Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
25261/11.6T2SNT-D.L1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CONSUMIDOR
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTOS
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
DUPLA CONFORME
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/11/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO / CASOS ESPECIAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 755.°, N.º 1, ALÍNEA F).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 635.º, N.º 4 E 639.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2014, DE 20-03, IN DR 1ª SÉRIE, DE 19-05-2014;
- DE 29-07-2016, PROCESSO N.º 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1;
- DE 11-05-2017, PROCESSO N.º 1308/10.2T2AVR-R.P1.S1, SUMÁRIO IN WWW.STJ.PT;
- DE 20-06-2017, PROCESSO N.º 3296/14.7T8VIS-A.C1.S1.
Sumário :
I - A aplicação do segmento uniformizador do AUJ n.º 4/2014, de 20-03, mostra-se limitada às situações em que o credor promitente-comprador não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência.

II - Este confinamento retira da alçada do AUJ os contratos-promessa que se encontrem incumpridos à data da declaração da insolvência, uma vez que não se pode configurar a situação de o administrador não os cumprir.

III - Tais casos mostram-se submetidos ao regime geral ínsito no art. 755.°, n.º 1, al. f), do CC, que não faz depender o direito de retenção atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel da circunstância de o mesmo não ser um consumidor.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,



I – relatório


1. Nos autos de reclamação e graduação de créditos referente a AA - Construções, Lda, declarada insolvente por sentença de 31-01-2012, a Administradora da Insolvência, em 03-05-2021, juntou lista dos créditos reconhecidos (fls. 3 dos autos), fazendo constar quanto à credora BB - Imóveis Unipessoal, Lda. o crédito no valor de 282.362,74€ (280.000€ de capital e o restante a título de juros vencidos) atribuindo-lhe a natureza de crédito privilegiado (direito de retenção) com fundamento em incumprimento do contrato promessa.    


2. Impugou o referido crédito a Caixa económica CC(fls. 5/25) defendendo a ineptidão da reclamação apresentada pela BB - Imóveis Unipessoal, Lda., o não reconhecimento do respectivo crédito e, subsidiariamente, a sua qualificação como privilegiado.


3. No saneador o tribunal reconheceu os créditos reclamados e não impugnados, julgou improcedente a impugnação na parte em que pugnava pela ineptidão da reclamação de créditos, determinou o objecto do litígio (caracterização e reconhecimento do crédito reclamados por BB - Imóveis Unipessoal, Lda.) e fixou os temas de prova (257/258).


4. Realizado julgamento foi proferida sentença na qual foi decidido:

A) Absolver da instância de impugnação a impugnada BB - Imóveis Unipessoal, Lda. na parte relativa ao reconhecimento dos direitos de crédito e de retenção sobre os imóveis a que respeitam as verbas 8 e 9 do auto de apreensão.

B) Julgar reconhecido o crédito reclamado por BB - Imóveis Unipessoal, Lda., no montante de € 280.000,00 de capital, acrescida da quantia de € 2.362,74, de juros de mora liquidados desde 08.01.2010 até à data da entrada da execução, em 26.03.2010.

C) Julgar não reconhecido o direito de retenção invocado pelo reclamante BB- Imóveis Unipessoal, Lda. relativamente aos imóveis a que respeitam as verbas 5 e 6 do auto de apreensão, em consequência qualificando como comum o crédito no montante global de € 159.348,00, proveniente do incumprimento das respectivas promessas de venda.

D) Consignar que o direito de retenção de que beneficia BB - Imóveis Unipessoal, Lda. relativamente aos imóveis a que respeitam as verbas 8 e 9 do  auto de apreensão, garante o pagamento da quantia de €60.326,00, relativamente a cada um dos referidos imóveis.

E) Graduar os créditos reconhecidos nos seguintes termos:

1. Pelo produto da venda do veículo automóvel a que respeita a verba 1 do auto de apreensão, bem assim como de outros bens móveis ou direitos eventualmente apreendidos dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:

1.° Caixa Económica CC, até ao montante de € 51.000,00 (cinquenta e um mil euros);

2.° Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes;

2. Pelo produto da venda do imóvel a que respeita a verba 2 do auto de apreensão dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:

1.° Autoridade Tributária, pelos montantes de IMI que corresponderem ao referido imóvel, de acordo com a especificação apresentada pelo Ministério Público em 25.11.2016, a fls. 197/198 do processo em papel.

2.° Banco DD, S.A.

3.° Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes;

3. Pelo produto da venda dos imóveis a que respeitam as verbas 3, 4, 5, 6 e 7 do auto de apreensão dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:

1.° Autoridade Tributária, pelos montantes de IMI que corresponderem a cada um dos referidos imóveis, de acordo com a especificação apresentada pelo Ministério Público em 25.11.2016, a fls. 197/198 do processo em papel.

2.° Caixa Económica CC.

3.° Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes;

4. Pelo produto da venda dos imóveis a que respeitam as verbas 8 e 9 do auto de apreensão dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:

1.º Autoridade Tributária, pelos montantes de IMI que corresponderem a cada um dos referidos imóveis, de acordo com a especificação apresentada pelo Ministério Público em 25.11.2016, a fls. 197/198 do processo em papel.

2.° BB - Imóveis Unipessoal, Lda., até ao montante de € 60.326,00 de capital, acrescido dos juros correspondentemente liquidados, relativamente a cada um dos dois imóveis.

3.° Banco DD, S.A.

4.° Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes;

(…).


