Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P3454
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CRIMES DE PERIGO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
ILICITUDE
GRAU DE PUREZA
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
REINCIDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: SJ20081119034543
Data do Acordão: 11/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - O art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, contém a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão interindividual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
II - Trata-se de um crime de perigo, e de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal, reconduzidos à saúde pública. E é, também, um crime de perigo abstracto, porque não pressupõe nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um deles: os tipos de perigo abstracto descrevem acções que, segundo a experiência, conduzem à lesão, não dependendo a perigosidade do facto concreto mas sim de um juízo de perigosidade geral.
III - A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado de tráfico de estupefacientes, p. e p., respectivamente, pelos arts. 21.º, n.º 1, e 25.º do DL 15/93, de 22-01, reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devem ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativos para a conclusão quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental. Os critérios de proporcionalidade que devem estar ínsitos na definição das penas constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude». As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios, na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas.
IV - A inexistência de uma estrutura organizativa e/ou a redução do acto ilícito a um único negócio de rua, sem recurso a qualquer técnica ou meio especial, dão uma matriz de simplicidade que, por alguma forma, conflui com a gravidade do ilícito. Como elementos coadjuvantes relevantes e decisivos surgem, então, a quantidade e a qualidade da droga. Esta última constitui aqui um elemento de importância vital, revelando-se como um instrumento técnico (às vezes único) para demonstrar o destino para terceiros do estupefaciente possuído. É preciso que nos fundamentemos na quantidade da substância, quando outros dados não existem, sendo que a apreciação da quantidade detida deve apoiar-se em módulos do carácter qualitativo, avultando o grau de pureza da substância estupefaciente e seu perigo para a saúde, porque não é o mesmo ter 100 g de heroína ou de cocaína do que ter 100 g de haxixe. Mas a determinante decisiva na gravidade de uma infracção é a intenção, mais do que a quantidade possuída.
V - No nosso país o único texto legal que comporta uma referência a quantidades é a Portaria 94/96 que, embora com finalidade totalmente distinta, nos dá, no mapa elaborado com referência ao respectivo art. 9.º, uma indicação dos limites quantitativos diários de consumo no que concerne a estupefacientes, o que constitui um poderoso elemento de coadjuvação no que respeita à determinação, com maior precisão, da delimitação entre os arts. 21.º e 25.º do DL 15/93, de 22-01.
VI - Vindo provado que o arguido detinha cerca de 220 g de heroína, e que o preço de 1 g dessa substância se situava então, no ano de 2004, em € 46,54, não é possível sustentar que tal quantidade, pela sua dimensão também em termos de valor, seja detentora de uma menor carga de ilicitude – estamos perante cerca de € 10 000 de droga, em termos de mercado, com uma potencialidade de difusão perante um largo universo de consumidores –, pelo que a conduta do arguido integra os elementos constitutivos do crime previsto no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01.
VII - Para o funcionamento da agravante da reincidência é necessária a verificação de determinados pressupostos: existência de crime doloso, punido com pena de prisão efectiva, por condenação anterior transitada em julgado; o facto de não ter decorrido mais de cinco anos entre a prática de um e outro dos crimes em consideração; o cumprimento total ou parcial da pena de prisão aplicada (pressupostos formais); que a condenação ou condenações anteriores não tenham servido ao agente de suficiente advertência contra o crime (pressuposto material).
VIII - Constatando-se que a decisão recorrida considerou provado que o arguido foi condenado no âmbito de determinado processo, por decisão transitada em julgado em 03-01-2003, pela prática «desde data não apurada até 9.5.2001», não pode dizer-se que o crime anterior foi cometido em momento que permita afirmar que entre a sua prática e a do crime pelo qual o arguido é agora condenado mediou o prazo de cinco anos ou inferior.
IX - Tal indeterminação terá de ser resolvida com apelo ao princípio in dubio pro reo, conduzindo à não consideração da existência da referida agravante.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Évora que, julgando parcialmente procedente o recurso interposto, e como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º 1 do D.L. 15/93 de 22.1, e como reincidente, nos termos do art. 75º do Cód. Penal, o condenou na pena de nove (9) anos de prisão.
