Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
64/19.3T9EVR.S1.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PENA PARCELAR
DUPLA CONFORME
INADMISSIBILIDADE
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 05/05/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I -    A sentença ou acórdão devem ser esgotantes e autossuficientes, no sentido de conhecer da totalidade das pretensões e de conter todos os elementos indispensáveis à compreensão do juízo decisório.

II -  Omissão de pronúncia significa ausência de conhecimento ou de decisão do tribunal sobre matérias que a lei impõe que o juiz resolva.

III - Ocorre quando o tribunal deixa de apreciar e julgar questões de facto e/ou de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos e não argumentos mais ou menos hipotéticos, opinativos ou doutrinários.

IV - Não é recorrível perante o STJ acórdão da Relação que, confirmando a condenação decretada em 1.ª instância, aplica pena não superior a 5 anos de prisão.

V - Irrecorribilidade que é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à matéria de facto ou à aplicação do direito.

VI - Na fixação do quantum da pena única a aplicar ao concurso de crimes, essencial é o grau da gravidade dos factos e as tendências da personalidade que o arguido neles revela.

Decisão Texto Integral:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda:


I. RELATÓRIO:

1. a condenação:

No Juízo Central Cível e Criminal … - Juiz …, no processo em epigrafe, mediante acusação do Ministério Publico, foi o arguido:

- AA de 58 anos e os demais sinais dos autos

julgado e por acórdão do tribunal coletivo, datado de 19-12-2019, condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo de:

- quatro crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1, do Código Penal, nas penas parcelares de quatro (4) anos de prisão para cada um deles;

- um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º n.º 1, do Código Penal, na pena de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão;

- um crime de coação agravada, p. e p. pelos artigos 154.º n.º 1 e 155.º n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal, na pena de três (3) anos de prisão; e

- em cúmulo jurídico, na pena única de doze (12) anos e seis (6) meses de prisão;

Foi ainda condenado a pagar a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros) a BB, acrescida de juros.

Inconformado, impugnou a decisão condenatória perante a 2ª instância.

O Tribunal da Relação ………, por acórdão de 24/11/2020, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão impugnada.


2.   o recurso:

Renitente com a confirmação da condenação, recorre, agora perante o Supremo Tribunal de Justiça.

Remata a alegação com as seguintes conclusões (em síntese):

1. A impossibilidade de procedência da acusação, no que respeita à prática pelo arguido, em autoria material e em concurso real, sob a forma consumada, de cinco crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, encontra-se pendente de decisão, porque o acórdão recorrido, não resolve a questão suscitada.

5. Apenas presumindo, pode ser entendido que o enquadramento jurídico dos factos plasmados na acusação do Ministério Público foi compreendido pelo arguido, e tal pode ser aferido através da contestação.

6. A decisão recorrida ignora que a contestação nega a prática dos factos, mas não se pronuncia sobre o enquadramento legal dos mesmos.

7.  a errada menção na acusação ao crime previsto no artigo 171º/1-a) do Código Penal, podia ter sido alterada pelo Tribunal de 1ª instância.

9. não alterando o enquadramento legal dos factos, o Tribunal de 1ª instância condenou o arguido pela prática de crime não previsto no Código Penal Português e o acórdão recorrido, sufraga, ilegalmente, tal entendimento.

10. A decisão do Tribunal da Relação pretende fazer crer que o arguido pela contestação, demonstrou haver compreendido o enquadramento jurídico dos factos, conclusão que ofende o previsto no artigo 379º/1-c) do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do artigo 425º/4 do mesmo diploma, inquinando de nulidade o acórdão recorrido.

11. não resolve a questão de direito alegada pelo recorrente, no que tange a haver o Tribunal de 1ª instância omitido a solução prevista no artigo 358º/1 e 3, o que a torna nula, por ofensa ao previsto no artigo 379º/1-c), aplicável por força da previsão do artigo 425º/4, todos do Código de Processo Penal.

12. O Tribunal da Relação ao entender que o Tribunal de 1ª instância poderia ter informado o arguido, antes da leitura da decisão final, por se tratar de matéria com alguma sensibilidade, e que seria um procedimento aconselhado pelas boas práticas, acolhe o alegado pelo arguido, sem que, contudo, solucione a questão de direito suscitada pelo recorrente.

13. O processo penal tem estrutura acusatória, impondo que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, o que a decisão recorrida contraria.

14. Num Estado de Direito não pode aceitar-se que o arguido seja condenado por crime não previsto no Código Penal.

15. O artigo 171º/1-a) não existe no Código Penal Português.

16. O Ministério Público acusou o arguido da prática de factos previstos no artigo 171º/3-a) do Código Penal.

18. O arguido não pode ser condenado por crime não previsto na legislação penal portuguesa.

20. A decisão recorrida viola o previsto no artigo 379º/1-c) do Código de Processo Penal, com a consequente nulidade do acórdão, ao manter a alteração da qualificação jurídica dos factos efectuada pelo Tribunal de 1ª instância, sem que o arguido haja de tal alteração sido informado.

22. O Tribunal da Relação escusou-se a resolver a questão principal suscitada pelo recorrente.

25. está também pendente de decisão a questão da existência de um único crime, da medida da pena, e da indemnização.

27. foi mantida a condenação do arguido pelo crime de coacção agravada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal.

31. imponderando que o tempo decorrido desde os factos, não permite atingir a necessária certeza para se poder concluir se o facto aconteceu, pelo que a condenação do arguido não é alcançável, o que também a decisão recorrida se escusou a decidir, em violação pelo previsto no Artigo 379º/1-c), aplicável por remissão do Artigo 425º/4, ambos do Código de Processo Penal, o que a torna ferida de nulidade.

32. A decisão recorrida ignora o facto de ser a menor filha de Pai ausente e de Mãe alcoólica, o que a levou a viver com os Avós maternos, descurando a influência de tais factos, na capacidade de discernimento desta, o que viola o previsto no Artigo 379º/1-c) do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do Artigo 425º/4 do mesmo diploma, tornando a decisão nula.