5. Inconformadas, apelaram BB - Imóveis Unipessoal, Lda. e Banco EE, S.A.., tendo o Tribunal da Relação de Lisboa (por acórdão de 26-10-2017) julgado parcialmente procedente a apelação da credora BB - Imóveis Unipessoal Lda. e procedente a apelação do credor Banco EE, S.A., tendo alterado as alíneas B), D) e o ponto 4 da alínea E) pontos 2.º e 3.º, eliminando o 4.º, do dispositivo da sentença recorrida nos seguintes termos:

«B) Julgar reconhecido o crédito reclamado por BB - Imóveis Unipessoal Lda no montante de 280.000 € de capital, acrescido de juros de mora vencidos desde 08/01/2010 e vincendos até integral pagamento, à taxa legal de 4% e dos juros compulsórios à taxa de 2,5% desde a data em que transitou em julgado o segmento da sentença recorrida que reconheceu o referido crédito de capital;

D) Julgar não reconhecido o direito de retenção invocado pela reclamante BB - Imóveis Unipessoal Lda relativamente aos imóveis a que respeitam as verbas 5, 6, 8 e 9 do auto de apreensão, qualificando como comum os créditos de capital e juros de mora e compulsórios referidos em B).

E) Graduar os créditos reconhecidos nos seguintes termos:

1.º (….)

4. Pelo produto da venda dos imóveis a que respeitam as verbas 8 e 9 do auto de apreensão dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:

1.º (...)

2.º Banco EE, SA - anteriormente Banco DD, SA;

3.º Os créditos comuns, se necessário, em rateio, na proporção dos respectivos montantes


7. A BB - Imóveis Unipessoal Lda. veio interpor recurso de revista[1] formulando as seguintes conclusões:

“a) O presente recurso de revista é admissível já que se verificam todos os três requisitos exigidos para tal no nº 2 do art.º 672º do C.P.C.: a relevância jurídica da questão que carece de outra apreciação para uma melhor aplicação do direito; os interesses de particular relevância social que estão em causa; a contradição do Acórdão recorrido com outros, já transitados em julgado, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça no domínio da mesma legislação e sobre a mesma exata questão, sem que tivesse já sido proferido acórdão uniformizador da jurisprudência sobre tal matéria.

b) Ao contrário do decidido no Acórdão recorrido, o AUJ nº 4/2014 não é aplicável à situação dos autos já que, nestes, e ao contrário do aí uniformizado, o não cumprimento dos contratos-promessa celebrados entre a ora recorrente e a ora insolvente é anterior à declaração de insolvência deste e não decorre, assim, de ato do administrador de insolvência.

c) Ao contrário do decidido no Acórdão recorrido, qualquer interpretação da lei que coarcte o direito de retenção que serviu de suporte à decisão de contratar, para mais nas condições de pagamento de sinais inusuais, porque altos, da ora recorrente seria, naturalmente, uma enorme surpresa para a ora recorrente, que, como qualquer cidadão ou empresa média, não acompanha, nem tem de acompanhar, querelas doutrinais ou jurisprudenciais sobre confrontos «entre o direito de retenção e a hipoteca»: a ora recorrente apenas tem de conhecer o que diz a lei e, por esta, o direito de retenção é-lhe conferido.

d) O elemento literal da norma em causa, o art.º 755º, nº 1, alínea f), do C. Civil, não permite distinguir entre consumidores e não consumidores para efeitos de atribuição do direito de retenção, verificados que estejam, como estão no caso dos presentes autos, os demais requisitos para tal enumerados na previsão normativa.

e) O elemento teleológico também não permite distinguir nessa norma entre consumidores e não consumidores: sabido que é ter o legislador, no preâmbulo do diploma que introduziu tal disposição no C. Civil, referido expressamente a proteção dos consumidores sem que daí tenha retirado, conscientemente, qualquer consequência em termos de redação da lei.

f) Ainda que o pensamento do legislador pudesse ter sido o de diferenciar entre consumidores e não consumidores, e não foi, nunca o mesmo poderia ser considerado por não ter «na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso», sendo que, se o intérprete há-de presumir «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados», nunca poderia distinguir-se entre consumidores e não consumidores na norma em questão.

g) Não podendo, tampouco, nos presentes autos reequacionar-se já o que ficou definitivamente fixado pelas instâncias: a verificação de tradição das frações objeto das promessas de compra e venda a favor da ora recorrente.

h) O Acórdão recorrido violou as normas dos arts. 9º, 755º, nº 1, alínea f), e 759º, nº 2, do C. Civil.


6. Não foram apresentadas contra alegações.

 

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostram-se submetidas à apreciação deste tribunal as seguintes questões:

ð Da admissibilidade da revista normal (questão prévia)

ð Do reconhecimento à Recorrente do direito de retenção sobre os imóveis designados pelas verbas 5, 6, 8 e 9 apreendidos para a massa insolvente


1.1 Os factos provados

1. Foram apreendidos para a massa insolvente de AA - Construções, Lda, entre outros, os seguintes, bens imóveis:

- Sob a verba 5 do auto de apreensão de 13.02.2012, fracção autónoma designada pela letra "F", primeiro andar B, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de A... V… sob o número 2749, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 5423, concelho e freguesia de A… V…;

- Sob a verba 6 do auto de apreensão de 13.02.2012, fracção autónoma designada pela letra "G", primeiro andar C, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V… sob o número 2749, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 5423, concelho e freguesia de A…V….

- Sob a verba 8 do auto de apreensão de 13.02.2012, fracção autónoma designada pela letra "C", rés-do-chão C, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V… sob o número 2744, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 5422, concelho e freguesia de A… V…;

- Sob a verba 9 do auto de apreensão de 13.02.2012, fracção autónoma designada pela letra "D", primeiro andar A, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V… sob o número 2744, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 5422, concelho e freguesia de A… V…;

2. À data da apreensão, incidiam sobre as fracções autónomas a que respeitam as verbas 5 e 6, duas hipotecas voluntárias a favor de Caixa Económica CC, inscritas respectivamente pelas AP 6 de 27.12.2006 e 20 de 14.12.2007 e com os montantes máximos assegurados de € 804.562,50 e 255.000,00.