As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:
a) Salvo o devido respeito, a matéria que foi dada como provada não é suficiente para fundamentar, com observância dos normativos legais, a condenação do recorrente, pelo que se encontra preenchido o requisito constante da alínea a) do nº 2 do artigo 410 do C.P.P.;
b) Não se vislumbra, como possa ter resultado da ponderação e avaliação crítica dos diferentes elementos de prova submetidos à apreciação dos julgadores, a convicção do Tribunal de que o recorrente praticou o crime de tráfico de estupefacientes, e muito menos, com o enquadramento dado pelo artigo 21º
c) Violou, portanto, o douto Tribunal a quo, o principio in dubio pro reo, previsto no artigo 32° da C.R.P., tendo a sua decisão ao abrigo da livre apreciação de prova, prevista no artigo 127 do C.P.P., ultrapassado os limites que, constitucionalmente lhe são impostos principalmente pelo princípio acima enunciado;
d) Nesse contexto, coligidos, os factos há-de concluir-se que a conduta do recorrente, avaliada na perspectiva, da imagem global do facto, se enquadra quando muito na previsão dos artigos 25° e não na pesada, moldura punitiva do artigo 21°, sob pena de clamorosa, desproporcionalidade
e) Qualificados os factos, admitindo-se por dever de patrocínio o enquadramento na previsão do artigo 25° do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, a, pena a aplicar há-de ser forçosamente diferente daquela a que foi penosamente sujeito o recorrente;
f) In casu, a moldura normal encontra-se confinada. entre um a cinco anos.
g) No que se reporta à medida da pena, a questão só se coloca, s.m.o., na eventualidade desse Colendo Tribunal ad quem, vier a dar como provada, com o grau de certeza que se impõe ao julgador, a autoria pelo arguido de um tipo de crime de tráfico de estupefacientes;
h) Caso tal se verifique, o que só se admite por mera cautela de patrocínio, não poderá concluir-se ele outra forma que não seja a de operar a necessária subsunção dos, factos dados como provados na previsão do artigo 25° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro;
i) Ainda assim, se esse Colendo Tribunal não corroborar do entendimento aqui expendido, e ao invés, considerar não ser merecedora de reparo a quanto à qualificação dos factos, deverá ainda assim, a decisão a quo ser objecto de reparo censura no que respeita à concreta pena aplicada ao recorrente, a qual, atendendo aos princípios gerais de direito e à tão visada reinserção social, se afere como excessivamente gravosa e, acima de tudo, como contraproducente
j) Como bem ensina o excelso Professor Dr. Figueiredo Dias: "( ... ) Esta deve, em toda a medida possível, servir a reintegração do agente na comunidade e evitar a quebra da, sua, inserção social, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção de bens jurídicos ( ... )";
k) No caso concreto afigura-se perfeitamente plausível a aplicação de um juízo de prognose favorável à reintegração social do arguido, tratando-se como é o caso de um arguido primário, sem quaisquer antecedentes anteriores ou posteriores ao momento da condenação sofrida;
1) O seu contrário, comprometerá a sua preparação futura para conduzir a sua vida de forma socialmente responsável sem cometimento de crimes, como tem sabido fazer até aqui;
m) Dentro da moldura de prevenção cabe à prevenção especial - em função das necessidades de socialização do agente encontrar o quantum exacto da pena: advertência, socialização, intimidação individual e segurança individual (inocuização) são quatro campos de actuação da dimensão preventivo-especial;
n) Nomeadamente no que diz respeito ao disposto na alínea d), do nº 2 do artigo 71° do c.P., uma vez que se trata de pessoa de modesta condição social e económica;
o) A própria condição pessoal do agente, é de molde a decidir-se por medida, que contribua para a reintegração e não para a segregação, cumprindo-se assim o disposto no artigo 40° do C.P.;
p) A despeito da margem de, liberdade de que goza o julgador na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais, o Recorrente não se conforma, com o critério espelhado na, decisão a quo, revelando-se aquele ofensivo dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação das penas;
g) Por conseguinte, o doseamento da pena arbitrado pelo tribunal a quo denuncia uma nítida violação do principio constitucional da proporcionalidade das penas, o qual impõe que a, gravidade das sanções deva ser proporcional à gravidade das infracções;
r) A este respeito, desde já. se advoga que as normas constitucionais que se consideram, violadas são às vertidas no n° 2 do artigo 32°, nº 6 do artigo 29° e nº 4 do artigo 30° da Constituição da República Portuguesa"
termina pedindo que o recurso seja julgado procedente, considerando-se não provada a prática do crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo disposto no artigo 21 do Decreto - Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, de que vem acusado o ora recorrente, dada a, insuficiência da prova, produzida em sede de audiência de julgamento.
Na eventualidade de não procederem as alegações do recorrente no que respeita aos apontados vícios da decisão a quo entende que deverá era alterada a qualificação jurídica dos factos conduzir ao enquadramento na previsão do artigo 25 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, aplicando-se pena muito próxima dos limites mínimos, equacionando-se o binómio - culpa, do arguido - ilicitude do facto, tudo em obediência ao estabelecido nos artigos 40, 70 e 71 do Código Penal
Respondeu o Ministério Público advogando a manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância o ExºMºSr.Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Os autos tiveram os vistos legais.