33. A decisão recorrida não se pronuncia sobre a falta de análise crítica de todos os elementos de facto na decisão do Tribunal de 1ª instância, em violação do previsto no Artigo 379º/1-c) do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do Artigo 425º/4 do mesmo dispositivo legal, com a consequente nulidade da decisão recorrida.

35. A decisão recorrida não pondera de forma suficiente a prova, vertendo a apreciação subjectiva da mesma.

37. a condenação do arguido pela prática de cinco crimes de abuso sexual de criança, deverá ser corrigida, devendo concluir-se pela existência de apenas um crime.

41. A decisão recorrida, aprecia erradamente as normas que regem a culpa, em violação do previsto nos Artigos 40º e 71º do Código Penal, assim, deve ser reformada.

44. contraria os preceitos que orientam a determinação da pena, mormente o previsto nos Artigos 71º/1 e 77º do Código Penal, deve ser revogada.

46. a confirmação de haver o arguido cometido um crime de coacção, é inalcançável, porque não se estriba em factos concretos, violando a norma incriminadora.

48. O acórdão recorrido, mantendo o valor indemnizatório de €15.000,00 (quinze mil euros), mantem a violação pelo princípio da equidade, o que viola o previsto nos Artigo 496º/3 do Código Civil.

49. ignora que a fixação de montante indemnizatório, se forma a partir do grau de culpa do responsável, da sua situação económica e da do lesado, das demais circunstâncias do caso e dos padrões geralmente adoptados na Jurisprudência, face ao previsto no artigo 494º do Código Civil.

53. O arguido não apresenta antecedentes criminais, com relevo para a matéria em julgamento nos autos, o que não se encontra suficientemente ponderado na decisão recorrida.

54. é pessoa socialmente integrada.

55. não se mostra viável a sua condenação em pena de prisão superior a três anos.

56. a suspender, por igual período, com a sujeição a regime de prova, como previsto nos artigos 50º, 51º e 52º, do Código Penal.

57. a decisão recorrida deve ser revogada, e substituída por outra que o condene a pagar indemnização no valor de €2000,00 (dois mil euros).

Peticiona:

I – Se anule o acórdão recorrido, com as legais consequências.

II – Se condene em pena de prisão não superior a três anos, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição deste a regime de prova;

III – se condenar a pagar quantia indemnizatória não excedente a dois mil euros.

Não indicando, autonomamente e no final, as normas jurídicas que entende terem sido violadas, todavia vêm mencionadas em vários números das conclusões.

2. resposta do Ministério Público:

O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de … respondeu defendendo a confirmação da decisão recorrida.

3. parecer do Ministério Público:

O Digno Procurador-Geral Adjunto no STJ em douto e sustentado parecer, enunciando e rebatendo, especificadamente, as diversas questões suscitadas pelo recorrente, pronuncia-se pelo improvimento do recurso.

Na parte que releva para a decisão, argumenta (em síntese):

Quanto à nulidade do acórdão nos termos dos art.º 379º, n º 1, alínea b), ex vi art.º 425º, n º 4, ambos do Código de Processo Penal, a conclusão a retirar é a de que inexiste na decisão sub judice qualquer modificação não substancial dos factos descrito na acusação, mais concretamente aquela a que se refere o n º 3 do art.º 358º, do Código de Processo Penal, conquanto a qualificação jurídico-penal em causa, na sua substância se manteve a mesma. Assim sendo, como é, não se verificando o pressuposto de que depende o cumprimento do n º 3, do art.º 358º, do Código de Processo Penal, falece a procedência da invocada nulidade de sentença. Invocada ou talvez não, conquanto o que se refere sempre neste ponto, é o vício do art.º 379º, n º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, omissão de pronúncia e excesso de pronúncia. Não obstante tão evidente erro material, do recorrente, percebendo-se claramente da sua motivação que era esse o vício que queria convocar, naturalmente, não deixamos de abordá-lo. Sem prejuízo, de parecer que também terá querido invocar mesmo a alínea c) do inciso em causa, e se assim foi, sem qualquer razão para tal, dado que como melhor se vê do acórdão recorrido este não só não omitiu pronúncia como analisou extensamente a questão invocada.

No atinente à medida da pena conjunta, verifica-se que a sua determinação obedeceu aos critérios legalmente impostos, isto é, foi efectuada a ponderação imposta pelo art.º 71º do Código Penal critério geral- bem como «considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente», - critério especial-. e observada a regra de formação da moldura penal abstracta do concurso, em conformidade com o preceituado no art.º 77º, nº.s 1 e 2, do Código Penal.

In casu a moldura penal abstracta do concurso, vai do mínimo de 4 anos ao máximo de 21 anos e 6 meses de prisão. Além de tudo que já vem assinalado, de notar que o facto do recorrente coabitar com a menor (situação que na redacção do art.º 177º, n º 1, al. b) do Código Penal, então vigente - a da Lei n º 59 / 2007, de 4 de Setembro - não se encontrava prevista, ao contrário do que hoje se passa, constituindo circunstância agravante) não impede que tal facto seja valorado negativamente, como agravante geral. Por outro, lado o facto provado sob o ponto 54º da [matéria] de facto, segundo o qual, o arguido: “Não manifesta consciência crítica”,

Bem evidencia, que para além das impressivas necessidades de prevenção geral positiva, também se perfilam fortes exigências de prevenção especial de socialização. Com efeito, como vem considerado, a culpa do recorrente é muito elevada, conquanto, aproveitando-se da facilidade que lhe dava o facto de estar a coabitar com a mãe das menores e com estas, cometeu os crimes porque vem condenado, como se retira do provado, sem estados de alma, sendo certo que as marcas deixadas pelo sucedido na ofendida BB menor de sete anos de idade, como se vê do provado e a literatura científica sobre o abuso sexual de crianças ( consequências na vida futura das vítimas), ensina, não podem deixar de se tidos em conta.