3.  À data da apreensão, incidia sobre as fracções autónomas a que respeitam as verbas 8 e 9, hipoteca voluntária a favor de Banco DD, S.A., inscrita pela AP 6 de 24.04.2006, com o montante máximo assegurado de € 616.500,00.

4. Por documento datado de 21 de Maio de 2008, de que foi junta cópia em 17.05.2017 como doc. n.° 1 da resposta à impugnação (ref. Citius 3640056 do processo principal), a fls. 67 a 80 do processo em papel cujo teor se dá por reproduzido, denominado contrato-promessa de compra e venda, AA - Construções, Ld.a, representada por FF e GG, na qualidade de primeiro outorgante ou promitente vendedora e BB, Imóveis, Unipessoal, Ld.a representada pelo sócio gerente HH, na qualidade de segunda outorgante ou promitente compradora, estabeleceram acordo, do qual constam, entre outras, as seguintes cláusulas:

(...) PRIMEIRA

1. A primeira outorgante é dona e legítima possuidora dos seguintes prédios:

- prédio urbano denominado Quinta …, Lote A - 2, situado em A… V…, descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V…  sob o número dois mil setecentos e quarenta e quatro da freguesia de A… V… e inscrito na matriz sob o artigo 4646 da mesma freguesia, no qual se encontra construído um edifício composto por cave destinada a parqueamento com um total de doze lugares e dois pisos (rés-do-chão e primeiro andar) constituídos por três fogos cada, destinados a habitação;

- prédio urbano denominado Quinta …, Lote B - 1, situado em A… V…, descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V… sob o número dois mil setecentos e quarenta e nove da freguesia de A… V… e inscrito na matriz sob o artigo 4651 da mesma freguesia, no qual se encontra construído um edifício composto por cave destinada a parqueamento com um total de dezassete lugares e dois pisos (rés-do-chão e primeiro andar) constituídos por quatro fogos cada, destinados a habitação.

2. Para os imóveis identificados no número anterior ainda não foi emitida pela Câmara Municipal de A… V… a devida licença de utilização, facto que ambas as outorgantes conhecem, comprometendo-se a sociedade vendedora a assegurar todas as diligências tendentes à emissão da licença em falta e, bem assim a suportar os inerentes custos.

SEGUNDA

Pelo presente contrato, a primeira outorgante promete vender à segunda e esta promete comprar-Ihe, para a destinar a revenda como é próprio do seu objecto social, as fracções que venham a corresponder ao primeiro andar A do Lote A 2 e ao primeiro andar B do Lote B 1, com a posição que resulta dos respectivos projectos de constituição de propriedade horizontal e hoje já perfeitamente autonomizadas. E assim identificadas no terreno, que ficam a constituir os ANEXOS I e II ao presente contrato e dele fazem parte integrante, livres de quaisquer ónus ou encargos.

TERCEIRA

1. O preço total acordado é de:

1.1- € 55.500,00 (cinquenta e cinco mil e quinhentos euros) para o primeiro andar A do Lote A 2;

1.2. - € 67.500,00 (sessenta e sete mil e Quinhentos euros) para o primeiro andar B do Lote B 1 e será pago da seguinte forma:

a) € 70.000,00 (setenta mil euros) na data da assinatura do presente contrato através dos cheques n.° 96…20 no montante de € 50.000,00 e no 96…17 no valor de € 20.000,00, ambos sacados sobre a conta 45…5 da titularidade da segunda outorgante, sedeada na agência da Quinta do L… do Banco II, a título de sinal e princípio de pagamento, quantia esta que a primeira outorgante declara ter recebido e presta aqui a devida quitação;

b) os restantes € 53.000,00 (cinquenta e três mil euros) na data da outorga da escritura de compra e venda.

QUARTA

Na data da assinatura do presente instrumento, os representantes da primeira outorgante entregam ao representante da segunda as chaves de ambos os fogos prometidos vender, tendo plena consciência de com tal acto formalizarem a tradição dos imóveis objecto desta promessa e, assim, reconhecendo o direito de retenção da segunda outorgante sobre os mesmos pelo crédito resultante do eventual não cumprimento do presente contrato imputável à primeira outorgante.

QUINTA

1. A escritura pública objecto do presente contrato será celebrada no prazo de 100 (cem) dias contados da data da assinatura do presente instrumento, competindo à segunda outorgante avisar os representantes da primeira outorgante do dia, hora e cartório notarial para a respectiva realização por carta registada expedida com a antecedência de 10 (dez) dias.

2. A primeira outorgante fornecerá ao representante da segunda toda a documentação relativa aos imóveis e à sua própria identificação que se mostre necessária para instrução do contrato venda, assegurando-lhe, ainda, informação actualizada e comprovada documentalmente do processo camarário tendente á emissão da licença de utilização e à posterior constituição dos edifícios em propriedade horizontal.

(...) OITAVA

Para todos os efeitos legais, as partes convencionam como seus domicílios os contantes do presente contrato (...)”

5. Por documento datado de 5 de Maio de 2008, de que se junta cópia em 17.05.2017, como doc. n.º2 da resposta à impugnação (ref. Citius 3640056 do processo principal), a fls. 81 a 85 do processo em papel cujo teor se dá por reproduzido, denominado contrato-promessa de compra e venda, AA - Construções, Ld.a, representada pelo procurador JJ na qualidade de primeiro outorgante ou promitente vendedora e BB, Imóveis, Unipessoal, Ld.a representada pelo sócio gerente HH, na qualidade de segunda outorgante ou promitente compradora, estabeleceram acordo, do qual constam, entre outras, as seguintes cláusulas:

“(...)PRIMEIRA

1. A primeira outorgante é dona e legítima possuidora dos seguintes prédios:

a) prédio urbano denominado Quinta …, Lote A - 2, situado em A… V…, descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V… sob o número dois mil setecentos e quarenta e quatro da freguesia de A… V… e inscrito na matriz sob o artigo 4646 da mesma freguesia, no qual se encontra construído um edifício composto por cave destinada a parqueamento com um total de doze lugares e dois pisos (rés-do-chão e primeiro andar) constituídos por três fogos cada, destinados a habitação;

b) prédio urbano denominado Quinta …, lote B - 1, situado em A… V…, descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V… sob o número dois mil setecentos e quarenta e nove da freguesia de A… V… e inscrito na matriz sob o artigo 4651 da mesma freguesia, no qual se encontra construído um edifício composto por cave destinada a parqueamento com um total de dezassete lugares e dois pisos (rés-do-chão e primeiro andar) constituídos por quatro fogos cada, destinados a habitação.