*
Em sede de decisão recorrida considerou-se provada a seguinte factualidade:
a) no dia 16.11.2004, o arguido AA, no gozo de uma licença de saída precária prolongada de cinco dias, saiu do estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz, onde se encontrava preso em cumprimento de pena à ordem do Proc. nº 262/01.6GTABF, do 3º Juízo do Tribunal de Albufeira, e desde essa data e até 5.01.2006, não mais regressou àquele estabelecimento prisional;
b) entre Setembro de 2005 e Janeiro de 2006, o arguido AA foi visto, durante o dia, na zona de Loulé - junto à fábrica da Cimpor - onde permanecia num local de mata;
c) nesse período o arguido AA vendeu, pelo menos uma vez, em Lagoa, estupefaciente a um indivíduo, sendo que nessa ocasião, o arguido AA fez-se transportar no veículo Volkswagen Pólo, matrícula 00-00-EO, propriedade e conduzido pela arguida PP;
d) e por pelo menos 3 ou 4 vezes, o arguido AA deslocou-se para fazer entregas de estupefacientes, perto de Tunes e de São Bartolomeu de Messines, fazendo-se transportar no veículo Peugeot 205 GR, matrícula QI-00-00, propriedade e conduzido pelo arguido BB, o qual, em troca, recebia daquele a sua dose diária de heroína;
e) os arguidos BB e PP agiram livre e deliberadamente, conhecendo a actividade realizada pelo arguido AA, sabendo que era ilícita, e apesar disso acederam em transportá-lo nos respectivos veículos, enquanto ele procedia àquela actividade, sendo que o objectivo do arguido BB era o de receber, como recebia, em troca, a sua dose diária de heroína, e bem sabendo ambos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
f) no dia 5.01.2006, o arguido AA tinha na sua posse seis sacos de plástico contendo cocaína (cloridrato) com o peso bruto de 6,481 gramas e, líquido, de 5,947 gramas (cfr. o resultado do exame toxicológico que se encontra a fls. 250 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
g) no dia 6.01.2006, o arguido AA tinha escondidos em diversos locais da casa onde habitava: 120 sacos de plástico contendo heroína, com o peso bruto de 163,200 gramas e, líquido, de 149,319 gramas; 1 saco de plástico contendo heroína com o peso bruto de 74,200 gramas e, líquido, de 73,200 gramas; 12 sacos de plástico contendo cocaína (cloridrato) com o peso bruto de 5,755 gramas e, líquido, de 5,095 gramas; e 2 sacos de plástico contendo cocaína (cloridrato) com o peso bruto de 40,588 gramas e, líquido, de 38,241 gramas (cfr. o resultado do exame toxicológico que se encontra a fls. 387 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
h) no mesmo dia 6.01.2006 o arguido AA tinha no interior da sua residência 1 saco de plástico contendo paracetamol e cafeína com o peso bruto de 577,600 gramas (cfr. o resultado do exame toxicológico que se encontra a fls. 387 dos autos); 1 balança de precisão, marca tanita, modelo 1479V, lote n° 1450121, de cor preta; 1 rolo de sacos de plástico; 1 embalagem de papel de alumínio; e 15 elásticos de borracha de cor amarela, tudo substâncias e objectos vulgarmente utilizadas na pesagem e “corte” de estupefacientes e que o arguido utilizava para esse efeito;
i) o arguido AA destinava todo o estupefaciente apreendido e supra referido à venda a terceiros, não obstante saber que não podia ter consigo, vender ou ceder a qualquer título esses produtos estupefacientes, o que quis e conseguiu;
j) o arguido AA sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, tendo actuado de forma deliberada, livre e consciente;
l) no dia 6.01.2006 o arguido AA tinha na residência onde habitava 3 Compact Disc regraváveis, que continham fixadas obras musicais de Michael Bolton (álbum “The Ultimate Collection”), Aquilino Cabral (álbum “Movimento”) e um outro com obras musicais de diversos autores, editada por Sons d' África, os quais são duplicação artesanal (gravação) das obras musicais constantes dos álbuns respectivos, os quais são interpretadas por autores representados pela Sociedade Portuguesa de Autores, não tendo esta concedido autorização para a fixação daquelas obras musicais naqueles compact-discs (cfr. relatório pericial de 676 a 681, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
m) no mesmo dia 6.01.2006, o arguido AA tinha ainda na residência onde habitava: 487,50 € em notas e moedas do Banco Europeu, provenientes da venda de estupefacientes; 1 rádio com leitor de CDs da marca Worten, com o nº de série 11900139112; 1 rádio com leitor de CDs da marca Philips; 1 rádio com leitor de CDs da marca Mitsai, com o n° de série HL-CD45; 1 leitor de DVD, da marca Denver, com o nº de série 2394-01/05/09055; 1 faca decorativa, com a respectiva baioneta, com lâmina de 21 cm; 1 telemóvel da marca Nókia, modelo 35101; 1 anel em metal dourado; 4 carregadores de telemóvel da marca Nókia; 1 auricular estéreo; 1 fio de metal prateado com uma medalha em forma de coração; 2 porta CDs contendo no seu interior 16 CDs; 1 punhal decorativo, com um fio vermelho e respectiva baioneta, com lâmina de 10 cm; 1 navalha prateada e castanha, da marca Albacete, com lâmina de 8 cm; e 1 navalha de cor verde, com 11 cm de lâmina;
