procurações forenses não invalida, por si só, a procuração.

Isso mesmo ressalta do citado Decreto-Lei nº. 267/92 de 28 de Novembro, que veio reforçar a progressiva abolição de formalidades existentes e que nenhum interesse ou sentido têm numa sociedade moderna inserida na nova ordem jurídica comunitária, diploma aquele que veio dar sequência a outras iniciativas desburocratizantes, como foi a abolição da obrigatoriedade aos advogados de reconhecimento notarial da assinatura nos substabelecimentos[20]. Foi, de facto, nesse espírito e objectivo de desburocratização e simplificação que aquele o aludido Decreto-Lei nº. 267/92 de 28 de Novembro veio determinar que as procurações passadas a advogados para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário, ainda que com poderes especiais, deixassem de carecer de intervenção notarial, apenas devendo o mandatário certificar-se da existência, por parte do mandante, dos poderes para o acto. E nada mais.

O advogado terá, apenas e só, de certificar na procuração a existência, por parte do mandante, dos poderes para o acto, sem necessidade de, para ser aceite a procuração, ter também de exibir o cartão de cidadão do mesmo mandante.


*


No presenta caso, trata-se de uma procuração passada em país estrangeiro (França).

Como visto, o Sr advogado limitou-se a verificar a identidade e a assinatura da mandante (AA) através de uma fotocópia do cartão de cidadão francês de “AA”, certificada por um funcionário estrangeiro, que nela colocou um carimbo e a sua assinatura.

Era essa fotocópia bastante para a validade da procuração? Esta a questão.

Cremos que sim.

Com efeito, na decorrência do já aludido Decreto-Lei nº. 267/92 de 28 de Novembro, que, como vimos, veio (juntamente com outros diplomas) simplificar ou desburocratizar, abolindo progressivamente os entraves burocráticos ou formalidades existentes - inúteis, mais ainda estando em causa países que fazem parte da União Europeia -, não se vislumbram razões sensíveis para a exigência de formalidades adicionais para a validade da procuração em causa pelo simples facto de ser passada em França.

Com efeito, cremos que basta que o advogado se certifique (e tem de o fazer) dos poderes e, necessariamente, da identidade do mandante, para que o documento/procuração seja legalmente válido, sendo, portanto lícito concluir que não é exigível qualquer outra verificação da assinatura por qualquer outra pessoa, designadamente pelo funcionário do Tribunal onde corre o processo.

Em suma: parece claro que, actualmente, apenas ao advogado mandatário compete certificar-se, a si próprio, da identidade e dos poderes do mandante, não podendo terceiros exigir-lhe qualquer documento comprovativo da autoria da assinatura ou dos poderes do signatário.

É certo o artº 440º do CPC, citado na decisão recorrida[21], contém regras específicas no que tange à “legalização dos documentos passados em país estrangeiro”[22].

Porém, tal preceito é aqui inaplicável, na medida em que abarca documentos apresentados como meio de prova e não documentos que sirvam para a demonstração do patrocínio judiciário.

Acresce – embora não determinante, pois não está em causa eventual falsidade da procuração, mas apenas a eventual necessidade formalidades adicionais para a sua regularidade – que a falsidade de qualquer dos documentos apresentados não foi suscitada por quem quer que fosse, razão adicional para se considerar válida a certificação feita pelo mandatário, sem necessidade de qualquer “adicional” legalização[23].

Outra solução seria de difícil compreensão. Veja-se que, como observa a Recorrente, se o advogado se tivesse limitado a certificar a concessão dos poderes, sem juntar cópia certificada do cartão de identidade, nenhum problema existiria quanto à regularidade do mandato; de forma que a junção desse documento que, aliás, torna mais séria a existência de um efetivo mandato, não pode funcionar em prejuízo da mandante.

Assim sendo, é valida a procuração junta aos autos, razão pela qual mal andaram as instâncias em decidir o contrário, com a consequente aplicação da cominação prevista no artº 48º, nº2 do CPC.


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Da má fé processual

Face ao decidido supra quanto à questão da validade da procuração, obviamente que deixa de fazer sentido falar, sequer, de má fé processual dos Recorrentes.



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IV. Decisão:

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, consequentemente, concede-se a revista, revogando-se a decisão recorrida e considerando-se regular a procuração junta aos autos, com a qual os mesmos seguirão os seus termos normais.

Não se vislumbra litigância de má fé.

Sem custas.

Notifique.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/20, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.


Lisboa, 13.05.2021


Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

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[1] Destaque nosso.

[2] E artº 44º da Ler Orgânica do Sistema Judiciário.

[3]VAZ SERRA,  Cód. Civil Anotado, anotação ao artº 1157º e, ainda, na RLJ 112º, pág. 222.