Entendemos assim, que a pena única fixada se mostra conforme aos princípios da proporcionalidade (proibição do excesso) de que derivam os subprincípios da adequação, exigibilidade (necessidade) e da proporcionalidade stricto sensu.

4. contraditório:

O arguido respondeu ao parecer do Ministério Público reafirmando a alegação de recurso.

«»

Dispensados os vistos, o processo foi à conferência.

Cumpre decidir.

II. B. OBJETO DO RECURSO:

O vertente recurso demanda a resolução das seguintes questões de direito:

- irrecorribilidade do acórdão da Relação com a ressalva da individualização da pena única:

- arguida nulidade por omissão de pronúncia; e a

- dosimetria da pena conjunta.

III. FUNDAMENTAÇÃO:

1. os factos:

Extrai-se do acórdão recorrida que a matéria de facto assente é a seguinte:

- “Factos Provados

1. A menor BB, nascida a …. de ... de 2005, atualmente com catorze anos de idade, é filha de CC e de DD.

2. Em data não concretamente apurada, mas em agosto de 2012, o Arguido iniciou um relacionamento amoroso com DD, com quem passou a viver em comunhão de leito, mesa e habitação, na Rua ……, em ……, em outubro de 2012.

3. Juntamente com o Arguido e com DD, a seu cargo e sob a sua assistência e proteção, viviam as filhas menores desta, BB e EE, bem como a filha daquele, FF, nascida a …. de junho de 2002.

4. Em data não concretamente apurada, mas depois de ... de … 2012, data em que BB completou sete anos de idade, aproveitando-se do ascendente que tinha sobre a menor que se encontrava, por vezes, à sua guarda e cuidados, bem como da confiança que, enquanto padrasto, lhe era votada por DD, o Arguido começou a procurar BB para com ela satisfazer os seus instintos libidinosos e obter prazer sexual.

5. Nesse quadro, em data não concretamente apurada, mas entre … de outubro de 2012 e meados de março de 2013, o Arguido encontrava-se sozinho naquela residência com BB, então com sete anos de idade, pegou na mesma ao colo e levou-a para o quarto onde ela pernoitava.

6. Já no quarto, o Arguido disse a BB para se despir, o que esta recusou, tendo aquele despido toda a roupa que aquela vestia e, em seguida, despiu-se.

7. Ato contínuo, o Arguido agarrou numa das mãos de BB, colocou-a sobre o seu pénis e movimentou-a para cima e para baixo, até obter uma ereção.

8. Após, o Arguido, que se encontrava de pé, deitou a menor BB, puxou-a até à beira da cama, abriu as pernas da mesma e colocou o seu corpo entre estas.

9. Ato contínuo, enquanto mantinha as mãos na cintura de BB, puxando-a para si, o Arguido tentou inserir o pénis ereto na vagina da mesma, aí o friccionando, obtendo, desse modo, gratificação sexual.

10. Entretanto, o telemóvel do Arguido tocou e este largou BB, a quem disse para não relatar os factos ocorridos, pois se o fizesse fazia mal à irmã dela.

11. Por ter sentido receio pela integridade física e vida de sua irmã, BB não contou o que o Arguido lhe tinha feito.

12.Em data não concretamente apurada, mas entre … de outobro de 2012 e meados de março de 2013, o Arguido pediu a BB que o acompanhasse ao quarto onde ele pernoitava com a mãe dela.

13. Nesse quarto, o Arguido despiu BB, em seguida, despiu-se e colocou uma das suas mãos sobre o pénis e fez, com a mesma, movimentos ascendentes e descendentes.

14. Ato contínuo, depois de deitar BB e de lhe abrir as pernas, colocando o seu corpo entre as mesmas, o Arguido tentou inserir o pénis ereto na vagina daquela, aí o friccionando, obtendo, assim, prazer sexual.

15. Entretanto, a menor EE bateu à porta do quarto e o Arguido largou BB.

16. Igualmente em data não concretamente apurada, mas entre … de outubro de 2012 e meados de Março de 2013, o Arguido levou BB para o quarto onde ele pernoitava, despiu-a e, de seguida, despiu-se.

17. Depois de pôr uma das suas mãos sobre o pénis e de fazer, com a mesma, movimentos ascendentes e descendentes até obter uma ereção, o Arguido deitou BB na cama, abriu as pernas da mesma e colocou o seu corpo entre estas.

18. Ato contínuo, enquanto mantinha as mãos na cintura de BB, puxando-a para si, o Arguido tentou inserir o pénis ereto na vagina da mesma, aí o friccionando até ejacular, obtendo, desse modo, gratificação sexual.

19. De seguida, o Arguido largou BB, ordenando à mesma que se fosse lavar.

20. Posteriormente, em data não concretamente apurada, mas entre … de outubro de 2012 e meados março de 2013, o Arguido pediu a BB que o acompanhasse ao quarto onde ele pernoitava.

21. Depois de a despir e de se despir e deitar BB, o Arguido acariciou a vagina da mesma com as mãos e os dedos.

22. De seguida, o Arguido tentou inserir o pénis ereto na vagina de BB, aí o friccionando, obtendo, assim, prazer sexual.

23. Igualmente, em data não concretamente apurada, mas entre … de outubro de 2012 e meados de março de 2013, o Arguido, conduzindo um veículo ligeiro, de marca, modelo e com matrícula não apurados, levou BB para um descampado.

24. Com o veículo imobilizado, o Arguido deitou para trás o banco onde BB se encontrava, deitando-a, e colocou o seu corpo sobre o corpo da mesma, encontrando-se ambos vestidos.

25. Após, o Arguido friccionou o seu corpo no corpo BB, assim obtendo gratificação sexual.

26. BB só contou a terceiros as condutas praticadas pelo Arguido, após três anos da sua ocorrência.

27. Ao atuar da forma descrita, nas cinco ocasiões atrás descritas, ciente de que BB era filha da sua companheira, com a qual residia e que, por vezes, ficava à sua guarda e cuidados, o Arguido agiu com o propósito concretizado de obter prazer sexual e de satisfazer os seus instintos libidinosos.