2. Para os imóveis identificados no número anterior ainda não foi emitida pela Cãmara Municipal de A… V… a devida licença de utilização. Facto que ambas as outorgantes conhecem, comprometendo-se a sociedade vendedora a assegurar todas as diligências tendentes à emissão da licença em falta e, bem assim, a suportar os inerentes custos.

SEGUNDA

Pelo presente contrato, a primeira outorgante promete vender á segunda e esta promete comprar-lhe, para a destinar a revenda como é próprio do seu objecto social, as fracções que venham a corresponder ao rés-do-chão C A do Lote A 2 e ao primeiro andar C do Lote B 1, em regime de propriedade horizontal conforme consta nas escrituras públicas efectuadas em 28 de Maio de 2008 no cartório notarial de Lisboa de Dra. KK, que ficam a constituir os Anexos I e II ao presente contrato e dele fazem parte integrante, livres de quaisquer ónus ou encargos.

TERCEIRA

O preço total acordado é de:

1.1. € 55.500,00 (cinquenta e cinco mil e quinhentos euros) para o rés-do-chão C

do Lote A 2;

1.2. € 67.500,00 (sessenta e sete mil e quinhentos euros) para o primeiro andar C

do Lote B1e será pago da seguinte forma:

a) € 70.000,00 (setenta mil euros) na data da assinatura do presente contrato

através dos cheques n.° 96…05 no montante de 50.000,00 e n.º 96…99 no valor de €20.000,00 sacados sobre a conta 45…5 da titularidade da segunda outorgante, sedeada na agência da Quinta L… do Banco II, a titulo de sinal e principio de pagamento, quantia esta que a primeira outorgante declara ter recebido e presta aqui a devida quitação;

b) os restantes € 53.000,00 (cinquenta e três mil euros) na data da outorga da escritura de compra e venda.

QUARTA

Na data da assinatura do presente instrumento, os representantes da primeira outorgante entregam ao representante da segunda as chaves de ambos os fogos prometidos vender, tendo plena consciência de com tal acto formalizarem a tradição dos imóveis objecto desta promessa e, assim, reconhecendo o direito de retenção da segunda outorgante sobre os mesmos pelo crédito resultante do eventual não cumprimento do presente contrato imputável à primeira outorgante. QUINTA

1. A escritura pública objecto do presente contrato será celebrada no prazo de 90 (noventa) dias contados da data da assinatura do presente instrumento, competindo á segunda outorgante proceder à sua marcação e avisar os representantes da primeira outorgante do dia, hora e cartório notarial para a respectiva realização por carta registada expedida com a antecedência de 10 (dez) dias.

2. A primeira outorgante fornecerá ao representante da segunda toda a documentação relativa aos imóveis e à sua própria identificação que se mostre necessária para instrução do contrato definitivo de compra e venda, assegurando-lhe, ainda, informação actualizada e comprovada documentalmente do processo camarário tendente à emissão da licença de utilização e à posterior constituição dos edifícios em propriedade horizontal.

(...) OITAVA

Para todos os efeitos legais, as partes convencionam como seus domicílios os contantes do presente contrato (...)” 

6. Nas datas das assinaturas dos documentos provados sob os n.°s 4 e 5, a reclamante pagou as quantias especificadas nos documentos e recebeu da insolvente as chaves dos imóveis a que os mesmos respeitavam.

7. As escrituras de constituição da propriedade horizontal dos prédios a que respeitam os documentos provados sob os n.°s 4 e 5 foram realizadas no dia 28.05.2008 e inscritas no registo predial no dia 06.06.2008.

8.  Foram inscritas no registo predial, pelas Ap 5 de 08.07.2008 e Ap 1 de 09.07.2008, as aquisições provisórias a favor da reclamante, dos imóveis a que respeitam, respectivamente, as verbas 5 e 9 e 6 e 8 do auto de apreensão.

9. A reclamante enviou à insolvente, que recebeu, em 21 de Julho de 2008, a carta de que foi junta cópia em 17.05.2017, como doc. n.° 6 da resposta à impugnação (ref. Citius 3640056 do processo principal), a fls. 117 a 119 do processo em papel, cujo teor se dá por reproduzido, da qual consta, além do mais o seguinte, com referência ao imóveis a que respeitam as verbas 6 e 8 do auto de apreensão: “ (...) Vimos por este meio, notificar a V. Exas. de que a escritura de compra e venda dos andares realizar-se-á no próximo dia 4 de Agosto de 2008, pelas 14 horas no Cartório Notarial de Odivelas de LL, sito na Rua …, …, 2675- Odivelas. Desde já solicito toda a documentação relativa aos imóveis e à sua própria identificação que se mostre necessário para instrução do contexto definitivo de compra e venda.”.

10 - A insolvente respondeu à reclamante por carta datada de 30 de Julho de 2008, de que foi junta cópia em 17.05.2017, como doc. n.° 8 da resposta à impugnação (ref. Citius 3640056 do processo principal), a fls. 120 do processo em papel, cujo teor se dá aqui por reproduzido, na qual se declara, além do mais o seguinte: “Vimos por este meio informar V. Exas. que de momento ainda não possuímos toda a documentação necessária para a realização da escritura na data que os senhores nos indicaram. Informamos que teremos tudo pronto para realizar a escritura na primeira semana do mês de Outubro.”.