n) o arguido AA foi condenado no âmbito de Proc. nº 262/01.6GTABF, do 3º Juízo do Tribunal de Albufeira, por decisão transitada em julgado em 3.01.2003, pela prática desde data não concretamente apurada até 9.05.2001, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo disposto no art° 21°, nº 1, do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 8 anos de prisão (cfr. a certidão junta aos autos a fls. 203 ss, que aqui se dá por integralmente reproduzida);
o) o arguido AA esteve preso à ordem do supra referido processo, entre 8.05.2001 até 16.11.2004, data em que saiu do estabelecimento prisional sem ter cumprido a totalidade da pena, mas a condenação e a pena de prisão que cumpriu não constituíram meio bastante para o afastar da prática de novos crimes;
p) quando interrogado na qualidade de arguido, perante Juiz de Instrução, no âmbito dos presentes autos, BB, devidamente advertido da obrigatoriedade de responder com verdade às perguntas feitas acerca dos seus antecedentes criminais, declarou ter sido condenado uma vez por furto, outra vez por tráfico de estupefacientes e outra vez pela prática de crime de roubo (cfr. fls. 71);
q) o arguido BB já tinha sido condenado anteriormente pela prática dos seguintes crimes: roubo e receptação (Proc. n° 50/98 do Tribunal de Círculo de Portimão); furto qualificado (Proc. n° 132/00.5PALGS do 1° Juízo do Tribunal judicial de Lagos); tráfico de estupefacientes de menor gravidade (Proc. n° 221/97 do 1° Juízo do Tribunal judicial de Lagos); e tráfico de estupefacientes de menor gravidade e furto qualificado (Proc. nº 252/99.7GALGS do 1° Juízo do Tribunal judicial de Lagos);
r) o arguido BB sabia que para além das condenações que referiu ter sofrido aquando do seu interrogatório judicial, tinha sofrido também as outras referidas, mas estava em carência de estupefacientes e sob medicação que lhe tinha sido ministrada no Hospital;
s) no dia 6 de Março de 2006, a GNR procedeu à entrega ao arguido BB, na qualidade de fiel depositário, do veículo automóvel, da marca Peugeot, modelo 205-­GR, de matrícula QI-00-00, propriedade do mesmo e que tinha sido apreendido à ordem destes autos, tendo nessa ocasião sido o arguido devidamente advertido da obrigação de não utilizar o veículo e que a utilização o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, do que ficou perfeitamente consciente (cfr. o auto de apreensão de fls. 253);
t) apesar disso, agindo deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, desde essa data que o arguido tem conduzido por diversas vezes a referida viatura, utilizando-a nas suas deslocações sempre que necessitava;
u) o arguido BB, por acórdão proferido em 10/11/2003 que operou o cúmulo de diversas penas de prisão pela prática, em 1997, 1999 e 2000 de crimes de furto qualificado, tráfico de estupefacientes de menor gravidade, roubo e receptação, foi condenado na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão (cfr. a certidão de fls. 174 ss);
v) o arguido BB esteve preso, à ordem dos supra referidos processos, entre 10.03.2000 e 2.07.2004, data em que saiu do estabelecimento prisional sem ter cumprido a totalidade da pena, após lhe ter sido concedida liberdade condicional, porém a condenação e a pena de prisão que cumpriu não constituíram meio bastante para afastar o arguido BB da prática de novos crimes;
x) o arguido AA não regista outros antecedentes criminais para além da condenação referida em n);
z) o arguido AA tem como habilitações literárias a 4ª classe; nasceu no seio de uma família economicamente desfavorecida, trabalhando desde criança na agricultura até que, com 18 anos, iniciou actividade profissional na construção civil; imigrou para Portugal em 1999, juntando-se-lhe a companheira em 2002; em Cabo Verde mantém-se os 4 filhos de ambos, com idades compreendidas entre os 19 e os 12 anos de idade; à data da prática dos factos o arguido encontrava-se desempregado; no E.P. o arguido trabalha na cozinha; tem apoio familiar, sendo visitado pela companheira todas as semanas;
aa) o arguido BB foi condenado, como referido em q): na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, pela prática dos crimes de roubo e receptação; na pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de furto qualificado; na pena de 18 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade; na pena de 4 anos e 4 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e furto qualificado, e sendo-lhe efectuado cúmulo jurídico de todas as penas aplicadas, foi condenado na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão;