28. O que fez com consciência de que BB tinha sete anos de idade e de que as zonas do corpo em que lhe tocou constituem património íntimo e de reserva pessoal da sua sexualidade, de que punha em causa o são desenvolvimento da consciência sexual e de que ofendia os respetivos sentimentos de pudor, intimidade e liberdade sexual, causando-lhe grande sofrimento físico e psíquico, o que também pretendeu e fez, interrompendo o percurso normativo do desenvolvimento psicossexual, erotizando a menor antes de esta dispor de competências cognitivas, sociais e emocionais para regularizar a sua sexualidade, bem como para evitar o contacto sexual com um adulto.

29. Ao dizer à BB, então com sete anos de idade, que fizesse fazia mal à irmã, à data com três anos de idade, no sentido de atentar contra a sua integridade física ou vida, se ela relatasse os factos ocorridos, intimidando-a e fazendo-a recear pela vida daquela, o Arguido agiu com o propósito concretizado de a compelir a manter-se em silêncio, condicionando a sua liberdade de determinação, ação e expressão.

30. Ao atuar do modo descrito, o Arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

Pedido de Indemnização Civil

31. As condutas dos Arguido causaram a BB perturbação psicológica, experienciando esta, atualmente, sentimentos de vergonha, embaraço, desconforto com o seu corpo e repugnância por assuntos sexuais.

32. Também em consequência das condutas do Arguido, BB demonstra postura de revolta pelo que foi vítima.

31. As condutas dos Arguido causaram a BB perturbação psicológica, experienciando esta, atualmente, sentimentos de vergonha, embaraço, desconforto com o seu corpo e repugnância por assuntos sexuais.

32. Também em consequência das condutas do Arguido, BB demonstra postura de revolta pelo que foi vítima.

Mais se provou quanto às condições pessoais, económicas e respetiva inserção social do Arguido:

33. O Arguido é filho único o progenitor era funcionário numa … e a progenitora trabalhadora …….

34. Teve uma infância pautada por alguma violência, devido ao consumo em excesso de bebidas alcoólicas por parte do progenitor que tornava agressivo e, por vezes, violento.

35. O Arguido frequentou a escola em idade própria e abandonou os estudos, aos 16/17 anos, sem concluir o 9.º ano de escolaridade.

36. lniciou atividade laboral aos 17 anos como …… numa …, onde se manteve durante cerca de 3 anos, e passou, posteriormente, a trabalhar como …… e …. até ingressar no serviço militar obrigatório.

37. Após, trabalhou numa …, vindo a alterar de entidade patronal, por melhores condições económicas.

38. O Arguido dedicou-se a esta profissão até aos 54 anos, idade com que se reformou …..

39. O Arguido iniciou o consumo de bebidas alcoólicas, aos 26/27 anos e, embora consuma apenas em situações pontuais, quando faz fá-lo de forma excessiva.

40. Nunca foi sujeito a tratamento médico a esta problemática.

41. O Arguido casou aos 24 anos de idade, tendo tido deste relacionamento um filho deficiente que faleceu aos 21 anos de idade.

42. O casamento terminou após 17 anos.

43. O Arguido voltou a constituir família com 38 anos, que manteve durante cerca de 6 anos, tendo deste relacionamento dois filhos, atualmente com 17 e 15 anos de idade, que se encontram a residir com a progenitora e, com os quais mantém relação.

44. A filha do Arguido de 17 anos, após a separação, residiu consigo e com os seus pais, até ao falecimento destes, há cerca de 4 anos.

45. Há cerca de 2 anos, iniciou novo relacionamento amoroso.

46. O Arguido encontra-se preso preventivamente, desde … de outubro de 2019, à ordem do processo 1D29/19……….

47. Nessa data, o Arguido desenvolvia tarefas no bar da Sociedade …….

48. Residia sozinho em casa que herdou dos progenitores.

49. O Arguido apresenta uma visão da sexualidade fundamentada em valores tradicionais, remetendo esta questão para a esfera íntima do casal.

50. O Arguido manifesta necessidade de aceitação social e preocupação com a construção de uma imagem positiva.

51. No Estabelecimento Prisional, o Arguido mantém uma atitude cordata com colegas e superiores.

52. Em ambiente prisional, recebe visitas de um casal amigo, da filha e do filho.

53. O Arguido negou os factos em causa neste processo, apresentando uma postura de desculpabilização.

54. Não manifesta consciência crítica.

55. Estamos perante um indivíduo cujo processo de socialização, decorreu aparentemente num ambiente normativo.

56. É parecer da DGRSP que o Arguido, em caso de condenação, deve ser sujeito a uma intervenção técnica que contemple acompanhamento no âmbito da sexualidade, de modo a trabalhar condutas que eventualmente venham a apurar-se como desviantes.

57. O Arguido conta com as seguintes condenações:

• Foi condenado, no âmbito do processo comum n.º 19/08……, do Tribunal Judicial …, por sentença proferida no dia 21.04.2009, transitada em julgado em 21.05.2009, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, pela prática, em … .04.2008, de um crime de ofensa à integridade física simples, declarada extinta por despacho de 18.03.2010;

• Foi condenado, no âmbito do processo comum n.º 171/08……, do Tribunal Judicial ……, por sentença proferida no dia 09.10.2009, transitada em julgado em 09.11.2009, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, pela prática, em …/2008, de um crime de difamação, declarada extinta por despacho de 24.06.2010;

• Foi condenado, no âmbito do processo sumário n.º 16/15……, do Juízo de Competência Genérica……, por sentença proferida no dia 02.03.2015, transitada em julgado em 10.04.2015, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de três meses, pela prática, em … .03.2015, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, declaradas extintas por despachos de 20.07.2015 e 02.10.2015.