11. A reclamante enviou à insolvente, que recebeu, a carta de que foi junta cópia em 17.05.2017, como doc. n.° 10 da resposta à impugnação (ref. Citius 3640056 do processo principal), a fls. 124 do processo em papel, cujo teor se dá por reproduzido, da qual consta, além do mais o seguinte, com referência ao imóveis a que respeitam as verbas 5 e 8 do auto de apreensão: “ (...) Vimos por este meio, notificar a V. Exas. de que a escritura de compra e venda dos andares realizar-se-á no próximo dia 28 de Agosto de 2008, pelas 14 horas no Cartório Notarial de Odivelas de LL, sito na Rua …, …, 2675- Odivelas. Desde já solicito toda a documentação relativa aos imóveis e à sua própria identificação que se mostre necessário para instrução dos contratos definitivos de compra e venda.”.

12. A insolvente respondeu à reclamante por carta datada de 07 de Agosto de 2008, de que foi junta cópia em 17.05.2017, como doc. n.° 12 da resposta à impugnação (ref. Citius 3640056 do processo principal), a fls. 126 do processo em papel, cujo teor se dá aqui por reproduzido, na qual se declara, além do mais o seguinte: “Vimos por este meio informar V. Exas. que de momento ainda não possuímos toda a documentação necessária para a realização da escritura referente ao Lote B 1, 1.°B e ao Lote A2, 1.°A na data que os senhores nos indicaram. Informamos que teremos tudo pronto para realizar a escritura na segunda semana do mês de Outubro.”.

13. A reclamante enviou à insolvente a carta de que foi junta cópia em 17.05.2017, como doc. n.° 14 da resposta à impugnação (ref. Citius 3640056 do processo principal), a fls. 129 do processo em papel, cujo teor se dá por reproduzido, datada de 26 de Setembro de 2008, da qual consta, além do mais, o seguinte, com referência às quatro fracçõcs autónomas: “ (...) Vimos por este meio, notificar a V. Exas. de que a escritura de compra e venda dos andares realizar-se-á no próximo dia 9 de Outubro de 2008, pelas 14 horas no Cartório Notarial de Odivelas de LL, sito na Rua …, …, 2675- Odivelas. Desde já solicito toda a documentação relativa aos imóveis e à sua própria identificação que se mostre necessário para instrução dos contratos definitivos de compra e venda. Por falta de comparência de V. Exa., não foi possível realizar as escrituras anteriormente marcadas. Assim, lamento informar que em caso de não comparência de V.Exa. ao acto agora marcado, reservo-me o direito de accionar os meios legais ao meu dispor para salvaguarda dos meus direitos, bem como solicitar, também por meios legais pertinentes, os prejuízos materiais e outros decorrentes do incumprimento contratual unilateral da v/parte”.

14.- A carta expedida pela reclamante com data de 26.09.2008 foi devolvida à Autora com a menção "não reclamada", constando ainda da informação dos CTT as menções "destinatário ausente, empresa encerrada, avisado na estação" (cfr. doc. junto com a resposta à impugnação, a fls. 134 a 136).

15.- A Ré não compareceu no dia, hora e local, referidos na carta da reclamante de 26.09.2008.

16.- Pelo menos a partir de Setembro de 2008 a reclamante deixou de conseguir contactar pessoal ou telefonicamente com a insolvente.

17.- Em 18.10.2008 a reclamante instaurou, contra a insolvente, no Tribunal Judicial de Loures, a acção que constitui o apenso XG da insolvência, na qual, após aperfeiçoamento, pediu que se declare definitivamente incumpridos e resolvidos os contratos a que respeitam os documentos provados sob os n.°s 4 e 5.

18.- Por sentença proferida em 30.12.2009 no referido processo, transitada em julgado em 08.02.2010, foram declarados resolvidos os mencionados contratos, condenada a insolvente no pagamento à reclamante da quantia de € 280.000,00 correspondente ao dobro das quantias entregues e reconhecido o direito de retenção desta sobre os imóveis em causa.

19.- Por decisão proferida em 26.05.2017 nos presentes autos, foram declarados reconhecidos os seguintes créditos e qualificações:

Credor                               Montante                    Natureza

Caixa económica CC            700.110,64                 Garantido

Caixa Geral de Depósitos       13.838,15    Comum

Banco DD                          478.047,00           Garantido

MM, Lda                             18.179,53             Comum

Caixa Leasing e Factoring – IFC    44.624,10             Comum

Fazenda Nacional                        3.873,56              Privilegiado - IMI

NN                                         91.421,92                  Comum

20. O crédito privilegiado de IMI, no montante global de € 3.873,56, especifica-se nos termos constantes da informação da Autoridade Tributária, apresentada em 25.11.2016 (ref. Citius 8592894) pelo Ministério Público, a fls. 196 a 198 do processo em papel.

21. Além dos já enumerados sob o n.° 1, foram ainda apreendidos para a massa insolvente os seguintes bens:

- Sob a verba 1 do auto de apreensão de 13.02.2012, viatura da marca Mini, matrícula …-…-ZR.

- Sob a verba 2 do auto de apreensão de 13.02.2012, fracção autónoma designada pela letra "F", rés-do-chão C, do prédio descrito na 1.a Conservatória do Registo Predial de A… sob o número 1971, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 6325, da freguesia da …;

- Sob a verba 3 do auto de apreensão de 13.02.2012, fracção autónoma designada pela letra "A", rés-do-chão A, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V… sob o número 2749, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 5423, concelho e freguesia de A… V….

- Sob a verba 4 do auto de apreensão de 13.02.2012, fracção autónoma designada pela letra "B", rés-do-chão B, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V… sob o número 2749, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 5423, concelho e freguesia de A… V...