ab) o arguido BB tem como habilitações literárias o 7º ano de escolaridade; iniciou actividade laboral na área da construção civil, tendo posteriormente desenvolvido diversas actividades e chegado a estabelecer-se por conta própria em actividade comercial; após ter tido um grave acidente de viação, cujo processo de recuperação decorreu durante cerca de 2 anos, contraiu matrimónio e iniciou o consumo de estupefacientes, designadamente heroína; à data da prática dos factos encontrava-se em liberdade condicional e trabalhava, detendo vínculo contratual como técnico de frio, mas teve uma recidiva aditiva, tendo reiniciado o consumo de estupefacientes; no dia 17 de Abril último internou-se na Comunidade Terapêutica do Azinheiro, encontrando-se o seu processo de integração a decorrer de forma favorável; continua a beneficiar do apoio da família de origem;
ac) a arguida PP não regista antecedentes criminais;
ad) a arguida PP tem como habilitações literárias o 4º ano do antigo curso comercial e industrial; após o falecimento do progenitor, tinha a arguida 15 anos de idade, deixou de estudar e começou a desenvolver funções administrativas num escritório; casou cedo, teve 2 filhos e divorciou-se; reconstituiu agregado familiar à cerca de 26 anos, vivendo com companheiro; tem sentido alguma instabilidade laboral, tendo ficado desempregada em 2004 e conseguindo em períodos colocações através do Instituto de Emprego; toma conta de duas casas de férias; é consumidora regular de substâncias psicotrópicas, facto que ocultou à família durante muitos anos, mas considera que não necessita de apoio médico-terapêutico;
ae) à data dos factos, os arguidos BB e PP consumiam estupefacientes.
*

I
Adquirido que os poderes de cognição deste Supremo Tribunal de Justiça se circunscrevem á matéria de direito, sendo vedada a sindicância da matéria de facto-artigo 434 do Código de Processo Penal- importa salientar que a matéria do presente recurso se centra, em primeira linha, na decantada questão da destrinça entre a integração dos elementos constitutivos dos crimes dos artigos 21 e 25 do Decreto Lei 15/93.
No que concerne dir-se-á que uma primeira nota que não pode deixar de ser chamada á colação reside na circunstância de, assumida a existência de uma orientação jurisprudencial consolidada, a ruptura com a mesma necessariamente que terá de assentar numa argumentação consistente que permita concluir pela necessidade de rever a orientação seguida. O que está em causa é também a certeza e segurança do Direito e, nomeadamente, da interpretação da norma o que por alguma forma toca o próprio cerne do Estado de Direito.
Dito isto, permitimo-nos trazer á colação a posição assumida em Acórdão desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, e subscrita parcialmente pelos mesmos subscritores, no sentido de que o artigo 21º nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas sobre substâncias estupefacientes, descreve de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica: «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, «puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver [...], plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas I a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos».
O mesmo preceito contém a descrição fundamental - o tipo essencial - relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
Crime de perigo abstracto é o crime que não pressupõe nem o dano nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para casuar um perigo para um desses bens jurídicos. Os tipos de perigo abstracto descrevem acções que, segundo a experiência conduzem á lesão não dependendo a perigosidade do facto concreto mas si de um juízo de perigosidade geral
É, assim, de um crime de perigo que tratamos, e de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos designadamente de carácter pessoal- reconduzidos á saúde pública. Finamente é, também, um crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstancias necessárias para causar um perigo desses bens jurídicos.
Respondendo directamente àquela que constitui a principal discordância da recorrente, importa renovar a aquisição normativa de que o artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, denominado de "tráfico de menor gravidade", dispõe, com efeito, que «se, nos casos dos artigos 21º e 22º a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações», a pena é de prisão de 1 a 5 anos (alínea a)), ou de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias (alínea b)), conforme a natureza dos produtos (plantas, substancias ou preparações) que estejam em causa.
Trata-se, como é entendido na jurisprudência e na doutrina de um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de artigo 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.
A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devam ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».