2. o direito:

a) da nulidade arguida:

O recorrente argui a nulidade do acórdão recorrido, alegando, - ainda que em manifesta contradição -, ter omitido conhecer e decidir as questões, - praticamente todas - que havia suscitado no recurso. Sumariando, assevera que o acórdão recorrido:

- “não se pronuncia sobre o enquadramento legal dos” factos (cls 1, 6, parte final e 22), não obstante logo de seguida afirmar que “manteve o enquadramento legal dos factos constante da acusação” (cls 8);

- “escusou-se a decidir” o efeito que o tempo provoca na incerteza da prova (cls. 31);

ignorou” as circunstâncias pessoais e a capacidade de discernimento da menor (cls 32);

- “não se pronuncia sobre a falta de análise crítica de todos os elementos de facto” (sem que se vislumbre onde possa amparar tal exigência)

Subsume as nulidades assim arguidas ao disposto nos arts. 425º n.º 4 e 379º n.º 1 al. ª c), ambos do CPP.

Adianta-se já que o acórdão recorrido não enferma das nulidades que o recorrente, confusa e repetidamente, lhe atribui, nem padece de qualquer outra que deva conhecer-se.

Vejamos porquê:

Dispõe o art. 425º n.º 4 do CPP, além do mais, que aos acórdãos proferidos em recurso se aplica o regime das nulidades da sentença consagrado no art. 379.º do mesmo diploma lega. Norma que n.º 1 al. ª c) estabelece-se:

1 - É nula a sentença (…):   

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…).

Configura, assim a denominada omissão de pronuncia.

É jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que omissão de pronúncia – e, consequentemente a correspondente nulidade -, somente se verifica quando o tribunal deixa de pronunciar-se sobre questões de facto ou de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas, expendidos pela acusação e pela defesa ou, na fase seguinte, pelos recorrentes em amparo das teses em presença.

A sentença ou acórdão devem ser autossuficientes, no sentido de conter todos os elementos indispensáveis à compreensão do juízo decisório. Se não aprecia e decide segmentos da matéria de facto ou questões jurídicas relevantes para a correta aplicação do direito à facticidade assente, enferma de incompletude que compromete a sua compreensão e aceitação.

A omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de conhecimento ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais submetam à apreciação do tribunal - artº 608.ºnº 2, do CPC e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

No caso, o arguido confunde, manifestamente, a decisão de improcedência com o que, repetidamente, denomina pela expressão: não resolve a questão de direito alegada pelo recorrente” (cls 1, 11, 12 e 22); está também pendente de decisão a questão” (cs. 25); “o que também a decisão recorrida se escusou a decidir (cls 31); e “não se pronuncia sobre” (cls 33).

O acórdão recorrido catalogou as questões que vinham suscitadas pelo recorrente entre as quais incluiu:

(a) correcção, no acórdão recorrido, de um erro de escrita da acusação (por, alegadamente, ter sido acusado de um (tipo de) crime inexistente no Código Penal. Simultaneamente invoca a nulidade do acórdão por, alegadamente, ter sido ali alterada a qualificação jurídica dos factos sem lhe ter sido dado prévio conhecimento)

 (c) pluralidade de crimes relativamente ao tipo “abuso sexual de criança

(d) erro de subsunção no que respeita ao crime de coacção

 (g) quantificação do montante indemnizatório

Conhecendo, especificadamente, da primeira questão entendeu que “da leitura da acusação resultava imediatamente muito claro qual o tipo de crime realmente imputado. E assim sucede por decorrer, quer da correcta indicação do nome do crime (abuso sexual de criança), quer da correcta especificação do seu artigo e número do artigo (art. 171º., n.º 1, do CP), quer da constatada inexistência de qualquer alínea no referido n.º 1 do art. 171.º do CP.” Assim, “não só o erro em causa é um evidente mero lapso de escrita, que cumpria corrigir logo que detectado (e assim se fez no acórdão), como o arguido revela, em concreto, tê-lo sempre percebido”.

Conclui que “o crime imputado e o crime conhecido no acórdão são efectivamente o mesmo (tipo de) crime. E mantendo-se assim inalterada a qualificação jurídica dos factos não tinha de haver lugar a cumprimento do art. 358.º do CPP”.

Aprecia e, - apoiando-se em doutrina que cita -, exclui a pretendida unificação num só crime dos cinco abusos sexuais de criança cometidos pelo arguido na BB.

Conhecendo da questão suscitada referente ao crime de coação reafirmou a fundamentação da decisão da 1ª instância, que nessa parte transcreve.

Finalmente, quanto à alegada violação do princípio da equidade na fixação do quantum indemnizatório, considerou ter sido devidamente ponderado pela decisão impugnada.

Assim, contrariamente ao alegado pelo recorrente, é insofismavelmente patente que o acórdão recorrido conheceu e decidiu a totalidade das questões que o arguido tinha apresentado na sua pretensão impugnatória perante o Tribunal da Relação. Não omitiu pronúncia de nenhuma questão suscitada ou de qualquer outra que exigisse conhecimento oficioso.

Conclui-se, assim, que o acórdão ora sob apreciação, não enferma da nulidade arguida pelo recorrente ou qualquer outra que pudesse determinar a respetiva anulação.

O recorrente, confunde, abusivamente, o que adjetiva de “não decisão” com a omissão de pronúncia. 

Improcede, por manifestamente infundada, a pretensão anulatória do recorrente.

b) rejeição parcial do recurso:

O Tribunal da Relação, reapreciando o julgamento da matéria de facto confirmou integralmente a decisão recorrida. Manteve a qualificação jurídica dos factos, a responsabilidade do arguido, a dosimetria das penas parcelares e única, bem como o quantum indemnizatório. Em consonância decidiu pela improcedência do recurso do arguido, confirmando o acórdão do Tribunal coletivo da comarca ……….

O recorrente, no recurso perante o STJ, repete as questões supra enunciadas e também repete, no essencial, a argumentação aduzida na impugnação da decisão da 1ª instância, incluindo a arguição da nulidade por omissão de pronúncia que pretende fundar na incorreta identificação da sub-numeração do tipo incriminador (o erro consistente na indicação de alínea ao n.º 1 do art.º 171º do Cód. Penal). Também insiste em reeditar algumas referências atinentes ao julgamento da matéria de facto.