- Sob a verba 7 do auto de apreensão de 13.02.2012, fracção autónoma designada pela letra "H", primeiro andar D, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de A… V… sob o número 2749, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 5423, concelho e freguesia de A… V….

22. À data da apreensão, incidia sobre a fracção autónoma a que respeita a verba 2, hipoteca voluntária a favor de Banco OO, S.A., posteriormente Banco DD, S.A., inscrita pela AP 10 de 16.12.2004, com o montante máximo assegurado de € 1.321.400,00.

23. À data da apreensão, incidiam sobre as fracções autónomas a que respeitam as verbas 3, 4 e 7, duas hipotecas voluntárias a favor de Caixa Económica CC, inscritas respectivamente pelas AP 6 de 27.12.2006 e 20 de 14.12.2007 e com os montantes máximos assegurados de € 804.562,50 e 255.000,00.

 2. O direito

1. Da admissibilidade da revista normal (questão prévia)

À presente revista é aplicável o regime de recursos previsto no artigo 671.º e seguintes do CPC.

Nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pela 1ª instância (dupla conforme).

A admissibilidade da revista excepcional, que tem por base uma situação de “dupla conforme”, não dispensa os requisitos gerais de admissibilidade de recurso para este Tribunal e mostra-se condicionada aos pressupostos específicos definidos nas alíneas a) b) e c) do n.º1 do artigo 672.º do CPC.

No caso, a Recorrente interpõe recurso manifestando pretensão em recorrer de revista normal do acórdão da Relação e, subsidiariamente, de revista excepcional, ainda que através de expressão imprópria (revista normal ou excepcional).

Tendo o recurso sido inicialmente distribuído como revista excepcional, a Formação, por Acórdão de 03-05-2018, determinou que os autos fossem distribuídos como revista normal por forma a que, primeiramente, pudesse ser tomada posição quanto à admissibilidade da mesma (na totalidade ou de modo parcial), atento o facto do acórdão recorrido não integrar uma confirmação do julgado em 1ª instância.

O acórdão recorrido, em conformidade com o decidido pela sentença de 1ª instância, negou o reconhecimento à Recorrente do direito de retenção sobre as verbas 5 e 6 apreendidas para a massa insolvente (para garantia do crédito no valor global de 159.348,00€); todavia, relativamente às verbas 8 e 9, igualmente apreendidas para a massa insolvente (para garantia do crédito no valor de 120.652€), revogou a sentença recorrida que havia reconhecido à Recorrente o direito de retenção sobre as identificadas verbas julgando, por isso, procedente a apelação do credor Banco EE, S.A..

E se é certo que a razão que sustenta a alteração de julgados se mostra alheia à questão que a Recorrente pretende ver apreciada no recurso que interpõe[2]reconhecimento do direito de retenção e inaplicabilidade do AUJ n.º 4/2014 – e sobre a qual, aliás, não parece ocorrer dissonância de entendimento por parte das instâncias, o sentido decisório do acórdão recorrido não permite, a nosso ver, que, atentas as circunstâncias dos autos, possa ser objecto de cisão em segmentos autónomos por forma a poderem serem tratados distintamente para efeitos de apreciação recursória.

Assim sendo, não se configurando a existência de uma situação de dupla conforme, mostram-se verificados todos os pressupostos que determinam a admissibilidade do recurso de revista.

2. Do reconhecimento à Recorrente do direito de retenção sobre os imóveis designados pelas verbas 5, 6, 8 e 9 apreendidos para a massa insolvente.

O acórdão recorrido julgou não reconhecido o direito de retenção relativamente aos quatro imóveis apreendidos para a massa insolvente sustentado no AUJ n.º 4/2014, de 20-03 (publicado no DR 1ª série, de 19-05-2014) e por a Recorrente, enquanto credora, não se integrar no conceito de consumidor.

      Insurge-se a Recorrente pugnando pela inaplicabilidade do decidido no AUJ n.º 4/2014 à situação dos autos por o incumprimento dos contratos promessa celebrados com a sociedade declarada insolvente ser anterior à declaração de insolvência, não decorrendo pois de acto do administrador da insolvência. Pretende, por isso, que lhe seja reconhecido o direito de retenção sobre os imóveis apreendidos com as necessárias consequências na graduação dos créditos reconhecidos. 

            Tal pretensão merece acolhimento.

   Mostra-se definitivamente decidido no processo o reconhecimento do crédito da BB - Imóveis Unipessoal, Lda., aqui Recorrente, no montante de 280.000,00€[3], acrescido dos juros de mora vencidos desde 08-01-2010 e vincendos até integral pagamento e juros compulsórios desde a data do trânsito da sentença na parte referente ao reconhecimento do crédito de capital.

   Por forma a situar e caracterizar o crédito que se encontra reconhecido à Recorrente cabe referir que o mesmo tem origem em (dois) contratos promessa de compra e venda de (quatro) imóveis celebrados com a AA - Construções, Lda. (contrato de 21-05-2008, que teve por objecto os imóveis identificados como verbas 5 e 9 da massa insolvente; contrato de 05-05-2008, que teve por objecto os imóveis identificados como verbas 8 e 6 da massa insolvente), sendo que sobre cada um dos imóveis, à data da apreensão, incidia(m) hipoteca(s) voluntária(s) (relativamente às verbas 5 e 6, a favor da Caixa Económica CC; quanto às verbas 8 e 9, a favor do então Banco DD, SA) – cfr. n.ºs 4, 5 e 2, dos factos provados.