[4] Supõe-se que com excepção do francês.

[5] Sobre a teoria da abstracção da procuração, PEDRO DE ALBUQUERQUE, A representação voluntária em direito civil, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 313-85; FERRER CORREIA, «A procuração na teoria da representação voluntária», BFD, Coimbra, n.º 24, 1948, pp. 258-68; PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, A procuração irrevogável, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 33-5.

[6] Neste sentido, PEDRO DE ALBUQUERQUE, A representação voluntária em direito civil, cit., p. 577: «... deve pois concluir-se em definitivo: a procuração surge, na sua génese, como necessariamente determinada por uma relação jurídica base e não pode subsistir sem ela».[7] MENEZES CORDEIRO, in A representação no Código Civil; sistema e perspectivas de reforma, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 403.

[8] In RLJ, Ano 122º, a páginas 222 – em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.02.79 (OCTÁVIO DIAS GARCIA).

[9] Destaque nosso.

[10] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, C. Civil Anotado, 1ª ed., 2º, 503

[11] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit. a pág. 505; PESSOA JORGE, O Mandato sem representação, pág. 411; MOTA PINTO, Teoria Geral, 1967, pág. 274 e CASTRO MENDES, Teoria Geral, 1967, 3º-399.

[12] Ver, ainda, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA,  ob. cit.,  em anotação ao artº 1157º.

[13] PESSOA JORGE, ob. cit., nº 3; FERRER CORREIA, A procuração na teoria da representação voluntária, no Bol. da fac. de Direito de Coimbra, CCIV, pág. 253 e RLJ, ano 109º-125 e 112º-219 ss.
[14] O destaque é nosso.
[15] Que reza:
“ 1 - As procurações que exijam intervenção notarial podem ser lavradas por instrumento público, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado.”.
[16] Destaque nosso.
[17] Que dispõe:
1- Excepcionalmente, desempenham funções notariais:

a) Os agentes consulares portugueses;

b) Os notários privativos das câmaras municipais e da Caixa Geral de Depósitos recrutados, de preferência, de entre os notários de carreira;

c) Os comandantes das unidades ou forças militares, dos navios e aeronaves e das unidades de campanha, nos termos das disposições legais aplicáveis;

d) As entidades a quem a lei atribua, em relação a certos actos, a competência dos notários.
2 - Em caso de calamidade pública podem desempenhar todos os actos da competência notarial quaisquer juízes ou sacerdotes e, bem assim, qualquer notário, independentemente da área de jurisdição do respectivo serviço.
3 - Os actos praticados no uso da competência de que gozam os órgãos especiais da função notarial devem obedecer ao preceituado neste Código, na parte que lhes for aplicável.

[18] Que dispõem:

Formalidades comuns

1 – O instrumento notarial deve conter:

a) A designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado ou assinado e, quando solicitado pelas partes, a indicação da hora em que se realizou;

b) (…)

c) O nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, (…)

d) A referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes, (…).

(…)

n) As assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento.

[19] Que, sob a epígrafe, verificação da identidade, dispõe:

A verificação da identidade dos outorgantes pode ser feita por alguma das seguintes formas:

a) Pelo conhecimento pessoal do notário;

b) Pela exibição do bilhete de identidade, de documento equivalente ou da carta de condução, se tiverem sido emitidos pela autoridade competente de um dos países da União Europeia;

c) Pela exibição do passaporte;

d) Pela declaração de dois abonadores cuja identidade o notário tenha verificado por uma das formas previstas nas alíneas anteriores, consignando-se expressamente qual o meio de identificação usado.

2 - Não deve ser aceite, para verificação da identidade, documento cujos dados não coincidam com os elementos de identificação fornecidos pelo interessado ou cujo prazo de validade tenha expirado, admitindo-se a alteração da residência e do estado civil, se, quanto a este, for exibido documento comprovativo da sua alteração não ocorrida há mais de seis meses.

3 - Nos actos notariais devem ser mencionados o número e a data dos documentos exibidos para a identificação de cada outorgante, bem como o respectivo serviço emitente.

4 - As testemunhas instrumentárias podem servir de abonadores.
[20] Cfr. Decreto-Lei nº. 342/91 de 14 de Setembro - depois tornado aplicável aos solicitadores pelo Decreto-Lei nº. 47/92 de 4 de Abril.
[21] Por manifesto lapso, escreveu-se ali artº 554º.
[22] Preceitua este normativo:
“1. Sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respectivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respectivo.
2. Se os documentos particulares lavrados fora de Portugal estiverem legalizados por funcionário público estrangeiro, a legalização carece de valor enquanto se não obtiverem os reconhecimentos exigidos no número anterior” - destaque nosso.
[23] Cfr. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª ed., pág. 259.