Quanto à impugnação da decisão em matéria de facto não devia ignora que o STJ conhece exclusivamente de matéria de direito, sem prejuízo da deteção, oficiosamente, de nulidades e de vícios lógicos da decisão – art. 434º do CPP. Não pode, pois, entrar no reexame da decisão da facticidade julgada pelas instâncias.

Quanto às demais questões que o recorrente reedita, pretendo que sejam sindicadas pelo mais alto Tribunal da ordem judiciária comum, resulta que o direito ao recurso foi já garantido, obtendo a reapreciação em 2ª instância, através do acórdão recorrido. Pelo que não é a decisão recorrível, excetuando o segmento referente à dosimetria da pena única, porque superior a 8 anos de prisão.

Inadmissibilidade de recurso do acórdão da Relação firmada no art, 400º n.º 1 al. ª e) do CPP que se justifica porque o legislador entendeu reservar o acesso ao STJ para os casos de maior gravidade punitiva. Nos demais casos estabeleceu mecanismos destinados a obviar à repetição sucessiva de juízos, em sede de recursos, sobre as mesmas questões.

Como se sustentou no Ac. de 11/07/2019, deste Supremo Tribunal, a norma em apreço impede, ou tende a impedir, que um segundo juízo, absolutório ou condenatório, sobre o feito, seja sujeito a uma terceira apreciação pelos tribunais.

“O direito ao recurso em matéria penal inscrito como integrante da garantia constitucional do direito à defesa (art. 32.º, n.º 1, da CRP) está consagrado em um grau, possibilitando a impugnação das decisões penais através da reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e a medida da pena, sendo estranho a tal dispositivo a obrigatoriedade de um terceiro grau de jurisdição, por a Constituição, no seu art. 32.º, se bastar com um duplo grau de jurisdição, já concretizado no caso dos autos, aquando do julgamento pela Relação. As garantias de defesa do arguido em processo penal não incluem o 3.º grau de jurisdição”[1].

O Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente “caber na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados”Ac. n.º 357/2017.

O legislador da Lei n.º 59/98, com a alteração do regime da admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quis harmonizar objetivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do STJ a casos de maior gravidade.  Como se justifica na Proposta de Lei n.º 157/VII, que esteve na origem daquele diploma “os casos de pequena e média criminalidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça”.

Ideário reafirmado na Proposta de Lei n.º 77/XII (1.ª) (GOV), que deu lugar à Lei n.º 20/2013. Explicitando os motivos da visada clarificação expende-se queera essencial delimitar o âmbito dos recursos para o Supremo, preservando a sua intervenção para os casos de maior gravidade”.

O conjunto normativo em apreço, na sua literalidade significa que o acórdão da Relação que, confirmando a condenação decretada em 1ª instância, aplica pena não superior a 5 anos de prisão, não admite recurso.

Outro tanto decorrendo do estatuído da norma do art.º 432º conjugada com o disposto no art.º 400º n.º 1 al. ª f) que consagra a denominada dupla conforme, estabelecendo a irrecorribilidade do acórdão confirmatório da Relação quando a pena concretamente aplicada ao recorrente, singular ou única, não for superior a 8 anos de prisão.

Irrecorribilidade que é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluindo as nulidades, os vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à matéria de facto ou à aplicação do direito, confirmadas pelo acórdão da Relação, contanto a pena judicial aplicada não seja superior a 8 anos de prisão.

Trata-se de jurisprudência uniforme destes Supremo Tribunal, adotada e seguida no Ac. de 19/06/2019, desta mesma secção, onde se decidiu que “as questões subjacentes a essa irrecorribilidade, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, enfim das questões referentes às razões de facto e direito assumidas, não poderá o Supremo conhecer, por não se situarem no círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo Tribunal”.

O acórdão da Relação de que foi interposto recurso é, pois, pelo exposto, irrecorrível, quanto às penas parcelares aplicadas, (…)”[2].

Também no Ac. de 4/07/2019, se decidiu: “2. Para efeitos do disposto no art. 400º, nº 1, e), do CPP, a pena aplicada tanto é a pena parcelar, cominada para cada um dos crimes, como a pena única, pelo que, aferindo-se a irrecorribilidade separadamente, por referência a cada uma destas situações, os segmentos dos acórdãos proferidos em recurso pelo tribunal da Relação, atinentes a crimes punidos com penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão, são insuscetíveis de recurso para o STJ, nos termos do art. 432.º, n.º 1, b), do CPP. 3. Irrecorribilidade que abrange, em geral, todas as questões processuais ou de substância que (quanto a tais crimes) tenham sido objeto da decisão, nomeadamente, os vícios indicados no art. 410.º, nº 2, do CPP, as nulidades das decisões (arts. 379.º e 425.º, n.º 4, do CPP) e aspetos relacionados com o julgamento dos mesmos crimes, aqui se incluindo as questões atinentes à apreciação da prova – v.g., as proibições de prova, o princípio da livre apreciação da prova e, enquanto expressão concreta do princípio da presunção de inocência, o in dubio pro reo –, à qualificação jurídica dos factos e com a determinação das penas parcelares 4. Conexamente, a alínea f) do n.º 1 do art. 400.º, do CPP, impossibilita o recurso de decisões da Relação que confirmem decisão condenatória da 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, pelo que, em caso de “dupla conforme”, o STJ não pode conhecer de qualquer questão referente aos crimes parcelares punidos com pena de prisão inferior a 8 anos, apenas podendo conhecer do respeitante aos crimes que concretamente tenham sido punidos com pena de prisão superior a 8 anos e da matéria relativa ao concurso de crimes, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso” [3]..