  Resulta ainda incontroverso no processo que os referidos contratos promessa, em que ocorreu a entrega antecipada dos imóveis, ou seja, com tradição, foram definitivamente incumpridos por culpa da sociedade declarada insolvente (não compareceu à escritura marcada, deixou de estar disponível para estabelecer qualquer contacto, designadamente tendo deixado de receber correspondência e não deduziu qualquer oposição na acção de resolução dos contratos intentada pela promitente compradora, a aqui Recorrente[4]), tendo tal incumprimento ocorrido muito antes da declaração de insolvência, ou seja, anteriormente a 31-01-2012.

      O acórdão recorrido, socorrendo-se da doutrina fixada no AUJ n.º 4/2014, concluiu pela inverificação do pressuposto necessário para o reconhecimento à Recorrente/credora do direito de retenção relativamente aos imóveis apreendidos: a qualidade de consumidora.

   E se é certo que a intervenção da Recorrente nos negócios celebrados (para revender as referidas fracções no exercício da sua actividade comercial) não integra o conceito de consumidora, o reconhecimento do seu direito de retenção não se encontra dependente dessa qualificação por não lhe ser aplicável o segmento uniformizador do Acórdão n.º 4/2014, de 20-03.

    Relativamente à questão da delimitação do âmbito de aplicação do segmento uniformizador AUJ n.º 2014, de 20-03, em que se sustenta o acórdão recorrido – “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil” –, tem vindo a ser consistentemente decidido neste Supremo Tribunal que o mesmo se circunscreve às situações em que o credor promitente-comprador não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência[5] pois que, conforme salienta o acórdão desta 6ª Secção, de 11-05-2017, o AUJ 4/2014 fez instituir um regime especial em sede insolvencial, por forma a que apenas os promitentes-compradores consumidores cujo contrato tenha sido resolvido após a declaração de insolvência, pudessem gozar de privilégio em relação à hipoteca, em sede de graduação de créditos.[6]

   Este confinamento retira da alçada do AUJ os contratos promessa que se encontrem incumpridos à data da declaração da insolvência uma vez que, nesses casos, não se pode configurar a situação de o administrador não os cumprir.

A este respeito, na configuração do negócio jurídico em curso para efeitos do disposto nos artigos 102.º e seguintes do CIRE, explicita o supra citado acórdão de 20-07-2016 “Mas importa ir mais longe e questionar quais são estes contratos que o administrador da insolvência não cumpre.

A resposta é dada pelo artigo 102.º do CIRE. Ainda que este não contenha um princípio tão geral como a sua epígrafe sugere e a solução que consagra tenha que ser integrada e completada pelos artigos seguintes – mormente em matéria de contrato-promessa pelo artigo 106.º - o certo é que o regime ai estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes. É essa execução que é suspensa e é o cumprimento, que ainda seria exigível ao devedor insolvente que o administrador pode recusar – quer essa recusa seja uma resolução ou antes deva ser concebida como uma reconfiguração contratual.

E daí que a doutrina tenha sublinhado que o regime dos artigos 102.º e seguintes do CIRE não se aplica a contratos que já foram resolvidos anteriormente à data da declaração de insolvência, encontrando-se agora em uma fase de liquidação.

A este respeito observa FERNANDO DE GRAVATO MORAIS que «o incumprimento definitivo (imputável ao promitente-vendedor) da promessa de compra e venda (por exemplo, com a alienação do bem (…) com a recusa séria e categórica em cumprir ou com a resolução ilegítima daquele promitente) que importe a extinção do contrato-promessa antes da declaração de insolvência – no caso de entrega da coisa ao promitente-comprador que sinalizou a promessa – gera a aplicação das regras civilistas» acrescentando que «verificada a insolvência posteriormente á extinção do contrato não cabe aplicar o disposto no art. 106.º, dado que o regime integrado no capítulo IV, referente aos “efeitos sobre os negócios em curso” pressupõe que o cumprimento ainda seja possível».

Também L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS afirma que «se tiver havido resolução do contrato por qualquer uma das partes antes da declaração de insolvência, não estamos perante um negócio em curso no sentido do Capítulo IV do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas»”.

     Reportando-nos à situação sob apreciação e na sequência do já acima sublinhado, o incumprimento definitivo dos contratos promessa em causa ocorreu em data muito anterior à declaração da insolvência[7]; como tal, não há que fazer observar, no caso, a doutrina fixada pelo AUJ n.º 4/2014, mostrando-se, por isso, irrelevante para o reconhecimento à Recorrente do direito de retenção a circunstância da mesma não poder ser considerada consumidora ao intervir como promitente compradora nos negócios que firmou com a sociedade declarada insolvente.

      Não sendo de observar a jurisprudência fixada no AUJ n.º 4/2014, no caso sob apreciação, há que o submeter ao regime geral ínsito no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, que não faz depender o direito de retenção atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel da circunstância de o mesmo não ser um consumidor.

A tal respeito refere o citado acórdão de 29-07-2016“(…) a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina: o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes. No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção. O legislador terá sido sensível à grande repercussão do contrato-promessa como um passo muito frequente no iter negocial que conduz à transmissão da propriedade – sendo que, de resto, o contrato-promessa pode estar associado a uma execução específica e em certos casos o promitente-comprador é mesmo um possuidor.

Este direito de retenção, já existente e sendo garantia de um crédito não subordinado, não é afectado pela declaração de insolvência, como decorre do artigo 97.º do CIRE”.

      Consequentemente, mostrando-se verificados, no caso, os requisitos previstos no artigo 755.º, n.º1, alínea f), do Código Civil, há que reconhecer à Recorrente os direitos de retenção sobre os imóveis que constituem as verbas 5, 6, 8 e 9 da massa insolvente.

        Procedem, pois, as conclusões das alegações.