As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios; na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas. Na sua essência o que pretende é estabelecer-se a destrinça entre realidades criminológicas distintas que, entre si, apenas têm de comum o facto de constituírem segmentos distintos de um mesmo processo envolvido no perigo de lesão. Na verdade, o legislador sentiu a aporia a que era conduzido pela integração no mesmo tipo leal de crime de condutas de matriz tão diverso como o tráfico internacional envolvendo estruturas organizativas integradas e produto de quantidades e qualidades muito significativas e negócio do dealer de rua, último estádio de um processo de comercialização actuando isoladamente, sem estrutura, e como mero distribuidor. Num segmento intermédio, mas nem por isso despojado, em abstracto, de significativa ilicitude situa-se o tráfico interno, muitas vezes com uma organização rudimentar (e com tendência a uma compartimentação cada vez maior dificultando a investigação).
Função essencial na interpretação do tipo em questão assume a referência feita pelo legislador no proémio do D.L. 430/83 quando já aí demonstrava a sensibilidade á diversidade de perfis de actuação criminosa dizendo que “Daí a revisão em termos que permitam ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor que, apesar de tudo, não pode ser aligeirado de modo a esquecer o papel essencial que os dealers de rua representam no grande tráfico. Haverá assim que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que ao invés se force ou use indevidamente uma atenuante especial”
A relevância de tal pressuposto também é adequada para a prossecução de relevantes finalidades de prevenção geral e especial, justifica as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (artigos 21º, 22º e 24º) e os pequenos e médios (artigo 25º), e ainda daqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (artigo 26º).

Justificada, em temos dogmáticos, a existência do tipo legal em apreço importa agora, numa tentativa de aproximação concreta, densificar os critérios eleitos como consubstanciadores daquela menor gravidade.
Sem qualquer margem para a dúvida que a inexistência de uma estrutura organizativa e/ou a redução do acto ilícito a um único negócio de rua, sem recurso a qualquer a qualquer técnica ou meio especial, dão uma matriz de simplicidade que, por alguma forma conflui com a gravidade do ilícito. Como elementos coadjuvantes relevantes e decisivos surgem, então, a quantidade e a qualidade da droga.
Como refere Huidobro a quantidade de droga possuída constitui aqui um elemento da importância vital na altura de realizar a verificação revelando-se como um instrumento técnico (às vezes único) para demonstrar o destino para terceiros do estupefaciente possuído. É preciso que nos fundamentemos na quantidade da substância, quando outros dados não existem, se não quisermos violar o objectivo que o legislador tenta prosseguir com o crime de tráfico
A apreciação da quantidade detida deve apoiar-se em módulos do carácter qualitativo, entre os quais é possível enfatizar:
a) O grau de pureza da substância estupefaciente, porque não são o mesmo cem gramas do heroína com um pureza de 3% que cem gramas da mesma substância com um pureza de 80%.
b) O perigo da substância é também fundamento, porque não é o mesmo ter cem gramas de heroína ou de cocaína do que ter cem gramas do hashish.
Poderá oferecer relevância a consideração de que a droga, quando chega nas mãos do consumidor, é frequentemente muito misturada e adulterada (com glucose e outros produtos), o que provoca que, para obter os efeitos pretendidos, aquele compra quantidades superiores ás que adquiriria se o produto chegasse até ele no estado puro.

A utilização do critério da quantidade, por forma a conceder-lhe efeitos ou consequências a nível penal, é uma questão transversal dos ordenamentos jurídicos europeus e, em 2003, notava-se que a quantidade é um dos principais critérios na distinção entre posse para consumo pessoal e tráfico e, dentro deste para a determinação da gravidade da infracção. A definição da quantidade, e a forma pela qual é tomada em atenção na classificação das infracções, varia de país para país e mais de um critério é utilizado no mesmo país para distinguir as quantidades. Podem-se salientar os seguintes critérios:
-Treze países determinam a quantidade com base em considerações mais genéricas como “ampla” ou “diminuta”
-Três tomam em atenção o valor monetário como base, enquanto que três utilizam o critério da dose diária
-Seis definem as quantidades pelo número máximo de gramas por substância ou por limite (v.g até 5 gramas)
-Cinco baseiam os seus cálculos sob o peso da substância química implicada.
Importa, porem, salientar que a determinante decisiva na gravidade de uma infracção é a intenção mais do que a quantidade possuída. Uma vasta maioria de países optou pela menção de pequenas quantidades nas suas leis, ou directivas, deixando á descrição do tribunal a determinação do tipo de infracção (uso pessoal ou tráfico).