Nesta interpretação, que aqui se segue, não é recorrível o acórdão do Tribunal da Relação proferido nos autos na parte em que confirmou a condenação decretada pela 1ª instância e decidiu não se verificar a nulidade que o arguido continua a assacar à acórdão do tribunal coletivo da comarca ……, na parte referente à qualificação jurídica dos factos, designadamente o número e tipo de crimes cometidos pelo arguido, incluindo, evidentemente, o crime de coação, a determinação das penas parcelares aplicadas e bem assim a fixação do montante da indemnização arbitrada à vítima.

O acórdão da Relação que, apreciou aquelas questões suscitadas pelo recorrente, - confirmando a decisão da 1ª instância -, garantiu e, nessa parte, esgotou o direito ao recurso consagrado na Constituição da República e no direito convencional universal e europeu. Essas mesmas questões não podem ser sindicadas em terceiro grau de jurisdição.

Assim, ainda que o acórdão confirmatório admita recurso em mais um grau em razão da medida da pena única aplicada, não pode admitir-se, na parte em que visa o reexame dessas mesmas questões, já duplamente apreciadas e uniformemente decididas.

Pelo que, em conformidade com o exposto, à luz das disposições conjugadas dos art.º 432º n.º 1 al. ª b) e 400º n.º 1 al.ª e) - e também pela alínea f) - do CPP, por não ser legalmente admissível mais um grau de recurso, perante o STJ, das referidas questões que a Relação, reapreciando, confirmou, este Supremo Tribunal, não pode senão decidir-se pela rejeição, nessa parte, do recurso do arguido –art.s. 420.º n.º 1 alínea b) e 414.º n.º 2 do CPP.

Rejeição não inviabilizada pela decisão de admissão no Tribunal da Relação –art, 414.º, n.º 3 do CPP.

c) medida da pena única:

O acórdão admite recurso no segmento referente à individualização da pena única, não obstante se verificar, também nesta questão, a dupla conformidade. E admite recurso perante o STJ porque a pena em que o recorrente vem condenado está fixada em medida superior a 8 anos de prisão – cfr. art.º 400º n.º 1 al. ª f) e 432º n.º 1 al. ª b), ambos do CPP

Contudo, o recorrente não esgrime argumentação especificadamente dirigida à redução da pena única de 12 anos e 6 meses de prisão que, em cúmulo jurídico, lhe foi aplicada nos autos. Neste âmbito mais não fez que referir-se, genericamente, à medida da pena, à culpa e “aos preceitos que orientam a determinação da pena, mormente o previsto nos Artigos 71º/1 e 77º do Código Penal” (cls. 44). E, convocando o passado criminal e a alegada inserção social, termina peticionando a aplicação de pena não superior a três anos de prisão. Descurando que nem tão pouco seria admissível semelhante quantum, porque a moldura mínima da pena do concurso é, desde logo, superior, tem o limiar inferior nos 4 anos de prisão.

Pelo que, a única leitura permitida pela alegação do recorrente é a de que vem reclamar a absolvição da prática do crime de coação, pretendendo ser condenado por apenas um crime de abuso sexual de criança agravado (que unificaria os vários abusos sexuais cometidos), na pena de 3 anos de prisão. Leitura confirmada também pela nula referência ao comportamento global, aos factos em conjunto, aos crimes do concurso e às penas parcelares em que vem condenado. Em suma, sem nenhuma referência ao critério material especial de individualização da pena única, apesar de mencionar, sem mais, o art. 77º do Cód. Penal.

Não vindo questionada, - com argumentos específicos -, a medida da pena conjunta efetivamente aplicada, não pode o Supremo Tribunal, entrar no reexamine da respetiva correção, necessariamente e unicamente, à luz do critério especial firmado pelo legislador na norma substantiva citada e, conjugadamente, do princípio da proporcionalidade ou da justa medida, que o arguido também não convoca,

Ainda assim, reexaminando sumariamente, acrescenta-se que não só não vêm aduzidas como também não se deparam razões que pudessem justificar intervenção corretiva na pena conjunta concretamente decretada.

O concurso efetivo por que o arguido vem condenado inclui seis (6) crimes, sendo cinco (5) de abuso sexual de criança e um (1) de coação agravada. Aqueles definidos pelo legislador como criminalidade especialmente violenta – art.º 1 al. ª l) e o indicado em último lugar como criminalidade violenta – al. ª j) da norma citada do CPP.

A moldura penal do concurso em apreço tem o limiar mínimo de 4 anos de prisão e o máximo de 21 anos e 6 meses de prisão.

A 1ª instância fixou e a Relação confirmou a pena singular aplicada ao arguido pela prática de cada um dos quatro crimes de abuso sexual de criança em medida ligeiramente abaixo do limiar médio da respetiva moldura penal. Fixando-a entre o quarto e o quinto inferior para o outro crime do mesmo tipo. E ligeiramente acima da metade da moldura penal do crime de coação agravada. Por sua vez, a pena única vem fixada em quantum praticamente igual ao médio da moldura penal do concurso em causa. Comparação quantitativa que se realça por traduzir consistência e proporcionalidade entre a medida da esmagadora maioria das penas parcelares e a pena conjunta. Isto é, por evidenciar que a individualização das penas parcelares e também da pena única se pautou por critérios uniformes de modo que se situou em ambas as situações ao nível do limiar médio das respetivas molduras penais.

Ainda que a decisão recorrida não tenha considerado este método, aplicando o fator de compressão, - que, entende este Supremo Tribunal, deve utilizar-se como critério aferidor, de modo a excluir quantificações comandadas por algum subjetivismo do julgador -, conclui-se que a pena conjunta decretada poderia resultar da adição ou, dito de outra maneira, do aproveitamento de metade de cada uma das restantes cinco penas parcelares. Pelo que, também por aqui a constância da medida da adição se apresenta conforme à homogeneidade da maioria dos crimes do concurso e à gravidade legal (e sociológica) das fenomenologias criminais em apreço.

Salienta-se que o critério para a determinação da pena está consagrado no art. 77.º(Regras da punição do concurso), n.º 2, do Código Penal, estatuindo.