IV. DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista procedente, pelo que se decide:

i. alterar o acórdão recorrido quanto à alínea D) e pontos 3 e 4 da alínea E). Consequentemente:

ii. D)  Julgar reconhecido o direito de retenção invocado pelo reclamante BB - Imóveis Unipessoal, Lda. relativamente aos imóveis a que respeitam as verbas 5, 6, 8 e 9 do auto de apreensão, garantido o pagamento do crédito reconhecido em B)[8];

iii. E) Graduar os créditos reconhecidos nos seguintes termos: (…)       

3.1 Pelo produto da venda dos imóveis a que respeitam as verbas 3, 4 e 7 do auto de apreensão dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:

1.º Autoridade Tributária, pelos montantes de IMI que corresponderem a cada um dos referidos imóveis, de acordo com a especificação apresentada pelo Ministério Público em 25.11.2016, a fls. 197/198 do processo em papel.

2.º Caixa Económica CC.

3.º Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes;

3.2 Pelo produto da venda dos imóveis a que respeitam as verbas 5 e 6 do auto de apreensão dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:

1.ºAutoridade Tributária, pelos montantes de IMI que corresponderem a cada um dos referidos imóveis, de acordo com a especificação apresentada pelo Ministério Público em 25.11.2016, a fls. 197/198 do processo em papel;

2.º BB - Imóveis Unipessoal, Lda., até ao montante de €79.674,00 de capital, acrescido dos juros acrescido dos juros de mora e juros compulsórios nos termos decididos em B) relativamente a cada um dos dois imóveis.

3.º Caixa Económica CC.

4.º.Os créditos comuns, se necessário em rateio, na proporção dos respectivos montantes;

4. Pelo produto da venda dos imóveis a que respeitam as verbas 8 e 9 do auto de apreensão dar-se-á pagamento pela ordem seguinte:

1.º (...)

2.º BB - Imóveis Unipessoal, Lda., até ao montante de €60.326,00 de capital, acrescido dos juros de mora e juros compulsórios nos termos decididos em B) relativamente a cada um dos dois imóveis.

3.º Banco EE - anteriormente Banco DD, SA;

4.º Os créditos comuns, se necessário, em rateio, na proporção dos respectivos montantes.

iv. Custas pelos Recorridos.

Lisboa, 11 de Setembro de 2018


Graça Amaral (Relatora)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

__________

[1] Requereu a interposição de revista ordinária ou excepcional ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º1, alíneas a), b) e c) do CPC. Distribuídos como revista excepcional, a Formação proferiu Acórdão determinando que os autos fossem distribuídos como revista normal atenta a circunstância de, em função da pretensão da Recorrente, a revista excepcional se configurar subsidiária da pretensão de recurso de revista normal.        
[2] A questão reporta-se aos efeitos da impugnação deduzida pela credora Caixa Económica CC relativamente ao credor não impugnante Banco DD. A 1ª instância considerou que a sentença proferida em 30.12.2009, transitada em julgado em 08.10.2008 (que declarou resolvidos os contratos promessa celebrados e condenou a sociedade posteriormente declarada insolvente a pagar à aqui Recorrente a quantia de 280.000,00€ correspondente ao dobro das quantias entregues a título de sinal, reconhecendo à Autora o direito de retenção sobre os imóveis objecto dos contratos promessa) não era oponível à credora Caixa Económica CC (por ter deduzido impugnação invocando a inoponibilidade da sentença e por não ter sido parte no processo em causa), sendo, todavia, oponível à credora Banco DD, SA (por a referida sentença ter transitado em julgado muito antes da declaração de insolvência, não tendo a credora no momento próprio deduzido impugnação, consolidando-se, por isso, o direito de retenção reconhecido pelo AI). O acórdão recorrido, ao invés, entendeu que a Caixa Económica CC não era um terceiro juridicamente indiferente (relativamente à sentença que havia reconhecido o direito de retenção) e a impugnação aos créditos por si deduzida aproveitava os demais credores, no caso, o Banco DD, SA; como tal, julgou não reconhecido o direito de retenção sobre as verbas 8 e 9.           
[3] Correspondente ao dobro das quantias entregues para cumprimento dos contratos-promessa a título de sinal.  
[4] Questões decididas na sentença que mereceu a conformação das partes, como se mostra reconhecido pelo acórdão recorrido.
[5] Cfr. neste sentido Acórdão do STJ de 29-07-2016, Processo n.º 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1, citado pela Recorrente e junto aos autos (fls.421/426).
[6] Processo n.º 1308/10.2T2AVR-R.P1.S1, a cujo sumário se pode aceder através de https://www.stj.pt/?page_id=4471.
[7] A sociedade declarada insolvente não compareceu à escritura designada para 09-10-2008, deixando de estabelecer qualquer outro contacto com a promitente compradora, designadamente durante a acção que esta instaurou contra aquela em 18-10-2008 pedindo a declaração do incumprimento definitivo dos contratos promessa e a consequente resolução dos mesmos (cfr. n.ºs 13 a 18 dos factos provados). Conforme se encontra salientado no sumário do acórdão do STJ de 20-06-2017, Revista n.º 3296/14.7T8VIS-A.C1.S1, 6.ª Secção, “I - Havendo resolução do contrato-promessa por qualquer das partes antes da declaração de insolvência, não se está perante um “negócio em curso”, no sentido do Capítulo IV do CIRE, mas face a um crédito sobre a insolvência. II - Em tal situação, os direitos à restituição do sinal em dobro e ao direito de retenção sobre a fracção prometida vender consolidaram-se na esfera dos credores antes da declaração de insolvência, declaração esta que não os pode afectar, ainda que não revistam a qualidade de consumidores, como é exigido pelo AUJ n.º 4/2014”, acessível através de https://www.stj.pt/?page_id=4471.  
[8] No montante de 280.000 € de capital, acrescido de juros de mora vencidos desde 08/01/2010 e vincendos até integral pagamento, à taxa legal de 4% e dos juros compulsórios à taxa de 2,5% desde a data em que transitou em julgado o segmento da sentença recorrida que reconheceu o referido crédito de capital, nos termos decididos no acórdão recorrido.