No nosso país o único texto legal que comporta uma referência a quantidades é a Portaria 94/96 que, embora com uma outra finalidade totalmente distinta, nos dá, no mapa elaborado com referência ao respectivo artigo 9, uma indicação dos limites quantitativos diários de consumo no que concerne a estupefacientes apontando-se o valor de 0,1 gramas no que concerne á heroína e 0,2 gramas no que respeita á cocaína. (Limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente). Esta referência ás quantidades necessárias ao consumo constitui um poderoso elemento de coadjuvação no que respeita á questão interpretativa suscitada nos presentes autos e, nomeadamente, para ajudar a determinar com uma maior precisão o limite entre os artigos 21 e 25 do Decreto Lei 15/93.

A materialidade considerada provada afirma que o arguido detinha cerca de 220 gramas de heroína. Por seu turno, e segundo o Relatório da Policia Judiciária relativo ao combate ao tráfico de estupefacientes, o preço de um grama de heroína situava-se, no ano de 2004, em € 46,54.
Não se vislumbra como é possível argumentar-se perante este Supremo Tribunal que esta quantidade, pela sua dimensão em termos de valor e quantidade, possa ser qualificada como detentora de uma menor carga de ilicitude. Ao fim e ao cabo estamos perante cerca de 10.000 Euros de droga em termos de mercado com uma potencialidade de difusão perante um largo universo de consumidores
A detenção pelo arguido é, sem qualquer dúvida, integradora, dos elementos constitutivos do crime a que se reporta o artigo 21 do diploma citado.

II
No que respeita á medida da pena refere a decisão recorrida que:
-“Como verificamos, no acórdão recorrido acentua-se o grau de ilicitude elevado e justifica-se com pertinência a valia das exigências de prevenção geral no domínio da ilicitude ligada ao tráfico de estupefacientes, apontando, por isso, as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico para pena claramente distanciada do limite mínimo aplicável. E essas exigências devem ser no caso particularmente actuantes e determinantes da pena pela quantidade não despicienda de produto estupefaciente detido destinado a venda.
Por outro lado, não se divisa na descrita situação pessoal do arguido e que também foi ponderada no acórdão recorrido, qualquer circunstância que adquira particular relevo atenuante, sendo certo que o único motivo que se vislumbra para o cometimento do crime se prende com a obtenção de proventos económicos o que, não obstante a situação pessoal do arguido, não lhe confere qualquer grau de compreensibilidade que justifique "atenuação" como pretende o recorrente com fixação da pena próxima do limite mínimo. Porém, a descrita actividade criminosa do arguido não é equiparável aquilo a que se possa designar de operação de grande tráfico de estupefacientes e nessas circunstâncias entendemos que a equação entre o grau de ilicitude e da culpa...e as exigências de prevenção geral aponta para pena inferior, de nove anos de prisão.
Assim, será a pena fixada em nove anos de prisão, merecendo nessa medida provimento o recurso”.
*
A esta argumentação contrapõe o recorrente a circunstância de ser delinquente primário, jogando ainda com as consequências inerentes ás sequelas inerentes a um processo de socialização anómico.
Importa, em primeira linha, verificar do funcionamento da agravante da reincidência:
«É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.» - artigo 75.º, n.º 1, do Código Penal.
«O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas de liberdade.» - n.º 2 do mesmo artigo.
Estamos assim em face da necessidade de verificação de pressupostos formais da agravante invocada que se consubstanciam na existência de crimes doloso, punido com pena de prisão efectiva, condenação anterior transitada em julgado; o facto de não ter decorrido mais de cinco anos entre a prática de um e outro dos crimes em consideração; o cumprimento total ou parcial da pena de prisão aplicada e, também de pressupostos materiais seja o de que a condenação ou condenações anteriores não tenham servido ao agente de suficiente advertência contra o crime.
Relativamente a este último requisito escreveu o Prof. Figueiredo Dias (1) “é no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e portanto para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente. É nele, por conseguinte, que reside o lídimo pressuposto material – no sentido de «substancial», mas também no sentido de pressuposto de funcionamento «não automático» – da reincidência. Com o que se recusa tanto uma concepção puramente «fáctica» da reincidência, que a fizesse resultar imediatamente da verificação de certos pressupostos formais e que seria incompatível com o princípio da culpa; como uma concepção que considerasse impossível a recondução da reincidência a uma culpa agravada e, em consequência, a tratasse, só ou predominantemente, no domínio da especial perigosidade».
«O critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa, exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados, que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa. Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (v.g., o afecto, a degradação social e económica, a experiência especialmente criminógena da prisão, etc.) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. [...] Decisiva será, em todas as situações, a resposta que o juiz encontre para a questão de saber se ao agente deve censurar-se o não se ter deixado motivar pela advertência contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores».

A decisão recorrida para justificar o funcionamento da agravante modificativa em virtude do crime de tráfico de estupefacientes, referiu, num plano material que a condenação e a pena de prisão que cumpriu não constituíram meio bastante para o afastar da prática de novos crimes.