“2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos (…); e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Nesta linha, doutrina e jurisprudência coincidem em especificar que na fixação do quantum da pena única a aplicar ao concurso de crimes, essencial é o grau da gravidade dos factos e as tendências da personalidade que o agente neles revela.

Segundo J. Figueiredo Dias, na escolha da medida da pena única “tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)[4].

Como se sustenta no Acórdão 14-09-2016[5], relevante é a interconexão entre os diversos ilícitos e a sua compreensão à face da personalidade do agente.

Da facticidade provada consta que o arguido “negou os factos” “apresentando uma postura de desculpabilização” (ponto 53). “Não manifesta consciência crítica” (ponto 54). Carece de intervenção preventiva contra a tendência para comportamentos desviantes no domínio da sexualidade.

Tem histórico criminal registado por ter cometido, entre outros, crimes de ofensa à integridade física e contra a honra.

Ressuma - da identificação (no acórdão da 1ª instância) e da facticidade provada - que tem outro processo pendente à ordem do qual está preventivamente preso (à data no Estabelecimento Prisional …… à ordem do Processo n.º 1029/19……),

A matéria de facto assente documenta as consequências devastadoras para a vítima, à data dos factos uma criança com 7 anos, filha da então companheira do arguido.

No acórdão recorrido, designadamente por transcrição da decisão da 1ª instância, explicita-se a interconexão entre os factos do “comportamento global” e deste com a personalidade do arguido, expondo, sinteticamente, o procedimento que orientou a confirmação da individualização da pena conjunta.

Como aí bem se sublinha, a culpa do arguido é realmente muito elevada, tendo agido com dolo direto, intenso e persistentemente renovado. Tinha consciência plena da idade da criança vítima e da relação enquanto integrante da mesma família alargada.

A personalidade revelada pelo “comportamento global” e pela postura do arguido perante os factos evidencia nula ou muita baixa autocensura e escassa vontade de ressocialização e bem assim que o concurso de crimes é a expressão de uma tendência criminosa do arguido, constituindo fatores de elevado e imediato risco na reiteração da mesma atividade criminosa.

Com pertinência para o caso, consta dos manuais de psiquiatria que a “pedofilia” tem normalmente subjacente uma personalidade antissocial com forte desprezo pelos direitos e sentimentos dos outros, propensa a explorar outras pessoas para a sua satisfação pessoal, desconsiderando danos causados e que não só não sente remorso ou culpa como se desresponsabiliza pelos atos cometidos[6].

No mesmo Manual Diagnósticos e Estatística de Transtornos Mentais/DSM-5, da AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, afirma-se que os: “indivíduos com transtorno da personalidade antissocial não têm êxito em ajustar-se às normas sociais referentes a comportamento legal (Critério Al). Podem repetidas vezes realizar atos que são motivos de detenção (…). Pessoas com esse transtorno desrespeitam os desejos, direitos ou sentimentos dos outros”.

Em suma, a gravidade dos factos que integram o concurso de crimes cometido pelo arguido documentam uma situação na qual se impõe fortes exigências de prevenção geral positiva, existindo na comunidade um vivo sentimento de grande repulsa pelos crimes contra a autodeterminação sexual das crianças, reclamando uma punição exemplar e os tribunais, ao administrar a justiça, no cumprimento do dever de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, postulado no artigo 202º, nº 2 da CRP, não podem ficar indiferentes a estas realidades[7]. Sobressaem também necessidades de prevenção especial, pelas razões referidas, bem documentadas na decisão recorrida.

Urge que o arguido interiorize o mal dos crimes e a reprovação ético-jurídica destas suas condutas e, se não quiser corrigir-se, pelo menos se adapte a viver em sociedade sem reincidir.

Tudo a impor a necessidade de aplicação ao arguido de uma pena única de significativa duração, capaz de reafirmar e estabilizar a validade e vigência dos bens jurídicos violados e que se contenha nos limites da culpa e, neste âmbito, com dimensão necessária à prevenção da reincidência.

Assim, entende-se que a pena única em que o arguido vem condenado nos autos é suficiente e adequada a proteger o importante bem jurídico repetidamente violado, é proporcional à elevada censurabilidade da sua conduta, se atêm à gravidade do “comportamento global” e à personalidade do arguido revelada pelos seis crimes cometidos, cinco de abuso sexual de crianças e permite satisfazer as vivas necessidades de prevenção especial de ressocialização que no caso se fazem sentir e se contém nos limites da proporcionalidade.

Consequentemente, confirma-se, porque fundamentadamente quantificada, a pena única imposta ao recorrente – 12 anos e 6 meses de prisão.

Em conformidade com o exposto, improcede, também nesta parte, o recurso do arguido.

D -  DECISÃO:

Nestes termos, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, decide:

a) indeferir a nulidade arguida pelo recorrente;

b) rejeitar o recurso quanto às demais questões suscitadas, por inadmissibilidade legal – arts. 400º nº 1 e), 414º n 2 e 420º nº 1 al. b), todos do CPP -, com exceção do respeitante à medida da pena única;

c) negar provimento ao recurso quanto à medida da pena única, que se mantém.


*


Custas pelo arguido – art.º 513º n.º 1 do CPP -, fixando-se a taxa de justiça em 7UCs - art.º 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


Lisboa, 5 de maio de 2021.


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Atesto o voto de conformidade do C.º Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[8] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro Adjunto)


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[1] Proc. 1203/16.1T9VNG.P1.S1. in www.dgsi.pt.
[2] Proc.  881/16.6JAPRT-A.P1.S1, in www.dgsi.pt
[3] Proc. 461/17.9GABRR.L1.S1, in www.dgsi.pt
[4] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 291.
[5] 3ª sec. Proc. 71/13.0JACBR.C1.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[6] Manual MSD.
[7] Ac. STJ de 13-07-2017, proc. 1205/15.5T9VIS.C1.S2, www.dgsi.pt.
[8]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.