Temos sérias reservas sobre a circunstância de a formulação de um juízo conclusivo formulado, sem o apoio de quaisquer factos, constitua base suficiente para se afirmar o requisito substancial do funcionamento da reincidência. Na verdade, se esta agravante reflecte uma maior culpa por virtude de uma atitude de desconsideração pela advertência contida na condenação anterior, e uma maior perigosidade com reflexo na prevenção, é necessário que se demonstrem factos reveladores dessa ausência de motivação.
Como bem se referiu no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Junho de 2007 (1) para além de uma tal tomada de posição ser fortemente tributária de uma concepção puramente «fáctica» da reincidência, que, como se viu já, está arredada do nosso sistema, pois, para além do mais seria imperioso, em tal sede, que a acusação lograsse a invocação de factos onde pudesse assentar com algum conforto a conclusão avançada de que «a condenação não serviu de suficiente advertência contra o crime de que é acusado», ou seja, um quadro de facto donde emergisse claramente um grau culpa extensivo à renovação do acto traficante apesar de condenação anterior, o certo é que, para além disso, aquele facto conclusivo «tal condenação não serviu de suficiente advertência contra o crime de que é acusado».

Porém, fundamentalmente a razão de ser da nossa discordância situa-se numa vertente formal considerando que dispõe a lei que o crime anterior não conta para o efeito de reincidência se entre a sua prática e a prática do novo crime tiver ocorrido mais de cinco anos. A este requisito se chama, por vezes prescrição da reincidência.
É portanto essencial a determinação de um marco temporal que irá constituir o termo inicial em relação ao qual se irá contar o referido prazo. No caso vertente constata-se que a decisão recorrida considerou provado que arguido foi condenado no âmbito de Proc. nº 262/01.6GTABF, do 3º Juízo do Tribunal de Albufeira, por decisão transitada em julgado em 3.01.2003, pela prática desde data não concretamente apurada até 9.05.2001.
Se a data não foi concretamente apurada pode-se situar em 2001 ou em qualquer outro momento que se situe a coberto do funcionamento do instituto da prescrição do procedimento criminal. Porém, se é admissível tal amplitude na indeterminação do momento concreto em que foi praticado o crime anterior é evidente que não podemos afirmar se o mesmo se o mesmo se processou em momento que permita afirmar que entre a sua prática e a do crime pelo qual o arguido é agora condenado mediou o prazo de cinco anos ou inferior.
Tal indeterminação necessariamente terá de ser resolvida com apelo ao princípio in dubio pro reo tendo por adquirido que a referida indeterminação conduz á não consideração da existência da referida agravante.
Está assim arredada a possibilidade de condenação do arguido no quadro da reincidência, ao invés do que decidiu o acórdão recorrido, que neste ponto haverá que ser revogado.
*

A prova produzida não fornece elementos relevantes numa formulação positiva de qualquer juízo de prognose.Saliente-se, a propósito, que se é certo que assiste ao arguido o direito ao silêncio, o qual nunca poderá ser coarctado, não deixa de ser exacto a valoração positiva que merece a assunção de responsabilidade perante a sociedade. No percurso do arguido salienta-se apenas o processo de socialização pautado pelo difícil percurso de vida.
Face aos factores de medida da pena referidos na decisão recorrida importa, ainda, considerar que, se é certo que a quantidade de droga apreendida revela uma acentuada carga de perigo em termos do bem jurídico protegido, igualmente é certo que a mesma não assume uma dimensão tão intensa em termos de ilicitude que nos leve a fixar a medida da pena próximo do seu limite máximo. Por outro lado importa salientar que a actuação do arguido se caracteriza por uma forma de actuação que, embora já num patamar superior em termos de quantidade de droga apreendida, é rudimentar no que concerne a estrutura e circuito de distribuição.
Por último importa considerar que a condenação anterior, não funcionado como agravante qualificativa, constitui um poderoso instrumento de demonstração de uma culpa intensa e ausência de inflexão na procura de uma forma de vida pautada pelos comportamentos ilícitos.

Estamos, assim, em crer que as finalidades do artigo 71 do Código Penal e nomeadamente as exigências de prevenção geral e especial, bem como a retribuição da culpa expressa na acção do arguido, se satisfazem com a aplicação de uma pena de oito anos de prisão.


Termos em que decidem os juízes que constituem a 3ª Secção deste Supremo Tribunal, em parcial provimento do recurso interposto, condenar o arguido AA na pena de oito anos de prisão.
Custas pelo arguido
Taxa de Justiça 7 UC

Lisboa, 19 de Novembro de 2008

Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes


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(1) Relator Juiz Conselheiro Pereira Madeira